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A Igreja: oásis de misericórdia Igreja misericordiosa [ Ir mais além... olutador [ agosto ] 2016 9 ] PE. VINÍCIUS AUGUSTO RIBEIRO TEIXEIRA, C.M. T ENDO a Trindade Santa como espelho, a Igreja é chamada a ser “oásis de mi- sericórdia” (MV 12), ima- gem viva do amor paciente e compassivo do Deus da Aliança, con- tinuadora da missão de Jesus Cristo, rosto do Pai misericordioso, sempre impulsionada pela força transforma- dora do Espírito que a conduz pelos caminhos da história rumo ao Reino definitivo. No sentir do Papa Francis- co, a misericórdia é o que sustenta a vi- da da Igreja. Portanto, pertence à sua identidade mais profunda mostrar-se misericordiosa. Sua ação pastoral de- ve ser encharcada de ternura, assim como seu anúncio e seu testemunho devem estar permeados de compai- xão: “A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo. A Igreja vive um dese- jo inexaurível de oferecer misericór- dia”. (MV 10.) Mas nem sempre foi assim. Algu- mas vezes, ao longo da história, a Igre- ja não primou pelo “caminho da mise- ricórdia” , detendo-se tão somente no primeiro passo, o da justiça, sem dú- vida necessário e indispensável, mas não suficiente e definitivo. Em toda e qualquer circunstância, “a Igreja pre- cisa ir mais além, a fim de alcançar uma meta mais alta e significativa”, a meta da misericórdia, expressa na caridade e no perdão, “para cuidar das fraquezas e dificuldades de nos- sos irmãos” (MV 10), encontrando aí sua essência, seu mistério de graça e santidade, sua intransferível respon- sabilidade. De fato, sem misericórdia, não po- de haver cristianismo, porque toda a história da salvação nada é senão a manifestação do amor misericordioso de Deus na vida de seus filhos e de to- das as suas criaturas. A Igreja é sacra- mento dessa realidade que permeia o mundo. Como a misericórdia é o que melhor visibiliza o amor que circula nas veias da Igreja e a santidade que a torna ícone da comunhão trinitária, [a misericórdia deve ter precedência e influência em tudo o que compõe a vida, doutrina, moral e missão da co- munidade eclesial. O passo da justiça é tão somente o do cumprimento pontual dos de- veres, das formalidades requeridas por um bom desempenho, dos cri- térios inegociáveis para uma con- vivência respeitosa. Por justiça (re- tributiva), damos ao outro aquilo que lhe é devido, em razão de seus merecimentos ou de suas conquis- tas. Neste sentido, a justiça é o que nos obriga a pagar regularmente salários dignos aos trabalhadores que temos sob nossa responsabi- lidade. Retribuição, na verdade. O passo da misericórdia, por sua vez, é o da liberdade comprometida, da largueza de coração, da gratuida- de fecunda. Requer a justiça, mas a ultrapassa e plenifica. Por miseri- córdia, damos ao outro aquilo que se mostra importante, necessário e

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A Igreja: oásis de misericórdia

Igreja misericordiosa [ Ir mais além...

olutador [ agosto ] 2016 • 9 ]

Pe . VInícIus Augusto RIbeIRo teIxeIR A , c . M .

Tendo a Trindade Santa como espelho, a Igreja é chamada a ser “oásis de mi-sericórdia” (MV 12), ima-gem viva do amor paciente

e compassivo do Deus da Aliança, con-tinuadora da missão de Jesus Cristo, rosto do Pai misericordioso, sempre impulsionada pela força transforma-dora do Espírito que a conduz pelos caminhos da história rumo ao Reino definitivo. No sentir do Papa Francis-co, a misericórdia é o que sustenta a vi-da da Igreja. Portanto, pertence à sua identidade mais profunda mostrar-se misericordiosa. Sua ação pastoral de-ve ser encharcada de ternura, assim como seu anúncio e seu testemunho devem estar permeados de compai-xão: “A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo. A Igreja vive um dese-jo inexaurível de oferecer misericór-dia”. (MV 10.)

Mas nem sempre foi assim. Algu-mas vezes, ao longo da história, a Igre-

ja não primou pelo “caminho da mise-ricórdia”, detendo-se tão somente no primeiro passo, o da justiça, sem dú-vida necessário e indispensável, mas não suficiente e definitivo. Em toda e qualquer circunstância, “a Igreja pre-cisa ir mais além, a fim de alcançar uma meta mais alta e significativa”, a meta da misericórdia, expressa na caridade e no perdão, “para cuidar das fraquezas e dificuldades de nos-sos irmãos” (MV 10), encontrando aí sua essência, seu mistério de graça e santidade, sua intransferível respon-sabilidade.

De fato, sem misericórdia, não po-de haver cristianismo, porque toda a história da salvação nada é senão a manifestação do amor misericordioso de Deus na vida de seus filhos e de to-das as suas criaturas. A Igreja é sacra-mento dessa realidade que permeia o mundo. Como a misericórdia é o que melhor visibiliza o amor que circula nas veias da Igreja e a santidade que a torna ícone da comunhão trinitária,

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a misericórdia deve ter precedência e influência em tudo o que compõe a vida, doutrina, moral e missão da co-munidade eclesial.

O passo da justiça é tão somente o do cumprimento pontual dos de-veres, das formalidades requeridas por um bom desempenho, dos cri-térios inegociáveis para uma con-vivência respeitosa. Por justiça (re-tributiva), damos ao outro aquilo que lhe é devido, em razão de seus merecimentos ou de suas conquis-tas. Neste sentido, a justiça é o que nos obriga a pagar regularmente salários dignos aos trabalhadores que temos sob nossa responsabi-lidade. Retribuição, na verdade. O passo da misericórdia, por sua vez, é o da liberdade comprometida, da largueza de coração, da gratuida-de fecunda. Requer a justiça, mas a ultrapassa e plenifica. Por miseri-córdia, damos ao outro aquilo que se mostra importante, necessário e

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[▶oportuno ao seu bem, à sua digni-dade, à sua salvação. A misericór-dia não se detém no primeiro pas-so. Além de justos, precisamos ser sensíveis, solícitos e solidários. Não apenas pagamos o salário devido a nossos empregados, como também nos preocupamos em dispensar-lhes um tratamento cordial e gen-til, acudindo-os em suas debilida-des e carências, providenciando-lhes o necessário a uma vida feliz, ocupando-nos, muitas vezes, de sua evangelização. E é sempre assim que Deus age para conosco, por pu-ro amor, cumulando-nos com seus dons, porque diante dele não pode-mos evocar méritos. Como afirma o Papa, no livro O nome de Deus é misericórdia: “Com a misericórdia e o perdão, Deus vai além da justiça, a inclui e a supera numa dimensão superior, na qual se experimenta o amor, que é o fundamento de uma verdadeira justiça” (p. 114).

No cumprimento de sua missão a ser-viço da humanidade, a Igreja se vê en-carregada de estimular a cultura da misericórdia. Como afirma o Cardeal W. Kasper, “o amor, que se demonstra na misericórdia, pode e deve transfor-mar-se em fundamento de uma nova cultura de vida, na Igreja e na socieda-de”. (A misericórdia, p. 106.) Citando São João Paulo II, na Encíclica Dives in Misericordia (nº 13), lembra o Pa-pa Francisco: “A Igreja vive uma vida autêntica quando professa e procla-ma a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fon-tes da misericórdia do Salvador, das quais ela é depositária e dispensado-ra”. (MV 11.) Como a Igreja pode levar a cabo esta exigente tarefa? Fazendo resplandecer em meio às obscurida-des e inclemências da história – feri-da pela indiferença e pelo egoísmo, marcada por contradições, injusti-ças e sofrimentos – a face do “Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, Pai de misericórdia e Deus de toda con-

solação”. (2Cor 1,3.) Trata-se de pos-sibilitar às pessoas a descoberta e a experiência desta comprometedora boa-nova, mensagem de esperança e penhor de salvação: “Ele nos consola em todas as nossas tribulações, para que possamos consolar os que estão em qualquer tribulação, mediante a consolação que nós mesmos recebe-mos de Deus”. (2Cor 1,4.)

Em qualquer situação, mesmo naquelas que parecem não ter saída, tanto na vida como na morte, somos amados, acolhidos e amparados por Deus. Sua companhia nos inunda de paz e nos revigora para os embates do cotidiano. Rompendo com a autorefe-rencialidade, que terminaria por fe-chá-la comodamente em si mesma, a Igreja se torna um oásis de paz e espe-rança para todos, oferecendo ao mun-do aquilo que recebeu de seu Senhor, vivendo e testemunhando o dom da misericórdia, na solicitude para com os pobres e sofredores, na defesa da dignidade humana, na comunhão fra-terna, no acolhimento sincero, no con-victo anúncio da Palavra, no minis-tério da reconciliação, no imperioso cuidado da Casa Comum, de modo a consolar e fortalecer com a virtude do Espírito que a orienta e aperfeiçoa continuamente.

Só assim, poderá a Igreja contri-buir de modo eficaz para que a autos-suficiência e o egoísmo que pervadem a sociedade contemporânea cedam espaço à confiança e à compaixão que dignificam o ser humano e engendram uma sociedade justa e pacífica. E esta é a Igreja desejada pelo atual pontífi-ce: “Uma Igreja que aqueça o coração das pessoas com sua presença e pro-ximidade”. (O nome de Deus é miseri-córdia, p. 37.)

Vale citar todo o nº 12 da Bula Mi-sericordiae Vultus: “A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evan-gelho, que por meio dela deve che-gar ao coração e à mente de cada

pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém. Em nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na nova evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo e uma ação pastoral renovada. É determinan-te para a Igreja e para a credibilida-de de seu anúncio que viva e teste-munhe, ela mesma, a misericórdia. Sua linguagem e seus gestos, para penetrarem no coração das pesso-as e desafiá-las a encontrar nova-mente a estrada para regressar ao Pai, devem irradiar misericórdia”. (MV 12.) E tudo isso, em razão de sua identificação com Cristo, em cuja pessoa se manifesta cabalmente a misericórdia do Pai (cf. MV 1), como “fonte de alegria, serenidade e paz, condição de nossa salvação”. (MV 2.) Com efeito, “a primeira verdade da Igreja é o amor de Cristo. E, deste amor que vai até o perdão e o dom de si mesmo, a Igreja se faz serva e mediadora junto dos homens. Por isso, onde a Igreja estiver presente, aí deve ser evidente a misericórdia do Pai. Em nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos – qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia”. (MV 12.)

A misericórdia se apresenta como prin-cípio estruturante e critério de auten-ticidade da missão da Igreja e de sua presença samaritana neste mundo fe-rido e doente em que nos toca viver e do qual nos cabe cuidar: “A Igreja sen-te, fortemente, a urgência de anunciar a misericórdia de Deus. Sua vida é au-têntica e credível, quando faz da mi-sericórdia seu convicto anúncio. Sa-be que sua missão primeira, sobretu-do numa época como a nossa cheia de grandes esperanças e fortes con-tradições, é a de introduzir a todos no grande mistério da misericórdia de Deus, contemplando o rosto de Cris-

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to. A Igreja é chamada, em primeiro lugar, a ser verdadeira testemunha da misericórdia, professando-a e viven-do-a como o centro da Revelação de Jesus Cristo”. (MV 25.)

Em nossos dias, os cristãos se sen-tem interpelados por alarmantes de-safios, que se difundem das pequenas às grandes esferas e vice-versa: a fer-rugem da corrupção a corroer consci-ências e a desmoralizar instituições, produzindo efeitos devastadores nas famílias, nas Igrejas e na política. A brutalidade das ações e reações ter-roristas, com seus saldos sangrentos no Oriente e no Ocidente. O cresci-mento desordenado do fluxo migra-tório, empurrando elevados percen-tuais de homens e mulheres para con-dições precárias de sobrevivência ou até mesmo para a morte prematura. Os desastres ecológicos de incalculá-veis proporções, produzidos pela am-bição mesquinha e pela voracidade inconsequente de pessoas e grupos, com destaque para o movimento pre-datório das mineradoras. A prolifera-ção de doenças que ameaçam a vida e a inoperância do serviço público de saúde. A mortífera violência que mi-na os corações, as relações humanas, a escola e o mundo do trabalho. Des-tas e de tantas outras realidades, so-bem gritos ensurdecedores, claman-do misericórdia, a misericórdia que o Senhor quer estender a todos e da qual somos portadores, testemunhas e ministros.

A Igreja misericordiosa é aquela que se mantém atenta à realidade em que está inserida, deixando-se afetar pelos clamores e sofrimentos de seu povo, descendo de seus pedestais pa-ra ir ao encontro dos descartados e di-minuídos, voltando-se compassiva-mente para as periferias existenciais da vida, inclinando-se sobre os pe-quenos e pobres para atingir a estatu-ra de seu Mestre e Senhor, exercendo o ministério da Reconciliação como oferta de graça e apelo de santidade, protegendo a Casa Comum confiada aos nossos cuidados, proclamando o

evangelho da fraternidade, ensinan-do-nos a ser misericordiosos como o Pai (cf. Lc 6,36). Será este, certamente, o maior contributo que o Ano Santo po-derá oferecer ao nosso mundo cansa-do e ferido: uma mentalidade e uma sensibilidade educadas pela miseri-córdia, capazes de interferir em nos-sos juízos, relações e procedimentos com toda a sua força de humaniza-ção, estendendo-se também às nos-sas instituições e estruturas sociais.

Recorda-nos ainda o Papa Francis-co: “A Igreja não está no mundo pa-ra condenar, mas para permitir o encontro com aquele amor visceral que é a misericórdia de Deus. Pa-ra que isso aconteça, tenho repeti-do muitas vezes, é necessário sair. Sair das igrejas e paróquias, sair e ir procurar as pessoas lá onde elas vivem, sofrem, esperam [...]. Espe-ro que o Jubileu Extraordinário fa-ça emergir cada vez mais o rosto de uma Igreja que redescobre as en-tranhas maternas da misericórdia e que vai ao encontro de tantos ‘fe-ridos’ necessitados de escuta, com-preensão, perdão e amor”. (O nome de Deus é misericórdia, p. 87.)

A pergunta que devemos nos fazer é esta: diante de cada situação, em face de cada pessoa, frente a cada miséria ou sofrimento, quais as feições que a misericórdia deve assumir? Conso-lo, incentivo, cuidado, denúncia, em-penho sociotransformador, compro-misso ecológico etc. Em todas as su-as iniciativas, importa que “a Igreja se faça eco da Palavra de Deus que res-soa, forte e convincente, como uma palavra e um gesto de perdão, apoio, ajuda, amor. Que ela nunca se canse de oferecer misericórdia e seja sem-pre paciente em confortar e perdoar. Que a Igreja se faça voz de cada ho-mem e mulher e repita com confiança e sem cessar: ‘Lembra-te, Senhor, de tua misericórdia e de teu amor, pois eles existem desde sempre’ (Sl 25,6)”. (MV 25.) Vale, portanto, trazer à me-

mória aquela expressiva imagem, atra-vés da qual os Santos Padres quiseram ilustrar a missão da Igreja, a imagem da lua que reflete a luz advinda do sol (mysterium lunae). Assim, a Igreja é chamada a fazer resplandecer em um mundo às escuras o esplendor da mi-sericórdia que lhe vem do coração da Trindade Santíssima.

Belíssima é a intuição do homem misericordioso e justo que foi Dom Hélder Camara, encontrada em uma de suas circulares, escrita em Ro-ma, nos últimos meses do Concílio Vaticano II: “No introito da Missa de hoje, temos uma das palavras mais belas e oportunas da Sagrada Escritura: lembramos a Deus que ele é justo. Precisamente por isso, contamos com a misericórdia di-vina. Onde estão os que tanto gos-tam de apor justiça contra miseri-córdia? Onde estão os que dizem: ‘Não vale falar demais em miseri-córdia. Deus, sem dúvida, é miseri-cordioso, mas também é justo’. Em que consiste a justiça? Em dar a ca-da um o que merece. Quem nos fez e mede a nossa fraqueza, sabe, me-lhor que ninguém, que nenhum de nós suporta a justiça divina. Sabe que todos nós precisamos de miseri-córdia. Acontece apenas que Cristo nos ensinou o preço de contar com a misericórdia. Com a mesma me-dida que medirmos, seremos me-didos...” (Circular 23. 2-3/10/1965.)]