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A Hermenêutica Romântica de Wilhelm Dilthey Cynthia Lins Hamlin* Introdução 1. O termo hermenêutica, cunhado no século XVII, refere-se ao problema da compreensão e/ou interpretação do significado de textos, ações humanas e produtos culturais em geral. Inicialmente ligado a um contexto teológico, designando a arte de se compreender o conteúdo verdadeiro da Bíblia, a partir do século XVIII passa a ser também utilizado pela filologia, como a arte de se compreender a literatura clássica, e pela jurisprudência, como a arte de se compreender as leis do direito. A partir do século XIX, alguns teóricos alemães da chamada Escola Histórica estenderam a idéia de compreensão para o domínio da história: a hermenêutica passou a designar o método da interpretação dos produtos históricos, tornando-se, assim, um método relativo ao que hoje se conhece por ciências sociais. Esta fase da hermenêutica é normalmente conhecida como hermêutica romântica, pelas relações estreitas da Escola Histórica com o romantismo alemão. Já no século XX, a hermenêutica assume um caráter mais filosófico, no sentido de que compreender e interpretar não deve ser considerado apenas um empreendimento metodológico, e portanto relativo à ciência, mas algo que diz respeito ao todo da experiência dos seres humanos no mundo, experiência esta que tem na linguagem uma dimensão fundamental. 2. A partir destas considerações, podemos nos apoiar em William Outhwaite (1987: 61- 63) e identificar duas teses hermenêuticas: Uma primeira tese, específica e limitada, que argumenta em favor da dimensão hermenêutica das ciências humanas, relacionando-se, portanto, àquelas variantes de teoria social (teorias interpretativas) que se preocupam com o papel da compreensão ou Verstehen. Uma segunda tese, geral ou universal, mais contemporânea, desenvolvida pelo filósofo Martin Heidegger e difundida por Hans- Georg Gadamer, segundo a qual a interpretação hermenêutica precede toda investigação científica dada a universalidade da linguagem humana como meio de interação e de compreensão. Neste sentido, o papel fundamental da reflexão hermenêutica seria o de mediar entre a linguagem da ciência e a linguagem utilizada pelos atores sociais na vida cotidiana. 3. A primeira tese, contrariamente à segunda, concebe a hermenêutica fundamentalmente como método , mais especificamente, como um método compreensivo, relativo às ciências humanas e que não encontraria equivalente nas ciências da natureza. É com esta tese particular da hermenêutica que deverei me ocupar aqui, especialmente como desenvolvida por Wilhelm Dilthey. Mas antes de investigar a concepção de hermenêutica desenvolvida por Dilthey, seria conveniente efetuar algumas considerações de caráter geral acerca da noção de compreensão ou Verstehen e sua relação com a primeira tese hermenêutica. O Verstehen e a Hermenêutica 4. Compreensão ou Verstehen diz respeito a uma forma de atividade conceitual considerada por alguns como específica às ciências sociais e humanas, e que se contrapõe à de explicação ou Erklären, relativa às ciências da natureza. No que se refere aos seus fundamentos, a doutrina do Verstehen repousa em uma suposta diferença entre

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A Hermenêutica Romântica de Wilhelm Dilthey

Cynthia Lins Hamlin∗

Introdução

1. O termo hermenêutica, cunhado no século XVII, refere-se ao problema da compreensão e/ou interpretação do significado de textos, ações humanas e produtos culturais em geral. Inicialmente ligado a um contexto teológico, designando a arte de se compreender o conteúdo verdadeiro da Bíblia, a partir do século XVIII passa a ser também utilizado pela filologia, como a arte de se compreender a literatura clássica, e pela jurisprudência, como a arte de se compreender as leis do direito. A partir do século XIX, alguns teóricos alemães da chamada Escola Histórica estenderam a idéia de compreensão para o domínio da história: a hermenêutica passou a designar o método da interpretação dos produtos históricos, tornando-se, assim, um método relativo ao que hoje se conhece por ciências sociais. Esta fase da hermenêutica é normalmente conhecida como hermêutica romântica, pelas relações estreitas da Escola Histórica com o romantismo alemão. Já no século XX, a hermenêutica assume um caráter mais filosófico, no sentido de que compreender e interpretar não deve ser considerado apenas um empreendimento metodológico, e portanto relativo à ciência, mas algo que diz respeito ao todo da experiência dos seres humanos no mundo, experiência esta que tem na linguagem uma dimensão fundamental.

2. A partir destas considerações, podemos nos apoiar em William Outhwaite (1987: 61-63) e identificar duas teses hermenêuticas: Uma primeira tese, específica e limitada, que argumenta em favor da dimensão hermenêutica das ciências humanas, relacionando-se, portanto, àquelas variantes de teoria social (teorias interpretativas) que se preocupam com o papel da compreensão ou Verstehen. Uma segunda tese, geral ou universal, mais contemporânea, desenvolvida pelo filósofo Martin Heidegger e difundida por Hans-Georg Gadamer, segundo a qual a interpretação hermenêutica precede toda investigação científica dada a universalidade da linguagem humana como meio de interação e de compreensão. Neste sentido, o papel fundamental da reflexão hermenêutica seria o de mediar entre a linguagem da ciência e a linguagem utilizada pelos atores sociais na vida cotidiana.

3. A primeira tese, contrariamente à segunda, concebe a hermenêutica fundamentalmente como método, mais especificamente, como um método compreensivo, relativo às ciências humanas e que não encontraria equivalente nas ciências da natureza. É com esta tese particular da hermenêutica que deverei me ocupar aqui, especialmente como desenvolvida por Wilhelm Dilthey. Mas antes de investigar a concepção de hermenêutica desenvolvida por Dilthey, seria conveniente efetuar algumas considerações de caráter geral acerca da noção de compreensão ou Verstehen e sua relação com a primeira tese hermenêutica.

O Verstehen e a Hermenêutica

4. Compreensão ou Verstehen diz respeito a uma forma de atividade conceitual considerada por alguns como específica às ciências sociais e humanas, e que se contrapõe à de explicação ou Erklären, relativa às ciências da natureza. No que se refere aos seus fundamentos, a doutrina do Verstehen repousa em uma suposta diferença entre

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Nota
Duas teses hermenêuticas: 1) uma tese mais específica e limitada que argumenta em favor da dimensão hermenêutica das ciências humanas, relacionando-se, portanto, às variantes da teoria social que se preocupam com o papel da compreensão (teorias interpretativas); 2) uma tese mais geral ou universal, desenvolvida por Heidegger e difundida por Gadamer, segundo a qual a interpretação hermenêutica precede toda investigação científica, dada a universalidade da linguagem humana como meio de interação e de compreensão. A hermenêutica seria, então, uma instância de mediação entre a linguagem científica e a linguagem utilizada pelos atores na vida cotidiana.
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Nota
Dessa forma, a primeira tese, a mais específica, concebe a hermenêutica fundamentalmente como método, especialmente como método compreensivo relativo ás ciências humanas (sem equivalente nas ciências naturais). Dilthey trabalha desenvolvendo esta tese.
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mente e tudo o que não é mente, podendo ser considerada um desenvolvimento da velha distinção filosófica entre mente e matéria. Esta distinção, talvez tão antiga quanto a própria filosofia, foi assumindo um caráter particular à medida em que se formavam as diversas disciplinas que, mais tarde, viriam a constituir as ciências sociais. É justamente a partir do processo de formação destas ciências, especialmente no século XIX, que se pode avaliar a idéia de compreensão através da divisão da arena intelectual em dois campos opostos: o campo dos naturalistas, representado sobretudo pelos positivistas, que acreditavam que as ciências sociais deveriam ser moldadas segundo as ciências físicas e biológicas da época, e o campo dos anti-positivistas anti-naturalistas, cujos movimentos melhor organizados eram o neo-idealismo e o neo-kantianismo. Para estes últimos, as teorias relativas ao mundo social deveriam se preocupar em compreendê-lo, interpretando os significados presentes neste e ausentes no mundo natural.

5. De forma geral, portanto, as teorias compreensivas ou interpretativas constituem um empreendimento anti-naturalista, isto é, focam a singularidade ou especificidade do mundo social em relação ao mundo natural (argumento ontológico) e/ou a idéia de que este mundo social não pode ser entendido da mesma maneira que o mundo natural porque os interesses cognitivos que orientam o conhecimento do primeiro são distintos daqueles que orientam o conhecimento do mundo natural (argumento metodológico). Segundo este argumento metodológico, enquanto que as ciências sociais se interessam por aquilo que é único ou singular, as ciências naturais se interessam pelo que é geral ou, mais apropriadamente, pelo que se repete ou pelo que não varia.

6. Existe um grande número de abordagens interpretativas nas ciências sociais, como a sociologia interpretativa de Max Weber, a fenomenologia social de Alfred Schutz, a etnometodologia de Harold Garfinkel, a dramaturgia de Ervin Goffman, o idealismo lingüístico de Peter Winch, a hermenêutica crítica de J. Habermas, etc. Vale salientar, entretanto, que nem toda abordagem Verstehende ou compreensiva é considerada hermenêutica, embora as fronteiras nem sempre possam ser estabelecidas com clareza, pois a hermenêutica metodológica, concebida inicialmente como o método de compreensão dos fenômenos humanos, assume pelo menos duas orientações distintas (uma "individualista" e outra "coletivista") que posteriormente servirá de critério distintivo entre a hermenêutica e outras abordagens compreensivas.

7. Também é importante considerar que nem toda teoria interpretativa é anti-naturalista num sentido estrito, dado que pode ser combinada com a explicação causal, não distinguindo, portanto, a explicação das ciências sociais daquela preconizada pelas ciências naturais. Finalmente, a compreensão ou Verstehen pode ser considerada um aspecto tão marginal das ciências sociais que as teorias construídas com seu auxílio podem não ser consideradas interpretativas, nem mesmo em um sentido amplo. Nos dois últimos casos, a compreensão ou Verstehen não é considerada um método, stricto sensu, mas uma espécie de introdução à investigação do mundo social, cuja importância tende a variar de autor para autor. Tal gradação pode ser exemplificada através das concepções de Verstehen de Otto Neurath, Theodore Abel e Raymond Boudon.

8. Para Otto Neurath, representante do positivismo lógico do Círculo de Viena, o que o qualifica como um naturalista de tipo reducionista, a teoria social deveria seguir os moldes das teorias naturais se tiver qualquer pretensão à cientificidade. No entanto, embora Neurath não aceitasse a possibilidade de uma teoria social interpretativa, acreditava que a compreensão ou Verstehen poderia ser útil ao cientista social, no

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Nota
Teoria da Verstehen: a compreensão como oposição à explicação (própria das ciências naturais). A ideia implícita na noção de Verstehen é a de que há uma diferença entre mente e tudo o que não é mente - compreensão, baseada no kantismo, de que os objetos não tem significados por si mesmos, mas são dados pela mente, pela razão humana. Esta distinção entre explicação e compreensão, na ciência, se dá a partir da diferenciação entre positivas e anti-positivistas, cujos movimentos melhor organizados eram o neo-idealismo e o neo-kantismo. Para estes últimos, as teorias relativas ao mundo social deveriam se preocupar em compreendê-lo, interpretando os significados presentes neste e ausentes no mundo natural.
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sentido de fornecer certos insights acerca da realidade que se propunha a estudar. Mas este procedimento era comparado a uma boa xícara de café, que pode reavivar o cientista e torná-lo mais alerta, sem que beber café possa ser considerado parte do método científico. Posto isto, a compreensão era externa à ciência e absolutamente dispensável, não existindo um método chamado Verstehen.

9. Para autores como Theodore Abel (1953), o Verstehen seria uma espécie de introdução propedêutica à explicação dos fenômenos sociais, no sentido de que apenas através da compreensão do significado das ações dos atores sociais seria possível a formulação de hipóteses causais que possibilitariam a explicação dos fenômenos em questão. Neste sentido específico, conforme foi salientado por autores como Popper, para quem a origem das hipóteses a serem testadas pela ciência não deve ser objeto de preocupação metodológica (diz respeito à psicologia), o Verstehen é um recurso metodológico de formação de hipóteses nas ciências sociais, isto é, também não é um método, strictu sensu.

10. No outro extremo deste contínuo, podemos tomar como exemplo a concepção de Verstehen de Raymond Boudon. Para este autor, a compreensão também não é um método que se opõe à explicação causal, pois o objetivo de qualquer ciência, seja natural ou social, é a explicação causal. A compreensão é simplesmente um tipo particular de explicação relativa à ação humana e que não se encontra "acima" nem independe do nível causal:

(...) a noção de compreensão aplica-se exclusivamente (...) à operação de projeção através da qual o ator analisa o comportamento, a atitude ou os atos de um outro indivíduo. Neste sentido, a compreensão é sempre compreensão do ator individual. Uma ação individual pode ser compreendida; um comportamento coletivo deve ser explicado. (Boudon; 1989b: 243).

11. Para Boudon, a compreensão ou Verstehen deve se distinguir da interpretação hermenêutica, esta sim, considerada um método anti-naturalista que se opõe à explicação causal. Embora Boudon não negue que a interpretação hermenêutica possa apresentar algum interesse para as ciências sociais, no sentido de fornecer relações hipotéticas entre fenômenos (coletivos), as mesmas não devem ser consideradas ciências interpretativas, mas explicativas. A interpretação pode representar, portanto, uma função heurística e também de inteligibilidade, mas não deveria ser tomada como geral e necessária à explanação dos fenômenos sociais.

12. Diametralmente oposta a esta perspectiva encontra-se a abordagem interpretativa e fortemente anti-naturalista de Peter Winch e que também não se confunde com a hermenêutica tal qual representada pela primeira tese exposta acima. Segundo Winch (1958), o objetivo das "ciências sociais" (este termo torna-se um tanto desprovido de sentido para autores como Winch) é o de elucidar o significado de idéias coletivas gerais (formas de vida) que nos dizem como proceder em situações específicas. Para Winch, o significado de uma ação deriva, portanto, de um sistemas de regras (sócio-culturais) que guiam o comportamento, e não das intenções dos atores ou de leis psicológicas ou comportamentais. Compreender a natureza de um fenômeno social é elucidar o significado de uma forma de vida e, dado que este é também o objetivo da epistemologia, as ciências sociais têm uma relação muito mais próxima com a filosofia

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do que com as ciências naturais. Relações causais, baseadas em leis, são absolutamente alheias ao sentido e não têm lugar nas ciências sociais. Estas devem se preocupar com conceitos, que são relativos às idéias (coletivas) que constituem o domínio sócio-cultural e, por esta razão, o método das ciências naturais não pode ser tomado como base para as ciências sociais.

13. O que se pode inferir destas breves considerações é que a compreensão ou Verstehen assume uma variedade de sentidos nas ciências sociais cuja especificidade deve ser determinada caso a caso. Em suas origens, entretanto, a ciência social compreensiva ou intepretativa não se distingue de uma ciência social hermenêutica, e é na obra dos chamados hermenêutas românticos, especialmente na de Wilhelm Dilthey, geralmente considerado o pai da ciência social compreensiva, que podemos encontrar as raízes de um dos debates mais pervasivos das ciências sociais: o de seu estatuto científico.

As Origens da Hermenêutica Romântica

14. A hermenêutica romântica é normalmente concebida como o início da hermenêutica como disciplina acadêmica e diz respeito às tentativas de se construir uma teoria da interpretação efetuadas no sec. XIX por autores como F. Schleiermacher, J.G Droysen e W. Dilthey. Problemas relativos à compreensão e à interpretação são, no entanto, bem mais antigos, datando pelo menos do século XVII e podendo ser relacionados à interpretação humanística filológica (da literatura clássica), da jurisprudência e da teologia. (Gadamer 1998). Desta pré-história da hermenêutica, talvez a interpretação teológica mereça maior destaque, pois teve uma influência significativa no desenvolvimento das outras duas, assim como na obra de Schleiermacher, um dos primeiros teóricos da hermenêutica romântica.

15. A interpretação teológica relaciona-se sobretudo às questões colocadas pela Reforma Protestante à leitura tradicional (católica) da Bíblia: A compreensão da Bíblia estava necessariamente ligada aos princípios da fé católica ou era independente destes? A Bíblia deveria ser compreendida como um todo, ou como narrativas distintas, escritas com propósitos distintos? (Warnke; 1987). Para os pensadores da Reforma, notadamente Lutero, o sentido da Bíblia não era inequívoco nem homogêneo ao longo de suas passagens; o significado das passagens individuais só poderia ser apreendido a partir do conjunto da Escritura Sagrada e, de maneira inversa, este conjunto só poderia ser apreendido a partir da compreensão das passagens individuais. Este é o famoso círculo hermenêutico, que estabelece uma relação de dependência extrema entre parte e todo, e que serve de base ao princípio de interpretação de texto desenvolvido por Lutero e seus seguidores: "todos os aspectos individuais de um texto devem ser compreendidos a partir do contextus, do conjunto, e a partir do sentido unitário para o qual o todo está orientado, o scopus."(Gadamer; 1998: 276).

16. Segundo Gadamer (Ibid.: 277-78), o fundamento deste princípio é dogmático, na medida em que estabelece que a própria Bíblia é uma unidade. Alguns autores reconheceram, entretanto, que a compreensão adequada da Bíblia implicava no reconhecimento da diversidade de seus autores, o que, por sua vez, implicava no abandono de sua unidade dogmática. Para estes autores, a compreensão do texto requer

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a reconstrução ou interpretação do contexto histórico a que ele pertence, redefinindo assim a idéia de totalidade ou unidade. A partir deste reconhecimento da necessidade de referência a um contexto histórico mais amplo, já não existem diferenças entre a interpretação de textos sagrados e textos profanos, embora o problema da unidade ou totalidade ainda terá desdobramentos importantes.

17. Foi partindo deste princípio que Scheleiermacher chegou à conclusão de que o problema da compreensão ou interpretação (estes termos são aqui tratados como sinônimos) não deveria ser limitado ao conteúdo da Bíblia, mas à comprensão de qualquer texto ou sentença. De maneira significativa, pois isto terá consequências para toda a hermenêutica romântica depois dele, a mudança de objeto foi acompanhada por uma mudança no objetivo da compreensão: enquanto que para os hermenêutas pré-românticos compreender significava fundamentalmente compreender o conteúdo verdadeiro da Bíblia, de um texto, ou de uma lei (compreensão substantiva), para Schleiermacher a compreensão deveria enfocar a questão do porquê de certas idéias serem expressas de uma maneira e não de outra (compreensão genética). Nas palavras de Warnke (Ibid: 11), o foco da compreensão, para Schleiermacher, "não é a validade do que está sendo dito, mas sua individualidade enquanto pensamento de uma pessoa em particular, expressada de uma forma particular, num momento particular.". Mas para que se compreenda a individualidade de quem fala, Schleirmacher acreditava que se deve retroceder até a gênese das idéias, na qual a totalidade da linguagem, e portanto da cultura, desempenha um papel fundamental.

18. A ênfase na compreensão de produtos mentais individuais trouxe à tona, então, uma nova preocupação: a compreensão psicológica. Deve-se notar, entretanto, que o tipo de conhecimento psicológico em questão não se refere ao conhecimento de uma psicologia experimental, baseada em leis do comportamento, mas de uma "psicologia descritiva" de acordo com a qual a mente, a sociedade e os processos históricos são aspectos de um domínio psíquico (geistig) geral. Este domínio psíquico refere-se à famosa distinção filosófica, mencionada anteriormente, entre mente (ou espírito) e matéria, Geist e Natur, e que serviu de fundamentação para aqueles autores que defendiam uma distinção entre as ciências naturais (Naturwissenschaften) e as ciências históricas ou do espírito (Geisteswissenschaften). Dada esta distinção, a psicologia descritiva é definida por Dilthey da seguinte forma:

(…) a psicologia descritiva pode ser designada "psicologia empírica" ou "antropologia". O conceito de antropologia é o de uma ciência completa que, em princípio, incorpora todas as funções da vida psíquica, tornando visíveis sua importância e relações, até mesmo explicando aquilo que é óbvio e auto-evidente. (…) ela deveria tornar inteligível a totalidade da vida, incluindo-se os principais tipos de diferenças psíquicas, sua relação com a vida teórica, etc." (Dilthey; 1989: 479)

19. Tomando então como base este domínio psíquico geral, sua compreensão tornou-se, a partir de Schleiermacher, O Problema da história, um problema que dizia respeito a questões de método. É, no entanto, com Droysen que a conexão entre a filosofia da história e uma teoria da compreensão passa a ser enfocada (Outhwaite; 1986) através de sua crítica ao "individualismo" de Schleiermacher. Para Droysen, a história não pode ser compreendida como a expressão pura ou completa dos motivos, desejos e intenções dos indivíduos, o que colocava sérios limites ao uso da compreensão psicológica como

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Nota
Hermeneutas pré-românticos: preocupação com o veradeiro significado, seja da Bíblia, de um texto ou de uma lei (compreensão substantiva; Schleiermacher (e o início da hermenêutica romântica): compreensão deve enfocar a questão do porquê de certas ideas serem expressas de uma maneira e não de outra. Interesse na individualidade de quem fala e na gênese das ideias, na qual a totalidade da linguagem e da cultura desempenha um papel fundamental.
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Nota
A ênfase na compreensão de produtos mentais individuais trouxe à tona uma nova preocupação: a compreensão psicológica. Porém, trata-se de uma psicologia descritiva (a mente, a sociedade e os processos históricos são aspectos de um domínio psíquico geral). Esta psicologia refere-se à distinção entre mente (ou espírito) e matéria, que serviu de fundamentação para a distinção entre ciências naturais e ciências históricas.
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método histórico. O significado histórico deveria ser procurado na "consciência retrospectiva de intérpretes situados" (Warnke: 1987: 21. Ênfase minha), o que significa atribuir uma importância fundamental ao contexto dos atores/intérpretes.

20. Sem entrar em detalhes acerca de como Droysen tentou evitar a versão psicologista que criticava, nem se foi bem sucedido em sua tentativa, é importante enfatizar a relação estabelecida entre sua teoria interpretativa e uma filosofia da história, pois foi desta relação que a ciência social interpretativa originou-se. O que era antes um programa essencialmente pragmático, ligado a problemas concretos de intepretação da Bíblia, de textos literários e de leis, tornou-se cada vez mais teórico, no sentido de um método auxiliar na construção de uma teoria da história e da sociedade. Ao mesmo tempo, e de maneira inversa, como sugere Outhwaite (1986: 23), ao estabelecer esta conexão entre teoria interpretativa e uma filosofia da história, Droysen também enfatizou que "a compreensão espontânea que existe entre os seres humanos na vida social cotidiana deve ser sistematizada com o auxílio do conhecimento teórico". Este empreendimento foi especialmente desenvolvido por Wilhelm Dilthey, e é por esta razão que a base da ciência social compreensiva é normalmente associada a seu nome.

Dilthey e a Compreensão Psicológica ou Motivacional

21. A sistematização do método hermenêutico não constituiu uma preocupação central para Dilthey até a fase final de sua obra. Em sua fase inicial, especialmente em sua Introdução às Ciências Humanas, Dilthey estava muito mais preocupado em estabelecer os fundamentos filosóficos daquelas ciências através de uma crítica tanto da Escola Histórica alemã (em seus aspectos idealistas), quanto do positivismo (em seu empirismo estreito). Em sua crítica, Dilthey procurou mostrar que as Geisteswissenschaften diferem das ciências naturais tanto em seu objeto quanto na forma de conhecê-lo, isto é, diferenças metodológicas derivam de uma distinção ontológica entre seus respectivos objetos.

22. Em seu já clássico Crítica e Resignação, Gabriel Cohn identifica três oposições centrais ao pensamento de Dilthey e que dizem respeito às distinções acima: entre o mundo histórico, criado pelos seres humanos e o mundo natural, independente ou externo a eles; entre a explicação dos fenômenos naturais a partir de seu exterior e a compreensão interna dos fenômenos humanos; entre o estudo de segmentos isolados e atomizados da realidade natural e a apreensão integradora das experiências vividas, domínio das ciências sociais ou, na terminologia de Dilthey, ciências do espírito. (Cohn; 1979: 15-16).

23. Dilthey sumariza as duas primeiras oposições na seguinte passagem acerca de nossas relações distintas com a sociedade e com a natureza:

Os estados sociais nos são inteligíveis internamente; nós podemos, até certo ponto, reproduzí-los em nós mesmos com base na percepção de nossos próprios estados; nossas representações do mundo histórico são experimentadas através do amor e do ódio, da alegria passional, de toda a gama de nossas emoções. (…) A natureza nos é alheia. É um mero exterior para nós sem nenhuma vida interna. A sociedade é nosso mundo. Nós solidariamente experimentamos a interação de condições sociais com o poder de nosso ser total. A partir de nosso interior,

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Nota
Continuando o caminho aberto por Scheleiermacher, Droysen amplia a compreensão do domínio psíquico, como problema da história, criticando o individualismo de Scheleiermacher. Para Droyse, o significado histórico deveria ser procurado na consciência retrospectiva de intérpretes situados - atribuindo, assim, importância fundamental ao contexto dos atores/intérpretes.
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Nota
"(...) ao estabelecer a conexão entre teoria interpretativa e uma filosofia da história, Droysen também enfatizou qeu a compreensão espontânea qeu existe entre os seres humanos na vida social cotidiana deve ser sistematizada com o auxílio do conhecimento teórico. Este empreendimento foi especialmente desenvolvido por Wilhelm Dilthey e é por esta razão que a base da ciência social compreensiva é, normalmente, associada a seu nome.
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Nota
Três oposições centrais no pensamento de Dilthey: 1) Mundo histórico (criado pelos seres humanos) x mundo natural (independente ou externo a eles; 2) Explicação dos fenômenos naturais a partir de seu exterior x compreensão interna dos fenômenos humanos; 3) Estudo dos segmentos isolados e atomizados da realidade natural x apreensão integradora das experiências vividas (domínio das ciências sociais - ou ciências do espírito).
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tornamo-nos conscientes dos estados e forças que constituem o sistema social em toda sua inquietude. (…) o jogo de causas que opera cegamente [nas ciências naturais] é substituído pelo jogo de representações, sentimentos e emoções. (Dilthey; 1989; 88-89).

24. A terceira oposição identificada por Cohn é expressa através da idéia de que o mundo histórico é uma totalidade constituída por aquilo a que Dilthey se refere como "o curso total do desenvolvimento humano", isto é, o mundo histórico é um "conjunto de significados" (Lebenszusammenhang), um "nexus da vida", ou um "contexto total de fatos da consciência" (Makreel e Rodi; 1989). Neste sentido, enquanto que as ciências naturais lidam com a organização da percepção das coisas, as ciências humanas são, nas palavras de Aron (1969: 69), uma "expressão da vida que se torna consciente dela própria". A vida, como uma totalidade, tem sua essência no sentido ou significado (Sinn) das construções humanas, e sua expressão na vivência ou experiência vivida (Erlebnis). Dado que as ciências humanas também fazem parte desta totalidade que é a vida, seu método, segundo Dilthey, também deveria se basear na experiência vivida (Erlebnis).

25. Dilthey, contrariamente a Kant, não acreditava na possibilidade de um conhecimento a priori, isto é, independente da experiência sensorial. Para ele, todo conhecimento deve se basear na experiência porque esta é não apenas a única evidência de que as coisas existem na realidade, mas também a única maneira de se compreender as razões internas que levam os indivíduos a agir. Mas Dilthey não deve ser considerado um empirista na medida em que sua abordagem não implica em uma concepção da mente humana como um objeto passivo que recebe impressões do mundo externo: nossas experiências do mundo são interconectadas com o conteúdo de nossa consciência. Mais especificamente, nossa consciência e o mundo externo são conectados através da experiência, e é esta conexão que garante a realidade do mundo externo, diferenciando Dilthey dos idealistas, por um lado, e dos realistas empíricos (empiristas), por outro:

Toda ciência, toda filosofia, é experiencial. Toda experiência deriva sua coerência e sua validade correspondente do contexto da consciência humana. A querela entre idealismo e realismo pode ser resolvida pela análise psicológica, que pode demonstrar que o mundo real dado na experiência não é um fenômeno da minha representação; ele me é dado, ao contrário, como algo distinto de mim mesmo porque eu sou um ser que não apenas representa, mas também que deseja e que sente. O mundo real é aquilo que a vontade possui através da consciência reflexiva quando encontra resistência, ou quando a mão sente pressão. Esta consciência reflexiva da vontade é tanto do mundo quanto de si mesma. Tanto o self quanto o mundo real são portanto dados na totalidade da vida psíquica. Um existe em relação com o outro, e é igualmente imediato e verdadeiro.(Dilthey; 1989: 493-4).

26. Uma das coisas que Dilthey procura deixar claro nesta passagem é que tanto o mundo externo afeta o conteúdo da nossa mente quanto é afetado por ela. Neste sentido, tanto o conhecimento quanto as estruturas objetivas do mundo (social) devem concebidos como um processo histórico, e o papel da filosofia e das ciências do espírito deveria ser o de refletir sobre os pressupostos que estão na base do desenvolvimento

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Nota
A história como uma totalidade, conjunto de significados - contexto total de fatos da consciência. A vida, como uma totalidade, tem sua essência no sentido ou significado das construções humanas e sua expressão na vivência ou experiência vivida.
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Nota
Dilthey diferencia-se do idealismo kantiano, por um lado, por não acreditar no conhecimento a priorístico, independente da experiência sensorial. Tampouco se identifica com os empiristas, pois sua abordagem não implica em uma concepção da mente humana como objeto passivo que recebe impressões do mundo externo. Para ele, a consciência e o mundo externo estão conectados através da experiência e é esta conexão que garante a realidade do mundo externo.
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Nota
Tanto o mundo externo afeta o conteúdo da nossa mente quanto é afetado por ela. Nesse sentido, tanto o conhecimento quanto as estruturas objetivas do mundo (social) devem ser concebidos como um processo histórico, e o papel da filosofia e das ciências do espírito deveria ser o de refletir sobre os pressupostos que estão na base do desenvolvimento histórico da consciência.
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histórico da consciência (Makkreel e Rodi; 1989: 9), de analisar os dados da consciência humana ou, em outros termos, iluminar o processo da vivência (Erleben). Isto porque, por um lado, a experiência humana é sempre formada por vivências, isto é, por experiências de caráter histórico, e, por outro, toda ciência, assim como toda filosofia, deve se referir à experiência.

26. O conceito de vivência sugere que o objeto das ciências humanas era concebido por Dilthey como imediatamente dado, no sentido de que é experimentado na consciência antes que tenhamos qualquer conhecimento científico sobre o mesmo: esta seria a compreensão intuitiva da vida cotidiana e que nos permite um acesso não problemático às vivências que constituem as experiências humanas. Dada esta possibilidade, as ciências humanas acessam seu objeto através da percepção interna do "nexus da vida", e a psicologia era concebida como a ciência social mais básica porque seu papel era o de descrever os fatos da consciência e também porque o indivíduo é considerado, pelo menos nesta fase de sua obra, como o produtor das expressões sócio-culturais.

27. No entanto, Dilthey não estava preocupado em estabelecer as bases da compreensão em geral, mas de uma compreensão teórica, objetiva, que apresentasse um grau de certeza maior do que o entendimento do senso comum. Neste sentido, um problema fundamental que se apresenta às ciências do espírito é o de como ter acesso não só às minhas próprias vivências, que são elas próprias fruto da interação com outras mentes, mas às de outras mentes que imprimiram sua marca na história através da exteriorização ou objetivação de suas próprias vivências. Foi com esta questão em mente que Dilthey concebeu a compreensão psicológica como a forma original de experiência nas ciências sociais, sendo que esta compreensão baseava-se na re-experiência (Nacherleben) pelo pesquisador da experiência (Erleben) de outras pessoas.

28. É, portanto, fundamental distinguir a noção de Nacherleben da de empatia, que implica em algum tipo de acesso direto e imediato ao conteúdo das mentes de outras pessoas. A Nacherleben é, ao contrário, um processo mediado pela abstração: Quando se reflete sobre a Erleben (como experiência interna), esta reflexão é baseada em uma outra Erleben, indiferenciada e que constitui uma experiência externa (do objeto). A Erleben interna nos é dada imediatamente, mas a experiência externa é mediada por nossos sentidos e pelas categorias do pensamento, e isto constitui o processo de internalização do objeto, o que caracteriza a Erleben como método de conhecimento, por um lado, e as ciências do espírito como fundamentalmente reflexivas, por outro. A questão fundamental no que concerne à relação entre estes dois tipos de experiência é que quando eu reflito sobre a experiência externa, ela se torna percepção interna, garantindo a possibilidade da experiência interna de algo externo (como re-experimentar na minha própria consciência, uma vivência anterior, ou a vivência de um outro indivíduo). Esta relação é melhor explicitada pelo próprio Dilthey (1989: 374-5):

A característica da percepção interna consiste na referência de um fato ao self; a da percepção externa, na referência ao mundo. Minhas emoções e sentimentos de simpatia me são dados de dentro, sem a mediação dos meus sentidos, como modificações do meu self. Desta maneira, eles são dados à percepção interna. Mas também aquilo que é dado aos sentidos, isto é, aquilo que se refere ao mundo externo, pode ser subsequentemente

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Nota
O conceito de vivência sugere que o objeto das ciências humanas era concebido por Dilthey como imediatamente dado, no sentido de qeu é experimentado na consciência antes que tenhamos qualquer conhecimento científico sobre o mesmo. As ciências humanas acessam seu objeto através das percepção interna do nexus da vida e a psicologia era concebida como a ciência social mais básica porque seu papel era o de descrever os fatos da consciência e também porque o indivíduo é considerado como produtor das expressões sócio-culturais.
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Nota
Dilthey não estava preoucpado em estabelecer as bases da compreensão em geral, mas de uma compreensão teórica, objetiva, que apresentasse um grau de certeza maior do que o entendimento do senso comum. Um problema fundamental que se apresenta às ciências do espírito é o de como ter acesso, não só às minhas próprias vivências, qeu são elas próprias fruto da interação com outras mentes, mas às de outras mentes que imprimiram sua marca na história através da exteriorização ou objetivação de suas próprias vivências.
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apreendido como uma modificação do meu self. É então transformado de percepção externa para percepção interna. Tudo o que aparece na consciência como modificação desta pode então ser apreendido pela percepção interna.

29. Dada esta possibilidade de experimentar internamente uma experiência externa e indiferenciada, H.A. Hodges (1972: 186) descreve o método conhecido como Narcherleben como um procedimento baseado na idéia de que "nós entendemos uma expressão re-experimentando na nossa própria consciência a experiência a partir da qual esta expressão se originou".

A Hermenêutica como Alternativa à Compreensão Psicológica

30. Dilthey veio a reconhecer que a re-experiência não poderia ser uma reprodução perfeita da experiência original, o que colocava sérios limites ao uso da Nacherleben como método. Foi este tipo de preocupação com o problema do entendimento de expressões externas que o levou a se interessar pela hermenêutica, diferenciando-a da compreensão psicológica através da ênfase no contexto histórico dos indivíduos. Deve ser notado que a compreensão psicológica de Dilthey nunca foi propriamente individualista, pois esta baseava-se em uma concepção de indivíduo cuja base existencial era fruto de uma intersecção de organizações ou sistemas culturais. No entanto, o reconhecimento das limitações da Nacherleben como método levaram Dilthey a colocar mais ênfase na referência a "categorias, figuras e formas de vida que não emergem da existência individual" (Dilthey apud Cohn: 18).

31. A preocupação com a dimensão cultural da vida fez com que Dilthey encarasse as expressões humanas como a manifestação de um "espírito objetivo", normalmente concebido em termos de cultura ou de sistema social1. Compreensão ou Verstehen tornou-se então o método que permitiria a reconstrução do processo de objetivação ou exteriorização da atividade humana, e não mais buscava a reconstrução das experiências vividas.

32. Com esta mudança no pensamento de Dilthey, seu foco passou a ser as estruturas nas quais a atividade humana era objetivada. A adoção do conceito hegeliano de espírito objetivo tornou evidente a afinidade do início de sua carreira com a Escola Histórica, notadamente, com a base anti-individualista de seus pressupostos ou, mais apropriadamente, com a crítica da Escola Histórica ao individualismo racionalista do séc. XVIII. Por outro lado, Dilthey manteve sua crítica inicial ao idealismo presente naquela tradição através da negação da base especulativa da metafísica hegeliana, isto é, ao negar o status ontológico do conceito de espírito objetivo (Raynaud; 1987). Para ele, o espírito objetivo deveria ser considerado um conceito metodológico necessário à compreensão daquilo que transcende as relações individuais, mas que não encontrava um correspondente estrito na realidade. De fato, sendo relacionado a, e às vezes concebido como sistema, o conceito de espírito objetivo aponta para a idéia de que o significado só aparece em uma totalidade, em certo sentido, auto-contida:

Cada unidade do mundo do espírito tem seu centro em si próprio. Assim como o indivíduo, cada sistema cultural, cada comunidade têm um ponto focal em seu interior.

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Nele, uma concepção da realidade, um esquema valorativo e a produção de bens são ligados a num todo" (Dilthey apud Cohn; 1979: 20-1)

33. Também a oposição inicial entre mente e natureza assumiu um status mais claramente metodológico: a distinção refere-se, a partir de então, primordialmente à necessidade de auto-reflexão por parte do pesquisador a fim de apreender um significado que está presente na própria estrutura da vida, da qual o pesquisador também faz parte. Esta prescrição metodológica deriva do círculo hermenêutico, que passa a ser concebido como um método objetivo de pesquisa para as ciências humanas e de acordo com o qual todos os nossos prejuízos e pré-noções seriam deixados de lado. A objetividade do método seria dada, por um lado, pela situação privilegiada do intérprete em relação aos produtores originais do significados, já que este tem acesso a um todo já constituído (Cohn; 1979: 26) e, por outro, pela possibilidade de acesso a um contexto que transcende a situação particular do intérprete (os sistemas culturais).

34. Como afirma Gadamer (1998: 343), no entanto, a passagem de uma fundamentação psicológica para uma fundamentacão hermenêutica das ciências do espírito não passou de um esboço. Questões relativas à objetividade do método hermenêutico nunca foram resolvidas, e existem críticas particularmente fortes à noção de círculo hermenêutico adotada por Dilthey como sendo um "círculo vicioso" impossível de ser rompido. No que se refere ao problema da objetividade, a questão principal diz respeito à impossibilidade de conhecer o espírito objetivo ou a totalidade histórica antes que a mesma venha a cabo. Por outro lado, se ao invés de uma totalidade histórica o espírito objetivo é concebido como um sistema, ou melhor, como sistemas culturais, é preciso levar em conta que estes sistemas necessariamente representam visões de mundo particulares, o que leva a um relativismo inevitável.

35. Talvez por deixar em aberto estas questões, a "virada" holística e metodológica da fase final da obra de Dilthey não foi suficiente para excluir a compreensão psicológica da ciência social interpretativa. Embora a interpretação hermenêutica de Dilthey contraste fortemente com uma explicação causal, creio que ela não exclui a possibilidade de as ciências sociais terem como tema a compreensão das atividades individuais que dão origem a entidades coletivas objetivas (entendimento genético ou psicológico). Segundo Outhwaite (1986: 35),

Dilthey acredita que as ações podem ser entendidas, embora de maneira menos confiável que os sistemas científicos, religiosos, artísticos ou filosóficos, uma vez que elas tenha sido completadas. Dilthey parece sugerir que seus motivos podem ser reduzidos a um propósito claramente definido (ideal-típico?) que pode ser entendido dentro de uma situação objetiva dada (...).

36. O que fica claro é que, embora Dilthey tenha operado uma distinção importante entre compreensão hermenêutica e compreensão psicológica e claramente tenha optado pela primeira como método interpretativo por excelência, seus argumentos não possibilitaram por um fim aos problemas relativos à compreensão. De fato, esta

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Prescrição metodológica derivada do círculo hermenêutico: método objetivo de pesquisa para as ciências humanas, de acordo com o qual todos os nossos prejuízos e pré-noções seriam deixados de lado. A objetividade do método seria dada, por um lado, pela situação privilegiada do intérprete em relação aos produtores originais dos significados, já que este tem acesso a um todo já constituído e, por outro, pela possibilidade de acesso a um contexto que transcende a situação particular do intérprete (os sistemas culturais).
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polêmica deve-se, em parte, ao próprio Dilthey. É importante considerar que a caracterização das ciências sociais como ciências interpretativas deriva da definição um tanto fluida de seu objeto de investigação: o processo de objetivação da atividade humana.

37. Para Philippe Raynaud (1987: 90-1), esta definição geral, juntamente com a idéia de objetividade presente na concepção de Dilthey de ciência social, autoriza tanto a adoção de uma abordagem holista, através do conceito hegeliano de espírito objetivo, quanto um individualismo metodológico radical. A história constitui um domínio objetivo (externo), cuja identidade é garantida apenas pela compreensão interna de seu significado. Mas este significado pode se referir aos fenômenos psicológicos, e portanto individuais, que lhe deram origem (compreensão genética, motivacional ou psicológica), ou às expressões simbólicas que estruturam a vida social (compreensão substantiva ou hermenêutica). Não é, portanto, à toa que ainda hoje consome-se muita tinta e papel com o intuito de se estabelecer que tipo de significado deve ser compreendido (se de sistemas culturais, ações individuais, ou ambos, a depender da ontologia social em questão) e como esta compreensão deve ser alcançada (análise hermenêutica, lingüística, psicológica, etc.).

38. Seja como for, a contribuição de Dilthey para as ciências sociais deve ser avaliada de maneira dupla: Em primeiro lugar, baseando-se na diferenciação entre mente ou espírito e natureza, estabelece que o mundo social é um mundo de expressões humanas, de significados, e que pode ser acessado internamente, isto é, a partir de significados que se encontram presentes nos próprios atores que o compõem. Neste sentido, estabelece que o método das ciências sociais deve fazer referência a estes significados, caracterizando as mesmas como fundamentalmente compreensivas ou interpretativas. Em segundo lugar, buscando dar um aspecto "mais objetivo" e "menos intuitivo" ao método das ciências sociais, diferenciou a compreensão psicológica ou motivacional de interpretação hermenêutica, reconhecendo, de maneira um tanto paradoxal, que a compreensão ou entendimento, seja a partir do método psicológico, seja do hermenêutico, é sempre relativa e imperfeita.

∗ Professora visitante e bolsista de Desenvolvimento Científico Regional do CNPq no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco.

Incidentemente, é interessante notar a origem teológica comum da hermenêutica e do conceito de sistema (Gadamer; 1998:276), um conceito que assume uma importância crescente na "fase hermenêutica" da obra de Dilthey.

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