A imagem como interface nas mídias digitais

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UNIVERSIDADE F EDERAL DO RIO DE JANEIRO

A imagem como interface nas mdias digitais

Marina Pantoja Boechat

2004

Boechat, Marina Pantoja. A imagem como interface nas mdias digitais/ Marina Pantoja Boechat. - Rio de Janeiro: UFRJ/ ECO, 2004. VIII, 116f. Orientador: Andr de Souza Parente Dissertao (mestrado) UFRJ/ECO/ Programa de Ps-graduao em Comunicao e Cultura, 2004. Referncias Bibliogrficas: f. 97-101. 1. Comunicao. 2. Novas tecnologias 3. Mdias 4. Interfaces interativas. I. Parente, Andr de Souza. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicao, Programa de Ps-graduao em Comunicao e Cultura. III. A imagem como interface nas mdias digitais.

II

A imagem como interface nas mdias digitaisMarina Pantoja Boechat

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Comunicao e Cultura, da Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Comunicao Social. Realizada com o auxlio financeiro do CNPq.

Orientador: Andr Parente

Linha de pesquisa: Tecnologias da comunicao e estticas.

Rio de Janeiro, maio de 2004.

III

A imagem como interface nas mdias digitaisMarina Pantoja Boechat Orientador: Andr Parente

Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Comunicao e Cultura da Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Comunicao Social.

Aprovada por:

___________________________________ Andr Parente (orientador) Escola de Comunicao da UFRJ

___________________________________ Ieda Tucherman Escola de Comunicao da UFRJ

___________________________________ Martin Grossmann Escola de Comunicao e Artes da USP

Rio de Janeiro Maio de 2004.

IV

A GRADECIMENTOS

um grande prazer agradecer aos professores e pesquisadores com os quais tive contato durante o curso pelas idias e caminhos percorridos em suas aulas e palestras. Agradeo em especial ao meu orientador, Andr Parente, aos demais membros da banca de avaliao, Ieda Tucherman e Martin Grossmann, e ao professor Antnio Fatorelli, pela participao na realizao e na avaliao dessa dissertao. Tambm gostaria de citar diretamente a importncia das aulas e das conversas com Henrique Antoun, Janice Caiafa, Consuelo Lins, Maur cio Lissovsky, Rogrio Luz, Katia Maciel, Luiz Alberto Oliveira e Marcio Tavares. Agradeo tambm famlia e aos amigos pelos desejos de boa sorte que me fizeram ir adiante. Toda a gratido ao Andr, namorado, marido e interlocutor, pelas longas conversas e noites em claro durante a revis o, pela dedicao amorosa e apoio irrestrito.

V

Lembrei haver lido que o melhor lugar para ocultar uma folha um bosque. Jorge Lu s Borges O livro de areia

VI

RESUMO

A imagem como interface nas mdias digitais Marina Pantoja Boechat Orientador: Andr Parente Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Comunicao e Cultura, Escola de Comunicao, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Comunicao Social.

Este trabalho aborda as imagens digitais enquanto representaes mveis do conhecimento e de processos do maquinrio contemporneo, sua dinmica e mobilidade no ambiente das interfaces grficas da informtica e das mdias atuais. As interfaces grficas tornam-se ambientes cognitivos para onde convergem suportes e modos de produo, ao mesmo tempo que espalham as dinmicas do digital pelo mundo e agenciam novos padres de pensamento. O suporte digital torna-se um denominador comum das mdias, da cincia e dos aparelhos cotidianos, enquanto a imagem digital, ao estruturar o arquivo informacional nas interfaces, passa a ser aparelho operador da nossa realidade. Procuramos discutir o papel das imagens digitais no nosso modo de ver e operar no mundo e os efeitos dessa dinmica na constituio e delimitao delas na indstria cultural, na percepo e no pensamento. A questo abordada segundo o eixo da memria, isto , das topologias de conhecimento em suporte digital representadas por esquemas visuais; e o da mobilidade, relacionado com a polival ncia das imagens em diferentes suportes e seu tr nsito nos processos comunicacionais da rede. O pensamento, nesse sentido, torna-se visual e se efetiva por um trabalho manual, isto , de interao com imagens mveis. Palavras-chave: comunicao, novas tecnologias, mdia, interfaces interativas.

Rio de Janeiro Maio, 2004.

VII

ABSTRACT

The image as interface in the digital medias Marina Pantoja Boechat Orientador: Andr de Souza Parente Abstract da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-gradua o em Comunicao e Cultura, Escola de Comunicao, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Comunicao Social. This work approaches the digital images of the new medias as mobile representations of knowledge bases and of the processes of contemporary productive devices, as well as their dynamics and mobility in the environment of the graphic interfaces of todays computers. The graphic interfaces become cognitive environments to where different supports and medias converge, at the same time that the digital dynamics are spread across the world and engage new patterns of thought. The digital support becomes a common ground of the medias, the sciences and devices in general, while the digital image becomes a general operating device for our reality. Our aim is to approach the digital images in the graphic environment of todays interfaces, their part in our way of seeing and operating in the world and the effects of these dynamics it the constitution and framing of the images themselves in the cultural industry, in the processes of perception and in the ways of our thought. The issue is approached through the axis of memory of the knowledge topologies represented by visual models and mobility related to the multipurpose use of images through different supports and their free transit in communication processes in todays computer networks. Human thought becomes more visual and is experienced as a manual labour, that is, of interaction with mobile images.

Keywords: communication, new technologies, the medias, interactive interfaces.

Rio de Janeiro Maio, 2004.

VIII

SUMRIO

1. 2. 2.1. 2.2. 2.3.

Introduo ............................................................................................................................9 Interfaces............................................................................................................................ 16 Interfaces entre objetos e seres vivos .......................................................................... 16 Interfaces na histria dos computadores..................................................................... 21 Interfaces, aparelhos e imagens .................................................................................. 27

3. Interfaces gr ficas e suas tradies .................................................................................... 32 3.1. O texto, seus registros e o hipertexto........................................................................... 34 3.2. Imagem, campo e extracampo..................................................................................... 39 3.3. Entre-imagens .............................................................................................................. 44 3.4. O digital como denominador comum das mdias, da cincia e dos aparelhos cotidianos ..................................................................................................................................... 48 3.5. Interface informacional como imagem operadora ...................................................... 51 4. 4.1. 4.2. 4.3. 4.4. 5. 5.1. 5.2. 5.3. 5.4. 6. 6.1. 6.2. 6.3. 7.8.

Interao e movimento ...................................................................................................... 56 Interao e interatividades .......................................................................................... 56 As mquinas e suas imagens........................................................................................ 59 A interao e o tempo..................................................................................................61 A operao visual do mundo ....................................................................................... 66 Migraes da memria ...................................................................................................... 69 A estocagem condiciona as trocas estoques, colees e o conhecimento................ 70 Colees e devires ....................................................................................................... 75 A memria, o virtual e a era da informao ............................................................... 78 As imagens como tens de arquivo............................................................................... 82 A mobilidade e suas conseq ncias................................................................................... 91 Uma outra contigidade .............................................................................................. 92 Uma outra continuidade .............................................................................................. 97 Contexto e edio ......................................................................................................103 Conclus o ........................................................................................................................109 Referncias bibliogrficas ...............................................................................................113

IX

1. INTRODU O

Esta dissertao procura investigar primeiramente o papel das interfaces grficas da informtica atual, enquanto meio e ferramenta de comunicao, e seu funcionamento, enquanto ambiente cognitivo composto largamente por imagens. Procuramos, em segundo lugar, discutir as dinmicas das imagens digitais nessas interfaces enquanto ndices de um conhecimento transferido para o arquivo digital em forma de memria e enquanto conjuntos e estruturas mveis de conhecimento onde objetos ou dados cada vez mais distantes so postos em relao quando associados pelas dinmicas aceleradas da comunicao e do pensamento. A idia que consideramos central a de que as imagens digitais se tornam pouco a pouco ferramentas e representaes processuais do pensamento. Este, de forma correspondente, no gira mais em torno de imagens sedimentadas como grandes referncias que representariam sua essncia, mas est cada vez mais colado aos processos e transies das imagens digitais. Isso porque o pensamento, auxiliado pela memria objetivada nas bases de dados, trabalha sobre uma constela o, ou uma paisagem m vel de imagens relacionadas nas interfaces grficas. Em uma sociedade largamente efetivada pela ao distncia, que valoriza o conhecimento pela simulao, h uma progressiva coincidncia entre comunicao e pensamento, a partir do momento em que o fluxo acelerado de trocas dos novos meios anda de mos dadas com um universo manipulvel e sensvel nas interfaces. Isto nos leva a uma terceira parte da nossa questo, que a de investigar a interao das din micas das imagens e das interfaces do digital com o conhecimento e o pensamento. Discutir essa interao possvel apenas a partir do que a indstria de bens de consumo tem chamado genericamente de convergncia de tecnologias e que Michel Serres chama de desmaterializao dos suportes no digital 1 . a partir do momento em que as tecnologias do digital aglutinam diversos meios de comunicao e tecnologias da intelig ncia e se conectam a

1

Sobre esse tema, ver SERRES, Michel. Hominescncias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. Especialmente p.175-251.

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diversos aparelhos produtivos passando a gerenciar seu trabalho que elas vm a funcionar como ferramentas e representaes do nosso pensamento. Desde os jornais impressos de pequena circulao do fim do sculo XVIII at as mdias atuais, vivenciamos um aumento da penetrao dos meios de comunicao na sociedade, aliada multiplicao dos veculos e diversificao de seus suportes. De meios de comunicao que atendiam comunidades reduzidas de leitores e que por isso talvez utilizassem um repertrio mais colado ao dos indivduos daquelas comunidades , passamos com os jornais de grande circulao, a inveno do rdio e principalmente com a televiso para os meios de comunicao de massa, que atingem uma quantidade imensa de pessoas com mensagens iguais para todos, criadas a partir de um repertrio genrico e por isso mais restrito, por um grupo proporcionalmente pequeno de profissionais especializados. Com o desenvolvimento e a entrada das tecnologias digitais nos processos comunicacionais, temos a criao Internet como novo suporte e nova mdia, que simultaneamente coloca os aparelhos da informtica em rede para pr em circulao informaes. Ela pode reproduzir, com pequenas variaes, as estruturas das mdias de massa nos grandes sites de notcias, por exemplo , e ao mesmo tempo abrir caminho para dinmicas diferentes de comunicao como em sites cujo contedo criado pelos leitores de forma participativa , ou mesmo transformar o prprio computador pessoal como um todo em uma memria e em um espao em que cada indivduo traa seu percurso e escolhe e associa diversas fontes de informao e objetos virtuais em geral. Por essa perspectiva, a internet seria no apenas um acelerador das trocas, mas tambm uma abertura que liga cada acervo pessoal a uma infinidade de outros acervos que o modificam, tornando-o um sistema eminentemente aberto, de estrutura e conte do mveis. Ao mesmo tempo em que constituem uma nova mdia vinculadas internet, as tecnologias digitais e de transmisso de dados passam a ter um papel determinante nos modos de produo dos meios de comunicao tradicionais. A informao passa a ser trabalhada em meio digital, independente dos processos especficos de cada meio e de seu suporte de sada se ela vai ser publicada em mdia impressa ou transmitida pela televiso, por exemplo. O meio digital torna-se uma espcie de denominador comum no circuito contemporneo da comunicao, j que toda informao, seja ela texto, imagem ou som, passa a ser registrada, processada e transportada 11

em bits. Isso facilita o tr nsito desse contedo por diferentes suportes pois desvincula a imagem de um original at mesmo no seio de sua produo, ao mesmo tempo que promove uma mesclagem, uma superposio das mdias entre si, que tendem no futuro a convergir nos suportes digitais. Esta convergncia de suportes no mbito do digital no est restrita aos meios de comunicao. As novas tecnologias da informao penetram nos meios e processos das mdias da mesma forma que passam a fazer parte tambm dos meios e processos da ind stria e de diversas reas do conhecimento, reunindo uma quantidade cada vez maior de informaes e saberes em bases de dados e no acervo da memria disponibilizada em rede. Processam dados e estatsticas, simulando estruturas, dinmicas e fenmenos para gerar e atualizar conhecimento, tudo no contexto de um suporte digital cada vez mais aglutinador que, portanto, torna todo contedo mais intercambivel. Como j sinalizamos, esses processos esto relacionados a uma cultura onde a simulao e as imagens auto-referentes tomam o lugar da observa o da natureza e do mundo objetivo. Diz-se que, com a descoberta do genoma humano, temos nas mos a escrita de Deus. o movimento de trazer as coisas do mundo para a cultura, para o mbito da linguagem, num processo codificao. Quanto mais amplo e funcional esse acervo codificado se to rna, mais se multiplicam as possibilidades de associar diferentes conhecimentos e diferentes dados, de modo a pensar por meio dele e fazer dele uma referncia, e mais passamos a adot-lo como meio efetivo para intervir no mundo. A imagem, neste contexto, acontece no ambiente cognitivo das interfaces como representao grfica de ambientes de trabalho construindo uma espcie de tecido conjuntivo que viabiliza a aglutinao e a representao de diversos meios e processos nas novas mdias e, ao mesmo tempo, como representao mvel do conhecimento constantemente atualizado e manipulado dessas mdias imagens como dados associados. As imagens analgicas tradicionais, isto , imagens que no so criadas no seio das tecnologias digitais, se do em geral como fixao ou delimitao de um conhecimento, de uma percepo ou de uma imagem mental so imagens bem-acabadas em si mesmas, que constituem-se a partir de uma essncia nelas figurada. As imagens digitais, por outro lado, se 12

tornam ferramentas m veis de um processo, recuando para o virtual, isto , para o campo da problemtica2. Para descrever a questo nos termos de Pierre Lvy, as imagens registradas em suporte digital, no momento do seu uso, tomam a forma de atualidades, mas ao mesmo tempo, no que tange a relao com quem as opera, objetivam um processo interativo numa estrutura mvel, compondo um meio virtual de pensamento e comunicao nas interfaces. A confuso entre comunicao, pensamento e interao que da advm caracterstica da poca de hibridizaes que vivemos, e tambm da entrada da simulao como mtodo participativo para o exerc cio do pensamento, que estrutura o conhecimento em um espao diagramtico e sens vel. Por conta disso, acreditamos que no mbito das imagens que melhor se pode discutir os ltimos desdobramentos das novas tecnologias na comunicao e nas suas interfaces enquanto aparelhos de troca. Este trabalho, enquanto uma pesquisa na rea da comunicao, procura centrar sua investigao nos processos e transformaes vinculados s imagens e s interfaces das mdias digitais e no busca conceitos ou avaliaes restritivas, por considerar este um meio de estudo em constante deslizamento, atravessado por diversas disciplinas. Na parte 2, iniciamos o desenvolvimento procurando apontar algumas facetas do termo interface em diversos meios de estudo e suas articulaes com aspectos gerais da fsica e da biologia. Um destaque maior dado s articulaes indicadas pela definio desse termo na biologia, como forma de enunciar seu papel nas dinmicas perceptivas de diversos seres ao abordar a biologia como o palco onde circulam os movimentos da percepo e da interao, a partir dos quais cada forma de vida inventa seu mundo e, com esse mundo, um espao e um tempo especficos3 .

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Para Pierre Lvy, no devemos opor a idia de virtual id ia de real, e sim ao conceito de atual. Uma atualidade interpreta ou resolve de maneira singular a problemtica do virtual. O real seria apenas a apresentao de um possvel dentre um conju nto de possveis, onde no h efetivamente uma criao, mas uma projeo desses possveis do real. Falando nesses termos, um texto a atualizao de um pensamento, pois lhe fornece um registro particular, enquanto uma leitura a atualizao de um texto, que d uma resoluo configurao de estmulos, coeres e tenses que o texto prope para um leitor particular. Uma atualidade uma resoluo criativa e renovadora para uma problemtica ou um contexto virtual. Sobre esse tema, ver LVY, Pierre. O que o virtual. Rio de Janeiro: 34, 1994. p. 35-50.3

LVY, Pierre. O que o virtual. Rio de Janeiro: 34, 1994. p. 22.

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Alm das aplicaes na fsica e na biologia, a discusso sobre as interfaces na informtica propriamente dita nos auxilia a perceber certas questes estruturais do seu funcionamento, como interfaces mecnicas entre circuitos no interior da mquina hardware ou programas tradutores de comandos software e seu desenvolvimento rumo s interfaces grficas da informtica atual, onde elas se tornam ferramentas que virtualizam texto e imagem em ambientes de troca de informao e estruturao do conhecimento. As interfaces grficas so abordadas, inicialmente, como sobrecamadas que traduzem o funcionamento do computador, abstraindo sua eletrnica de circuitos de silcio e registros binrios nas bases magnticas em prol de termos mais prximos ao pensamento e linguage m humanos. Em seguida, na parte 3, so feitas relaes entre as mdias digitais e o funcionamento de suas interfaces com diversas tradies da escrita e do olhar, como forma de acessar o que elas conservam e o que elas renovam dessas tradies. Com relao ao texto e s tradies da narrativa clssica, ponderamos que a interface grfica se torna o meio onde acontece, ao mesmo tempo, sua virtualizao e sua atualizao na interao a criao e a explorao de um acervo textual por meio de programas de edio e composio. Com relao s tradies do olhar, consideramos que o digital e as dinmicas implicadas a partir dele colaboram para a continuidade de uma progressiva abstrao e para a racionalizao da vis o e dos sentidos, ao mesmo tempo que vinculam estes a um gestual e manipulao direta de imagens e estruturas de conhecimento. As caractersticas das interfaces de aparelhos e motores de diferentes tipos tambm so exploradas, como estratgia para ilustrar a relao dos indivduos com seus artefatos, em uma poca em que as funes, os saberes e as atividades mais corriqueiras do homem encontram-se vinculadas a eles. Correspondentemente, procuramos vincular os movimentos e o tempo dessa intera o com o tempo do funcionamento das mquinas. A partir deste contexto em que algumas tradies so incorporadas e reproduzidas nos progressos t cnicos da aparelhagem digital e diversos aparelhos so a essas mquinas acoplados , discutimos o papel do digital como uma espcie denominador comum das mdias, da cincia e dos aparelhos cotidianos, e como ele representado nas interfaces. Enquanto a imagem em si sempre teve uma funo operadora de uma viso de mundo, agora, pela sua virtualizao 14

nas interfaces grficas das mdias digitais, ela se torna tanto representao e objetivao dos processos do pensamento e de diversos olhares para o mundo, como ferramenta operadora que interfere efetivamente na materialidade. Feita esta primeira contextualizao, nas partes 4 e 5 analisamos a questo por duas vias complementares: a da interao e do fluxo, e a da memria e suas objetivaes. Tratam-se, como veremos, de dois aspectos antigos dos processos do pensamento e da comunicao que tm, no entanto, novos desdobramentos no contexto que abordamos. A interao encarada, basicamente, como a atividade onde desenvolvido o percurso necessrio para a experincia que recupera fatores individuais da relao com a memria, objetivada no digital, e torna esta um sistema aberto de conexes. Aps algumas anotaes sobre a interao como sendo a operao de mquinas, comparamos os seus processos com os da percepo que define objetos e fixa imagens segundo funes prticas e aes possveis sobre eles , e com os processos virtualizantes da memria que tornam possvel a experincia da durao. A memria, por sua vez, analisada como sendo uma espcie de virtualizao do conhecimento e do pensamento, isto , uma espcie de estoque potencial permanentemente em movimento. So valorizados, neste trecho, o perfil de coleo dessa m emria, onde o conjunto est em constante reavaliao e, na medida da interao, seus objetos so estruturados em uma constela o de associaes. Em detrimento da idia de memria como estoque, ou acmulo puro e simples, essa concepo procura evidenciar a memria informacional como algo vivo, intimamente ligado aos processos do pensamento e da percepo, anlogo memria humana. Fechamos o trabalho testando a pertinncia e o vigor dessas novas concepes para as imagens, ao for- las a interagir com conceitos e modos tradicionais da imagem, aqui evidenciados nas id ias de contigidade e de continuidade. A noo de contigidade se refere tradicionalmente ao vnculo mais ou menos direto de uma imagem ou, se quisermos, de um signo com seu objeto. Trata-se de uma concepo do visual onde o referente visto como origem e delimitador da pertinncia da imagem. Ela aparece como parte dos processos fragmentadores da percepo e da memria, que transformam a continuidade do mundo em signos ou imagens enquadradas, instrumentalizveis pelo pensamento e para o registro do conhecimento.

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A continuidade da imagem, por outro lado, faria parte dos processos da memria e tambm do pensamento, que realizam em seus percursos edies e composies mveis, transformando o acervo da memria em uma superfcie densa e contnua.

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2. INTERFACES

Para compreendermos mais detalhadamente o papel das interfaces nas mdias e na cultura atual, necessrio que faamos antes um pequeno percurso ao longo de diversas aplicaes do termo. Neste captulo, tomamos o termo interface com um olhar abrangente, e observamos seus desdobramentos quando aplicado a diferentes superfcies de contato e diferentes dinmicas, para alm dos mecanismos do computador e demais aparelhos tcnicos. So feitas tambm algumas referncias s aplicaes do termo em id ias bsicas acerca da percepo e do pensamento nos seres vivos. A partir da, traado um perfil da relao do conceito de interface com o funcionamento de diversos aparelhos, onde acaba por se tornar um aparelho tcnico em si, com uma dinmica prpria. Finalmente, abordamos as interfaces grficas da informtica e fazemos um levantamento conceitual inicial destas enquanto mdia e ambiente cognitivo.

2.1. Interfaces entre objetos e seres vivos

O termo interface oriundo primeiramente da fsica, onde significa simplesmente a superfcie de contato entre duas fases, isto , dois lquidos de caracter sticas f sico-qumicas diferentes e que n se misturam. Neste contexto, a interface derivada da impossibilidade de o contaminao entre duas substncias, ainda que temporria. Uma interface deste tipo apenas um limite comum, como um contato que transfere foras de uma fase a outra e se move ou muda de formato pelo movimento das fases. Para a fsica, ela no como um aparelho individualizado, mas faz parte da interao entre essas duas fases, traando, por sua movimentao, um desenho, uma espcie de impresso ou, se quisermos, uma representao mvel das tenses entre elas. Na verdade, a matria est em constante movimento, independente dos organismos vivos. o que verificamos com as rbitas dos planetas e as movimentaes dos fenmenos climticos, por exemplo. De certa forma, o reino mineral, isto , a matria que no organismo, 17

no tem filtros que manejem os fluxos do universo, cedendo sempre s suas foras e passagens. Os organismos vivos, por outro lado, os tm. 4 Na biologia, o termo passa a fazer referncia a uma dinmica um pouco mais complexa, que a do funcionamento das membranas e tecidos, que realizam separa es entre o dentro e o fora, entre um rgo e outro, entre um ser vivo e o ambiente etc. Para estas interfaces, entra em jogo a intercontaminao entre dois meios, pois elas so porosas, perme veis, male veis e, de uma forma ou de outra, incorporam mecanismos de transporte de substncias de um meio para o outro e gerenciam aes de resposta s foras e movimentos vindos do exterior. Por conta desses mecanismos, a interface biolgica gerencia ativamente as trocas de matria e fora necessrias vida e constitui a forma mais bsica e primria de contato de um ser vivo com o mundo exterior; anterior ao desenvolvimento dos sentidos propriamente ditos, tanto em termos evolutivos como embriolgicos. A membrana opera essa dupla passagem de se fazer atravessar pelo movimento e de transportar a matria de dentro para fora e de fora para dentro de seu organismo em outras palavras, de viabilizar no ser vivo, como um filtro, a continuidade do movimento e das transformaes qumicas da natureza. A interface biolgica no est associada, nos primeiros seres vivos, a um registro objetivado das passagens que realiza e em geral no tem marcas cicatrizes ou sinais mapeveis pela cincia deixados pela matria que ela transporta. Por seu funcionamento especfico, as interfaces na biologia no so limite apenas, mas tambm superfcies de troca, aparelhos de transferncia de matria, diferente das interfaces da fsica. Interfaces biolgicas ao mesmo tempo limitam um ser vivo, protegem seu organismo e transportam foras e nutrientes sem comunicao no h vida, ento o que agrega tambm deve mediar o fluxo. Na medida da evoluo, os seres vivos incorporam progressivamente em seu organismo formas de registrar as trocas com o meio na forma de sensaes e, ao mesmo tempo, de reagir aos estmulos provocados por essas trocas por meio do movimento seja por estruturas nervosas ou por outros mtodos. Por exemplo, um pssaro ao voar desvia de obstculos, ou a

4

Sobre as funes perceptivas e a noo de espao-tempo vinculada com a matria e as estruturas biolgicas, ver OLIVEIRA, Luiz Alberto. A Natureza Inacabada: Caos, Acaso, Tempo. Contribui o ao Simpsio A Crise da Razo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1995.

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partir do momento em que h um registro de quais condies climticas foram mais apropriadas para a sobrevivncia de um dado protozorio, este pode se mover para procurar essas condies. A percepo passa a ser esse aparelho que mapeia os objetos em volta segundo as aes possveis de seu corpo sobre elas e, correspondentemente, define uma imagem do corpo como centro das aes possveis. Assim sendo, a interface associada com a memria passa a ser, alm de um aparelho de transporte de matria, tambm uma fonte de informao factual. Segundo Bergson,[] no momento preciso em que a natureza, tendo conferido ao ser vivo a faculdade de mover-se no espao, indica espcie, atravs da sensao, os perigos gerais que a ameaam e incumbe os indivduos das precaues a serem tomadas para evit -los. 5

A partir desse registro, os dados do meio podem afetar individualmente esses seres, pois eles podero agir em funo de como est o ambiente. Colocando em outros termos, a partir da memria, as interfaces biolgicas passam tamb m a transportar informao, pois assim suas trocas so interpretadas. A mobilidade, como forma de reagir aos dados do ambiente, configura correspondentemente uma percepo, primeiramente como informao factual que afinal uma forma de apropriao do real visando suas aplicaes na vida prtica e posteriormente como uma imagem ou conhecimento do espao em torno, passvel de reconhecimento e, portanto, de um segundo nvel de interpretao. Os seres vivos mais simples comunicam por contato, de forma que para eles h uma quase equival ncia entre toque e ao. Suas reaes so sempre necessrias, diretamente determinadas pelos estmulos tteis que recebem, pois no h espao para decises ou indeterminaes na estreiteza do seu canal de comunicao, que trabalha em cima de uma limitao nas aes possveis e nas interpretaes e associaes do que imediatamente percebido. medida que os sentidos se refinam, aumenta a variedade de informaes percebidas e objetos relacionados e, proporcionalmente, aumenta a quantidade de poss veis aes. Esse

5

BERGSON, Henri. Matria e memria. Traduo Paulo Neves. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 12.

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aumento concomitante com um aprimoramento das estruturas cerebrais que, aliadas s demais estruturas nervosas, tornam-se um instrumento refinado de anlise dos movimentos percebidos e de seleo de uma pauta cada vez mais ampla de possveis respostas a esses estmulos. Quanto mais avanamos na escala evolutiva, mais indireto vai ficando esse contato com o meio, isto , mais abstratas vo ficando as interaes dos seres vivos com os movimentos percebidos. Suas reaes se afastam progressivamente do reflexo necessrio e, at certo ponto, automtico, para entrarem no campo do indeterminado, ao inclu rem a deciso individual, como no caso dos homens. Essa deciso tomada de acordo com o percurso de cada indivduo, isto , de acordo com sua histria e sua memria, como num processo de aprendizado. Uma vez que no existe presente imediato sem uma projeo narrativa de futuro e sem interferncia de lembranas associadas com a percepo imediata e nela atualizadas, justamente nesse intervalo de indeterminao entre a afeco e a ao que surge a representao. Aparentemente, o refinamento da viso sentido que abstrai nossa relao ttil e muscular com o mundo caminha junto com uma interpretao prtica das imagens captadas como informao, ou seja, uma objetivao do mundo. O pensamento trabalha nessa distncia crescente, abrindo a memria e a percepo para a esquematiza o e para a criao de relaes entre termos cada vez mais distantes. Por outro lado, desde os organismos mais simples, as interfaces biol gicas so elementos que agregam um conjunto ou sistema e ao mesmo tempo o expandem, pelas sensaes e comunicaes, para o mundo. como se, atravs da sua interface biolgica, o ser vivo participasse do mundo e se fizesse tambm um ser expandido, pela percepo e interao com o seu entorno. Voltando para a fsica, se consideramos que o mundo est sempre em movimento e seus objetos se comunicam e continuam um no outro pela transmisso desse movimento, poder amos dizer que o prprio mundo um mil- folhas de interfaces e, indo mais alm, que este interfaceamento generalizado condio para o desenrolar do tempo em deslocamentos e converses de foras, matrias e energias que se do independente de qualquer apropriao perceptiva. Invertendo nosso posicionamento, poderamos dizer, ao contrrio, que a prpria percepo a origem da descontinuidade que possibilita toda interface, pois projetamos nos objetos a separao que em ns operante, quando, a partir dos sentidos, nos separamos do mundo em volta construindo uma individualidade e tornando-nos nossa prpria interface. 20

Mas no nos enganemos: somente a partir do momento em que ns, como indivduos detentores de uma percepo objetivadora, percebemos separaes entre cada coisa no mundo que vemos interfaces, como no contato das duas fases da fsica. Ver o mundo em geral como um mil-folhas de interfaces , portanto, um sintoma da nossa percepo objetivadora e no necessariamente v- lo como ele se apresenta, pois o mundo anterior s linguagens e a ontologia que para ele traamos de acordo com a nossa geografia. Por outro lado, preciso considerar que a intuio da continuidade do mundo n poderia acontecer sem essa individualidade construda o junto percepo que, para representar o mundo para si, fragmenta-o em imagens e signos que a memria, em sua dinmica de elaborar composies mveis de continuidades virtuais, reconstitui em continuidade para o pensamento. Citando novamente L vy, cada forma de vida inventa seu mundo [] e, com esse mundo, um espao e um tempo especficos.6 Cada ser vivo representa para si, por seu percurso, um conjunto de imagens diferente que constitui o seu mundo e, correspondentemente, tambm uma percepo, e, em ltima instncia, uma imagem prpria de si mesmo nesse mundo. Deleuze vai ainda mais longe, pois considera que todas as coisas do mundo percebem umas as outras pela transferncia de movimento, assim como todas as imagens percebem umas s outras, apenas sem as negociaes dos seres vivos, cuja da percepo visa a ao.Todas as coisas, isto , todas as imagens, se confundem com suas aes e reaes: a variao universal. Toda imagem no passa de um caminho sobre o qual passam em todos os sentidos as modificaes que se propagam na imensido do universo.7

Esse conjunto infinito de imagens que agem e reagem sobre si por todas as suas faces e sem negociaes um espao onde n h interfaces, pois existe contato entre faces, mas no o h pensamento vinculado elas. Os seres humanos, cuja percepo distingue os movimentos exteriores e vinc ula as imagens a aes e decises, tm, no fim das contas, uma estreitamento nas suas pautas de afeco, pois das imagens s retiram o que lhes interessa. Em outras palavras, a percepo o homem se fazendo interface.

6

LVY, Pierre. O que o virtual. Rio de Janeiro: 34, 1994. p. 22. DELEUZE, Gilles. Cinema, a imagem-movimento . So Paulo: Brasiliense, 1985. p. 78.

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2.2. Interfaces na histria dos computadores

O termo interface, quando adotado pelos ramos da informtica, passou a denominar tambm qualquer dispositivo que auxiliasse em uma troca de informaes entre dois aparelhos ou cdigos de programa o que no pudessem se comunicar diretamente 8. Na informtica tradicional, a interface torna-se, primeiramente, uma pea de transporte de energia e pulsos de informao entre circuitos e, em segundo lugar, uma pea de traduo de dados e comandos entre dois programas que tivessem sido escritos em tipos de p rograma o diferentes. Nesse ltimo caso, no se trata mais de uma questo de transporte de energia, mas de transporte de dados e de comandos: temos de uma lado interfaces de hardware e, de outro, as interfaces de software. claro que, historicamente, antes das interfaces de comunicao entre programas foram criadas as interfaces do hardware dos primeiros computadores. Como narra Pierre Lvy, o primeiro computador era programado por conexes diretas entre circuitos, que eram ligados e desligados por cabos e plugues, movimentados de uma conexo para a outra como uma estao telefnica. Esses cabos eram ao mesmo tempo peas de transporte dos pulsos eletrnicos e interfaces de programao. Diversas partes da mecnica desse computador e as interfaces de comunicao entre suas peas ficavam expostas para que se pudesse utiliz- lo, sempre por meio de operaes estritamente mecnicas. Posteriormente, os computadores passam a ser programados por fitas e cartes perfurados. Pode-se, ento, esconder e proteger os cabos e plugues dos circuitos na parte interna da mquina. Com efeito, as funes de gerenciamento de entrada e sada de dados desempenhadas por essas peas passam aos poucos a ser realizadas por outros aparelhos especialmente destinados a isso interfaces para entrada de dados como o teclado. Como elas passaram a ter apenas funo de transmisso, podem ser escondidas na parte interna do computador, atrs de uma camada de programas e dispositivos de leitura. Dessa forma, sob o ponto de vista da informtica, o computador desde sua mecnica um folheado de interfaces

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Como diria Steven Johnson, em seu livro Cultura da Interface, a interface, em informtica, uma interconexo entre dois equipamentos que possuem diferentes funes e que no poderiam se conectar diretamente... (Johnson:2002, p.31)

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eletrnicas de transmisso de dados em base binria, recoberto por uma camada de aparelhos de traduo na forma de interfaces com o usurio. Como as membranas, isto , interfaces biolgicas, essas novas interfaces, face aos usurios, renem e do coerncia ao conjunto de circuitos. Esse fechamento progressivo da mecnica interna do computador abre espao para o refinamento das interfaces computador/usurio, que vo, para colocar de forma simples, representar o trnsito interno de pulsos informacionais e as codificaes internas da m quina, tornando-as visveis em aparelhos mais simples de operar. Aquilo que ontem fora interface torna-se rgo interno9. O processo de sobreposio e adio de interfaces continua com os cdigos de escrita dos programas, pois, por sobre linguagens consideradas duras por estarem muito prximas ao cdigo binrio dos sinais eltricos , so criadas linguagens cada vez mais humanizadas e inteligveis que traduzem as primeiras. Do ponto de vista do funcionamento interno dos sistemas operacionais, temos uma sobreposio de programas, dos sistemas mais estruturais aos aplicativos mais superficiais, onde as linguagens vo tamb m se sobrepondo, desde a mais mecnica at a mais semntica, com interfaces que traduzem os comandos entre si. Todo esse fluxo de informaes, por sua vez, exposto para o usurio final na forma de representaes textuais e iconogrficas nas interfaces grficas, que, por se voltarem para a interao de pessoas que no precisam dominar as linguagens de programao, so cada vez mais alinhadas com as dinmicas da linguagem cultural e do pensamento visual, e mais distantes do ac mulo de zeros e uns que , em ltima instncia, o registro nativo do digital. A informtica que chamaramos aqui de tradicional trata a interface, portanto, como um aparelho de traduo entre dois cdigos de programa o do computador, ou entre dois sistemas de informa o diferentes, como algo do funcionamento interno do computador. As interfaces de traduo entre um programa e outro, antes de serem superfcies de contato, se estreitam como um ponto de contato, configurando-se mais como um canal de ida e vinda linear. As primeiras interfaces do computador com os seus usurios eram duras, quer dizer, colocavam o sujeito em contato direto com seus cdigos mais elementares. Dessa forma, ele

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LVY, Pierre. Tecnologias da inteligncia. Rio de Janeiro: 34, 1993. p. 101.

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ficava mais prximo das entranhas do funcionamento do cdigo, mas tinha mais dificuldade de oper-lo, j que os mtodos de utilizao eram muito pouco orgnicos, isto , ainda muito distantes dos recursos intuitivos dos quais dispomos hoje em dia. Os primeiros computadores no tinham monitores que exibissem um cdigo em texto e possibilitassem o acompanhamento da programao, por exemplo. Esses instrumentos pioneiros eram aplicados basicamente na realizao de clculos e em testes e pesquisas para inteligncia artificial. Ou seja, eram ferramentas de testes para o desenvolvimento da prpria tecnologia da informtica. Aos poucos, as interfaces para operao dos computadores vo se tornando mais fceis de utilizar: linhas de cdigo comeam a ser apresentadas em monitores cuja imagem reage imediatamente aos toques no teclado, enquanto suas linguagens de programao se tornam mais humanizadas, abrindo caminho para uma linguagem textual e quase narrativa. com esse refinamento inicial das interfaces que os computadores passam a ter utilidade fora dos centros de pesquisa: passam a ser, alm de aparelhos de clculo, superfcies de inscrio e apresentao de textos. A interface da informtica vai desenvolvendo-se como espacialidade na tela do monitor, mostrando-se aos poucos como uma superfcie sensvel interao, ao invs de um canal linear de troca de comandos. A progressiva transforma o, em funo dos avanos tecnolgicos, das interfaces informacionais em interfaces grficas vai aproximando mais esse fenmeno do nosso campo de estudo, que procura abordar essas interfaces e suas imagens como ferramentas de objetivao de conhecimento e de viso do mundo da cultura. Neste sentido, a partir do momento em que os computadores associam programas de clculo e registro de dados com interfaces informacionais de base textual e iconogrfica que os aparelhos da informtica se tornam um conjunto comercializvel e suas aplicaes se multiplicam. Com o refinamento e a produo em srie dos microcomputadores, os aparelhos da informtica, cujo uso antes era restrito a centros avanados de pesquisa cient fica, passam aos poucos a ser adotados em escritrios e, em seguida, em resid ncias.

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A busca por formas mais produtivas e efetivas de operar essas mquinas d impulso ao desenvolvimento de interfaces computador/usurio cada vez mais complexas e ao mesmo tempo intuitivas. Com a assimilao da imagem como contedo editvel pelas tecnologias digitais e tambm como forma de organizar a memria espacialmente, sobrepem-se, s interfaces mecnicas e entre programas da informtica que chamamos de tradicional, as interfaces grficas da informtica atual. Se antes as interfaces eram percebidas como canais de ida e vinda de informa o na forma de pulsos eltricos, como num corredor, agora as interfaces se apresentam como uma paisagem de conexes uma rede visual mvel aberta operao. Consideramos, interpretando o que discute Lev Mano vich10 , que os desenvolvimentos na rea da informtica aparecem agora sob dois aspectos interligados, que se reforam um ao outro Primeiramente um aspecto quantitativo, que se d por conta, basicamente, do aumento da capacidade de armazenamento em discos rgidos, por exemplo e da rapidez de processamento de dados entre outros avanos, com o aumento do nmero de ciclos de processamento por segundo (medidos em Hertz), encurtando o tempo de resposta de uma rotina lgica submetida ao processador. Por sua vez, o aspecto qualitativo se d por meio de novas potencialidades derivadas da aglutinao de diferentes aparelhos e tcnicas e tambm do surgimento de aplicaes espec ficas, especialmente no mbito das imagens. Os avanos qualitativos tm sua correspond ncia direta nas interfaces grficas. As imagens que chamaremos doravante de analgicas, por no serem nativas do suporte digital, quando convertidas para suporte digital e interpretadas pelo chamado mapeamento de bits, so de modo geral os arquivos que ma is exigem capacidade de clculo e espao em disco de uma mquina, diferente das imagens vetoriais, mais alinhadas com as mecnicas do digital. As imagens analgicas digitalizadas so, no seu surgimento, um desafio para a performance do computador, especialmente se considerarmos na nossa avaliao o audiovisual: envolvem clculos complexos na digitalizao, na exibi o e na edio 11. A

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Sobre os aspectos qualitativos e quantitativos das novas mdias, ver MANOVICH, Lev. New media from Borges to HTML. In MONTFORT, Nick and WARDRIP -FRUIN, Noah (org.). The new media reader.. Los Angeles: MIT Press, 2002. ou, ainda, MANOVICH, Lev. The language of new media.11

Usamos aqui como exemplo um momento especfico da evoluo das tecnolo gias digitais, quando a imagem bitmap era de uma forma geral o tipo de arquivo que mais exigia capacidade de processamento

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possibilidade de se editar imagens bitmap est ligada, primeiramente, aglutinao de um aparelho como o scanner, que traduz sua superfcie em uma matriz de valores matemticos avano qualitativo , mas tambm ao aumento quantitativo nas suas capacidades de processamento. Trata-se, portanto, de uma diferena qualitativa vinda de uma variao quantitativa, e vice versa: uma nova tecnologia includa pauta do digital, que incorpora diversas tcnicas analgicas de registro de imagens, enquanto essas tcnicas colocam uma demanda por um aumento na velocidade de processamento dessas mquinas. O aspecto quantitativo e o qualitativo trabalham em conjunto. As prprias interfaces grficas tamb m se enquadram nesse tipo de desdobramento da tecnologia digital diferena qualitativa a partir de aumento quantitativo , mas ao mesmo tempo suas representaes mveis se dobram sobre esse percurso de aprimoramento tecnolgico, na medida que constroem justamente o ambiente enunciador genrico o suficiente para permitir a incluso de quaisquer ampliaes qualitativas da informtica, ao mesmo tempo que so coladas ao funcionamento do hardware, de onde provm a maior parte dos avanos quantitativos, de forma a transparecer imediatamente suas efic cias. A entrada da imagem tem papel fundamental nisso, pois, como as interfaces gr ficas passam a organizar a informao espacialmente e por meio de metforas grficas e estruturas visuais cada vez mais elaboradas, passam tambm a facilitar as diferentes aplicaes e conexes dos computadores atuais com outros aparelhos. De um corredor para uma paisagem de conexes, a entrada da imagem como tecido conjuntivo elemento visualmente agregador da memria em disco e do funcionamento dos aparelhos conectados aos computadores, sejam eles outros computadores ou outro tipo de mquina, faz da operao da mquina um processo intuitivo, que valoriza a experimentao direta e que, dependendo do programa usado e da atividade desempenhada, exige mais dos sentidos do que do pensamento discursivo. uma forma de lidar com signos que conjuga de maneira indita as sensaes.

das mquinas. claro que imagens vetoriais muito complexas ou arquivos de udio, por exemplo, vo exigir igualmente uma grande capacidade de processamento.

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Passamos de uma questo do funcionamento interno do computador nas linguagens de cdigo lineares para uma questo que envolve a relao do homem com suas mquinas passagem do domnio de uma linguagem t cnica para a linguagem da cultura. A partir do surgimento da internet e com a progressiva aglutinao de diversos aparelhos de viso, registro e produo ao computador como perifricos, a questo da interface passa a atravessar diretamente a relao do homem com a sua comunidade e o seu mundo. Nas redes de computadores, onde as interfaces gr ficas so, na prtica, interfaces de comunicao entre pessoas, as informaes e as imagens s quais temos acesso muitas vezes no esto no computador operado localmente, mas em qualquer outro ponto da rede. Temos a uma inverso dos termos tradicionais que determinavam o funcionamento da interface: a de trabalhar no transporte de uma interioridade para uma exterioridade, ou de uma interioridade para outra. Quando o computador passa a ser um sistema essencialmente aberto a partir das redes e dos aparelhos produtivos a ele associados e, ao mesmo tempo, as imagens por ele manipuladas se tornam referncias na nossa cultura, a sua interface se torna uma janela para uma exterioridade: a interface grfica e suas imagens se tornam ferramentas de subjetivao na medida em que se apresentam como dado concreto num ambiente cultural de mediao pelas imagens e de viso e interferncia na exterioridade do mundo da cultura. Ao mesmo tempo, elas apresentam e mediam a relao com uma interioridade de um arquivo, de uma memria armazenada.No momento em que a maioria dos usurios definitivamente no so mais informatas profissionais, quando os problemas sutis da significao suplantam os da administra o pesada e os do clculo bruto que foram os da primeira informtica, a interface torna-se o ponto nodal do agenciamento sociotcnico.12

As imagens em processo na tela que, no fim das contas, representam a nossa cultura em movimento o mundo de imagens da nossa percepo objetivada , se dobram sobre toda exterioridade. Se, em termos da nossa subjetividade, dos objetos n se pode tirar ou conhecer o nada alm de imagens, para as interfaces grficas da informtica atual, como um meio que concentra as imagens da nossa cultura, no h um sistema nico que permita falarmos em termos

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LVY, Pierre. Tecnologias da inteligncia.. Rio de Janeiro: 34, 1993. p. 177.

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de exterioridade ou interioridade do acervo e imagens, a no ser como mltiplos conjuntos temporrios, ou sistemas mveis de conhecimento.

2.3. Interfaces, aparelhos e imagens

Quando pensamos em interfaces como superfcies de troca de informao, desconsiderando a forma com que a informao se apresenta, as aplicaes do termo se multiplicam e vo abranger de forma geral a relao entre o homem e seus aparelhos. Por conta disso, para entender como se estruturam as interfaces informacionais atualmente, talvez o melhor ser entender como elas se articulam ao hardware, isto , aos aparelhos e processos da tcnica. No contexto que procuramos abordar agora, que o da interao do homem com seus aparelhos, entendemos as interfaces como formas de tornar possvel esta interao. Dessa forma, abordamos as interfaces de computador como aparelhos de troca semntica e o prprio computador como uma espcie de aparelho para a virtualizao e, ao mesmo tempo, objetivao do conhecimento e da prpria linguagem. Uma ferramenta, is to , um aparelho simples, sob diversos aspectos, pode ser considerado uma objetivao de uma funo ou habilidade antes desempenhada pelo corpo que, por meio dessa ferramenta melhora seu desempenho. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma objetivao e de uma virtualizao de uma ao, que descolada de um corpo particular e agora, enquanto objeto, se torna comunitria, reprodutvel e partilhvel. Ao fabricar ou criar ferramentas, o homem delega suas habilidades para seus objetos e, ao mesmo tempo, distribui estas ltimas pelo espao e as amplia em termos de efetividade. Mais do que uma extenso do corpo, uma ferramenta uma virtualizao da ao.13 Ela um objeto real que, no entanto, nos d acesso a uma diversidade de usos e solues possveis. Por outro lado, essa tcnica que o homem delega e exterioriza em objeto , s pode ser utilizada efetivamente se for internalizada novamente, por meio de um aprendizado que o homem deve empreender sobre como melhor utilizar a ferramenta. Alm do aprendizado, o homem deve

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LVY, Pierre. O que o virtual. Rio de Janeiro: 34, 1994. p. 75.

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modificar seu olhar e seus gestos, msculos etc. para integrar, junto com as ferramentas, uma espcie de corpo ampliado, virtualizado, com novas potencialidades. Quando as ferramentas se tornam mais complexas, desenvolvendo-se em m quinas, no podemos mais vincular sua criao a uma virtualizao de uma ao de um corpo individual. No entanto, aparelhos continuam, de uma forma ou de outra, objetivando tcnicas, habilidades e conhecimento. Enquanto o homem se espalha pelo espao por meio de seus aparelhos, isto , delega e pe em circulao suas habilidades e conhecimentos em aparelhos variados, as interfaces grficas das tecnologias digitais realizam o caminho de volta, concentram saberes e efetividades em uma superfcie interativa. Como lembra Maur cio Lissovsky14, para Humberto Eco, toda prtese um canal, pois em toda prtese h troca de informao. De fato, a interface gerencia ou pelo menos filtra uma passagem de movimento, fora e estmulos em geral. primeira vista, essa idia parece muito voltada para as circunstncias da Era Informacional, mas ela se aplica a diferentes tipos de prteses e ferramentas, pois em geral a efetividade destas depende do indivduo que, se expandindo em suas habilidades e efetividades, traduz seus estmulos como dados e informaes factuais, de utilidade imediata. A interface, nesses aparelhos, quer incorpore imagens e signos, quer seja apenas superfcie de contato para passagem de estmulos mecnicos, torna o homem sensvel ferramenta ou mquina e faz com que suas aes continuem nelas. No entanto, questo das interfaces como aparelhos complexos e virtualizaes de mecnicas objetivas e processos subjetivos comea a partir da interface como suporte de sinais fabricados e de inscrio, ou seja, quando a interface incorpora imagens e se espacializa. Para Bergson, as imagens exteriores influem sobre o corpo lhe transferindo movimento15 .. Podemos considerar que as imagens em movimento das interfaces grficas so como imagens potencializadas, pois t m como campo de funcionamento justamente aquele intervalo entre a

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LISSOVSKY, Maurcio. As retinas artificiais. In DAMARAL, Marcio Tavares (org.). Contemporaneidade e novas tecnologias. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.15

BERGSON, Henri. Matria e memria. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 14.

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presena e representao: so imagens em processo. Elas so aparentadas, ao mesmo tempo, das lembranas das quais nenhuma percepo imediata pode se separar totalmente , e das informaes factuais e suas funes prticas de um lado memria, do outro fluxo atual. Colocando a questo de uma outra forma: as interfaces gr ficas pem em movimento o que est na memria e transmitem o que captado pelo computador. So uma espcie de apresentao m vel do que est registrado em cdigo, mas so tambm onde o cdigo passa a existir enquanto imagem para o pensamento e o computador e seu aparato em rede passa a existir enquanto mdia. De maneira geral, o cdigo atualizado na interface. O acervo da memria, por si s, morte, cadver; a memria sem a atualizao na intera o, que faz funcionar seus esquemas, textos e representaes, constitui apenas em um lugar de acmulo e esquecimento. O conjunto de bits arquivados no computador s se torna informao quando posto em circulao no ambiente simblico e comunicacional da interface. nas interfaces que acontece a troca semntica e l tambm que os bits indiferenciados na base magntica do disco rgido se tornam uma coleo mvel de saberes e percursos de um usurio e de grupos de pessoas. No momento em que o digital aglutina meios e processos diversos na base comum do digital, as imagens nas interfaces se tornam progressivamente o guia e a representao da realidade do mundo da cultura e tambm um meio de operao dessa realidade. Dados estatsticos coletados e processados por computador vo servir de base para as decises de grandes empresas, assim como grandes mquinas produtivas comeam a ser gerenciadas por computadores, que interpretam por emulao o seu funcionamento em dados digitais. Temos de um lado uma objetivao do conhecimento e de dinmicas interiores da percepo que evidenciam o pensamento como ato, movimentando imagens e signos, e de outro temos uma transmisso de possveis nas cifras e seus controles que, por seus agenciamentos, se tornam uma subjetivao da exterioridade. De uma ponta a outra, diversas misturas e agenciamentos. Um bom exemplo desse movimento de subjetiva o de uma exterioridade so as modernas f bricas de embalagens de vidro face s tradies dos processos de fabricao destes produtos. O m todo artesanal de fabricao de vidros envolve uma tcnica delicada, em que o material derretido moldado pelo sopro do arteso e detalhes como a percepo exata da 30

temperatura fazem com que ele se acos tume a manipular sem luvas o tubo de metal por onde sopra. um trabalho que exige uma ateno delicada e uma entrega quase que completa do arteso s sensaes do processo. A intuio se junta tcnica que s poderia ser transmitida empiricamente. H muitos anos, os processos artesanais de produo de vidros vieram sendo substitudos, pelo menos nos setores que atendem a grande ind stria, por processos mecanizados com sopros mecnicos e moldes a partir dos quais so produzidos milhares de peas id nticas. Mesmo dentro desse regime, h de haver a figura do controlador da produo, que vai avaliar de perto as caractersticas do vidro e os diversos estados e regulagens da m quina, que podem ser to sutis como os detalhes da produo artesanal. Recentemente, em especial nos EUA, muitas fbricas de vidro t m integrado seus sistemas digitais de tal forma com o andamento da produo, que ela pode ser controlada distncia, na forma de coeficientes e cifras. Dados sutis como o brilho e a tonalidade do vidro derret ido, que antes eram avaliados diretamente na produo , so substitudos por cifras e imagens variantes. A ateno do controlador se torna menos vinculada aos sentidos de contato direto, como o tato, tornando-se predominantemente superficial, ainda que geral e abrangente, voltada para as cifras da produo da fbrica. Ele reconstri seu repertrio e sua tcnica, enquanto delega parte de seu conhecimento para as bases de dados. Ele est muito distante, mas seu controle se faz efetivo e local na fbrica. A leveza e a mobilidade do digital penetra progressivamente na nossa realidade assim como ns penetramos progressivamente no ambiente digital, fazendo dele a nossa habitao, a nossa referncia cultural. Como escreveu talo Calvino, verdade que o software no poderia exercer seu poder de leveza seno mediante o peso do hardware; mas o software que comanda, que age sobre o mundo exterior e sobre as mquinas, as quais existem apenas em funo do software, desenvolvendo-se de modo a elaborar programas de complexidade cada vez mais crescente.16

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CALVINO, talo. Seis propostas para o prximo milnio. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.20.

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Ainda que muito da organizao e da estruturao das imagens na tela seja definida pelos fabricantes de software, no espao que estes abrem organizao e experincia pessoal e, at certo ponto, local que os acmulos de dados so ordenados e selecionados como colees de conhecimentos reordenados e atualizados pelo uso. Como esse uso mltiplo, utilizamos v rios programas simultaneamente e a interface outrora rasa, quando apresentava apenas linhas de cdigo em texto , passa a apresentar uma profundidade interativa, por sobreposi o de diferentes superfcies sensveis e diferentes contextos de trabalho simultneos. A mobilidade e a simultaneidade nas mdias digitais atuais desfaz a linearidade da escrita e a linha do tempo do audiovisual, que a televis o, por mais que aglutinasse diferentes fluxos narrativos, ainda mantinha parcialmente. A sua estrutura topologizada onde as distncias entre dois elementos no esto relacionadas a um tempo de percurso, mas a uma conexo semntica , leva a uma fragmentao do contedo e ao mesmo tempo a uma mistura de saberes numa dinmica de comunicao por contgio, por associao. Ao trabalhar o conhecimento e a prpria viso da realidade nos ambientes interativos das interfaces grficas digitais, o pensamento, atravessado por diferentes fluxos de informao, se torna mais associativo do que sinttico, ou seja, pensa por conjuntos cujas estruturas so passageiras, contingentes, pois todo o conjunto est em renegociao permanente. As imagens, que so em geral tomadas como composies e contextos autnomos, passam a ser tomadas como ferramentas ou artefatos do pensamento e da expresso, onde o contexto e suas conexes definem o que elas dizem.

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3. INTERFACES GRFICAS E SUAS TRADIES

As interfaces grficas da informtica atual desenvolvem-se, em termos de capacidades e abrangncia, de duas formas: por aglutinao e por simulao. Para incorporarem tcnicas e processos anteriores dos quais herdam estruturas e modos de funcionamento, elas aglutinam aparelhos tradutores e, ao mesmo tempo, simulam suas dinmicas e fluxos nas interfaces. o caso do teclado com relao ao texto, por exemplo. Para integrar no meio digital diversas tecnologias e t cnicas contemporneas, os computadores incorporam conexes com outras mquinas, que devem ser transformadas tambm em aparelhos informacionais. O computador espalha seus circuitos a uma rede de outros aparelhos para que seja possvel control-los, ao mesmo tempo que as interfaces simulam o funcionamento desses outros aparelhos, concentrando o fluxo produtivo. o caso das mquinas pesadas industriais gerenciadas pelo software digital, como na produo dos vidros, por exemplo. Procuraremos enfocar neste captulo algumas interaes das mdias digitais com as tradi es da escrita, das imagens e do olhar anteriores ao digital e seu funcionamento quando incorporadas s novas tecnologias e postas em movimento nas interfaces informacionais. Em seguida, abordaremos a polivalncia destes meios e sua facilidade tcnica para aglutinar mquinas e processos, refletida na flexibilidade das interfaces. Enfim, buscaremos demonstrar de que forma as imagens digitais so consideradas, por excelncia, as imagens operadoras do eixo tcnico-social da nossa poca. As mquinas informacionais atuais, ou, como chama Michel Serres, os infomotores, so a apresentao mais recente de uma cadeia de tecnologias marcada pela assimilao progressiva de sinais e linguagem nas interfaces e no funcionamento dessas mquinas, mas tambm pela articulao de m quinas e motores com ferramentas e tcnicas de registro. De fato, diversas tecnologias e tradies hoje se atualizam nos computadores, sobrepostas e simultneas, como diversas temporalidades compondo um presente multifacetado. Assim co mo em um nico presente coexistem na memria imagens de diferentes tempos passados que se atualizam sobre as percepes imediatas na forma de lembranas, em um nico aparelho encontram-se sobrepostos 33

diversos estratos de tecnologia e tempo. O digital realiza atualmente um rearranjo dos estratos antigos por meio de simulaes nas interfaces grficas, onde diversas dinmicas herdadas se tornam simultaneamente vis veis. As interfaces grficas da informtica atual, enquanto ambientes de inscrio, estruturaram-se a partir de modelos e esquemas visuais herdados de diferentes sistemas de representao, aparelhos de viso e, inclusive, de diversos motores que, de uma maneira ou de outra, j incorporavam signos e sinais em interfaces prprias 17 . Atualmente, a flexibilidade dessas interfaces grficas cada vez mais explorada, na medida em que as mais diversas tecnologias e processos v sendo incorporados tecnologia digital e, conseq entemente, seu funcionamento o precisa ser concentrado na mesma interface. As potencialidades das tecnologias digitais so amplas justamente porque, desde sua inveno, o computador no uma mquina que funcione na esfera entrpica, isto , mecnica no sentido de fabricar ou aprimorar produtos materiais especficos por trabalho mecnico e, assim como os diversos suportes de informao, no tem um propsito estrito, alm da aplicao genrica, e por isso flexvel, de armazenar e processar informao. A informtica se presta a aplicaes que surgem e so elaboradas no seu uso, mas no a propsitos predefinidos, isto , finalidades. A finalidade est nos seus produtos, assim como acontece nos diversos suportes que armazenam informa o, o que equivale a dizer que o conjunto geral de tecnologias hoje vinculadas informtica viabiliza, por meio de seus aparelhos conectados, os projetos e efetividades da nossa sociedade. O computador se torna o aparelho da equivalncia geral de meios e processos, que se abre para concentrar diversos mecanismos potencialmente todos. Suas interfaces so ambientes gerais de inscrio, que produzem apenas por meio de perifricos, que funcionam na escala entrpica. Estes so aparelhos produtores, no sentido mais fsico que o termo produo pode ter, que espalham os efeitos da informtica no espao material. Estes efeitos so simulados e reunidos novamente, juntamente com todo o sistema produtivo, nas interfaces grficas, cuja flexibilidade passa a acompanhar a necessria polivalncia dos computadores a partir dos sistemas

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operacionais atuais, que integram a imagem como tecido conjuntivo e operador desses meios e processos. Podemos definir, desta forma, dois vetores histricos trabalhando sobre o funcionamento e as imagens das interfaces grficas atuais: primeiramente o que elas herdam e, a seguir, o que elas a incorporam. Eles t m razes semelhantes, mas modos distintos, e contam algo sobre como os computadores passam de aparelhos de inscrio e clculo para aparelhos de viso e produo, ao mesmo tempo que as interfaces tornam-se ambientes cognitivos e as imagens digitais passam de sinais para modelos mveis que operam a nossa realidade. Os computadores atuais e suas interfaces, tanto com relao aos dados que recebem e interpretam como com rela o sua efetividade produtiva, devem ser vistos como aparelhos de edio que mobilizam diversos estratos tcnicos simultaneamente, provocando a todo tempo a rearrumao dos vetores da tcnica em geral.

3.1. O texto, seus registros e o hipertexto

Segundo descobertas da paleontologia, as primeiras inscries feitas pelo homem encontravam-se em objetos utilizados como utens lios cotidianos: eram tracejados repetidos e rtmicos que estavam provavelmente vinculados a contagens. As primeiras inscries com alguma caracterstica icnica, isto , com alguma relao de correspond ncia morfolgica ou estrutural com as percepes objetivas, eram vinculadas a reiteraes de uma viso cosmolgica do mundo, em narrativas cclicas de mitos e em rituais. Estamos no plo que Lvy chama de oralidade primria, onde os homens de uma comunidade encontram-se mergulhados nas mesmas circunstncias e compartilham

conhecimentos e narrativas muito prximas. A comunicao em geral feita no campo do imediato e a memria dessas comunidades est guardada em pessoas vivas e grupos atuantes. Os pictogramas em cavernas pr-histricas, por exemplo, eram usados em rituais e retomavam

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Estas ltimas so mquinas que trabalham na escala entrpica, como o carro, por exemplo, que, mesmo antes dos modelos com sistemas eltricos, tinham em seu painel um conjunto de sinais que traduziam dados do seu funcionamento interno.

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periodicamente narrativas circulares de um tempo contnuo e imemorial, conservando-se em ciclos indefinidamente tanto rumo ao passado quanto rumo ao futuro. O caminho do sol no cu, a alternncia do dia e da noite, os ciclos da lua e a movimentao das estrelas, as estaes e as migraes dos animais passam a ser percebidos como ciclos e aos poucos so utilizados como dados estratgicos. Tais conhecimentos so registrados em barras de cermica na forma de figuras em seqncia, as chamadas xuringas. Com esses pequenos registros, pode-se prever as pocas em que a pesca melhor, por exemplo. Essas inscries tornam-se instrumentos para a utilizao objetiva dos conhecimentos dos ciclos da natureza, ainda dentro de uma lgica da cosmologia, ao mesmo tempo que desassociam o conhecimento objetivo do corpo enunciador. Mesmo que estejamos ainda distantes da inveno dos ideogramas e outros sistemas de registro convencionados e seus suportes para conservao, quando falamos da objetivao do conhecimento pr-histrico nas xuringas, comeamos a delinear as caractersticas do plo da escrita como descrito por Lvy. A escrita linear surge primeiramente a partir de ideogramas, ilustraes com sentido convencionado, que s alinhadas em seqncia. Em seguida, so inventados os primeiros o alfabetos fonticos, que instalam uma relao de correspondncia direta com a linguagem oral. Dos pictogramas, para os mitogramas, da para os ideogramas e para a escrita fontica, h um processo de progressiva abstrao dos signos. A prpria criao dos ideogramas muitas vezes tida como um processo de fragmentao de imagens impressas na viso em elementos individualizados, cujas formas so simplificadas ao mximo, ao ponto de se tornarem representaes por conveno 18 .. Trata-se de uma compresso de diversos casos em um nico signo, princpio quase abstrato. A abstrao final seria a escrita fontica, que remete aos sons da fala e, assim como os termos da lngua f alada, no tem nenhuma relao estrutural com o que percebemos pelos sentidos. Seus elementos bsicos remetem a fonemas e n a significados especficos e, assim o como a fala se desenrola no tempo, as letras se alinham em seqncia, em uma ordem de leitura linear.

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A escrita linear, ao objetivar um conhecimento, suspende-o de seu contexto imediato, tornando-o disponvel para outros leitores habilitados, em outros momentos e em outros lugares. As informaes sobre o comrcio e a produo de alimentos e, em se guida, os mitos e a histria de cada povo comeam a ser registrados e armazenados. Embora os primeiros registros escritos de que se tem notcia estivessem vinculados a contagens da produo rural e ao gerenciamento dos estoques de alimentos e no a um registro voltado para o conhecimento e para as cincias, como definiramos hoje em dia, a escritura vai se desenvolver no sentido de exteriorizar o pensamento discursivo em suporte material, iniciando um acmulo de conhecimento e botando em movimento um desenrolar histrico, ao mesmo tempo que sedimenta, nos homens, esse mesmo pensamento discursivo. Ao colocar em pauta a questo do tempo linear e do acmulo de conhecimento em diversos suportes, a inveno da escrita linear provoca a entrada da comunidade dos homens na linha narrativa histrica, ao mesmo tempo que suspende o conhecimento em uma sntese a partir do texto lido. Um texto o suporte material do pensamento registrado nele e, ao mesmo tempo, sua prpria materialidade, sua constitui o, a de uma interface que nos coloca em rela o com o que ele registra que, por sua vez, atualizado a cada leitura. Em outras palavras, uma suspenso do contexto oral para uma virtualidade interfaceada. Se considerarmos os diversos suportes de conhecimento como interfaces para o pensamento registrado, podemos perceber que tais interfaces sempre trabalham em funo da suspenso de um dado qualquer conhecimento, informao, pensamento ou mesmo uma imagem para uma virtualidade, uma espcie de contexto transcendente que ativado e enriquecido na interao com esses sistemas. Na mesma medida em que a interface suspende, ela comunica, produz diferena. Como coloca Lvy,O aparecimento da escrita acelerou um processo de artificializao, de exteriorizao e de virtualizao da mem ria que certamente come ou com a hominizao. Virtualiza o

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MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges.. Rio de Janeiro: Marca dgua, 2001.

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e no simples prolongamento; ou seja, separao parcial de um corpo vivo, colocao em comum, heterognese.19

Um texto atualiza um pensamento e atualizado por uma leitura. A partir do livro, pela leitura individual, renovada uma rede de textos na memria do sujeito, que poder, por sua vez, ser atualizada em um novo texto. A leitura sempre um encontro com o outro no texto, o qual pe em relao diversos fluxos desejantes em jogo no texto e fora dos dois sujeitos envolvidos autor e leitor. Essa conexo externa com a experincia caraterstica dos percursos do pensamento individual na Modernidade, que realizado por intertextualidade20 . Com efeito, a prpria individualidade neste perodo parecia ser construda a partir da composio, por sntese intertextual, de um histrico prprio para cada sujeito, subjacente linha da histria geral. Lvy atualiza a questo da subjetividade em funo do conhecimento em termos mais contempor neos, e encara o conhecimento na memria individual como uma espcie de hipertexto, diferente para cada sujeito na medida de seu repertrio e a cada momento, conforme seus percursos. Ao invs de sua prpria sntese narrativa a partir de uma rede de intertextua lidades, cada um teria seu prprio hipertexto de conhecimentos, que funcionaria como um modelo ou um conjunto de modelos de pensamento que podem ser operados e percorridos de diferentes formas. Com as novas mdias e as tecnologias digitais da atualidade, h uma confuso entre as categorias de emissor e receptor que foram sedimentadas na modernidade, pois o texto passa a ser objetivado no ambiente digital sem forma acabada, que dizer, ainda em processo. O hipertexto se renova como narrativa heterognea cada vez que operado, pois a interatividade viabilizada pelo suporte informacional nada mais do que uma espcie de exteriorizao e uma objetiva o da intertextualidade que conhecemos na modernidade. A partir de ento, h uma multiplicao de narrativas virtuais que constituem cada individualidade. H um conto de Borges chamado Os dois reis e os dois labirintos, no qual o rei da Babilnia constri um labirinto fabuloso de muros, portas, escadas e galerias aonde poucos se19

LVY, Pierre. O que o virtual. Rio de Janeiro: 34, 1994. p. 38.

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aventuravam. Um dia ele faz com que um certo rei dos rabes que veio lhe visitar entre nele e percorra seus corredores at que, humilhado e cansado, implore o socorro divino e d com a porta de sada. O tal rei dos rabes, para se vingar da humilha o, leva o rei da Babilnia ao seu reino e cavalga com ele por trs dias para dentro do deserto. L, diz-lhe que este era o seu labirinto e abandona-o a vagar. H uma tcnica para conseguir sair de qualquer labirinto, alm de confiar na sorte ou na graa divina. Toca-se com uma das mos uma das paredes do corredor no qual se est, e segue-se adiante sem nunca tirar a mo da parede, fazendo todas as curvas e caminhos sinuosos a que esse mtodo obrigar. Essa tcnica s pode ser concebida a partir do momento em que se v o percurso no labirinto como uma caminhada ao longo de um amarrotado de superfcies. Seu sucesso est precisamente em esticar essas superfcies em um percurso contnuo. verdade que desta forma percorre-se o labirinto pelo caminho mais longo, mas tambm conhece-se todas as suas reentrncias. O labirinto, com todas as suas edificaes, corresponde experincia do espao estriado das sociedades disciplinares 21 e, n por acaso, pode ser usado para descrever certos o aspectos do romance clssico, que foi a grande narrativa da modernidade. Um livro como um amarrotado organizado de linhas e, da mesma forma que no labirinto, a experincia objetiva da sua leitura em geral um percorrer de corredores e caminhos edificados. O mtodo de encostar a mo em uma das paredes que descrevemos , no fim as contas, correspondente a forma tradicional de leitura, do incio ao fim, assim como um labirinto tem um ponto edificado de entrada e um outro de sada. bem verdade que permitido escolher direes em uma bifurcao, ou pode-se inclusive pular muros e continuar o caminho de outro modo, como quem

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Sobre a questo da intertextualidade e os sistemas de pensamento caractersticos da modernidade, reportar-se a TUCHERMAN, Ieda. Breve histria do corpo e de seus monstros. Lisboa: Vega, 1999.21

A sociedade disciplinar descrita por Foucault como uma sociedade hierarquizada de espaos estriados, isto , delimitados, tpica das sociedades do perodo Moderno. Nela, disciplina da vida leva os homens de um espao fechado ao outro da casa para a escola, da escola para a universidade, da universidade para o trabalho , e cada espa o define para o homem um conjunto de regras e comportamentos. Deleuze retoma a discusso de Foucault propondo a id ia da sociedade de controle, onde as divises do espao so perme veis, tornando-se superfcies de troca, por onde os homens comutam por senhas e passes nos sistemas de controle. Referir-se a DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In DELEUZE, Gilles. Conversaes.. So Paulo: 34, 1992.

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j leu o livro v rias vezes e tem um percurso de trechos preferidos, ou mesmo como quem usa um ndice ou sumrio para chegar a um ponto especfico do percurso. Pode-se, inclusive, confundir caminhos, ou passar por portas ou tneis para outros labirintos: so prticas que aproximam o texto tradicional das dinmicas do hipertexto. O deserto, por outro lado, corresponde experincia do espao no-estriado das sociedades de controle e, apesar de sua aridez, poderia ser uma metfora para o hipertexto contempor neo das redes informacionais, que, como a areia, n tem incio nem fim. Assim o como a geografia do deserto mvel, por conta das dunas que mudam de lugar com o vento, no hipertexto existem poucas referncias estticas para auxiliar na orientao, pois tudo est em constante deslizamento. No existem caminhos delimitados a n ser o do percurso dos homens. o A atividade do sujeito a de manter-se deriva e, ao mesmo tempo, seguir seu percurso. Os homens do deserto so errantes: observam as estrelas durante a noite e entendem seu posicionamento pelas suas constelaes. Durante o dia, traam seus caminhos a partir das estrelas organizadas em constelaes, semelhantes s organizaes topolgicas para as quais o hipertexto em rede evolui. Cada espao enunciador tem o seu mtodo correspondente: enquanto o mtodo para o labirinto o de alongar e percorrer uma superfcie, o do deserto o de projetar pontos abstratos e torn- lo um espao sensvel durante cada percurso heterotopias de caminhos e de geografias.

3.2. A imagem, o campo e o extracampo

Rgis Debray, em seu livro Vida e morte da imagem22 traa um percurso sobre o olhar desde o que considera as primeiras imagens do ocidente vinculadas a rituais funerrios como forma de lidar com a morte e tudo o que ela traz de indeterminao at as imagens das mdias digitais e o ambiente sob controle do visual. Ele divide as eras da imagem de trs perodos, que podem ser articulados com os trs plos delimitados por Lvy: a Logosfera, relacionada com as imagens dos dolos e o seu regime de pura presena; a Grafosfera, que o

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DEBRAY, Rgis. Vida e morte da imagem: uma histria do olhar no ocidente. Petrpolis: Vozes, 1994.

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regime da arte e da imagem como objeto da fruio esttica; por fim, a Videosfera, que o regime da simulao da informtica e de um mundo visual imersivo e sob controle. Na logosfera, os primeiros dolos religiosos eram representaes de uma ordem superior de coisas invisveis que regiam o mundo das coisas visveis da comunidade dos homens. A imagem, ento, era um ponto de conexo com o divino ou pelo menos com a alma do mundo e no item de fruio esttica, como uma obra de arte moderna, ou um decalque do visvel. Pelo contrrio, a imagem do dolo mirava a comunidade dos homens com a fora da pura presena, uma ligao com a eternidade e com o mundo invisvel que regia o mundo visvel. Na Pr-Histria e na Antigidade, os homens tinham ainda um domnio muito restrito dos objetos e da natureza em geral: eram muito pouco aparelhados e viam o mundo como um lugar misterioso, repleto de lugares obscuros. O mito e a divindade eram a expresso mais ntida da verdade. A imagem, ent o, o lugar da verdade como experincia mstico-religiosa, transcendental, e inaugura a a funo mediadora que se renova historicamente at os dias de hoje. A Logosfera est relacionada com a oralidade primria na medida em que suas imagens so pesadamente vernaculares: um dolo fala a sua comunidade e s a ela; sua imagem rene, no circula. Da mesma forma, a oralidade vincula todo conhecimento a um corpo e a um tempo de comunicao presente. Associando esse contexto do olhar ao conceito de interface, podemos dizer que, ao contrrio dos aparelhos de viso e escritura digitais, a imagem que mediadora entre os homens e o divino sua prpria interface, ela prpria superfcie ou ponto de contato. Enquanto interface, ela uma representao e certo que trabalha em uma substituio, mas de algo que encontraria-se, por natureza, em suspenso: o desconhecido e o invisvel da divindade. Os primeiros aparelhos e sistemas de inscrio so provavelmente anteriores aos primeiros aparelhos de viso, apesar desses primeiros terem, claro, seus efeitos e sua articulao com um tipo de visualidade. Os aparelhos de viso esto, regra geral, vinculados a uma viso objetivada e objetivante do mundo, tendo como premissa o v nculo da imagem ao real. Essas perspectivas do olhar so caractersticas da visualidade do Renascimento em diante.

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Pelo que foi apresentado aqui sobre os trs plos do esprito, segundo Lvy, o segundo perodo delimitado por Debray deveria coincidir com a inveno do texto linear, que inaugura o plo da escrita, mas a Grafosfera, poca que elege como imagem primordialmente a arte, tem incio apenas a partir dos primeiros rudimentos da imprensa, ou seja, a partir do momento em que o texto impresso, ganhando circulao e espalhando seus efeitos nas sociedades. A arte objeto de fruio esttica e crtica, alm de se dar apreciao coletiva. Se antes as imagens n tinham autores definidos, agora a atribuio de autoria e a individualidade o do artista expressada na obra ganham vulto e valor. Desta forma, se a imagem antes era presena, ela passa aos poucos a ser representao, superfcie para ser vista. O homem estabelece uma interlocuo com a subjetividade trabalhada na imagem, e no mais com a verdade transcendental de sua comunidade. Uma obra de arte a atualizao de um pensamento, atualizado a cada olhar na relao com a obra a apreciao da arte uma experincia do sujeito reflexivo. Uma viso subjetiva de mundo no muda sem um movimento correspondente em seus objetos, seus aparelhos e suas imagens e, correspondentemente, sem um novo olhar sobre si mesmo. Objetivamente, os aparelhos de registro e viso at o Renascimento poderiam ser encarados mais como ferramentas, instrumentos e tcnicas, do que como mquinas propriamente ditas. A partir do Renascimento so desenvolvidas diversas conjunes entre tcnicas de registro e aparelhos de viso, como o exemplo da cmara obscura, que viabilizam novas perspectivas para o olhar e intrumentam um novo pensamento visual. Estes aparelhos de viso vo sendo progressivamente refinados e se tornam uma espcie de interface que d visibilidade a uma imagem do mundo e viabiliza uma certa participao nele: no nosso exemplo, um certo tipo de pintura. Ocorre neste ponto um deslocamento no papel e nas dinmicas das imagens, tambm por conta de suas novas aplicaes nas cincias. As imagens, que outrora apresentavam-se como uma conexo com a alma do mundo, passam a ter tambm uma faceta de dado cientfico em uma cultura que elege a exatid o e a verdade como justeza abalizada por m todo como sendo os critrios para operao no mundo. H ento uma valorizao generalizada da imagem como evidncia e da viso como abalizadora do pensamento e ordenadora do mundo em paisagem, espao e, enfim, geografia. A imagem se desloca do ncleo mgico-religioso para uma dinmica 42

da objetividade e da perspectiva histrica, do humano como centro de referncia e do seu corpo como centro de ao. Nesse sistema, o homem se torna medida para todas as coisas e sua viso objetiva e objetivante o individualiza a si prprio e s suas criaes. A imagem passa a ter como eixo de mediao a compreens o e a avaliao humana, tanto nas obras de arte como nos diagramas e desenhos cient ficos, enquanto os aparelhos e sistemas de viso tm como eixo a verdade como justeza e a experincia da imagem retiniana. Ao mesmo tempo, a anatomia e principalmente a matemtica penetram na pintura com ajuda da perspectiva e uma nova viso geometrizante, que aparecem a como m todos para organizar a imagem. Esse novo tipo de visualidade tem reflexos tanto nas prticas da pintura e mesmo da engenharia, por exemplo, como no olhar, de uma forma mais geral uma racionalizao da viso. A mais importante e talvez mais revolucionria das novas tcnicas de representao a perspectiva, que acaba por funcionar mesmo como um sistema de interpretao, uma mediatizao do olhar. Segundo Bruno Latour, o esprito vai se tornar cientfico ao ver o mundo em perspectiva.23 Ela envolve a percepo das distncias e das medidas como temas e propores distribudos no espao. O olhar em perspectiva um olhar geomtrico, que traa relaes quase matemticas entre os objetos e escrutinizador dessa fragmentao que organiza a superfcie de uma visada em uma rede de elementos. De fato, a vis o em profundidade j exige uma racionalizao do olhar, no sentido de interpretar as vises e delas perceber propores e distncias sem a experi ncia anterior do percurso de cada uma delas. Dessa forma, em outras palavras, como se a perspectiva fosse uma exteriorizao das redes de propores geomtricas e prolongamentos virtuais do espao que traamos mentalmente para viver em um mundo em profundidade. Desde ento, a imagem se torna mais e mais a representao de uma essncia composio de uma verdade especfica como um substituto e no uma presena por si s. Enquanto isso, o texto descolamento do discurso em geral de uma localidade e um contexto temporal especfico vai, com a inveno da imprensa, ganhar mais mobilidade e circulao. De

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LATOUR, Bruno. Les vues de lesprit. Paris: Culture Technique, N 14. Paris: EHESS, junho de 1985. p.11.

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fato, foi a mdia impressa que inventou a expresso atualidades, relacionada com a sua alta circulao e, correspondentemente, com a sua alta descartabilidade 24. Apesar das diversas aplicaes da gravura terem colocado em movimento as tecnologias de reproduo de textos e imagem, a gerao propriamente dita de imagens inditas por motores e mquinas s vai aparecer mais tarde, com mquinas de pesquisa cientfica. Como parte do se u funcionamento e propsitos, elas traam grficos e registros visuais de fenmenos da natureza e passam a ser as primeiras mquinas produtoras de imagens com uma contigidade objetiva com o mundo palp vel. Elas conservam, at certo ponto, aquela tida como a funo primordial da imagem a de ser um mediador de uma viso de mundo mas so imagens inaugurais no sentido de que, tendo a contig idade com o real metodologicamente assegurada pelo aparato mecnico, so encaradas como dados para estudo cientfico direto. Se no so aparelhos de viso, so aparelhos de registro e coleta de dados que so interpretados na construo de leis e teorias. Diferente dos estudos anatmicos anteriores e dos desenhos de botnica tradicionais que eram reprodues detalhadas de seres imveis e sem vida , nessas imagens comea a ser inserido o tempo e o movimento, quando as reaes de seres vivos so medidas e registradas. Essas m quinas de estudo funcionam quase como interfaces no caso, para a compreenso de fenmenos da natureza , ao representar em sinais as aes e reaes dos objetos de estudo. Mais tarde, na segunda metade do sculo XIX, a mquina fotogrfica e o seu conjunto de tcnicas associadas v conjugar um aparelho de viso objetivo desenvolvido pelos o avanos da tica o sistema de lentes da objetiva com um sistema qumico de registro a emulso de sais de prata usada para tornar uma superfcie sens vel luz , tornando-se o primeiro aparelho simultaneamente de viso e de registro. Suas potencialidades vo ser exploradas, primeiramente, no registro de paisagens e, com a inveno de filmes mais sens veis, em estudos anatmicos, de sinais corporais dos problemas de sade mais variados e, claro, nos retratos,

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curioso perceber que, nesse contexto de refinamento tecnolgico, as primeiras mquinas de produo em srie seriam criadas dentro de um sistema de registro e divulga o do pensamento, a partir de uma tecnologia de conhecimento. At ento, os aparelhos ligados produo de imagens eram mais ferramentas e materiais associados a tcnicas, como no caso do desenho.

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que se tornam mais espontneos, pois no obrigam mais os modelos a manterem-se parados por um longo perodo de tempo. Na medida em que o intervalo de abertura do obturador fica cada vez menor, o intervalo de tempo registrado nas fotos tende ao pontual, isto , ao instantneo. Fotgrafos como Marey e Nadar vo explorar as potencialidades do instantneo nos estudos de decomposio de movimento dos seres vivos e do comportamento humano. Pela sua contigidade com o mundo sensvel e pela sua preciso mecnica e tica, o instantneo considerado um mecanismo seguro de estudo do movimento, o que inicia um processo de pr em movimento as imagens retinianas da cincia, at ento imagens de estados congelados da vida. Antes, tratavam-se de imagens que procuravam descrever a estrutura de cada objeto de forma a torn- la absoluta. A partir da cronofotografia, principalmente, as imagens passam a funcionar em conjunto, serem recombinadas e sobrepostas. So imagens de estados dos corpos em vida e no de dissecaes. As imagens produzidas pela fotografia possuem uma contigidade essencial com o mundo objetivo. Ao contrrio das mquinas de pesquisa anteriores, cujo objeto eram aes e reaes para a construo de perfis de comportamento e funcionamento, o mecanismo de captao da fotografia tem como objeto a imagem retiniana tal como captada pela objetiva monocular, ainda segundo os princpios ticos gerais da perspectiva renascentista. Assim, passamos de um regime do cone, com a pintura, para um regime do ndice, a partir da fotografia e seu contato fotomecnico com as luzes