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    A imagem sagrada na era da reprodutibilidade tcnica

    A IMAGEM SAGRADA NA ERA DA REPRODUTIBILIDADE

    TCNICA: SOBRE SANTINHOS*

    Renata de Castro Menezes

    Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro Brasil

    Resumo: Os santinhos so retngulos de papel cujas faces comportam, de um lado,uma imagem de santo (ou santa, ou santos), e, do outro, textos em que se combinam

    preces e prescries para utiliz-las corretamente, detalhes da vida do santo, propa-

    ganda da grca que imprime o material, etc. Em meu artigo procuro trazer algumas

    reexes sobre as formas de interao (religiosa ou no) que podem se dar em torno

    desse compsito texto-imagem, tais como percebidas ao acompanhar sua circulao

    em trabalho de campo, e uma discusso da simbologia que a eles pode estar associa-

    da, a partir de uma interpretao de textos e imagens.

    Palavras-chave: catolicismo, culto aos santos, materialidade da devoo, religio e

    objetos.

    Abstract: Santinhos (holy cards, or prayer cards) are small rectangular pieces ofpaper with a picture of a saint (or several saints) on one side and text on the other:

    the latter combines prayers and instructions for correct use of the card, details of the

    saints life, advertising for the printing house that made the card, and so on. In this

    article I intend to explore various forms of interaction (religious and otherwise) in-

    volving this text-image composite, including those observed during my eld research,

    and a discussion of the symbology frequently associated with the cards, based on an

    interpretation of both the texts and the images.

    Keywords: Catholicism, cult of the saints, materiality of devotion, religion and objects.

    Verses preliminares deste artigo foram apresentadas e debatidas em distintos eventos organizadospelos professores Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (IFCS/UFRJ), Aparecida Vilaa (MuseuNacional/UFRJ) e Edmundo Pereira (DAN/UFRN). Comentrios estimulantes surgiram ainda do profes-

    sor Fernando Rabossi (IFCS/URFJ). A todos, o meu agradecimento.

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    Introduo: materialidades da devoo

    Durante uma viagem a Santiago de Compostela, em julho de 2009,visitei, no seminrio arquidiocesano de San Martio Pinario, uma exposiointitulada A Imprensa e o Santurio, que demonstrava o impacto do de-senvolvimento das tcnicas grcas no material sobre a devoo ao prprioSo Tiago. A exposio deixava claro que a inveno da imprensa na eramoderna possibilitara a reproduo, para alm da Bblia, de uma literaturacrist especicamente catlica, como catecismos, livros de oraes, devo-cionrios, manuais de liturgia, pronunciamentos de sacerdotes e guias deperegrinao. Havia tambm em exposio diferentes tcnicas de reprodu-o da imagem, utilizadas na multiplicao de estampas dos santos e dostemplos, como a xilograa, a calcograa e a litograa,1 formas artesanais deestamparia, substitudas paulatinamente nos ltimos anos do sculo XIX pormtodos industriais, ligados fotograa, que permitiram a multiplicao deimagens em escala ainda maior.

    A exposio estabelecia uma perspectiva curiosa, pois o senso comumem mim introjetado estava acostumado a pensar na conexo imprensaescritaprotestantismo. Mas a conexo imprensaimagemcatolicismo, alidemonstrada, tambm apontava para rendimentos interessantes, a meu ver

    1 Xilograa: O processo xilogrco consiste em entalhar linhas sobre uma prancha de madeira, pensandoque as partes visveis sero as que estiverem em relevo e que as sem impresso sero as que estaro embaixo relevo. (Xilograa/xilogravura, 2007). Calcograa: Arte de gravar em metal, que se d atravs

    de vrios processos, sendo o mais antigo deles a gravura a buril ou talho-doce, em que a gravao feita diretamente no metal com um instrumento de ao chamado buril. Outros gneros da gravura feitaem metal, que fazem parte da calcograa, so aqueles conhecidos como gua-forte, ponta-seca, gua-tinta, maneira negra e o verniz mole. O termo tambm pode ser usado para nomear o local onde essasimpresses so feitas. (Calcograa, 2010). Litograa: Um mtodo de impresso a partir de imagemdesenhada sobre base, em geral de calcrio especial, conhecida como pedra litogrca. Aps desenhofeito com materiais gordurosos (lpis, basto, pasta etc.), a pedra tratada com solues qumicas e guaque xam as reas oleosas do desenho sobre a superfcie. A impresso da imagem obtida por meio deuma prensa litogrca que desliza sobre o papel. A exibilidade do processo litogrco permite resulta-dos diversos em funo dos materiais empregados: em lugar da pedra, cada vez mais so usadas chapasde plstico ou metal, em particular de zinco. O desenho, por sua vez, altera sua sionomia de acordo como uso de pena, lpis ou pincel. Testes de cor, texturas, graus de luminosidade e transparncia conferem s

    litograas distintos aspectos. (Litograa, 2010).

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    ainda pouco explorados pela antropologia. Pois se a literatura sobre a imagemcatlica imensa,2 pouco se havia indagado sobre as possibilidades abertas ao

    catolicismo pelo surgimento de tcnicas massivas de reproduo da imagem,que baixam custos e facilitam sua circulao.

    Uma srie de perguntas surgiram em torno das implicaes para a ima-gem devocional advindas do fato de ela poder se multiplicar. As funesproselitistas e pedaggicas das estampas eram quase bvias, pela divulgaoe apresentao dos santos, de seus santurios. Mas poderiam haver outrasfunes menos bvias a serem descobertas. Teria a devoo atravs dessasimagens, ou diretamente a essas imagens, caractersticas singulares diante de

    imagens em outros suportes? Em que concepes nativas de agncia e po-der estariam elas embebidas? Seriam vlidas, para as imagens sagradas, asobservaes de Walter Benjamin (1994) sobre a perda da aura pela reproduomecnica? Essas questes me pareceram particularmente relevantes porque jestava atenta para um tipo de material encontrado abundantemente na pesqui-sa de doutorado3 e cuja anlise gostaria de aprofundar: ossantinhos.

    Este artigo traz algumas interpretaes preliminares sobre esses peque-nos objetos de papel, as quais resultam de uma pesquisa, ora em fase ini-

    cial, sobre materialidades da devoo, na qual a vida social dos santinhos(Appadurai, 1990; Kopytoff, 1990) um dos casos analisados. Ressalte-seque, embora relacionado a uma pesquisa inicial, o trabalho , na verdade, odesdobramento de um largo percurso de estudo com aquilo que comumentechamado de catolicismo popular ou culto aos santos, mas que considero maispertinente chamar de antropologia da devoo, para caracterizar uma relao

    2 Uma referncia exaustiva seria impensvel, mas guisa de exemplos de autores que ressoam no debateatual, cito os trabalhos de Hans Belting (1998, 2007), Serge Gruzinski (2004), Victor Turner (1978),Carlo Ginzburg (2001a, 2001b), David Freedberg (1992) e Michael Herzfeld (1990), dentre outros.

    3 A pesquisa A dinmica do sagrado visava analisar as formas de sociabilidade em um santuriocatlico e estendeu-se de 1999 a 2004, compreendendo um trabalho de campo realizado por mim,no primeiro semestre de 2001, e por uma assistente de pesquisa, Alcina Quintela, no segundo semes-tre do mesmo ano. Dessa pesquisa resultaram minha tese (Menezes, 2004a) e algumas publicaes(Menezes, 2004b; 2004c, 2005, 2009), havendo um desdobramento posterior em outras pesquisas

    sobre a antropologia da devoo.

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    especca que procuro compreender etnogracamente.4 Nesse percurso, mui-tas vezes focalizar a anlise em objetos revelou-se um artifcio metodolgico

    para abordar a devoo, j que, nessa rea, limites bvios pareciam se impor observao participante e entrevista. Pois como se pergunta o indizvelou como se observa o invisvel? Muitas vezes preciso aceder a expressesmateriais que visibilizem emoes, entidades, cosmologias, para compreen-der as relaes mais profundas articuladas em torno de elementos de culturamaterial. A capacidade de condensao de determinados objetos que con-centram aes e signicados torna-os pontos estratgicos para a anlise deexpresses religiosas.

    Assim, ao estudar os santinhos, tento transformar uma srie de intuiesetnogrcas em torno deles numa reexo sistemtica. O que pretendo fazer um exerccio interpretativo, trazendo para o centro da anlise pedaos depapel colorido, de carter aparentemente residual ou perifrico, a m deobservar seu rendimento heurstico.

    Apresentando os santinhos

    Os santinhos so geralmente pequenos folhetos impressos em off-set, empedaos de papel couch 150 g de cerca de 10 cm de altura por 5 cm de largu-ra, compostos, de um lado, pela imagem colorida de um santo ou santa, e, dooutro, por um texto, ambos arranjados mais comumente de maneira vertical.Ao longo deste artigo, algumas reprodues de santinhos sero apresentadaspara facilitar a compreenso dos argumentos.

    4 Em um trabalho anterior, tento apresentar uma denio do que est em jogo nessa distino: algumque se identica como um devoto no apenas algum que recebeu alguma graa de um santo, masalgum que se envolveu com ele numa relao permanente, vivida, parafraseando o poeta Vincius deMoraes, como innita enquanto dure. A devoo envolve no apenas pedidos graas agradecimentos,mas um processo de identicao entre o devoto e seu santo, que envolve sentimentos como a amizade,a f e a conana, e a certeza da presena constante do santo na vida do devoto. Quem entrou no registroda devoo adquiriu uma chave de interpretao da prpria biograa, que passa a ser lida como umasucesso de intervenes do santo, de graas e protees que lhe conferiro a felicidade, ainda que estaprecise ser norteada pela conformao. (Menezes, 2009, p. 131-132). Para maiores esclarecimentos,

    creio que a leitura completa desse trabalho pode ser til.

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    O conjunto de santinhos sobre o qual vou me deter resulta de coleta emtrabalho de campo realizado no convento franciscano de Santo Antnio, noLargo da Carioca, Rio de Janeiro, na pesquisa de doutorado j mencionada.Esse corpus encontra-se atualmente em fase de atualizao, tanto atravs doretorno ao convento, na festa do padroeiro, em 2010, como atravs da doaode colegas e alunos e ainda por meio de coletas eventuais feitas quando elesaparecem em lugares no religiosos, como, por exemplo, bancas de jornais,

    consultrios veterinrios, oriculturas. Porm, a base para falar deles so (ain-da) as referncias do convento, obtidas a partir de uma coleta metdica reali-zada no primeiro semestre de 2001.5

    5 Os santinhos obtidos no convento foram coletados em 28 visitas ali realizadas no primeiro semestre de2001, a maioria das quais realizada s teras-feiras, dia da semana destinado ao culto de Santo Antnio,quando a movimentao do convento maior. Mas tambm coletei material na trezena preparatria dafesta do padroeiro e na prpria festa, no dia 13 de junho. Caso um santo aparecesse em dois tipos desantinhos diferentes, isto , representado de maneiras distintas, era recolhido mais de um exemplar no

    mesmo dia. Para maiores detalhes, ver as discusses metodolgicas em Menezes (2004b).

    Figuras 1 e 2. Um santinho de Santa Rita de Cssia, nas faces imagtica e textual (uso no comercial,acadmico, das reprodues).

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    Figura representada no de vezes em que apareceu

    Santo Expedito 32

    Nossa Senhora 10

    Jesus 7

    Santo Antnio 4

    So Judas Tadeu 4

    Treze Almas Benditas 4

    Santa Edwiges 2

    Santa Rita de Cssia 2

    Bem-aventurado Jos Maria Escriv 1

    Pe. Jos Kentenich 1

    Santa Brbara 1

    Santa Luzia (de Viana do Castelo) 1

    Santa Terezinha das Rosas 1

    Santa Terezinha 1

    Quadro 1. Santinhos recolhidos no convento.

    Em sua maioria referidos a santas e santos catlicos, os santinhos que encon-trei no convento representavam guras relacionadas a um universo mais amplodo que o estritamente cannico, pois incluam guras ambguas, como as trezealmas benditas (que alm de serem indenidas, remetem a um sincrtico cultos almas), ou personagens ainda no canonizados, mas em campanha por suacanonizao poca, como o beato Jos Maria Escriv e o Pe. Jos Kentenich.

    Esses santinhos chegavam ao convento depois de um percurso: a maiorparte era comprada aos milheiros, em grcas especializadas,6 que possuem

    pginas na internet para vender esses produtos e fazem sua entrega pelo cor-reio e que, apesar de muitas vezes terem nomes de santo, no tm ligaocom a Igreja. o caso da Grca Santana, Grca Santo Expedito. Tambmpodem ser impressos por editoras catlicas, como Paulinas ou Vozes, masno trabalho de campo, estes apareceram em quantidade muito menor. Quantomais catlica a editora, isto , quanto mais prxima hierarquia religiosa e

    6 Os santinhos recolhidos eram produes da Editora Santa Expedito, Editora TVJ, Grca Todos os

    Santos, Grca Santana e Editora Paulinas.

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    menos autnoma, mais doutrinrio o texto da orao, e h uma restrio dasguras apresentadas a santos canonizados ou a beatos, isto , a personagens

    cujo culto ocialmente permitido pela Igreja. Essa proximidade da grca institucionalidade catlica, no entanto, no pode ser percebida pelo nomeda empresa, pois muitas vezes elas assumem nomes de santo mesmo sendolaicas: preciso localizar seus proprietrios.

    possvel, ainda, comprar os santinhos no prprio convento, em unida-des avulsas, tanto na loja de artigos religiosos do local como nos comerciantesambulantes que cam na rua, junto a seus portes. Mas alm de no seremos mesmos personagens que se encontram nesses diferentes pontos, na venda

    unitria, o aumento de preo percentualmente notvel: cerca de 2.500%.A presena dos santinhos no convento dava-se principalmente enquanto ex-voto: alguns visitantes os traziam para o local e a os deixavam, espalhados empilhas por diversos pontos perifricos, isto , com mais discrio e com menorgrau de controle por parte das pessoas do convento, como o pagamento de umapromessa, como o agradecimento por uma graa alcanada e/ou como meio dedivulgao de uma devoo, para que os interessados os pegassem gratuitamente.

    Os santinhos encontrados tm, como j dito, duas faces, uma imagticae outra textual. combinao de texto e imagem, estou chamando de com-psito. Pensar no santinho em termos de compsito uma tentativa de tratartexto e imagem em relao, como as duas faces da mesma moeda, escapandoda armadilha de privilegiar, a priori, um dos dois lados desse material. Em quemedida essa inteno inicial ser bem-sucedida, creio, uma dvida, pois aseguir sero feitas descries da parte imagtica e da parte textual sequencial-mente e o investimento de pesquisa em cada uma delas ainda diferencial.7

    A face imagticaPrimeiro, a abordagem da fase imagtica. A imagem contida nos

    santinhos pode ser um desenho ou a reproduo fotogrca de uma pea deestatutria.

    7 A intimidade com a anlise da linguagem escrita, falada, gestual j resultou, para alm de refernciasna tese (Menezes, 2004a, 2004b) em artigos sobre o pedido escrito aos santos e sobre a beno de SantoAntnio (ver Menezes, 2004c, 2005). A anlise das imagens, presente de forma preliminar em Menezes

    (2004a, 2004b), s agora comea a se intensicar.

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    A face imagtica refere-se a um santo ou a uma santa, ou a conjuntos desantos, representados atravs de uma certa estereotipia, cujo carter seriaimportante problematizar. O santinho apresenta uma cena caracterstica dosanto a que se refere, a qual est relacionada sua hagiograa e ao conjuntode legendas e mitos que compem sua tradio (Certeau, 1990; Jolles, 1976).Pois um santo uma combinao interessante de histria e estria, agregan-do regimes distintos de verdade que entram em jogo em seu culto (Claverie,

    1990; Foucault, 1996). Assim, elementos de aparncia fsica, vestimentas, eatributos como objetos, animais ou instrumentos de martrio, isto , sinaisadicionados pessoa santa para identic-la, contribuem nessa congurao.

    Algumas imagens trazem atrs de si outras imagens, como aquela deSanto Expedito (Figura 4) que conjuga uma esttua do santo no plano fron-tal com o templo onde ele cultuado hoje numa cidade do estado do Rio deJaneiro como pano de fundo, numa sobreposio (ou fuso) de tempos e espa-os: o tempo e o espao do santo e sua cena hagiogrca originria, o tempo

    e o espao de seu culto atual.

    Figuras 3 e 4. Santo Expedito em duas formas de representao: em desenho e em fotografia de estatutria(uso no comercial, acadmico, das reprodues).

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    ONeil (1968, p. 963, traduo minha) nos lembra que a iconograa um tipo de linguagem a ser decodicada, que permite distinguir um santo no

    panteo catlico e que

    [] quando corretamente compreendida, pode revelar muito sobre sua vida, seusatributos e sua devoo. Interpretaes mais avanadas podem revelar, tambm,a postura espiritual e a orientao teolgica dos produtores [dessa imagem].8

    Ou seja, identicar um santo atravs de sua imagem implica o manejode um conjunto de smbolos, como numa linguagem religiosa que se adquireatravs de uma certa socializao e que envolve a habilidade de manipu-lao de uma srie de cdigos. Por exemplo, na imagem de Santo Antnio,a seguir (Figura 5), podemos destacar alguns elementos que o caracterizam.

    8 No original: Representations of holy persons became a kind of language, which, when correctly unders-tood, might reveal much about the life, attributes, and devotion to the depicted subject: further interpre-

    tation might reveal, as well, the spiritual posture and theological orientation of its makers.

    Figura 5. Santo Antnio (de Pdua ou de Lisboa) (uso no comercial, acadmico, da reproduo).

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    Ao se consultar um dicionrio de simbologia catlica (Ferguson, 1981)e alguns autores que se detiveram em explicar os sinais diacrticos que ca-

    racterizam esse santo, como o prprio ONeil (1968) acima citado, isto , aose recorrer a textos decodicadores, possvel descobrir signicados para osvrios elementos que fazem parte de sua imagem. A ausncia de barba carac-teriza um santo que morreu jovem; o tipo de hbito indica a ordem religiosaa qual o santo pertenceu (no caso, franciscana); o cinto de corda com trs nsexplicita os votos de castidade, obedincia e pobreza que os membros dessaordem professam, o lrio em seus braos indica pureza (sexual); o menino emseus braos Jesus, que em uma das legendas sobre Santo Antnio lhe teria

    sido entregue em conana pela prpria Virgem Maria. Pelo ngulo da fotoque compe a estampa, no possvel perceber, mas muito provavelmente,como em outras imagens do santo, o menino deve estar apoiado em um livroque o santo traz nos braos: um evangelho, ou a Bblia, sinal de que ele umtelogo, um doutor da Igreja.

    A leitura de todas essas camadas agregadas de signicado, no entanto,implica ou um grande grau de conhecimento religioso especco ou, comonesse caso, no recurso a uma bibliograa de apoio, seja no campo litrgico,seja no campo das artes sacras. Em que medida esses cdigos so conhecidosou manejados, no todo ou em parte, pelos adeptos dessa religio, ou mesmopor alguns de seus sacerdotes? Em campo, vi que a simbologia pode reduzir-se a um conjunto de sinais distintivos, sem que seu signicado mais amploseja conhecido. Santo Antnio pode ser ento, como ouvi de um interlocutor,simplesmente o moo sem barba que segura um menino. Estamos diantede nveis de conhecimento diferente, mas tambm de distines nos grausde adeso e pertencimento e, mais ainda, diante de diferentes modalidadesde relacionamento com os santos: muitas vezes, para um devoto, no pre-

    ciso conhecer detalhes biogrcos de seu santo protetor para entregar-se aele. O que necessrio ser capaz de reconhec-lo, identic-lo. O desaopara a continuidade da pesquisa o de analisar o signicado dessas imagensno apenas trabalhando a partir de manuais catlicos, ou de dicionrios, massim recuperando a percepo dos devotos em contextos etnogrcos precisos.Pois se o interesse est na variabilidade de processos de simbolizao e nosdiversos nveis e formas de sociabilidade e de construo de signicado, preciso mapear a diversidade de concepes em torno dos santos e no apenas

    ater-se aos signicados apregoados pela ortodoxia religiosa.

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    Alguns santinhos trazem na frente, sobre a imagem, o nome do santo dereferncia escrito. Como se a imagem no fosse suciente para a identicao,

    ou como se no valesse a pena correr o risco do engano. A funo de apre-sentao do santo ao devoto ca assim explicitada. Carlo Ginzburg (2001b)procurar relacionar essa importncia da imagem a uma longa tradio cristde relacionar o texto visualidade, ressaltando trechos bblicos em que aescomo ver, testemunhar, expor, mostrar, so enfatizadas, dando conotaes deprofecia sobrenatural ao texto, em suas diferentes e sucessivas tradues.

    A face textual

    Quanto face textual do compsito, ela possui formas mais simples ereduzidas e formas mais complexas e completas. O mnimo de texto que existeem um santinho uma orao, considerada especca do santo nele represen-tado. J a forma mais completa era a mais comum de encontrar no conven-to e tambm a mais associada a grcas independentes da Igreja Catlica.Voltemos Figura 2, que apresenta a face textual de um santinho de SantaRita de Cssia, um bom exemplo da forma mais completa. O texto concentra

    discursos distintos, apresentados numa estrutura recorrente: na parte superior,h uma inscrio orao a e o nome do santo a que o santinho se refere.Em seguida, pode haver alguns detalhes de sua vida, indicaes sobre suaespecialidade, a data de sua festa. E pode haver tambm indicaes sobre asituao em que o santo deve ser invocado. No centro da parte textual, e svezes ocupando sua maior parte, h a orao especca do santo, bem comoa indicao da maneira correta de utiliz-la em sua invocao. E geralmenteconclui, no rodap, com a indicao da grca em que foi impresso o material.

    Alguns santinhos trazem ainda explicitamente a referncia de que se trata deex-votos, como o da Figura 2: Em agradecimento, mandei imprimir e distri-bu um milheiro dessa orao, para propagar os benefcios da grande SantaRita de Cssia.

    Sua multivocalidade evidente, mas os diferentes tipos de discurso queo compem possuem demarcadores. As mudanas no emissor e receptor damensagem provocam alterao em pronomes, pessoas e tempos verbais, novocabulrio, no estilo de discurso, enm mas as diferenas tambm so as-

    sinaladas por elementos de diagramao: pargrafos, espaamentos, tamanhos

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    de fonte, negritos, itlicos indicam passagens entre os tipos de texto. Assim,a escrita , num certo sentido, tambm imagem, pois possvel visualizar as

    transies de tema pelas mudanas grcas.9 E se antes vimos que a imagemdo santo pode ter seu nome inscrito, numa espcie de armao explcita desua identidade, deve-se perguntar se isso no aponta para uma relatividadena autonomia da interpretao imagem em relao a um texto, a um ndicedecodicador.

    Como j assinalamos, a orao do santo ocupa a parte central da facetextual do santinho e est presente em todos eles, mesmo nas formas maissimples. O uso do vocativo minha Santa Rita; meu santo Expedito e da

    segunda pessoa do plural, vs, pouco usal no portugus habitualmente faladono Brasil, lembra-nos o quo distante estamos da linguagem do cotidiano,entrando no registro da linguagem sagrada, da prece (Keane, 1997).

    As oraes geralmente no comeam pelo pedido: este vem mais co-mumente embutido em sua parte mdia-nal, aps uma abertura que invaria-velmente lana um apelo ao santo, uma splica. Em vrios casos, h tambmfrases e expresses que promovem a humilhao ritual do suplicante, que res-saltam suas fragilidades e necessidades, ampliando a assimetria entre santo edevoto e justicando o pedido algo que, pela pequenez de quem pede, sema ajuda do santo seria impossvel alcanar. A citao a seguir, extrada da ora-o de um santinho de Nossa Senhora do Desterro, exemplica bem o jogo deproduo de assimetrias que a combinao hiperblica de exaltao (do santo)e rebaixamento (do devoto) capaz de gerar.

    [exaltao da santa:] Bem-aventurada Virgem Maria, Me de Nosso SenhorJesus Cristo, Rainha do Cu e da Terra, advogada dos pecadores, auxiliadorados cristos, desterradora das indigncias, das calamidades, dos inimigos cor-

    porais e espirituais, dos maus pensamentos, das cenas terrveis do dia do juzo,das pragas, das bruxarias, dos malfeitores, ladres, arrombadores, assaltantese assassinos. [rebaixamento do suplicante:] Minha amada Me, eu prostradoagora aos Vossos ps, cheio de arrependimento das minhas pesadas culpas, por

    9 Agradeo colega Bruna Franchetto as referncias, em conversa pessoal, sobre as relaes entre a per-

    cepo da escrita e do grasmo entre os Kuikuro, que inspiraram esse pargrafo.

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    Vosso intermdio, imploro perdo ao bonssimo Deus. [apresentao do pedi-do:] Rogais ao Vosso Divino JESUS, por nossas famlias, para que Ele desterre

    de nossas vidas todos esses males, nos d perdo de nossos pecados e que nosenriquea de sua Divina graa e Misericrdia. Cobri-nos com o Vosso mantomaternal e desterrai de todos ns, todos os males e maldies, e em especial,atenda o pedido que lhe fao agora (pea a graa que deseja). Afugentai de nsa peste e os desassossegos. Possamos por Vosso intermdio obter a cura de to-das as doenas, encontrar as portas do Cu abertas e sermos felizes por toda aeternidade. Amm.

    Destaque-se ainda dessa prece as aes que se demanda da santa: rogar

    por, proteger (cobrir com o manto, desterrar males e maldies, afugentar apeste e o desassossego), atender ao pedido, intermediar a cura das doenas e achegada s portas do cu. Nota-se nessa demanda de comportamento a presen-a da ambivalncia que, em trabalhos anteriores, j havia assinalado quanto gura do santo. Ele ora o intermedirio, ora o taumaturgo. H tambm umjogo entre pedidos genricos e um pedido concreto, determinado, que se queralcanar no momento, quando se abre espao para inserir o pedido do supli-cante (pea a graa que desejar).

    Embora a doutrina ocial da Igreja aponte os santos como mediadoresde graas, essa mesma hierarquia religiosa exige a comprovao de milagresno processo de canonizao. O reconhecimento de que um santo capaz defazer milagres o mantm no domnio de quem pode agir como um taumaturgo,e no apenas como um mediador, um intercessor. nesse horizonte, marcadopor ambiguidades e por ambivalncias, que a gura santa se inscreve.

    Mas h oraes mais disciplinadas, nas quais ortodoxamente o pedido feito a Deus por intercesso de um santo; e primeiro se agradece para depoispedir, como podemos ver nessa orao a Santo Expedito:

    Deus nosso Pai, [comea o agradecimento:] ns vos agradecemos pelo exem-plo de humildade e caridade que destes a santo Expedito, colocando-o sempre aolado dos irmos mais fracos e necessitados.[agora, o pedido:] Ns vos pedimos, Pai, que orienteis, com a vossa graa, todos os nossos pensamentos, palavrase aes. Que possamos tambm, com muita coragem, delidade e prontido, seris aos nossos compromissos com a comunidade e com nossos irmos mais ca-rentes. Queremos ainda vos pedir, por intercesso de santo Expedito, que possa-mos vos servir, com toda a delidade, at os ltimos dias de nossa vida (pode-se

    tambm fazer um pedido especial). Santo Expedito, rogai por ns!

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    Assim, a orao envolve o reconhecimento das capacidades do santo, oenaltecimento de suas virtudes e a marcao intensa de assimetria entre quem

    far um pedido e quem o atender. Esse formato, que insere o pedido em umaetiqueta que o torna adequado, da qual tratei em um artigo anterior (Menezes,2004c), eufemisa o fato de que um santinho tambm um suporte instrumen-tal para a realizao de pedidos ecazes a um santo; um modus operandi, umaespcie de receita que torna o ato de pedir discreto, suave, porque realizado nointerior de determinados parmetros que envolvem a disciplina, a obedinciaa uma sequncia de regras e hierarquias relevantes ao catolicismo.

    H ainda em alguns santinhos descries precisas dos procedimentos a

    serem seguidos para ver os pedidos atendidos. As aes necessrias incluemcombinar a orao do santo a outras, usar velas, fazer gestos especcos comoo sinal da cruz, etc.

    Orao + pai nosso, ave Maria em 9 dias; Vela acesa durante orao; Orao + 7Pai-Nosso, 7 Ave Maria e 1 Credo ao sagrado Corao de Jesus e pelas 7 doresde Maria Santssima; Orao + 1 Pai Nosso, 1 Ave Maria e fazer o sinal daCruz; Orao. Reza-se 13 pais nossos e 13 ave-marias treze dias; Orao + 1 Painosso, 1 Ave-Maria e 1 Glria ao Pai; Orao + trs pai nosso, trs ave-maria e

    fazer o sinal da cruz; Orao + 7 pai-nosso, 7 ave-maria e 1 credo ao SagradoCorao de Jesus. (Orientaes retiradas de vrios santinhos diferentes).

    Nessas receitas de orao, certos nmeros parecem ter mais apelo doque outros 1, 3, 7, 9, 13. Talvez se possa pesquisar sua relao com a nume-rologia bblica, e apostar numa cultura bblica pervasiva, como fez OtvioVelho (1987) em seu artigo sobre a besta-fera.

    H tambm indicaes sobre a situao ideal para usar a orao em ques-

    to, seguida da indicao da especialidade do santo:

    Sempre que voc se sentir s e impotente para resolver determinada situaoe problema, seja de que ordem for, no se desespere. Rezando periodicamentea N. S. do Desterro, voc conseguir afastar Todos os Males Que Possam lheAigir.

    Se voc est com algum PROBLEMA FINANCEIRO de difcil soluo,PEA AJUDA SANTA EDWIGES. Esta Santa a protetora dos Pobres e

    Endividados. (Grifo do texto original).

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    Se voc est com algum problema de difcil soluo, precisa de ajuda urgente,pea esta ajuda a Santo Expedito, que o Santo dos Negcios que precisam de

    Pronta Soluo e cuja invocao nunca tardia.

    Conjugam-se, ento, nos santinhos referncias no apenas a um modo dedizer, mas tambm a um modo de fazer, ou melhor, a um modo especco defazer o dizer. No basta rezar a orao, preciso faz-lo em situaes determi-nadas, de formas precisas, o que aponta para uma composio de fala, gesto econtextos. O santinho contem uma miniliturgia e indica que a prece deve seruma performance, uma combinao de regra, costume e sentimentos postos

    em ao. Estamos, ao mesmo tempo, prximos do clssico de Marcel Mausssobre a prece (Mauss, 1968), e da atual teoria da performance (associaotambm feita por Deremetz, 1994).

    A circulao dos santinhos

    No trabalho de campo no convento, os santinhos eram um dos suportesem que diversos santos e santas se faziam presentes no local, alm de azulejos,quadros, esttuas em altares ou pedestais, medalhas, relevos. Mas, como jdito, eram suportes que chegavam prioritariamente pelas mos de frequen-tadores, que os deixavam para distribuio gratuita, como forma de ex-voto.

    Essa prtica aponta para uma questo curiosa quanto reprodutibilida-de dos santinhos (e voltamos assim a formulaes da abertura deste texto).Se eles so comprados aos milhares, e seu comprador geralmente o faz poruma graa alcanada, com a obrigao de distribu-los para divulgar a devo-o, isso se torna um certo desao: como encontrar mil, ou duas mil pessoas,para entregar os santinhos? A sada deix-los em lugares pblicos, para que

    as pessoas os apanhem, notadamente no interior de templos catlicos, mastambm em lugares inesperados: jornaleiros, lojas de ores, consultriosveterinrios, peixarias, bancos de nibus.10 A reprodutibilidade massiva sem

    10 Os lugares citados para alm de templos religiosos so pontos em que recolhi santinhos nos ltimos me-ses. Segundo os responsveis por esses estabelecimentos comerciais, so clientes que pedem para deixar

    os santinhos para os demais frequentadores pegarem.

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    possibilidade de descarte gera uma infestao de santinhos por diversos pontosda cidade e permite a composio de pantees nos lugares mais inusitados.11

    isso que ocorre no convento de Santo Antnio, e foi em nichos, bancos, altareslaterais numa periferia pouco controlada que encontrei muitos santinhos.

    No entanto, essa prtica, longe de ser estimulada ou tolerada pelos res-ponsveis pelo local, sistematicamente contida, pela retirada desse materialpor voluntrias que ajudam nas missas. Assim, se h uma certa facilidade nacolocao de material basta deposit-lo discretamente em um altar lateral provavelmente ele ser, pouco tempo depois, recolhido. Porm, apesar dasretiradas sistemticas, os santinhos continuavam a aparecer: 30 a 60 minutos

    depois de cada limpeza, l estavam eles, novamente, numa espcie de movi-mento de ondas.Isso me fez pensar numa luta surda, microscpica e cotidiana entre fre-

    quentadores e responsveis pelo templo em torno de concepes de sagradoe de religio. Os santinhos revelam-se bons para pensar nas formas de apro-priao (Certeau, 1990) do lugar por seus frequentadores, pois diferentementedas demais imagens, em suportes mais vistosos ou rgidos, no conseguem serltrados pelo crivo dos frades. Resta-nos buscar compreender o que est emjogo nesse vai e vem de santinhos.

    Para muitos, esse material se qualica como comrcio, crendice, ig-norncia, falsa religio. Uma pessoa que pede alguma coisa a um santo,oferecendo-lhe em troca determinada retribuio, estaria de fato comprando oufazendo uma barganha pela concesso de benesses. As trocas simblicas comos santos chegariam mesmo a ser condenadas como comrcio da salvao, oumercantilizao da f. Buscando os santinhos na internet, encontrei em vriossites debates sobre a adequao de se mandar imprimi-los. Alm de comentriosde evanglicos que condenavam essas prticas, por defenderem que a verdadei-

    ra e nica interveno a de Jesus, para a qual inexistem mediadores, h tam-bm catlicos que condenam os santinhos enquanto inutilidade: melhor doardinheiro aos pobres; melhor ajudar quem precisa, isso no serve para nada.

    11 Lembro aqui, quase como uma anedota, da portaria de servio do Museu Nacional, onde todos os diaspassamos professores, funcionrios e alunos com modernos crachs de controle eletrnico, atravs deuma catraca, tambm eletrnica, que ca ao lado de uma srie de santinhos, colados num suporte de ma-deira, sobre a mesa dos porteiros do museu. Pequenos pantees cotidianos, em certa medida aleatrios,

    mas quase onipresentes

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    Essa crtica foi encontrada no convento. Em campo, ao coletar exem-plares dos santinhos, levei um dia uma repreenso de uma senhora. Ela

    recomendou-me cuidado, que no usasse o santinho de qualquer maneira.Como e por qu? Segundo ela, eu deveria primeiro riscar atrs onde apareceescrito: por uma graa alcanada, mandei imprimir 5.000 exemplares dessaorao. Por qu?

    Porque passa uma ideia errada de que preciso ter dinheiro para imprimir 5 milcpias para conseguir uma graa do santo.[Pergunta:] Por isso vocs retiram os santinhos?

    , nos levamos para as crianas do catecismo riscarem essa parte, depois capronto para usar, a gente deixa pegar.

    A reprimenda da informante foi bastante instrutiva, pois colocou em pau-ta duas questes: a utilidade dos santinhos, que cam prontos para usar, etodos os artifcios que so utilizados para que eles no sejam, simplesmente,descartados.

    A utilidade: seria preciso indagar para que, enm, serve um santinho equal o seu possvel uso. E antes de qualquer acusao de utilitarismo na an-

    lise, apresso-me em enfatizar que estou incorporando esse tema como umaquesto nativa, pois os prprios envolvidos tm essa preocupao. Vimos atagora que h uma dimenso pedaggica, catequtica, informativa, publicitrianesses compsitos. Vimos tambm que eles so ex-votos. Mas do ponto devista de quem os recebe, ou de quem os pega nos ambientes em que so dei-xados, qual a sua utilidade?

    Novamente na internet, encontrei em maro de 2009 um debate no blogSanturio: O que fao com os santinhos que recebo? pergunta a blogueira.

    Resposta de outro internauta: Use como marcador de livro, pode ser umaboa soluo.

    Em campo, outros usos apareceram: guardar na carteira como amuleto algo bastante comum: molham-se os santinhos com a gua benta aspergidapelos frades e depois, sacralizados, eles so guardados nos compartimentosdonde irradiaro proteo.

    Receber um santinho pode ser tambm um sinal: D. Nadir, uma frequen-tadora assdua do convento, relatou-me uma experimentao, poca recente,

    com Santo Expedito:

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    Minha lha Clia queria trocar de emprego. Eu sou muito devota de SantoAntnio, mas resolvi experimentar Santo Expedito, porque eu dei uma esmola

    na sada do metr, e a senhora me deu em troca um santinho de Santo Expedito,ento resolvi experimentar. No quarto dia [depois que pediu], chegou um con-vite para minha lha fazer uma entrevista. Ento mandei imprimir um milheiro[de santinhos], chegou pelo correio, estou indo no banco para pagar o boleto.Vou mandar os santinhos pro lugarejo da minha famlia, no interior do Cear,

    pra minha prima distribuir [porque l no tem dessas coisas].

    O sinal de santo Expedito, mediado pela pessoa que lhe deu um santinho,motivou D. Nadir a experiment-lo. Por sua vez, tendo conseguido a graa do

    santo, mandou imprimir seus santinhos em uma grca, distribuindo-os noCear, tornando-se ela tambm uma divulgadora da devoo entre necessita-dos de imagens impressas.

    A busca por formas de usar os santinhos remete preocupao de evitaro descarte: o que fazer com eles quando os recebemos? Podemos jog-lo fora?Guardamos? Guardamos todos os que recebemos ou s alguns que nos somais simpticos, ou alguns pelos quais temos alguma devoo? Ento, o quefazer para no jog-los fora? At mesmo os que condenam a impresso dos

    santinhos, como a senhora do convento que os retira, no se livram deles comfacilidade: riscam as partes erradas e procuram reaproveit-los.Se h, efetivamente, uma tenso quanto a esse descarte, estaria ela re-

    lacionada a algum medo difuso do castigo divino, ou do castigo do santo,combinado a um interesse tambm difuso por formas de proteo que favore-cem a prtica de guard-los? Poderamos dizer, talvez, que, para aqueles queos guardam por considerar errado jog-los fora, a sacralidade do compsitotranscende a vulnerabilidade do suporte: para esses agentes, a reprodutibilida-de da imagem sagrada no destri sua aura, a coisa reproduzida guarda umafora que ultrapassa o material que a compe. Mais do que uma representao,no sentido das teorias da comunicao e da arte, teramos na imagem sagrada,como ressaltam outros autores, uma forma de presena e potncia (Belting,1998; Ginzburg, 2001a; Vernant, 1973, 1992). Estaramos prximos a um pro-cesso de simbolizao no qual, como diz Otvio Velho (1987, p. 13),

    como se por uma espcie de Carisma, algo do signicado passasse para osignicante, o que demandar na vida prticas aes concretas e ritualizaes

    tendo-o como objeto.

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    Lembro do livro de oraes de minha av paterna povoado de santinhos,mais do que marcadores em um livro, lembranas, isto , marcas objetica-

    das de relaes que povoaram sua vida. Lembro tambm de uma caixinha namesa de cabeceira de minha me, em que os santinhos eram guardados junto aoutros compsitos texto-imagem, inteis e preciosos, como aqueles que anun-ciavam batismos, primeiras-comunhes e falecimentos. Mas essas evocaesj apontam para uma outra etnograa, um outro conjunto de questes

    Consideraes finais

    Finalizando, e por tratar-se de um texto de certo carter programtico,gostaria de apontar para alguns possveis desdobramentos do tema apresenta-do. Se entre as preocupaes da antropologia atual esto, simultaneamente, aproduo de anlises que contemplem a vida social em sua dinmica, em mo-vimento; bem como o interesse pela vida social dos objetos, os santinhos, emsua circulao, podem se constituir num caso bom para pensar essas duasdimenses, associadas a outros temas relevantes, como religio, simbolismo eformas de sociabilidade.

    Uma anlise dos santinhos pode ainda nos levar a renar teorias sociaissobre arte, representao, originalidade, as quais preciso perceber se fazemsentido para as imagens religiosas. Por exemplo, possvel indagar se as no-es de verdadeiro e falso, autntico e inautntico, aplicam-se aos santinhos e,caso se apliquem, poder-se-ia indagar tambm se os critrios usados para es-sas distines seriam os mesmos que os utilizados nos domnios da arte, ou seseria preciso reconhecer-lhes uma lgica especca. E a noo de representa-o, aplicada s anlises de smbolos, signicativa para pensar os santinhos?

    Eles representam o santo, ou o tornam presente em alguma medida?Tambm possvel, atravs dos santinhos, perceber se e em que medida

    as teorias de valor, ou as discusses sobre mercadoria, so aplicveis a objetosreligiosos. Em sendo, seria possvel indagar se a funo-mercadoria dos ob-jetos sagrados se combina funo religiosa, ou se ambas se ofuscam em al-guma medida. Quanto sacralidade, esses santinhos, produzidos em grcas,so objetos religiosos desde sempre ou se tornam religiosos a partir de algumprocesso? Esses so exemplos de algumas das questes que poderiam ser de-

    senvolvidas na continuidade de uma anlise antropolgica sobre os santinhos.

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    O que ressalto que eles j apareceram aqui como elementos capazesde constituir uma cadeia, em que o receptor de hoje se torna o doador de

    amanh, a qual potencialmente est sempre agregando novas pessoas. Issosignica que, se a forma tradicional das cincias sociais pensarem a relaosanto-devoto foi o modelo da dade, isto , da relao didica, os santinhos nos facilitam pens-la em rede, uma rede que sua circulao ajuda a cons-truir e/ou a ativar. Como propem Roberto Orsi (2005) e William Christian Jr.(1991), acredito que seja preciso assumir a ideia da religio como uma redede relaes e interaes envolvendo o cu e a terra, ligando pessoas, santos,anjos, demais personagens da esfera celeste e a prpria Trindade. E incluir

    nessas redes, tambm, as coisas, os elementos da cultura material, dentre asquais os santinhos, sejam como mediadoras dessas ligaes, sejam como seusagentes efetivos.

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