A Hora Da Incerteza - Urbano Tavares Rodrigues

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A HORA DA INCERTEZAURBANO TAVARES RODRIGUESCOLECO SCULO XXA HORA DA INCERTEZAURBANO TAVARES RODRIGUESPUBLICA(tm)ES EUROPA-AMRICA1945-199550 anos a editar Capa: Arranjo gr fico de estdios P.E.A. sobre escultura de Francisco Sim"esUrbano Tavares Rodrigues, 1995Direitos reservados por Publica"es Europa-Amrica, LDA.Nenhuma parte desta publica"o pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrnico, mecnico ou fotogr fico, incluindo fotocpia, xerocpia ou grava"o, sem autoriza"o prvia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcri"o de pequenos textos ou passagens para apresenta"o ou crtica do livro. Esta excep"o n"o deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva ... transcri"o de textos em recolhas antolgicas ou similares donde resulte prejuzo para o interesse pela obra. Os transgressores s"o passveis de procedimento judicial.Editor: Francisco Lyon de CastroPUBLICA(tm)ES EUROPA-AMRICA, LDA.Apt. 82726 - MEM MARTINS CODEXPORTUGALEdi"o n 103358/6386Execu"o Tcnica:Gr fica Europam, Lda.Mira-Sintra - Mem MartinsDepsito legal n 91949/95PRINCIPAIS OBRAS DO AUTORFICO:A Porta dos Limites - 1 ed., 1952; 2 ed., 1960;3 ed., 1970 (tradu"o parcial alem") 4 ed., 1979;5 ed., 1990. Vida Perigosa - 1 ed., 1955; 2 ed.,1971; 3 ed., 1974.A Noite Roxa - 1 ed., 1956; 2 ed.,1957 (tradu"o parcial em russo); 3 ed., 1972 ("Livrosde Bolso Europa-Amrica"); 4 ed., 1976. Uma Pedrada no Charco - 1 ed., 1958; 2 ed., 1960;3 ed., 1973 (tradu"o parcial em alem"o e russo);Prmio Ricardo Malheiros, da Academia de Cincias.Bastardos do Sol - 1 ed., 1959; 2 ed., 1966 (tradu"ofrancesa, 1969); 3 ed., 1972; 4 ed., 1974 (Crculodos Leitores); 5 ed., 1983 (tradu"o russa, 1977; tradu"o alem", 1978; tradu"o blgara, 1983; tradu"ogrega, 1987; tradu"o em Cuba, 1987); 6 ed., 1987;7 ed., 1994. As Aves da Madrugada - 1 ed., 1959;2 ed., 1966 (tradu"o checa, 1967); 3 ed., 1970 (tradu"obrasileira, 1972); 4 ed., 1974 (tradu"o parcialem sueco, 1976; tradu"o em ucraniano, 1984); 5 ed.,1990 (tradu"o francesa, 1991). Nus e Suplicantes - 1 ed., 1960; 2 ed., 1962; 3 ed., 1970; 4 ed., 1972; Prmio dos Leitores (tradu"o alem", 1972); 5 ed., 1978. Os Insubmissos - 1 ed., 1961; 2 ed., 1965; 3 ed., 1969; 4 ed., 197l; 5 ed. (Unibolso), 1973; 6 ed., 1976 (tradu"o romena, 1988). Exlio Perturbado - 1 ed., 1962 (tradu"o espanhola, 1967);2 ed., 1969; 3 ed., 1982 (tradu"o romena 1988). As M scaras Finais - 1 ed., 1963; 2 ed., 1972 (tradu"oparcial em checo). Terra Ocupada - 1 ed., 1964; 2 ed., 1972 (tradu"o parcial em checo, 1967). Dias Lamacentos - 1 ed., 1965, 2 ed., 1972; 3 ed., 1989.Imita"o da Felicidade - 1966 (Prmio da ImprensaCultural) (apreendido pela censura); (tradu"o parcialem sueco, 1971); 2 ed., 1974 (tradu"o em russoe em blgaro, 1977; tradu"o polaca, 1880); 3 ed., 1988. Despedidas de Ver"o - 1 ed. 1967; 2 ed., 1974. Casa de Correc"o - 1 ed., 1968; 2 ed., 1972(tradu"o em russo, 1977; tradu"o alem", 1982);3 ed., 1987. Horas Perdidas - 1 ed., 1969; 2 ed., 1973. Contos da Solid"o - 1 ed., 1970; 2 ed., 1972;3 ed., 1975; 4 ed., 1992. As Torres Milen rias - 1 ed., 1971, 2 ed., 1975. Estrada de Morrer - 1 ed., 1972 (tradu"o parcial em russo); 2 ed., 1976 (Unibolso).Dissolu"o - 1 ed., 1977 (tradu"o em russo, 1978); 2 ed., 1983. Viamorolncia - 1 ed., 1976; 2 ed., 1987. As Pombas S"o Vermelhas - 1 ed., 1977; 2 ed., 1985. Desta gua Beberei - 1 ed., 1979; 2 ed., 1986. Fuga Imvel - 1982 (Prmio Aquilino Ribeiro, da Academia das Cincias de Lisboa); 2 ed., 1992. Oceano Oblquo - 1985. A Vaga de Calor - 1986; 2 ed., 1986; 3 ed., 1987 (Prmio da Crtica do Centro Portugus da Associa"o Internacional doscrticos Liter rios) (tradu"o francesa, 1989). Filipa nesse Dia, 1989 (tradu"o romena, 1991). Violeta e A Noite, 1991 (Prmio Fernando Namora). Deriva - 1 ed., 1993 (Prmio Literatura e Ecologia, do Lyonsclube de Aveiro). A Hora da Incerteza, 1995.ENSAIO E CRTICA:Manuel Teixeira Gomes (introdu"o ao estudo dasua obra) - 1950. Prsentation de Castro Alves - 1954 (edi"o francesa). O Tema da Morte - 1 ed., 1958; 2 ed., 1966; 3 ed., 1978. O Alentejo (pref cio e selec"o) - 1 ed., 1958; 2 ed., 1959. Teixeira Gomes e A Reac"o Antinaturalista - 1960. O Mito de Dom Ruan - 1 ed., 1960; 2 ed., 1981. "Pref cio" a O Teatro e O Seu Duplo, de Antonin Artaud - 1962. O Algarve na Obra de Teixeira Gomes (pref cio e selec"o)- 1962. Noites de Teatro - 2 vols. - 1961 e 1962. O Romance Francs Contemporneo - 1964. Realismo, Arte de Vanguarda e Nova Cultura - 1 ed., 1966(tradu"o espanhola, 1967); 2 ed., 1978. A Estremadura - 1968. A Saudade na Poesia Portuguesa (pref cio e selec"o - 1968.Escritos Temporais - 1 ed., 1969. Ensaios de Escreviver - 1 ed., 1971; 2 ed., 1978. Ensaios de Aps Abril - 1977. O Gosto de Ler - 1980. Um Novo Olhar Sobre o Neo-Realismo - 1981.M. Teixeira Gomes: O Discurso do Desejo - 1984."Pref cio" a Despedidas, de Antnio Nobre, 1985.Publica"o em curso das Obras Completas de M. TeixeiraGomes. A Horas e Desoras - 1 ed., 1993 (Prmio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho, do Centro Portugus da Associa"o Internacional dos Crticos Liter rios). Tradi"o e Ruptura, 1994. O Homem Sem Imagem, 1994.VIAGENS E CRNICA:Jornadas no Oriente - 1956. Jornadas na Europa - 1958. De Florena a Nova Iorque - 1963. Roteiro de Emergncia - 1966. Tempos de Cinzas - 1968. A Palma da M"o - 1 ed., 1970; 2 ed., 1974. Deserto com Vozes - 1 ed., 1971; 2 ed., 1972. Esta Estranha Lisboa - 1972. Redescoberta da Frana - 1973 (apreendido pela censura fascista). Viagem ... Uni"o Sovitica e Outras P ginas - 1 ed., 1973 (tradu"o parcial em russo, 1973); 3 ed., 1975. As Grades e O Rio - 1974. Perdas e Danos - 1974. Palavras de Combate - 1975. Di rio da Ausncia - 1975. 1A sensa"o de volta, ao mesmo tempo eufrica e dolorosa, de tornar ...s fontes de sangue, ... incandescncia dos cantos corais da minha infncia, desse tempo inalcan vel, que j n"o encontro neste espao sempre rememorado, nem nas sobreirasvivas, nem nas laranjeiras que restam da antiga horta.Na velha casa, gelada, esperam-nos em todos os quartos as cintila"es do silncio. Aps a extenuante viagem, aquietou-se l fora o vento que h mais de duas horas assobia pelas estradas.Imagino os gigantes do antigamente cobertos com peles de bichos desconformes, e os sinais de labaredas no cimo dos outeiros onde, ao romper do dia, cavaleiros de alm do Guadiana vinham desenterrar tesouros.Acesas as luzes, ateado o fogo na lareira da sala de jantar, eis que ouo de novo o vento que ainda trago pegado aos ombros, esse vento desordenado que parecia investir em lnguas de dio contra o ondular das oliveiras, assoprando cinza pelosplainos, at ...s franjas dos azinhais, at ao negrume dos corgos, das terras ermadas de S"o Mendo, onde flua um negrume de ltimo desespero. Noite assustadora.Aqueo nas minhas m"os os dedos de criana deAdriana. ela que me prende ... vida, com a sua alegriade cristal, porventura excessiva para quem n"o sed conta de tudo o que fermenta de intenso e generoso nesse riso, na dilata"o desses grandesolhos, nos entusiasmos que a agitam.Na cozinha comea a brincar com o pimpolho que a Estefnia tem no regao, sujinho e loiro como a irm", que se rebola na tijoleira do ch"o. Dois trabalhadores, de mantas pelas costas, falam-me cordialmente. (r)At"o vm por muitos dias?Aqui est frio, o tempo dele., (r)Vimos s por dozedias. Frias de Inverno. Arrimam-se aos ti"es e...s brasas da enorme chamin; o meu olhar reencontraas sert"s e as panelas, os cobres, os potes de barro que parecem de sempre. ent"o que me contam do crime.Era como se eu j estivesse ... espera: havia naquele dia, desde o meio da tarde, qualquer press gio indefinvel, bem escuro. Logo aps o jantar, em vora, dera-me conta de que o empregado me roubara no troco. Normalmente teria protestado.Mas o homem era t"o jovial... Podia ter-se simplesmenteenganado. Nada disse, ficou contudo uma amargura a roer-me. Que importncia tinha aquilo? apenas uns centos de escudos a menos. N"o era isso, eu que estava doente, fragilizado, tudo me magoava. E tinha de esconder da Adriana a minha doena, por nada deste mundo aceitaria que ela percebesse.(r)N"o se alembra da -rsula, filha do Joaquim Pombo, aquele que tem uma courela ao p da ribeira e um atalho de ovelhas?Acharam-na morta, estrafegada, ao p da arribana, com o pescoo muito roxo e toda descomposta, as pernas abertas, manchadas de sangue.- Foi violada? - pergunta Adriana.- Pois at"o!A guarda n"o atinava com o malandro que fizeraaquele servio.J haviam interrogado uns poucos, ciganos pastores, bbados inveterados, daqueles que j nem sabem por onde andam nem a quem ofendem. E nada.Por fim recordei-me. De uma mida bonita, de seus onze, doze anos, cara redonda de boneca, com as cores da ma" camoesa, e uns olhos azuis, de lago, pasmados da vida, de mim, de ti, de quem lhe dirigia a palavra.(r)Espigou muito. Se calhar, compadre, j n"o a conhecia, se a tivesse visto, toda airosa como ela andava, de blusa e jeans, com o umbigo a descoberto. At parecia que estava a provocar, Deus me perdoe. um corropio de gente que vem cumprimentar-nosQue n"o querem demorar-se, devemos estar cansados da viagem. Mas v"o perguntando. Pela poltica, pela barragem do Alqueva, como se eu pudesse saber, e afinal nada lhes escapa dasentrevistas da Televis"o, como se passassem as noites colados ao pequeno ecr", e indignam-se, recriminam, barafustam.Chega agora o meu primo Jo"o Sisudo, enorme e embezerrado, com aquele grande lunar cabeludo na face opada e os culos a cavaleiro do nariz proeminente. A carranca do poder: s mesmo num jogo de cabeas trocadas.Adriana deixa-se enganar pelo aspecto dele etenho eu de os p"r ... vontade.Falam ent"o da misriaque por aqui vai; ele conta como a fome se instalouem tantas casas e como muitas pessoas sofrem em silncio, todas as priva"es, por orgulho ajudadas apenas por algum vizinho solid rio e igualmente discreto. Do que ele prprio faz com certeza por este e por aquele, nada diz, masconheo-o o suficiente, desde mido, para divisar a luz de piedade que se esconde naquela aparente bruteza. - E n"o protestam, n"o exigem o p"o que todosns lhes devemos, o trabalho? - diz Adriana, afogueada. Comearam h uma semana a sair ... rua, em manifesta"o desordenada. O presidente da Cmara at est com eles, recebeu-os bem, mas pouco pode fazer. Volta ... baila o crime, que sacudiu os h bitos davila, onde, em matria de violncia, s a da prpriaestrutura social se faz sentir com mais dureza, tirante os pequenos roubos e desmandos dos drogados que, ao fim e ao cabo, alguma coisa tm a ver tambm com o desemprego e com a falta de horizontes da juventude. Jo"o Sisudo n"o tem opini"o, nem poltica, n"o faz ideia de quem possa ter sido, talvez algum de fora.Se eu pudesse ejectar o cora"o! H palavrasque fazem tanto mal, h imagens que acordam em mim o tempo do oprbrio, da vergonha de viver. E n"o estaremos novamente nesse tempo?! A fome, aqui mesmo, a dois passos da velha casa onde minha m"e, h mais de vinte anos, ontem, agonizava.Para tr s, ainda muito mais para tr s, ia eu com meu irm"o, que era quem mais sabia falar com eles, levar um naco de presunto e uns restos de linguia, alguma garrafa de leite, aos desempregados que s comiam uma refei"o por dia, demigas ou de gaspacho, e que se deitavam de costas na cama para poupar as foras. Agora dizem-me que ainda pior.Desta janela que d para o campo, ... sada da vila, a noite vegetal, escura e estrelada, recomea a ramalhar para os lados da grande fonte onde a gua goteja pela carantonha do diabo. Mais alm do imenso barranco que a vazante da minha adolescncia ali situa, s consigo divisar as colinasazuis (porque as sei azuis) da serra da Adia.Estamos aqui eu e a morte que me habita, perante a agreste viglia do espao. Deve ser quase meia-noite.Ouo o rumorejar da seiva nas plantas, oio a noite sobre as poas de gua que debilmente estremecem nas terras semeadas. Dois raios de luz afagam a perfei"o da cal.Em breve h -de acentuar-se o tremor das minhas m"os. Ainda consigo conduzir sem problemas, apenas quando escrevo com pressa noto que a letra se vai tornando irregular, vacilante.Deixei de correr, por falta de confiana nos joelhos e, se alguma emergncia me obriga a pular, na rua, para me desviar de um carro ou porque, j caiu o sinal vermelho, dou-me conta do irremedi vel avano do mal. Melhor fora n"o conhecer de antem"o, como conheo, a evolu"o da doena. Sei que o tratamento que estou a seguir consegue ...s vezes det-la por muito tempo.Mas a Adriana fina como um coral e mesmo a sua forma"o cientfica n"o permite que se deixe continuar a iludir pela minha representa"o da sade, da alegria, que o amor n"o preciso de o representar, experimento-o, vivo-o com ela intensamente. A tal ponto que a Adriana, por vezes duvida do excesso das minhas efus"es sentimentais, digamos das minhas palavras. At me leva a reflectir se, por muito sinceras que sejam (e s"o-no sem dvida) essas minhas t"o frequentesexplos"es de carinho, declara"es de afecto, n"o haver realmente nesse exagero (a palavra dela) alguma coisa de teatral, prpria do intelectual que sou, isto , comum aos intelectuais em geral.Sei c ! O que sei que essa leve ironia dela, essa recusa ao pattico me magoa. Mas a Adriana n"o pode adivinhar tudo o que est por tr s.Comecei por disfarar a idade, agora disfaro a doena, a aproxima"o da morte. Quanto mais poderei viver: cinco, quatro, trs anos, apenas alguns meses? Nunca imaginei, quando jovem, que um dia pudesse assim, quase friamente, ou melhor, sem indigna"o, sem revolta, apenas com uma baa, apunhalada tristeza, pensar no termo da minha existncia, sopesar os dias que restam.2 Acordei mais animado. Talvez porque dormi, o que nem sempre me acontece. A doena est ainda no incio. Recua quase todas as manh"s, para regressar ao meu esprito quando a luz esmorece, outras vezes, de surpresa, a qualquer hora. N"o, a Adriana n"o se d conta. Tive-a de noite presa ao meu peito, rendida,gemendo baixinho, debatendo-se fracamente, um fulgor de prazer no olhar lquido; doce depois no silncio extenuado, acariciando a erva rala dos meus braos, ainda musculosos, que v"o atrofiar-se. Beijava-lhe a boca, os mamilos, os olhos e ela renascia, vibrava de novo, voltou a tremer a imensa cama de ferro trabalhado.Espreito o teu rosto delgado, as olheiras bistre:toco-te ao de leve com as costas da m"o e parece-me ver abrir-se a luz do teu sorriso, boiando na penumbra matinal.O tema dominante das conversas na vila ainda a desgraa que aconteceu ...quela pobre moa. Andei por a espairecendo, constatando com tristeza que n"o h ponta de exagero no que se diz sobre o mau passadio desta gente a quem tanto quero e que, ancestralmente orgulhosa, oculta por pudor toda a extens"o do seu sofrimento.H cristais de geada nos poos e nas regueiras.O cu, agora azul, parece paradoxalmente um imenso espelho de paz. As oliveiras centen rias s"o autnticas esculturas. A brisa que sopra do passado nestes campos, ... beira da vila, bem a conheo: a minha memria m gica.L vai ao fundo de uma viela muito branca, com o seu comprido capote e o cabelo grisalho ...s tesouradas, o Dr. Abelardo, o arranca-dentes (de quem muita gente se ri), sempre cheio de dvidas- e por demais se sabe onde derrete o dinheiro.Isolado, exposto, desmascarado, na sua diferena.Da infeliz da -rsula fala-se cada vez mais.O que impressiona particularmente a imagina"odo povo s"o aquelas dedadas roxas que o matador lhe deixou no pescoo. H at quem fale em marcas de um animal selvagem. A imagem da -rsula transformou-se aceleradamente. Da medianiados gestos e palavras de uma existncia semelhante ... das outras raparigas da vila, depressa atingiu as propor"es de criatura predestinada, dotada de singulares virtudes.As melhores lnguas da freguesia mordiam-lhe por pouco que fosse, na reputa"o; agora cobrem-na com todas as rosas da virtude, a tal ponto que n"o ser"o precisas muitas semanaspara que venha a falar-se em Santa -rsula de Tronqueiro.Lembram-se os dias mimosos da sua puercia, quando cuidava dos irmanitos ranhosos, entranando ao mesmo tempo lrios roxos, pressagos, e outras doces florinhas campestres. Assim lhe tecem um avental de prendas, descrevendo, cada uma a seu modo, o martrio sexual que a vitimou. Quem n"o partilha desse consenso quase geral o Antnio Pintado, mestre pedreiro, que parece saber acerca dela mais at do que diz. E o que dizj n"o pouco. Tinha-a visto por aqui e por alm nos campos de trigo, em barrancos e alcorcas, ou nas medas de palha, em muito boa companhia, e nem sequer se armava em santa, amigo doutor, uma moa cum'as outras, o seu bocadito alevantada, eu diria mesmo de muito boa boca. - Mas como que voc sabe tudo isso e os outros n"o sabem?- Sabem, querem esquecer. Isto bom para o desenvolvimento da terra, para o turismo.- Que, pelo visto, faz muita falta, a avaliar por essa penria que a est instalada.- Fome, doutor! Olhe, oficiais do meu ofcio andam por a ... boa vida e apertando o cinto. Alembra-se do Chico Mouco, um pedreiro como n"o havia outro? Est sem trabalho h dois meses. E o pior que no campo n"o h nada que fazer. Alguns agr rios, at lhes pagam para n"o cultivarem. V aquela coisinha loira, magrichinha, que vem a sair do supermercado com um p"o debaixo do brao? a flha mais pequena do ManuelGanso, outro desempregado. Repare-lhe nos olhos pisados, na boca esmorecida, naquelas pernitas de esqueleto: ent"o aquilo n"o fome? Aposto que s come sopas de p"o e ervas da horta da vizinha.A Adriana vem ao meu encontro e samos da povoa"o pela rua do matadouro, com o sol j quase a pino e quente, como de Primavera antecipada. Nas lavradas, onde os cereais comeam a medrar, a terra vermelha, sumarenta, s muito de longe a longe encordoada, com pedras a aflorarem. Tenho medo de que a Adriana se canse.ouvimos ao longe as esquilas das ovelhas.E j aparecem os apriscos, as arribanas, os espaos charnequenhos, em que as azinheiras isoladas nos sadam, em meio das estevas, dos piornos, do matagal. O jeep do Z Tourido, meu companheiro de escola, que assobiava como um rouxinol e agora tem uma padaria, apanha-nos ... beira da estrada e, com muito alarido de abraos e invectivasafectuosas, deixa-nos quase junto ao rio.No ouro gil da gua v"o unidos os meus olhos e os de Adriana. Lembro-me quando Annie e Antoine Roquentin, os de La Nause, fabricavam (r)instantes eternos. Mas Adriana, embora sensvel e com fantasia, n"o aceita o que quer que cheire a comdia esttica, exige a vida tal e qual ela e at capaz de a achar belssima nas suas fealdades, nas suas monstruosidades. Participa no entanto (pelo menos ouve-me atentamente), quando lhe digo: (r)Aqui, ao p deste choupo, decidi nunca mais caar, com pena de uma ave que eu acabava de matar, ou (r)junto este tanque grande, onde havia muitos peixes e r"s e que se cobria de folhas mortas, era certo assistir ao p"r-do-sol no primeiro dia de frias, pela P scoa, e ficava t"o comovido com os sons e com as cores daquela hora que por pouco n"o chorava. Comia barro do ch"o, chupava as pedras cadas no tanque. Mas a minha fome era outra. Aquela luz rosa inaugurava a felicidade de ser. E, mesmo agora, com a lembrana da doena travada na garganta, apetece-me dar graas n"o sei a quem, n"o sei a qu, por estar vivo, por ter aqui ao meu lado, Adriana, palpitante, suspensado meu brao, sorrindo-me, dizendo: (r)E se volt ssemos!J passa do meio-dia, os minutos s"o incandescentes e tu trazes ao pescoo um cord"o de luar, que s eu vejo.O teu alentejo fica l mais para cima, n"o longe de Portalegre, mas creio que podes entender esta terra sofridaonde a esperana se vendeu em almoeda onde os agr rios recuperaram as cooperativas da experincia nova e ficaram, implorantes, quietas as azinheiras em forma de taa assistindo ao debandar dos jovens, dos homens v lidos. (r)Vs estas constru"es de taipa, decadentes, com as paredes a pano de tijolo, as lareiras da adversidade, os ridos calveiros, aquela antiga torre de vigia, testemunha de sculos, que sobrou das guerras da Restaura"o e vem assistindo ...s express"es do sofrimento humano, pelo qual eu quebrei lanas em palavras e actos, sim, dei sangue, dinheiro, prestgio, para qu? se tudo voltou ao mesmo ou at pior...N"o, as sementes foram lanadas, o seu oiro brilhou ao sol em brasa, alguma coisa delas ficou. Ou ter-se- perdido?, estar-se- transformando? Talvez seja porque a esperana esmoreceu o pas aprendeu a lingua do dio e depois a da ganncia e a dos programas da TV, dos produtos e dos bens divinizados pela publicidade, talvez por tudo isso eu me tenha concentrado neste amor. Nem te digo, nem me atrevo, o quanto te quero. Tive muitas mulheres; ...s vezes nem gostava delas, s para o combate sexual: de outras gostei, sim, ou nelas gostei de mim e da prpria vida e do prprio amor.Mas agora de ti que gosto,n"o s do teu h lito, dos teus cabelos negros, da tua pele, dos teus beijos, dos teus gemidos; gosto da tua profiss"o, ainda que me furte uma partede ti; e do teu sotaque carregado, do teu encantamento pelascrianas e pelos doentes; da tua arisca independncia, dastuas op"es radicais e das tuas fragilidades.Gosto de ver-te feliz e tudo fao por isso e s lamento n"o conseguir mais. Vamos chegando ao stio onde a -rsula morreu, prximo da malhada de um pastor, onde, se a memria n"o me falha as lindas demarcam o searedo dos Fialhos. Ainda h por aqui sinais de luta, ervas amachucadas, a cova de um corpo ouserei eu que os imagino.J choveu tanto depois disso. E o vento...L em cima, no azul, os milhafres desafiam as garras do sol alentejano. - Odeio os violadores - diz Adriana convictamente. - Eu tambm. Mas conheci um, aqui mesmo, um gigante, louco varrido, que encontrou uma criana pequenina e brincava com ela, encantado, e por fim violou-a. horrvel. E contudo diferente De resto, cada caso diferente dos outros.- E o que lhe fizeram?- Meteram-no num manicmio, claro. Mas deve ser difcil aferir o grau de responsabilidade. julgar para mim um pesadelo.' noitinha, quando a geada comea a cair e a terra fica subitamente acastanhada sob um cu ainda azul, a pardejar, aparecem fogos nos outeiros mais baixos e algumas luzes vermelham nos montes, todos brancos. A paisagem forma um anfiteatro, com o rio pelo meio e ao longe as colinasazuis, carregadas de lendas.Visto o capote alentejano, que, mesmo na minha ausncia, est sempre pendurado na porta do meu quarto e saio com a Adriana pelas ruas da vila, tropeando aqui e ali, quase me deixandolevar pelo acaso dos passos, imaginando no mistrio da morte da -rsula.Bato por fim ... porta do meu primo Jo"o Sisudo, est junto da lareira a aquecer-se, com um livro de Balzac (quem l ainda Balzac?) ao lado, em cima de uma mesinha. Falamos disto e daquilo, do que vai por esse mundo, da poltica caseira, dos descaminhos da Uni"o Europeia e at dos trabalhos do campo. E da barragem de Santo Alqueva, obviamente.(r)Mas agora o Guadiana quase n"o corre est todo cortado em Espanha com novas represas. - N"o h direito - protesta a Adriana. - A Espanha n"o pode fazer-nos isso. O Guadiana tambm nosso.Ele cala-se. Depois recomea: - Isto est muito difcil. Para todos.E n"o h subsdios. O Jo"o tem por sinal um parque de tractores que coisa de se ver. N"o ser exactamente um agricultor cientfico, mas interessa-se pelas novas culturas, instala sistemas de rega, faz o necess rio para ir mantendo a casa de lavoura que os pais lhe deixaram e que n"o foi afectada pela grande onda reivindicativa do 25 de Abril. Em que ele praticamente n"o se meteu, embora aprovando tudo o que se fazia, dando-se bem com as comiss"es instaladoras das novas Cmaras.L se formou em Veterin ria, mas n"o exerce.(r)Tive uma trabalheira do caraas! E afinal paraqu? Foi sempre um homem ilhano de comportamento pacato, que at se sente melhor com o pessoal o campo do que com os seus pares da cidade. Sbrancelhudo, dois grandes vincos amargos etre o nariz e a boca, o lunar, muito escuro, uns olhos tristes, ou comiserativos, que parecem lacrimejar quando desce o frio sobre estas terras.Encontro, e n"o encontro, o meu companheiro de adolescncia, sempre um pouco secreto, timido, desengonado, a quem poderamos chamar Jo"o bom ou Jo"o Parvo. Creio que nunca criou amigos. Nem se casou nem se lhe conhecem mulheresAlgumas ter tido, de (r)m vida, provavelmente, masmas de rasp"o e sem deixar semente. Est cada vez mais calado. N"o sei se ser problema de sade ou envelhecimento precoce este seu h bito de toscanejar depois do jantar.Pergunto-lhe se ainda vai ao velho cinema da vila.Nem por isso. mais certo ir ao pub. Dois dedos de conversa, um usque, que at lhe faz bem ...s artrias. Quanto ... discoteca, passam-se meses sem l meter o nariz.(r)Olha,os homens dos montes v"o l mais do, que eu, todos endomingados. Agora aparecem menos, que a tristeza muita por a. - Tens de criar interesses. - Os meus dias s"o chatos. Se queres saber primo, nunca me habituei bem a viver.Ando pr...qui como uma coisa. Como, durmo, trabalho, rio quando os outros riem, mas falta a alma em tudo isto. Falta-me qualquer coisa, como se n"o tivesse uma mola que os outros tm. N"o sei explicar-te. N"o sei. - Ora, o que te falta, se calhar, olhares ... tua volta, o mundo grande. Arranja uma moa que goste de ti.- O mel n"o para a boca do asno. - Deixa-te de parvoces. Trazes sempre a boca cheia de provrbios idiotas.- Eu trago a boca mas cheia de pedras.- Esta noite est s de todo, Jo"o.- que n"o vale a pena viver como eu vivo, t"o vazio, com c"ibras na alma.- Lembra-te do Pessoa: tudo vale a pena...- Qual carapua!, a minha vida uma merda, um poo escuro que tenho de descer at ao fim.Vem ent"o ... baila a morte da -rsula. N"o, n"o, tambm ele n"o faz ideia de quem possa ter sido. Visivelmente o assunto desgosta-o.Depois apaga-se. At que deixa de nos ouvir, j s Ihe arranco monosslabos. Boquiaberto. Assim o deixamos entregue ...s arremetidas de Morfeu, protegendo-se do frio com um cobertor, j desabotoado, indiferente a qualquer protocolo. 3Vi uma guia, pousada numa rocha, perto da Casa da Barca. Que garras belssimas!Um remador solit rio no rio, frente ... praia de calhaus rolados, que est maior. E, para l , o montado de azinho, onde n"o chega aquele vento de facas que iluminava o silncio, h pouco, ... sada da vila.A Adriana ficou a dormir. Em frias desforra-se dos hor rios do Laboratrio.Passeio e penso. E rememoro. Nesta Casa da Barca, que se vai mantendo de p, sem muitas cicatrizes do tempo, foi tambm violada, na minha infncia, uma rapariguita enfezada. Cinco feras sucessivamente a foraram. Ela ainda se defendeu com unhas e dentes, mas tanto a esmurraram e lhe pisaram as m"os com as botas que acabou por inquietar-se, ruminando dio.Lembro-me e sinto uma onda de sangue nas tmporas. Aqui pernoitavam os ciganos e falava-se das danas dos sacrifcios que fariam. Tinham o pescoo encardido e usavam, ainda usam camisas pretas e cabelos compridos, ensebados. Traziam gados bonitos, com aleij"es disfarados aos montes e ...s feiras. Quando bem n"o puxavam pelas navalhas, esvoaavam,nos largos, plumas de clera, tudo sangrava. Tomei logo pela manh" o Sinemet. Meio comprimido. E outro ao almoo. Meio comprimido trs vezes por dia. O mdico diz que por ora basta, ainda a missa vai a santos. Mas quando tive, h cerca de um ms, aquela crise em que tombei no ch"o da cozinha (felizmente a Adriana estava no Laboratrio),enfrascaram-me com psicotropos. Agora a Adriana, n"o sei porqu (mas custa-me) adia algumas vezes o momento de fazermos amor. Como se tivesse medo de qualquer coisa. Relutncia. Mas depois vibra. No comeo,h quase dois anos, era diferente: durante horas seguidas sentia sempre confiantes as ondas do teu corpo; por toda a parte nele via aparecerem sulcos solares. Embriagava-me o cheiro a seiva da tua pele, olhava a vida a porejar nos teus braos delgados, acariciava o ninho escuro que te esconde o sexo, beijava-o, os uniamo-nos, recome vamos, teus ombros, os teus seios, o teu ventre iluminados de amor. Meu Deus, essas m"os milagrosas,como se enclavinhavamde intenso prazer. Depois com elas colhias, captavasa luz espalhada pelo estdio e a derramavas sobre mim.Dizias ent"o: (r)Que paz! d s-me uma paz infinita.Bebia na tua boca a alegria. Ficava a contemplar o grafismo dos teus gestos curvos, os teus flancos de um ocre acastanhado, a quase inaparente musculatura das pernas.N"o, o amor nunca estava entre ns consumado, amos de xtase em xtase com lagos de sono e de ternura pelo meio. Passo as manh"s entre a vila e o rio, j me emprestaram um cavalo, porque n"o me atrevo a meter o carro por estes caminhos. E assim vou rapidamente do stio das alpondras at ao aude, perto do moinho rabe, onde a gua t"o branca (meus nervos limitados por uma dor de saudade) e reconheo as courelas ent"o aforadas por meu tio Lus Manuel e o monte minsculo do Honorato, que era dono apenas de uma dzia de geiras e dos perus que por ali faziam peito.Rebolio na vila. Veio a Televis"o.Vieram polcias de fora, at est a um (r)dtor da Judici ria que parece o mafarrico, segundo a tia Gertrudes do Arco. E os jornais falam do assunto.Adensa-se, no Tronqueiro, de dia para dia, um turvo clima de vindicta. O povo n"o sabe a quem assacar as culpas, p"e-se a congeminar, procura ...s cegas o causador da morte da coitada da -rsula. Ontem,meia dzia de gandulos agarraram por esses ermos um pobre de pedir, um zarolho muito assustado, com as m"os tortas, e trouxeram-no aos empurr"es e a pontap para o Largo de Fora, onde o mulherio comeou a vai -lo. Choveram pedradas, estava iminente um linchamento quando o Jo"o Sisudo, que ali passava por acaso, dispersou o grupo ... latada e a bradar:(r)Ch, filhos dum cabr"o! 0 tempo encarvoou-se outra vez.Talvez por poucas horas. Adoro o azul cerleo do cu sobre o vermelho das terras lavradas. Nos laranjais de ouro abanam os ltimos frutos sacudidos pela ventania. Estes c"es, ... noite ladram ... lua nova e aos vultos no escuro. Algures, no meio dos brejos, ou junto ao borralho de algum casebre esquecido, acoitar-se- o criminiso impune? Pelas ruas do Tronqueiro toda a gente me fala.E eu com todos converso, at que me canso e desapareo.A Adriana deve estar a secar o cabelo, mas n"o tarda por a,interessa-se muito pelas pessoas, e nem ela sabe a curiosidade que suscita.A Maria dos Frades puxa-me por uma manga do casaco. Ter uma vida suja, mas o rosto, a blusa, a m"o, at a boca que me sorri s"o irrepreensilvelmente limpos. Que alevantam falsos testemunhos. Mas a verdade que tenho criado estes meus filhos com o suor do meu rosto e n"o poucas vezes ... custa dos trabalhos mais duros.Trabalhos de homens. Dizem que eu roubo.Provem-no. Provem que eu roubo. Uma vez fui levadaa tribunal, mas a verdade que vim de l absolvidaN"o se provou coisssima nenhuma. O Dr. Afonso conheceu-me ainda eu era moa, tinha nascido o meu Janeco. J ent"o me abocanhavam.Invejas. Cada um filho de seu pai, est certo, e depois?,azares da vida. Melhor fora que se preocupassem com os bandidos de verdade,que por a n"o faltam e alguns at pertencem ...s famlias que se dizem mais srias. Dantes, as pessoas deixavam as chaves na porta de casa. Agora, isso que era bom, com os drogados que por a h . At as formigas tm alguma coisa a ver comigo nesta terra, estas formigas que em carreirinho fogem da calada e v"o esconder-se no gracioso umbral de uma porta escura, perfumada de hortel", para logo bifurcarem na direc"o de um rodap azul de parede,que ter na base qualquer buraco acolhedor.0 sol, quando refulge em r pidos raios por entre as nuvens agita as asas do meu cora"o. Aqui tudo me querido. Quase me roa,ao passar, uma rapariguita dos seus treze anos, o ventre todo empinado, o cabelo tirante a ruivo, aos caracolitos. - Vaidosinha - dizem-lhe do outro lado -,quem te fez o servio?- Ora, ora, foi o pai que a embarrigou. Tm cara de fome, ou sou eu que j n"o penso noutra coisa. Aqui mesmo os mais pobres andam calados, disfaram as priva"es, n"o sei como se arranjam.Um bando de moos pequenos saiu da escola aos impos,como garraios, investindo cegamente contra o carrinho doamola-tesouras, que n"o consegue evit -los. Uma mulher, com dois cestos cheios de roupa branca, que estivera a corar, levaum encontr"o e deixa cair e entornar-se um deles.Est dejoelhos, no ch"o, a apanhar toalhas, lenois camisas, que ficaram cheios de p. Os catraios vm por a acima entestados contra a luz.Sinto-me bruscamente todo a tremer. N"o pode ser do frio, que abrandou, at despi a samarra e pu-la aos ombros. Nem tive qualquer choque nervoso. Aproxima-se talvez uma trovoada, mas... Pronto, esta maldita doena. Cerro os dentescom fora. A vem a Adriana, sorrindo-me, ... entrada da Rua dos Cavaleiros. Vem rebordada de luz, o cabelo muito negro ainda a brilhar de molhado, os olhos imensamente rasgados no rosto magro.Quer um caf. Entramos no Paralelo e peo uma italiana e um copo de gua. E se comssemos aqui umas migas? Rodeiam-nos, era o que eu receava, mas depressa me conformo, embora n"o nos deixem almoar, perante a simpatia com que nos falam e nos interogam. Se eu soubesse responder-lhes! Dois trabalhadores da antiga cooperativa (poucos aqui ficaram, s os mais velhos) pedem-me novas do mundo, interpreta"es de factos e de pessoas.Infelizes, ressabiados, indignados, julgam-me pelo que eu disser. Que homem afinal o Gorbachov? Os americanos, claro, mandam no bbado do Ieltsin.E por c ?, tantos a roubar e tanta gente de rastos...As afli"es por que tm passado tornam-nos ainda mais radicais. A Adriana d -lhes os sins.Est t"o ... vontade a explicar-me em pormenor a revolu"o dos quanta como a dialogar com o povo do Tronqueiro, a ouvi-los com aten"o. Este rapaz alto, de camisola cor-de-vinho e jeans esfiados, o Edmundo Tiralinhas, levo tempo a reconhec-lo. O pai dele emigrou para a Frana, h quase trinta anos. Agora o Edmundo, electricista, volta da Alemanha, onde esteve empregado em diversas f bricas. Por l casou com uma prussiana maior do que ele, de quem teve uma filha, mas que depois o deixou.(r) Se j senti ... minha volta o dio aos estrangeiros? Mas de quemaneira! Em Han"ver, onde vivi primeiro, a minha mulher era desconsiderada por eu ser estrangeiro e parecer-me com os turcos. Ali s,fizeram-me sentir directamente que n"o gostavam de me ter na vizinhana. E eu que bem me lixava para eles!Ultimamente trabalhava de jardineiro em Bonn e por l sofri um acidente de trabalho, de modo que ainda me estou governando com a Segurana Social, embora esteja quase recuperado. Fala do sentimento de fraternidade que liga naquelas terrasa comunidade portuguesa. Todos se conhecem e juntam-secom frequncia.Mas ele aprendeu mesmo a falar alem"o e at teve amigos entre os companheiros de trabalho, sobretudo em Colnia. Que ningum o pisava, nem se sentia inferior aos demais. Est bem, chegou, pois chegou a fazer mais de onze horas por dia, sim, sim, e a alombar com as tarefas mais pesadas ou mais desagrad veis,especialmente ao princpio. a vida...Trigueiro, um caracol na testa, j com uma ponte nos dentes estragados, sorri mansamente, mas tem nas m"os redondas, nos dedos de ferro marcas de lutador. Agora mesmo a trovoada, a hora da fria, chuva de fogo no cu, os trov"es em cima de ns, raios caindo pelos ferrageais, sobre as sobreiras vivas, partindo as grandes rochas da beira rio.Clar"es de desregramento. Ardem os visos dos outeiros. toda a brutalidade majestosa da natureza, apavorando as pedras azuis da calada. O comeo do fim de tudo. Dores desconhecidas abrem caminho nas minhas vsceras, roem-me os nervos, tolhem- me os movimentos. Um bico voraz dilacera-me os msculos.Morrer. Depressa. Apetece-me sair, correndo, pelos estevais desertios, ir colher ... m"o as fascas, l onde as casas de adobe ajoelham, ... sada da vila, perto da carranca infernal da pia onde os cavalos e machos bebiam gua pura.Adriana encosta-se muito a mim. ' porta do caf-restaurantecom velhas tradi"es democr ticas, amontoam-se os transeuntes, j comeou a chover. Deito os olhos at ao desaguar das ruelas E a vem, de novo, o vento, a galope, com ps de estevas e piorno, empurrando os campos, sacudindo, espavorindo a paisagem escultural desta manh".Levo comigo a Adriana a casa do dr. Miranda.Costuma ser s conversa de homens, at v"o ficar acanhados, mas n"o quero deix -la sozinha em casa.Passou a chuva, passou o vento, h um cheiro bom a terra molhada, todos os odores da povoa"o se concentram nestas vielas estreitas, ao lado das quais perduram quintrios com limoeiros e pardais adormecidos. Madressilva, hortel", mentrasto, erva cidreira.Como a respira"o da noite feminina! Desde criana que assim a ouo, assim me toca. Parece quase milagre, depois da tempestade, este acampamento das estrelas no cu. Noite escura, no entanto, plena de fosforescncias, de olharesindagadores, que n"o vemos mas nos espreitam.Quedou-se muita gua pelo ch"o, transbordam os tanques e os charcos; escuto as vibra"es da noite, cheia de sapos, de ralos, de grilos, de gafanhotos, da desloca"o das folhas, de humanas vozes sumidas.Adriana descobre a magia da vila, ainda perto da m"e natura.Com os longos bigodes cados, a calva mal tapada por uma grade de cabelos fininhos, e ainda pretos, os olhos mortios, que de repente se acendem em grandes entusiasmos ou grandes cleras, o Dr. Miranda lana o tema pouco original do Pas devastado pelos erros criminosos da clique no poder: a agricultura no estado que gente sabe, as indstrias pequenas e mdias arruinadas, a pesca no mesmo atraso, at o turismo vai de mal a pior. Os outros d"o-Ihe mens, o conservador do registopredial, o dono da barbearia (agoraj cabeleireiro de homens);o director do Centro de Sade. Jo"o Sisudo mantm-se em silncio anuindo com a cabea. S o Lopes Cabrera tem reservasa um juzo t"o definitivo e deita alguma gua na fervura, o que ali s ainda alimenta a discuss"o.S"o todos unnimes na condena"o de uma poltica que tem afundado aquela regi"o, votando-a a um total abandono.Eu, que venho de fora, de Lisboa e do mundo, tenho tambmde dar opini"o e, embora n"o goste de discursar, l comeo a juntar duas ideias.Claro que concordo com eles, mas a quest"o mais vasta e mais complexa (Adriana olha-me interrogativamente para ela tambm que falo, agora e sempre). O caso do Tronqueiro particularmente agudo e revoltante e est aqui, debaixo dos nossos olhos. Mas insere-se numa situa"o de crise bem mais ampla. Houve no mundo uma transforma"o profunda tecnolgica, econmica e cultural, que respons vel por tudo o que est a acontecer, pelo desemprego, mesmo nos pases ricos da Uni"o Europeia, e nos Estados Unidos. As sociedades automatizadas dispensam trabalhadores, rejeitam milh"es de homens e mulheres que comeam a ser a escria desclassificada, semi-morta deste mundo. E abaixo a misria, s"o as v rias formas de misria, alm desta que aqui nos aflige, da desertifica"o dos campos. Refiro-me aosjovens que n"o encontram emprego. Aos inactivos precoces, deitados fora por escritrios e por f bricas aos cinquenta anos. H que repensar ao mesmo tempo a produtividade das empresas e a inser"o de todos os homens no mundo do trabalho.- Eu n"o sei qual a frmula - digo com uma certa emo"o -, s sei que a esquerda tem de repensar tudo isto, ser ela a fazer sair o mundo deste impasse, s pode ser a esquerda, porque ainda nela que se encontra a preocupa"o mais funda e mais autntica pelos valores humanos e pelo destino das minorias.Parece que todos concordam; mesmo o Lopes Cabrera, que se pretende objectivo e que algumas vozes dizem prximo do partido do Governo, n"o levanta objec"es.- Sim senhor - apoia o dr. Miranda -, isto n"o pode ficarassim. Se hoje j horrvel, amanh" ainda o ser mais.E refora com convic"o:- H que inverter a marcha desta sociedade para a cat strofe. Estava a ouvir aqui o dr. Afonso e a lembrar-me: afinal todos ns assistimos ... transforma"o desta sociedade e n"o nos d vamos conta dos fenmenos que se iam processando.Nos anos sessenta sonh vamos com a computoriza"o, que havia de reduzir as horas de labor e iria libertar os homens dessa maldi"o bblica que o trabalho e permitir-lhes desenvolver as suas potencialidades artsticas, o gosto da felicidade, os prazeres simples do dia-a-dia. E n"o foi nada disso que aconteceu. Estamos at num mundo escurssimo, quem sabe se ... beira da robotiza"o generalizada, sem falar j nos perigos da clonagem...A Adriana baixa a cabea, aprovativa.- verdade -, repete Jo"o Sisudo - as m quinas (e ...s vezes umas m quinas t"o pequeninas) fazem trabalhos de centenas de homens. Bom, aqui nem isso preciso. H lavradores aquem pagam para cultivarem girassol e depois nem o apanham, j arrecadaram a massa. N"o vem a girassis por toda a parte?- Mas ent"o, Dr. Afonso - pergunta o Joaquim Carapeta, o dono do Sal"o Liberdade, que foi barbeiro toda a vida e ainda nos corta o cabelo -, ent"o o marxismo j n"o o sistema necess rio para avaliar a realidade e modific -la?- Claro que sim, pode ser, desde que repensado ... luz destas novas realidades.A conversa deriva para o enigma da morte de -rsula. Ter sido, presume-se, um vagabundo, algum de fora. Parece que a polcia anda ... nora, um caso bicudo em que eles n"o vem npiaficam todos escarapelados, segundo mestre Carapeta.Mas a viola"o e o assassnio da -rsula, que neste momento chamam todas as aten"es, n"o s"o um processo isolado, explica o director do Centro de Sade, que tem tratado de sevcias graves, muitas mulheres e crianas brutalizadas pelos chamados bons chefes de famlia. Mulheres cobertas de ndoas negras e atestadas de injrias, que as amarfanham. Uma porque o marido bebeu, e a quis tratar na cama como coisa sua, s para se despejar; aquele, ao invs, porque tem outra e faz dela, a legtima, o seu capacho, a sua serva. Alguns, e dos mais duros, vivem ... custa do suor e do sofrimento dessas escravas.Adriana pede pormenores, idades, a reac"o delas, porque n"o se divorciam? e, nessa situa"o, se eles Ihes pagam os alimentos e aos filhos. As respostas s"o descorooantes. Um estendal de violncias praticamente impunes. De resto, poucastm dinheiro para o advogado. Houve, de facto,um homem quefoi preso, por pouco tempo, por se furtar ao que o tribunal havia estipulado, mas continua a rir-se e a nada entregar do que ganha e que, valha a verdade, tambm n"o muito.Adriana exalta-se, fuma cigarro atr s de cigarroextremamente nervosa. A gentica molecular n"o toda a sua vida, compadece-se muito daquelas desgraas e irrita-se. Para l do razo vel, parecem pensar alguns dos doutores.At se oferece para ir falar com as mulheres, esclarec-lasE vai desabafando:- N"o h pas da Europa com uma legisla"o mais progressista e onde, na realidade, as mulheres tenham menos direitos.Cavalos selvagens escarvam o solo ...s portas da vila. Noite t"o estrelada e agora t"o fria.Adriana acende mais um cigarro.- Tens fumado tanto! Est s a destruir-te.- Deixa!- N"o queres parar?, reduzir pelo menos o nmero desses inimigos?- S quando me convencer plenamente que tem de ser. curioso. Eu, que vou morrer em breve e vou passar sei l por que tormentos, a ralar-me assim com a sade da Adriana, com a sua longevidade. que n"o concebo o mundo sem ela, mesmo depois de mim. Quero-a viva e feliz nesse mundo onde j serei apenas memria a desvanecer-se.Ressoam os nossos passos na calada. Os (meus) cavalos da noite escura empinam-se ...s portas da vila. 4Quando o alarido e a excita"o da matana atingem o auge, est a rosa do sol quase a pino num firmamento irreal de t"o azul.Os montes costumam ficar em pontos altos, arejados, mas este acolheu-se ...s concavidades de um vale, que vai descendo, em suave declive, para a ribeira, eriado de oliveiras e favais e, por fim, espraiando-se em terras de nata, que permitem duas culturas por ano.Viemos cedo (eu ainda a esfregar as p lpebras), porque o Afonso queria assistir ao comeo da fun"o. N"o tapei os olhos, mas fquei toda crispada, as unhas quase cravadas na palma das m"os, vendo golfar o sangue, aos borbot"es, das grandes goelas rasgadas, entre berros e risos. S"o trsporcos, de seis arrobas, cada um em cima do seu caixote. O cheiro desagrad vel (para o Afonso n"o, lembra-lhe o seu antigamente): est"o a chamusc -los, e logo em seguida esfolam-nos. Os garotos rodeiam o matador de risadas de espanto, lambuzam-se com o sangue dos sunos, tropeam, tontos, nas pernas dos ajudas e nos c"es do monte, que j farejam por ali algum tassalho de carne.Abertos os animais, a festa sobe de tom. Ainda crepitam as ramadas e o mato em fogo, j a extinguirem-se. Leio no rosto do Afonso o som e o feitio das coisas do tempo outrora, que ele tem ...s vezes pudor de me comunicar.Recolhido o sangue nos alguidares, a altura de as mulheres assarem a cachola, que iremos comer em breve, com outros (r)mimos, que os nossos anfitri"es nos prometem. Comeam, ali s, os preparativos para se fazerem os enchidos, que v"o durar todo o ano: as morcelas, o chourio mouro, a linguia, as farinheiras, os paios, os salsich"es ... andaluza, com muita pimenta, e toda aquela az fama se vai armando num quadro realista, bem alentejano, mas com qualquer coisa de intemporal, de muito povo, entre Brueghel e Bosch.Os midos v"o-se outra vez aos alguidares e pintam as faces, imitando ndios, com o vermelho do sangue; e, atropelando as regras, atiram malaguetas uns aos outros, quando n"o roubamlaranjas, cujo sumo lhes escorre pelo queixo e pelo pescoo, entre a camisola larga e a pele. E h grados que competem com eles nesses pequenos desvarios.Os milhafres, l em cima, rondam o festim, ...s vezes descem sobre os chaparros e os olivais, do lado da mina de gua, para logo ganharem novamente altura, sempre atentos.Um manifesto erotismo, que se espalhou no ar, leva alguns rapazes a correrem atr s das raparigas de aventais todos manchados, que lhes fogem e lhes trocam as voltas, para logo, por seu turno, os perseguirem, numa sarabanda de alegria voraz, em sintonia com o rubro da hora.Um c"o vem lamber-me as m"os.Pego no brao do Afonso (sinto-me, ao mesmo tempo, enjoada e fascinada com a cena), arrasto-o para a eira, de onde se avista, de um lado, a strumeira do monte, junto ... cavalaria, ao celeiro e ... vacaria; do outro lado os longes do rio, com os seus choupos esguios e desnudos.Ele deve estar a pensar nalguma novela ou romance que neste espao busque razes. Sei que n"o lhe dou toda a ternura que deseja. Se o fizesse, fingia. claro que gosto dele, mas eu prpria n"o sei como nem quanto.Sinto no Afonso uma grande ansiedade, uma expectativa em rela"o a mim, que por vezes me assusta. Alm de que os sentimentos n"o se medem. Todos somos diferentes e, mais do que diferentes, somos confusos. Eu prpria n"o sei muito bem, n"o sei exactamente o que sou, neste ano dos meus trinta anos, a idade da raz"o.O Afonso fala pouco, quase n"o se queixa, mas j aprendi a descortinar a passagem dos descontentamentos, das dores, no olhar dele, mesmo quando mos esconde. H uma coisa que uma vezlhe disse e que o entristeceu muito. que eu n"o sofro com a ausncia das pessoas de quem gosto. Vivo cada momento em pleno, sinto-me feliz junto daqueles a quem quero, mas n"o, sou dependente. N"o, n"o sinto a falta das pessoas, estoubem onde quer que esteja. O Afonso, neste instante, acaricia-me a m"o, em silncio, e isso -me muito agrad vel. N"o me faz exigncias, j tive um namorado que justamente se queixava da minha falta de amor, do (r)pouco caso que fazia dele, e tanto insistiu nessas acusa"es que levou ... nossa ruptura. O Afonso, talvez devido ... nossa diferena de vinte e tal anos, praticamente n"o reclama. Claro que isto n"o significa que eu n"o seja leal com ele e verdadeira nos meus sentimentos, a que prefiro n"o p"r nome. Estou bem com elena cama e na nossa vida de todos os dias.'s vezes apetecia-me poder corresponder mais intensamente ...quele apelo dos olhos quase suplicantes que ele p"e em mim. Devo ter qualquer coisa de comum com os gatos. De resto, adoro-os. Como eles sou independente, como eles sou orgulhosacomo eles sou arisca.- Est s muito pensativa. Eu vinha volta e meia para esta eira em pequeno. Havia aqui uma grande serra de palha, t"o alta como um castelo, na minha vis"o desse tempo. Subia l para cima, com outros garotos, e domin vamos o curral dos porcos,os olivais, a horta, que era um jardim muito verde com olhos-flores, as grandes nespereiras e os atalhos inviolados das mangas, as ndoas roxas da soagem, as sobreiras muito copadas... ramos os donos do mundo.- Est s a falar quase como escreves.- Acontece-me.Com frequncia o Afonso inspira-me ternura. Muito antes de o conhecer j gostava dos poemas e dos romances que ele escreve e no nosso primeiro encontro, naquele jantar em que por acasofic mos lado a lado, o dolo n"o desabou, antes pelo contr rio. Nele n"o achei nem sombra daquela (r)importncia, que ...s vezes reveste as pessoas clebres. Como eu estava ent"o destruda! E ele trouxe-me outra vez para a vida. Foi-me atraindo, dia aps dia, com pequenos nadas, uma lembrana e outra, mesmo que fossem sem valor material, e o modo de olhar, a pedir amor, e a press"o dos dedos, o beijo no momento prprio.Como biloga, estou ligada ...s tecnologias mais modernas, mas adoro ler (e agora, n"o raro, falta-me o vagar). Em estudante, quase n"o podia comprar livros, frequentava muito as bibliotecas e at lia de p, nas livrarias, romances inteiros, ou volumes de contos. Quando receava que me descobrissem e me dissessem qualquer coisa, fixava o nmero da p gina e ia-me embora, para voltar no dia seguinte e terminar a leitura, sempre ... socapa. Tambm n"o tive muitas oportunidades deouvir a melhor msica, s tarde que a descobri, mas at para aqui trouxe comigo discos e cassettes. Em muitos dos meusgostos n"o serei completamente da minha gera"o, e at por isso me entendo bem com o Afonso, mas sinto em mim uma nsia de descoberta, de ir mais alm, da ter escolhido a cincia que escolhi. Antes de me ter orientado para a gentica molecular, pensei na psiquiatria. Eram, de outra maneira, os esconsos do ser humano.Ele toca-me no pescoo, carinhosamente, e eu fujo-lhe, com ccegas. Ao princpio nem sabia bem o que representava ele na minha vida, como definir o tipo de rela"o que se ia desenvolvendo entre ns, at vivermos praticamente juntos,apesar de termos cada um a sua casa. N"o me era f cil imaginar uma estabilidade com ele.Pega-me na m"o. E eu n"o gosto de andar de m"o dada, mas n"o reajo. Prefiro que me passe o brao pelo ombro. verdade que me recusei a um investimento total, mas tenho de admitir que o Afonso tem invadido territrios progressivamente mais vastos da minha existncia.Por vezes fala-me de pessoas e acontecimentos que j n"o s"o do meu tempo. Ouo-o com aten"o e at com curiosidade, n"o creio que isso cave entre ns um fosso, mas acontece arranhar-me, sinto uma estranheza, um mal-estar. Porque n"otens menos vinte anos, Afonso, para acertarmos os nossos projectos a longo prazo?Nos intervalos do amor, nesse abandono em que te entregas tanto, aconteceu-me quantas vezes reparar nas rugas que tens no pescoo.Devia talvez am -las. E n"o. Mas tambm n"o me causam asco nem horror. Apenas sinto a diferena.rena.Ser por um pudor especial da palavra ou por eu estar ligada ...s cincias exactas e conhecer todos os rg"os por dentro que n"o consigo falar como tu das sensa"es e dos sentimentos, nem experimentar esses arroubos das grandes sensitivas?H alturas em que te quero muito, muito. E noutras ocasi"es cansas-me. Mas quando tudo me cansa, a comear pelas rotinas do quotidiano, pelo passar a ferro, pelo fazer o jantar...- Ah, sim? Ali dantes havia touros de lide?Espero que l n"o tenha ficado nenhum. dos poucos animais de que n"o gosto de me aproximar.Pergunto-me se terei medo de olhar muito fundo para dentro de mim. Quando mexo um brao, sei o que pretendo fazer. Se compro charutos cubanos para te oferecer, sei que o fao com gostoSei como excitar-te e que isso me excita tambm. Mas, para alm desses gestos e inten"es, h um espao paludoso onde me movo com dificuldade. E nem sequer para l espreito demais, com receio do que possa achar. N"o, n"o verdade: espreito, sim, e recuo e torno a espreitar, e defendo-me, fujo.O sol aquece muito. assim este Inverno. E j comeam as pessoas a concentrar-se ... porta do monte, prontas a petiscar e a refrescarem-se com o tinto do Dr. Carrasco. Est toda a gente ... vontade, com excep"o de trs ou quatro senhorasdonas que nem para esta fun"o abdicaram da dignidadedignidade de saia e casaco.Caberemos todos l dentro?Alguns catraios sujos e remendados brincam no ch"o, junto a uma poa de gua. Um deles faz nada menos do que bonecos de barro, perante a expectativa e o aplauso dos outros. Saem-lhe das m"os aciganadas pequenas coisas milagrosas como vacas (os chifres s"o pedacitos de pau apanhados debaixo das oliveiras), porcos, coelhos, galinhas...- J est"o duros? - pergunta um dos putos.- N"o, complicado, precisam de ir ao forno do p"o.- E se eu os pusesse ali a aquecer ao lume? - Estalavam - diz o minsculo artista -, deixem-mos estar aqui em paz.Mas uma das crianas, das mais enfezadas, pega num boizinho e, ... experincia, atira-o ao ar, rindo-se muito.O pequeno escultor precipita-se, para o agarrar e desastrosamente, apanha com ele em cheio na testa. Ora o boneco de barro devia conter alguma pedra, que ele, ao amass -lo, n"o notou, porque o feriu, e de que maneira! O sangue principia a brotar e j lhe vem pela face abaixo.Corro a acudir-lhe, procuro um leno limpo para estancar a hemorragia e quem me vale, por fim, o Jo"o Sisudo, que descobre n"o sei onde um frasquinho de Betadine. Limpo a cara do Manelzito( como os outros o chamam) e desinfecto-lhea ferida, depois improviso um penso e uma ligadura, sempre com a ajuda e o expediente de Jo"o Sisudo, que o segura com as man pulas toscas.- Est a ver?, temos aqui um futuro artista.Eu nunca tive jeito para estas coisas - diz ele ( mais do que bvio). - Mas admiro os que tm esse dom. Parece que voc tambm desenha. - O que fao s por instinto, nunca aprendi.Volto-me para o Manelzito:- Como que descobriste que eras capaz deamassar esses bichos?- E tambm sei fazer pessoas. Como que comecei?Olhe, foi um diabinho que me ensinou quando eu era mais piquinininho. Mal me lembro.Mas disse que voltava um dia para vir buscar-me a alma.- Ora deixa-te l de patranhas. Quem que te meteu essas endrminas na cabea?O catraio ri-se. Jo"o Sisudo escuta-o, encantado, sorrindo. No seu rosto opado o globo ocular tem neste momento a humidade e a doura dos olhos dos cordeiros.Vejo o Afonso quase ao nosso lado (n"o tinha dado por ele), todo atento ... conversa de dois homens, que falam da viola"o da -rsula. Um deles contraria a tese da (r)santidade da rapariga. (r)Ela que se deixava violar, nem sei como aquilo aconteceu. S se foi algum que a assustou muito. Ou quelhe causou repugnncia.Para o outro n"o seria bem assim. Afinal ela tinha um sorriso para toda a gente. E adorava as crianas. Era uma boa alma. As pessoas que se p"em a falar. Interpretam mal as atitudes.Um terceiro, que entretanto se aproximou, deita as culpas ... famlia da moa: para que a haviam de p"r a estudar no colgio dos ricos?, n"o lhe bastava a escola de todos os outros?, depois admirem-se, picava-lhe a cevada na barriga.Afasto-me. Que eu saiba, ali s, pouco estudou, parece que s at ao stimo ano. N"o puxava para a. Devia ser fresca e bonita. Amor vel, com rosas de sade a enfeitarem-na. Curioso o facto, que constato, de se terem formado quase dois partidos sobre o perfil da morta; e a linha divisria passamais ou menos entre homens e mulheres. A aurola de santidade (como o absurdo se implanta!) j chegou muito para alm dos arredores do Tronqueiro, at nalgunsjornais da capital emite o seu brilho.Porque que a -rsula estaria, j ... noitinha,num descampado, ao p da cabana de um pastor?Sozinha ou com o prprio homem que a violou e matou? 5H pouco ca na casa de banho. N"o sei bem como. Comecei a tremer, senti as pernas fl cidas, a fraquejarem. E n"o me levantei logo, foi preciso aguardar (quanto tempo?) que os membros ganhassem foras - via o dentro do meu corpo,esbranquiado, a reverdecer palidamente, a passar ao tom rosa, ao vermelho da vida plena. Tive n useas.E pensar que durante a noite fui t"o feliz ! A peleda Adriana era mesmo de seda; e chamava-me.As cadncias do amor atingiram a perfei"o; a espera j nem me doa, todo eu, superada a ansiedade me fundia nela, no seu movimento, no seu gemer, no seu frenesim. Amanheciamj os p ssaros no silncio e pelas grandes frinchas da janela chamejava a aurora. Todo o teu rosto era ternura e os teus seios, o teu ventre arroteado palpitavam de luminosa confiana. Lembro-me de como percorria com as m"os e com os l bios os teus braos t"o fr geis, os mamilos duros, a tua fina cintura, a curva, as sombras das tuas ancas, o moreno das coxas, para logo voltar ... tua barriga lisa, ao ninho do pbis emaranhado. E tornava aos teus l bios, compunha-te as madeixas negras e brilhantes. Sorrias-me sem reservas. talvez um erro meu endeusar-te assim. Mas n"o consigo conter-me que n"o te abrace duas, quatro, dez vezes e te devore com beijos, depois do orgasmo.J tomei dois remdios, um comprimido de Vastarel, outro de Cartia e, possivelmente, no regresso a Lisboa, terei de aumentar as doses ou passar para outros medicamentos mais fortes.Despert -la nunca f cil. Teve de ser com leves carcias, mas sem parar, sem a deixar repousar e voltar-se para o outro lado. J uma vez a acordei com borrifos de gua e reagiu mal. impressionante como, sendo de estatura mdia, se encolhe e se faz pequena nessa sua resistncia ao dia. Parece uma adolescente, quase uma criana, com as fei"es muito serenas, a boca sempre vermelha, como se estivesse pintada, as p lpebras descidas, que as pestanas longas suavizam.L fora estrondeia j o Entrudo. Ouvem-se foguetes, estalidos, bichas de rabiar. Soam palavr"es nas esquinas. claro que vamos fugir da vila, mas n"o sem deitarmos um olhar a estas ruas demudadas. J nos escap mos, no largo da igreja velha, de um grupo que atirava com ovos podres e com farinha, talvez com coisas piores, a quem adregasse de por ali passar. estranho, ... primeira vista, como, no meio da desgraa que se abateu sobre a vila (quer dizer, sobre os mais pobres, os desempregados sem apoios familiares), se levanta agora este Carnaval alegre (ou furioso), despudorado, descomedido. E s"o ainda bastantes, jovens sobretudo, com m scaras negras, caraas de bois, de porcos, e com pescoos e rabos de dinossauros. Esguicham-nos com as bisnagas,jogam serpentinas...s empenas dos telhados, espinoteiam nos passeios.Meto as m"os em dias sujos da minha infncia e vem de l uma tera-feira de gargalhadas, dia de cus ... mostra, de carne ... solta, de sangue e merda, de humor desbarrigado, de segredos a rojarem pelo ch"o. Houve facadas e l grimas nas tabernas e eu embebedei-me com vinho doce, vomitei no cinema e fiquei para sempre a reviver essa vergonha. A vida habitual recolhe-se nas casas fechadas, onde estridulam vozes de mulher:- Gertrudes, vai a ... da tua tia pedir um raminho de hortel".Nos cafs fala-se novamente da morte da -rsula. Consta agora que o matador teria uns dois metros de altura. Algum o viu, espalhou-se o rumor. Em frente do supermercado cresce umburburinho, mas coisa pouca: houve um matul"o que apalpou o rabo a uma matrona, que nada mais nada menos do que a esposa do escriv"o da fazenda, e a senhora protesta, os risos aumentam, a Adriana espreita a cena, apoiada a mim, apertando-me o brao. Cruzam-se dichotes, j vem na nossa direc"o, junto ...quela casa de rodap vermelho que sempre achei espectacular, um homem vestido de mulher, com bastos requebros e macaquices. Pronto, apareceu uma rapariga dem"o leve, que deu com um trapo molhado na cara do apalpador; e ouve aplausos.Entretanto, surge o inslito: uma pequena marcha com caveiras e caras riscadas de branco, mulheres chocalhando ossos, uns estranhos ossos luminosos. Entre elas um gigante, ou seja, umhomem em cima de umas andas, os braos tacteando o vazio, o olhar letal. No silncio que se faz, as vozes dos recm-chegados resplandecem. Ningum os reconhece.Ser impress"o minha ou h mesmo um arrepio de loucura que atravessa este Carnaval? A press"o da m"o de Adriana no meu brao aumenta. Desandamos do centro da vila, onde, poroutras ruas, estralejam gargalhadas de fogo, fecham-se portas com estrondo e o g udio mais brejeiro - tal como se me apresenta - anda copulando com a fome e a desgraa.Gritinhos abafados atr s de ns; a sede inacalm vel dos vampiros. E aqueles dentes postios, na sombra azul das paredes, sob o conchego dos beirais! S"o apenas os mais pobres dos pobres.' soleira desta porta, esquecida do mundo, p ra a lngua fria dos c"es j derreados, que ladram mesmo assim aos malmequeres de papel e ao riso dos foli"es, quando os topam.Um mido de faces emaciadas roa por ns, a mordervorazmente um chourio.- Quem te deu esse enchido?Esconde-o logo, numa defesa instintiva.- Roubaste-o?- N"o senhor... H mais l em casa.- Para a famlia toda ir comendo, claro.Abana a cabea, com medo.Est , h trinta e tal anos, um moo pequeno como este aqui mesmo dejoelhos na lama, os olhos muito assustados, a cara de fome toda a tremer, e v"o arrast -lo at ao posto da Guarda porque tirou duas fatias paridas de um cesto e, com a suafalta de jeito, derrubou-o, e as frituras espalharam-se pelo ch"o. H -de pela vida fora sofrer humilha"es piores, mas talvez nunca tenha sentido tanto medo. Rodeiam-no, batem-lhe nas faces, ele agarra-se aos aventais das mulheres, ...s botas dos soldados, ao lancil do passeio e vai de rojo gritando e chorando, sujo de ranho e de sangue e de bosta de cavalo.Creio que a minha avers"o aos castigos se origina nestas imagens.Este posto mdico, hoje fechado, j n"o d vaz"o aos feridos e aos enfermos do Tronqueiro; mandam-nos para os centros de sade de Serpa e de Moura; uma parturiente, recusada neste ultimo, recentemente, por falta de quem pudesse e soubesse atend-la, acabou por dar ... luz, de qualquer maneira, a caminho de Beja, na ambulncia dos bombeiros, ajudada por um deles. porta est"o dois conhecidos meus cavaqueando, os quais nos falam, pela ensima vez, dos campos de girassol, (r)j viram o que pr'a vai de girassol?, e da emigra"o, cada vez maior, que inunda de alentejanos, e do seu canto de nostalgiagia, a cintura industrial de Lisboa. Para a Sua agora h menos oportunidades e quase s v"o os mais moos. Contam da morte da cooperativa, das reservas, das vendas aos talh"es. (r)Eu sei, amigo, eu acompanho isso tudo.Sabemos ent"o de como a polcia prendeu dois meliantesque tentavam embarcar no carro uma rapariguita de onze anos, oferecendo-Ihe chocolates e enfeites para o cabelo. E h suspeitas de terem sido tambm eles os autores da viola"o da -rsula.Mesmo em Fevereiro cegante esta brancura silenciosa das casas e das chamins. Por dentro, imaginamos a pobreza envergonhada. Os mais necessitados s"o ainda os que mais depressa tiram o p"o da boca para o darem aos vizinhos. L vai o naco de toucinho, e um pedao de queijo de ovelha, l v"o uns pingos da almotolia do azeite.- Ent"o, Pingalim, n"o pedes licena a ningum para crescer desse modo?- Foi do leite que bebi na escola. Deitei corpo.Olhe, agora para os mais pequenos acabou-se a mama. J n"o d"o leite na escola.- Os teus pais?- N"o sabe? O m pai est preso.- Ent"o porqu?- Dizem que andava para a metido com ciganos que passava droga. Mas n"o verdade.- H muita droga por a?- Dizem que sim, mas eu nunca vi.O pior que estes passadores de droga, que dantes andavam no contrabando da bebida e do tabaco, nem se d"o conta das pessoas a quem v"o tirar a sade ou mesmo a vida. para muitos uma tarefa de sobrevivncia.Por cima de um muro baixo avisto os limoeiros de um jardim cego.Algures, nestes macios de verdura, se acoitam as aves monstruosas que p"em os ovos das tormentas, dos flagelos. Ah!, desditosa gente minha, na qual o poder se tem vingado do que j l vai t"o longe e que, mesmo no Carnaval, ergue cravos nas m"os. Mas estes s"o de pl stico.Sai, disparada, de uma porta baixa uma coisinha fofa dos seus sete ou oito anos, toda esgrouviada, ruiva como brasa. Atr s dela, de vergasta na m"o, a m"e, que sente a necessidade de se justificar:- Esta perdida comeu todo o queijo que era para o menino.-Parece-me que a conheo.Uma vizinha, de cuja presena nem me tinha apercebido, esclarece prontamente:- Ent"o n"o se lembra, a Rosa, a irm" da Jlia do seu compadre Honrio Henriques.- Ah, o que ela mudou! E a Jlia? Ainda n"o a vi.- A Jlia abalou daqui com um feirante, mas consta-se que j o largou tambm e estar a traalhar no Algarve, num hotel.- Eram as duas muito bonitas - comento com a Adriana. - Mas a beleza aqui no campo n"o dura muito.- Todos te conhecem.- como quem diz... Esta gente do Tronqueiro sabe que eu fao poemas e livros, mas tem um saud vel e total desconhecimento de tudo o que neles escrevo. No entanto, se publico algum artigo no jornal, mormente se critico os nossos mandantes,logo me vm dar os parabns: (r)Nunca as m"os Ihe doam, amigoA Jlia! Igualzinha ... m"e, que tambm assim se chamava. Hora de vsperas. Os pardais aquietavam-se nas olaias, a luz caa sobre os barros de um vermelho sangue-de-boi. Ouvi um rudo estranho, como o resfolegar de um animal desconhecido, que vinha da porta do cas"o, quase fechada. O pessoal do monte andava a recolher os gados.Aproximei-me, com os raios do poente nas costas e ao longe o balanar do mundo.Encostei a fronte gelada ... porta e vi logo, embora confusamente, a outra Jlia, seminua, abrindo as coxas desejadas para um dos homens da azeitona. Dois morcegos esvoaavam-se contra a parede rugosa do cas"o, perto do nico janelim que torvamente iluminava a cena. O sol amarelo do crepsculo incendiava a palha apodrecida.Toda a pele de cobre da Jlia brilhava, danando-Ihe o aspecto de uma escrava mourisca dos cromos do livro de geografia.O homem agitava-se, frentico, em cima dela, que gemia, ou cantava, baixinho. Via-lhe a flor sagrada de um dos peitos, os cabelos descompostos, abanando, as pernas erguidas e frementes.Eu tinha as m"os enclavinhadas. Os meus dez anos inquietos sondavam-na com um misto de encantamento e rancor. Estava habituado a v-la passar ... tardinha, de cntaro ao ombro, quase bailando, em direc"o ... mina, como uma est tua viva. E agora dava-se ...quele homem. Os corpos morenos batalhavam. E eram o mpeto, o acto criador, a essncia da tarde. Devia haver larvas e insectos na palha apodrecida, mas eles nada viam, s se sentiam um ao outro. C fora piavam as as aves da noite, irm"s no canto. Os c"es uivavam. E aquele casal de acaso, ignorando o frio de Dezembro, concentrava toda a luz do fim do dia.A vila parece cheia de boatos. Estamos j na periferia norte e ainda somos informados de que uma mulher de virtude anunciou vir a uma doena muito ruim, uma caliqueira que faz cair o membro viril a todos os homens que cobiaram a -rsula e desfazem agora na sua reputa"o.Metemos por uma azinhaga, j perto dos ciprestes do cemitrio. H uma cegonha pousada em cima de um forno de p"o (onde estar o ninho?) e, perto, um poo destapado. As vespas, os moscardos, os arcos do meio dia, as colunas invisveis dodo silncio. Reencontro a natureza da minha infncia: a respira"o do absoluto. A sair do poo imagino a serpente do poema de D. H. Lawrence. A serpente, a sensualidade.Vem ao nosso encontro um pimpolho loiro e muito p lido, manobrando uma cadeirinha de rodas, e acompanhado por dois familiares, que n"o me s"o estranhos. Atr s deles, casualmente, o Manel Franezes, de nariz piteireiro, meu antigocondiscpulo, que me satisfaz a curiosidade (aquele luxo para uma famlia t"o pobre?).- Paralisia infantil - diz, adiantando um dedo, com l stima, na direc"o dele. - Foi o seu primo Jo"o Sisudo que se condoeu do pequeno e lhe ofereceu a cadeirinha, mas olhe que pouca gente sabe disto. uma boa alma. N"o quer que a esquerda saiba o que faz a m"o direita.Descemos, por uma vereda estreita, para o barranco, onde lucila um fio de gua; o sol joeira-se atravs dos valados.- Vi-o muitas vezes enterrar o brao na vulva das vacas e cuidar dos c"es, curar-Ihes as feridas com um tacto e um cuidado extremos - conto ... Adriana, tentando ajud -la a desgalgar a encosta pedregosa (onde vim eu atolar-me, santa providncia!). - Mas n"o parece uma pessoa suave.- E n"o . S com as crianas e com os animais.De uma vez teve que dar uma injec"o mortal a um macho, que havia partido o pescoo numa queda e estava mesmo pronto. Uma injec"o para o poupar ao sofrimento de uma demorada agonia. E at parecia que estava ele tambm com dores,todo crispado. Mas ao mesmo tempo capaz de grande violncia. J em mido rabiava como uma fera quando Ihe surripiavam os brinquedos. Punha-se todo vermelho a correr atr s dos outros ea berrar:(r) Filhos da puta, que lhes quebro os costados. Mais tarde andava ... paulada como os demais rapazes por coisas de que eu nem faria caso. Com aquele corpanzil, imagina, com aquelas man pulas, deixava-os em muito mau estado.Na tropa, era despistado, inseguro, mas acho que parecia um touro tresmalhado quando os sargentos lhe pisavam os calos. Capaz de os trincar todos.Atalh mos caminho para a ribeira. Adriana arrancou umafolha de uma carrasqueira, observa-lhe as nervuras e entala-a na boca de amoras, entre os dentes. Num movimento sbito, inopinado, puxo-a para mim e beijo-lhe os l bios. Corresponde.Outras vezes sorri, quase displicente, destes meus repel"es de ternura. Se ela soubesse a raz"o de tal urgncia de vida, de amor!Foge, clere, um lagarto, a dois metros de ns, e infiltra-se numa moita de carrascos, espalhando ... volta uma poeira rosa.Maravilha-me a permanente metamorfose do mundo: o zumbir de uma abelha, um bicho que agita a quietude das coisas, o ardor da alvura daquele monte, ... nossa direita, o voo perfurante da codorniz e depois, desalinhando um tudo-nada mais a serenidade da hora, aquela palpita"o nas franas da arvoreda onde a brisa principia.Deixo-te avanar trs, quatro passos e fico a adorar a grafia dos teus gestos curvos. Ris-te.Cruzamo-nos com um homem corcovado, de rosto terrulento, sulcado de grossas rugas, que nos remira num vago espanto e me sada por fim, com certa timidez, um sorriso um pouco idiota.Vem tocando uns porcos pela estrada velha, esburacada.De repente lembro-me e dou-lhe um abrao.Explico ... Adriana quem este Florival Carrapeto, meu vizinho de infncia e adolescncia, quea ssim surge, t"o envelhecido, dos longes desse tempo. Como and mos juntos aos ninhos e aos tiros aos p ssaros por a com uma espingarda de press"o de ar e como o vi fornicar com as ovelhas e at com uma galinha. Incitava-me a imit -lo, mas eu sempre declinava esses convites, exorbitado e constrangido, na minha pele de rapazinho ajuizado, j com estudos e com nojos.Ele l vai, rumo ... vila, presumo, com a sua bossa ...s costas, o olhar um pouco turvo e quem sabe se com a decep"o do nosso encontro. Lamento n"o lhe ter dado mais aten"o. S"o t"o susceptveis, na sua mudez, sem protestos, estas criaturas solit rias.Quantos anjos cruis e monstros familiares conheci, nesse Alentejo de h quarenta anos, quando as primeiras avionetas apareceram a fazer a monda qumica e se multiplicavam j , nasherdades mais ricas, os tractores e as debulhadoras. Mas era ainda o tempo dos trilhos e das charruas e dos velhos arados e como eu gostava de me misturar com os grandes ranchos da apanha da azeitona e das ceifas e de ouvir as histrias dosmais velhos e at de medir foras, a varejar ou norabisco, com os moos e as moas que faziam por obriga"o o que para mim era desporto. E, vendo bem, n"o era s desporto, era a minha forma de os respirar, de os descobrir, de lhes sentir a humanidade. Vi de t"o perto a simplicidade do horror, a fome e o cio, assisti a um espancamento de uma velha por um filho embriagado, um gigante manso e submisso nas suas horas habituais.E estive ao lado dessa gente, da minha gente,sempre que os ganh"es do Tronqueiro exigiam jornas mais altas e se opunham aos trabalhadores vindos da Beira ou do Algarve para Ihes tirarem o p"o da boca, isto , para tentarem sobreviver eles tambm, ou amealharem uns escassos cobres.- Conheceste muitos como este Florival? - pergunta-me a Adriana.- Parecidos! Pequenos monstros do quotidiano, ...s vezes capazes dos gestos mais inesperados, no bem ou no mal, ou no que assim se convencionou chamar.S"o - penso eu - os filhos da misria e da ignorncia, hoje como ontem condenados ao pior que a vida oferece. Dantes eram o mau passadio e a pernada do chaparro ... espera do barao paraa forca. Agora s"o outra vez a fome e o horizontefechado. Resta a miragem do Alqueva: uma plancie toda verde, bere e franca, com lagos artificiais e barcos de recreio e, para memria do pitoresco, algum grifo pousado ainda numa rocha.- Sim, Adriana, tenho saudades de mim nesse tempo, rodeado de monstros e de santos, isto , de homens com poucos disfarces. Saudade do grande sonho que se esfarelou, da luta que eu ent"o travava ao lado deles com raiva e euforia. Do futuro que n"o se cumpriu. Mas ainda acredito: ainda n"o se experimentou (nem sei se ser possvel) estruturar em total liberdade uma sociedade ... medida do homem e para o homem. Gosto mesmo muito desta gente. Estava eu doente no Ver"o mais quente da minha adolescncia e ouvia-os sair ... tardinha para a colheita do gr"o. Como cantavam por essas ruas! Era a marcha da humanidade atravs de todas as prova"es e dos grandes jbilos, das grandes melancolias.Levantam-se ... nossa esquerda os seios da terra - dois outeiros perfeitos como esculturas, encrespados de mato rasteiro. Para o lado de Espanha, onde se formam ao longe as edifica"es dovento, h , nos olivais, uma luz de ramos entrelaados. No alto cu avana a carena, mais escura, de uma nica nuvem lenta.J nos aproximamos da ribeira. Deixamos as terras semeadas, vamos por um estreito carreiro, quase ... beira rio, entre choupos e amieiros. Ali h , sobre um pego fundo onde eu costumava mergulhar, umas pimenteiras inesperadas, que uma tiaminha l mandou plantar. Sentava-se ... sombra delas a descansar e a ouvir cantar as guas, olhando os ninhos das cegonhas, a velha torre de tijolo e taipa.A outra margem, pedregosa e bravia, aproxima-se em ondas de azinheiras desgrenhadas. Adriana vem com o nariz avermelhado pelo frio. Protejo-a dos torr"es mais altos, o caminho est praticamente destrudo pelo rodado das carroas.Ela escapa-me. Procuro-lhe os olhos hmidos e rasgados para neles ver reflectida a beleza da manh".H dois anos que dura a nossa rela"o e n"o sei, nem ela sabe certamente, para onde vamos. Em certas alturas penso em falar-lhe no meu Parkinson, mas o medo de a perder mais forte.Estou no fim do meu percurso, ela tem a vida toda pela frente.N"o sei como reagiria. Conheo-Ihe grandes alegrias e grandes cleras. Tambm h entre ns silncios cmplices e ...s vezes at esprememos juntos alguns abcessos, de onde saem verdadesdolorosas, mas evidente que evitamos enterrar muito fundo o bisturi.Viver o presente, esta breve e intensa fulgura"o. Sim, mas o sofrimento invade cada vez mais os prprios territrios que deveriam ser s de gozo e plenitude.Gostaria de poder explicar-lhe que foram para mim como um reino encantado (sobretudo quando, j a estudar em Lisboa, vinha aqui a frias) estas hortas, as malhadas dos pastores, os freixos da ribeira, e como tudo isso se me tornou mais tarde em talism"s, em coisas sagradas. Mas s"o emo"es que n"o se podem transmitir.Vejo-a a olhar para o firmamento, a absorver ela tambm esta atmosfera de cristal. Juntos apreendemos a tranquilidade incandescente deste segundo, o silncio e os fios de prata que brilham na erva mida, mesmo junto ao rio.- Ent"o e os teus monstros, que s"o a outra face das maravilhas - diz-me Adriana, acomodando-se exactamente na mesma pedra, semelhante a um banquinho, onde se sentava a minha tia Clotilde -, vais met-los nessa narrativa de que me falaste?- Adriana, n"o sei bem o que vou escrever, ando ...s voltas com a morte da -rsula. Mas tenho de mudar tudo: as personagens, o tom, a perspectiva. Por ora s uma intui"o. Amanh" ou depois talvez j tenha descoberto como agarrar o assunto... Agora, quanto aos monstros, s"o um tema liter rio desde sempre.E conto-lhe como no sculo XVIII os monstros, desfigurados por malfeitores, se passeavam, com grandes bocas rasgadas ... faca de orelha a orelha e com olhos patticos, pelas p ginas de romances; e lembro-lhe, j no sculo XIX, o Quasimodo, daNossa Senhora de Paris, e o cego de Rouen, cmico e atroz, a entoar uma can"o brejeira na agonia de Emma Bovery. (r)E, mais perto de ns, repara nos Ratos e Homens, do Steinbeck.- O nosso mundo um grande hospital - diz Adriana. - E os mais loucos, ...s vezes, at est"o em posi"es de poder. Olha o Hitler. E os outros ditadores, em geral.- Mas os meus loucos s"o bem mais mansos. Coitados, falam sozinhos com as paredes ou com a garrafa, deitados no p, espalhando a sua solid"o, ofendendo ...s vezes quem passa. S"os ou doentes (que j nem os sei distinguir), os meus pobres monstros, os meus queridos monstros, baixos, nodosos,e escuros, mal espigados, mal tratados pela sorte, tenho-os acompanhado ao longo da vida, aqui e l fora, nos bidonvilles de Paris e de Lyon; e alguns at triunfaram. Os que aprenderam o francs e lutaram, ganharam dinheiro, criaram novas necessidades. Tidos como moles e pasmados, afinal deram bigodes aos franceses, nas f bricas e nas oficinas. Mas faziamhoras extraordin rias, domingos e feriados, como escravos Outros nem no (r)batimento encontraram trabalho, sobreviveram limpando as retretes de Paris.Como me lembro Onde quer que o acaso me levasse, congressos, reportagens, entrevistas, l me punha eu a seguir-lhes as pegadas: descobri-os entre as latas, a lama e o lodo em Champigny, cheg mos ... fala quantas vezes, porteiros, electricistas, apanhadores de lixo ou de caca de c"o nas grandes cidades, lenhadores nos Pirenus, ceifeiros, guardadores de gado, vindimadores nas landes bordelesas.E aqui os reencontro, contrabandistas, desiludidos da emigra"o e da revolu"o, reformados ... beira de todas as renncias, alguns, os que se safaram, com os seus cafs e as suas casinhas, e tambm os arrependidos de terem voltado...- Mas n"o s"o todos monstros - diz Adriana.- Monstros uma maneira de falar. N"o, ele at h os novos (r)viscondes da emigra"o. E os filhos e os netos, que andam nas Universidades, eles e elas, e s"o bonitos e espertos, fizeram o secund rio l fora, mas trazem bocados da terra deorigem agarrados ... sola dos ps, que como quem diz, dossapatos, porque os alentejanos nunca andam descalos.Monstro sou eu, afinal: monstrificado estarei n"o sei quando, qui em breve, com o rosto arrepanhado por tiques e tremores, a boca provavelmente torta e as p lpebras descadas. Aguentarei eu tudo isso?, como poderei aguentar?, e tu, minhaAdriana; que n"o s minha nem de ningum, tu que n"o aceitas compromissos absolutos, como vais olhar para esse monstro triste que eu serei e que n"o far chantagem, que n"o quer sobretudo a tua piedade?Monstros? Seres com pequenas altera"es a nvel cromossmico ou nem isso, apenas criaturas com dores surdas e profundas, com aleij"es, com apagadas, ntimas tragdias. Em cada um de ns habita um monstro e muitas vezes fazemos fora para que ele n"o acorde. Talvez eu, por ter uma vis"o cientfica, entenda at melhor do que tu estas deforma"es e a complexa, dupla maneira de ser de tantos humanos.Se n"o estivesse j envolvida como estou na pesquisa dos vrus que provocam o cancro e na busca de uma terapia racional para essa maldita doena, apaixonava-me certamente pelo conhecimento total das clulas neuronais, pelo estudo das suas protenas, pela clonagem dos seus genes. uma nova civiliza"o que se aproxima de ns com o desenvolvimento da biologia molecular. O Afonso duvida se iremos criar o melhor ou o pior dos mundos. E eu prpria lhe dou raz"o. Mas seduz-me, ao mesmo tempo que me aflige, tudo o que respeita ... qumica cerebral.O facto de a Adriana n"o querer um filho meu poder acasosignificar que ela de algum modo pressente a minha doena? A verdade, porm, que n"o d o menor indcio de a ter descoberto. Era preciso um espantoso autodomnio para simulara ignorncia desta fatalidade que me envergonha, que me humilha. Se a Adriana n"o existisse na minha vida, creio que conseguiria conviver com o Parkinson com outra dignidade, com a serenidade que se impunha.Como o Afonso me olha. Que tristeza amarga e ansiosa! H ocasi"es em que tenho receio n"o sei de qu, em que desconfio de que uma qualquer desgraa vai abater-se sobre ns. Cruzes canhoto!Para aqui estou, ouvindo crepitar o lume na lareira, olhando vagamente pela janela o asseio da rua, os homens de luto que passam, com as suas camisas pretas, a barba crescida.Alm da fachada de uma igreja, que, mesmo neste dia velado, intensamente branca, vejo o alto muro caiado de uma escola e para l desse muro o vozear gritado das crianas. Por uma nesga de espao entre o casario, olivais, montados, os arrabaldes da vila.Acordei com tonturas e, enquanto me lavava e fazia a barba, comearam a tremer-me os braos e as pernas. Senti asco de mim, vontade de morres j . Disse ... Adriana que ia ficar em casa, que me apetecia escrever. Ainda por cima o tempo est mau, vem por a gua, deixamos para outro dia o passeio a Safara. Ela concordou, risonha, mas n"o consegue esconder-me completamente a decep"o.E, depois de termos comido um pouco de lombo de porco e queijo de ovelha, ... laia de almoo, l foi dar uma volta no cavalo que me emprestaram, de camisola e jeans, e uns botins, tal como estava.H dois anos, quando come mos (ainda eu n"o sabia da minha doena, mas j me preocupava a nossa diferena de idades), encarava a conjun"o dos nossos corpos e dos nossos espritos como um encontro que deveria ser breve e fulgurante, feliz.Ela arranjava-se para vir ter comigo e eu dava-me conta desse seu tocante desejo de me agradar.Adriana saa de uma rela"o destrutiva, e vinha ainda magoada, que digo eu, espezinhada, desiludida, queria viver apenas o momento.A ouvi-la, ...s vezes, apercebia-me de que, nos seus projectos, ela concebia o futuro sem mim, e at era natural que assim fosse, mas j isso, muito ao de leve, me comeava a doer.Agora, terei de vida digna desse nome o qu?, outros dois anos?, ou apenas alguns meses?E a Adriana continua a ser para mim, como esta luz nica das plancies alentejanas,o achamento do amor, o cntico dos rios, o resumo do univero, no que ele possui de beleza, de glria.At mesmo no confronto dos seres bravios, no inevit vel render das espcies, a encontro. Ela para mim a vida total, spera e maravilhosa. Nela, em todas as suas carcias e esquivas ternuras, descubro de noite os mares revoltos e as fontes suavssimas. E as praias ardentes.Sim, h dois anos, caiu-me nos braos por d diva da providncia ou do acaso. Se fosse mdica, teria partido daqui com os mdicos sem fronteiras. Perco-me, ...s vezes, a contemplar-lhe os olhos hmidos e os cabelos de um negro t"o negro que chega a parecer artificial; e pensoque, mais cedo ou mais tarde, ela h -de encontrar umhomem da sua idade por quem se apaixone.Tem-me dito que se sente incapaz de uma rela"o dupla, mas admite poder apaixonar-se. Seria ent"o, obviamente, a ruptura comigo. Como isso me di! Mas acho natural. Natural como ela o em todas as suas palavras e atitudes, mesmo as mais excessivas.N"o guerra nem paz o que dela me vem. Penetrei no seu mundo terno e incandescente, mas ela existe sem mim, ou melhor para alm de mim. Descubro-o sempre que ela me fala de projectos onde eu n"o entro, de um futuro em que ela existir sem mim. H ocasi"es em que lhe beijo as m"os. E acontece ela repetir o mesmo gesto. Mimeticamente? mecanicamente? ou por amor?Tocam ... campainha. Comeam as visitas e n"o h meio de lhes escapar. Depois, mesmo que pudesse faz-lo, eu sei como sou, acabava por atend-las.S"o novas da vila e um jornal que me traz o El dio da Farm cia, aprendiz de literatura, porque no suplemento cultural vem qualquer coisa sobre os meus poemas e eu decerto vou gostar de ver, ele diz que tem palavras muito bonitas... Imagine-se.Uma beata - a notcia sensacional - declara que a -rsula lhe apareceu e se abraou a ela chorando, e lhe prometeu que vairevelar quem a matou.Mal o El dio se tinha ido embora (ainda me contou dos suicdios: mais um ontem, o que faz quatro no ltimo ano, s no Tronqueiro, velhice, penria, medo do futuro), batem outra vez ... porta.Desta feita a Maria Cachoca, uma viva sem idade, muito escura e adunca, de vincos profundos no rosto, que traz um puto agarrado ...s saias.- Ai, amigo Afonso, em boa hora o senhor veio at c .Tem o filho mais velho na pris"o, aguardando julgamento. Foi ... mesa do caf que se desentendeu com um companheiro de trabalho, o Loriga, sabe o senhor?, o mestre sapateiro, que o ofendeu estrondosamente.- Ofendeu como?Estavam a jogar o domin, bebendo cada um mais que o outro e a modos que j muito toldados, desentenderam-se, palavra puxa palavra, comearam a soltar bujardas e o outro disse-Ihe quetivesse vergonha, que a namorada dele j tinha andado com todos.Vai o m filho, que n"o tem muita fortaleza,puxa de uma navalha e v de lha tanchar no peito.- O outro morreu?- Logo logo, n"o, mas parece que n"o se salva.Se o amigo Afonso nos acudisse! Este rapaz o nosso amparo e agora, se fico sem ele, fico sem nada.Bem queria eu explicar-lhe que n"o devo interferir no curso da justia. Desde sempre me bati por que os juzes pudessem julgar com plena e total independncia. Mas vejo-lhe nos olhos um apelo choroso, uma esperana desmedida.Acerca-se ainda mais e agarra-me as m"os. A impedir que a cena se torne confrangedora, digo apenas: (r)A nica coisa que eu posso fazer arranjar-lhe (pagar-lhe) um bom advogado. Eletem quem o defenda? Qual qu! Tem apenas o causdico oficioso. L vais, Afonso, meter-te em mais trabalhos. Pacincia! esta a tua gente.Escrever. Tinha pensado iniciar um romance nestes dias do Tronqueiro, uma histria sobre a infncia, sobre a solid"o e o povo alentejano. Mas este caso da morte da -rsula polarizou-me a aten"o. N"o sei se vou conseguir, no meu estado de esprito, travar a batalha, sempre renovada, com as folhas brancas, sujeitar-me ao sacrifcio eufrico da escrita. Afinal, a companhia que tenho certa at ao fim: a da imagina"o, a da esferogr fica entre os dedos, cobrindo o papel com a minha letra mida, cada vez mais nervosa, mais desfeita.N"o ser exactamente sobre a -rsula que vou fazer o romance, ou talvez um conto extenso, uma novela; o que se me imp"e falar sobre as mulheres violentadas pelos prprios maridos, desde pequeno que espio essas faces tristes, amarfanhadas ou arrepanhadas de medo e de asco. Tentar dar-Ihes voz.Mas encontro sempre a mesma desarmante dificuldade, a mesma radical frustra"o: o que fao,o edifcio de palavras que amorosa e dilaceradamente construo, outra coisa, outra realidade; nunca logro exprimir o mundo de sensa"es, de intui"es, de gestos nebulosos que me povoa a mente, que me habita o corpo.Eu queria, desesperadamente, p"r em livro n"o s o Alentejo, mas sobretudo o que nele h de universal, nas suas gentes, nas suas palavras de raiz e dizer ao mesmo tempo o lado m gico do real, a suspeita de outras dimens"es.Tudo isso lateja, tumultua em mim. E os dedos tremem-me, como agora. N"o estarei arriscando a vida da Adriana quando guio durante horas e horas? ' vinda, senti apenas uma afli"o no joelho, uma impress"o nova, que n"o sei ainda definir, como se os ossos fossem abrir-se. Imaginei (sim, apenas imaginei) os braos prestes a falharem-me; e sa desse brusco pavor coberto de suores frios.J houve uma vez, uma nica vez, em que todo o meu corpo, trmulo, se recusou ... condu"o. Ia pedir-lhe que me revezasse ao volante, s por uns minutos, mas dominei-me, teimei, continuei. Por quanto tempo poderei ainda esconder?O pavor desta forma de impotncia pesa sobre mim como um manto de gesso. Aprendo a soletrar o abeced rio da morte.A verdade que eu devia estar mesmo a preparar-me para ela, a receb-la, a conversar com ela no meujardim. Mas o destino enviou-me precisamente o que mais podia prender-me ... existncia, o amor de Adriana, a sua presena permanentenos meus pensamentos e na minha pele.Quando a doena n"o me bate e arranha os nervos, sorvo todos os momentos com a avidez de quem bebe o licor da despedida. Estava mais habituado a ser amado do que a amar. Agora s memovo e me comovo para dar, para lhe criar desejos e satisfaz-los. Ela chegou talvez na curva da minha vida em que eu estava finalmente pronto para sair de mim, ou seja, para arrancar n"o sei de onde esta adora"o e oferec-la, nas m"os em chamas, a uma mulher. Que tambm tinha de ser, que s poderia ser ela.Um dia escreverei um longo poema do Alentejo, onde ela ser o centro. Um poema implantado no barro vermelho desta minha terra, na germina"o das sementes, nas m"os esfoladas, quaseem sangue, dos trabalhadores, e nos seus momentos de folgana, um poema onde surjam palavras simples e cintilantes para dizerem, como pela primeira vez, a brancura das poldras sob a gua do rio, que vem frisada pelo vento; e os nomes de cadaerva, de cada folha, de cada pedra, como se os estivesse a inventar. t"o cruel o n"o chegar nunca, pela via da escrita, ao cerne das coisas, ao seu segredo perd