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A (IM)PENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR: uma análise à luz dos princípios constitucionais Leila Eliana Hoffmann Ritt 1 Notas introdutórias Com o advento da Constituição Federal de 1988, as leis infraconstitucionais passaram a ser analisadas à luz dos princípios constitucionais. No caso, pretende-se desenvolver uma análise do art. 3º, inciso VII da Lei 8.009, de 29 de março de 1990 – Lei da Impenhorabilidade do bem de família – que prevê, nas exceções, a possibilidade de penhora do bem de família do fiador. No presente estudo, propõe-se a estudar, no primeiro capítulo, o princípio da supremacia da Constituição Federal de 1988, o qual traz valores e princípios norteadores, que vinculam as leis infraconstitucionais. No segundo capítulo, será feita uma análise geral acerca do fenômeno da Constitucionalização do Direito privado, notadamente o princípio da função social do contrato (e sua função econômica), como instrumento de efetivação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da boa-fé e da justiça social. No terceiro capítulo, será abordado sobre a (im)penhorabilidade do bem de família do fiador – argumentos e justificativas de cada corrente doutrinária e jurisprudencial. 1 Advogada. Especialista em Direito Processual Civil, pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC; Mestranda em Direito, pela mesma Universidade; pesquisadora-membro do Grupo de pesquisa: “A Constitucionalização do Direito Privado”.

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A (IM)PENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR: uma análise à luz dos princípios constitucionais

Leila Eliana Hoffmann Ritt1

Notas introdutórias

Com o advento da Constituição Federal de 1988, as leis

infraconstitucionais passaram a ser analisadas à luz dos princípios constitucionais.

No caso, pretende-se desenvolver uma análise do art. 3º, inciso VII da Lei 8.009, de

29 de março de 1990 – Lei da Impenhorabilidade do bem de família – que prevê, nas

exceções, a possibilidade de penhora do bem de família do fiador.

No presente estudo, propõe-se a estudar, no primeiro capítulo,

o princípio da supremacia da Constituição Federal de 1988, o qual traz valores e

princípios norteadores, que vinculam as leis infraconstitucionais. No segundo

capítulo, será feita uma análise geral acerca do fenômeno da Constitucionalização

do Direito privado, notadamente o princípio da função social do contrato (e sua

função econômica), como instrumento de efetivação dos princípios constitucionais

da dignidade da pessoa humana, da boa-fé e da justiça social. No terceiro capítulo,

será abordado sobre a (im)penhorabilidade do bem de família do fiador –

argumentos e justificativas de cada corrente doutrinária e jurisprudencial. 1 Advogada. Especialista em Direito Processual Civil, pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC; Mestranda em Direito, pela mesma Universidade; pesquisadora-membro do Grupo de pesquisa: “A Constitucionalização do Direito Privado”.

Este estudo, porém, não tem a pretensão de enunciar uma

única conclusão a respeito do tema, tampouco esgota todas as suas facetas, mas

pretendemos lançar alguns questionamentos e considerações de caráter genérico e

introdutório a respeito do assunto, que é de interesse não só dos operadores do

direito, mas da sociedade em geral.

1 O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Antes de abordar acerca do princípio da supremacia ou força

normativa da Constituição Federal, há que se destacar a tese fundamental que

Ferdinand Lassale proferiu em Berlim, em 16 abril de 1862, acera da essência da

Constituição (Über das verfassungswesen), que foi muito bem sintetizada na obra de

Konrad Hesse. Para Lassale, questões fundamentais não são questões jurídicas,

mas sim questões políticas. É que a Constituição de um país expressa as relações

de poder nele dominantes. As relações fáticas resultantes da conjugação desses

fatores constituem a força ativa determinante das leis e das instituições da

sociedade, fazendo com que expressem, tão-somente, a correlação de forças que

resulta dos fatores reais de pode, os quais formam a Constituição real do país. Esse

documento chamado de Constituição (jurídica) não passa, nas palavras do autor, de

um “pedaço de papel” (ein stück Papier). A sua capacidade de regular e de motivar

está limitada à sua compatibilidade com a Constituição real. Do contrário, torna-se

inviável o conflito, cujo desfecho há de se verificar contra a Constituição escrita,

esse pedaço de papel que deverá sucumbir diante dos fatores reais de poder

dominante no país.2 Para o autor, as questões constitucionais não são questões

jurídicas, mas questões políticas, pois expressa as relações de poder nele

dominantes.

Todos os países possuem ou possuíram sempre e em todos os

momentos da sua história uma constituição real e verdadeira. A diferença nos

2 LASSALE apud HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 9.

tempos modernos não são as constituições reais e efetivas, mas sim as

Constituições nas folhas de papel.3 Segundo o mesmo autor, “a verdadeira

Constituição de um país somente tem por base os fatos reais e efetivos do poder

que naquele país vigem e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis

a não se que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade

social”.4

Segundo Hesse, a força normativa da Constituição não reside,

tão-somente, na adaptação a uma determinada realidade. Embora a Constituição

não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição conter-se-

á em força normativa se presentes, na consciência geral, notadamente, na

consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional, não só a vontade

do poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur

Verfassung).5

Na verdade, constata-se que a Constituição ganhou sentido no

plano do direito no século XVIII. Ela é a parte essencial da organização política do

Estado, de acordo com a obra clássica de Montesquieu6 (“O espírito das leis”), na

qual há a previsão de uma estreita relação entre constituição, poder e liberdade.7 A

constituição tem como objeto a organização do governo e de seus órgãos – reflexo

da influência liberal – o que é necessário à limitação do poder.

Na doutrina de Sieyès (1788) – a Constituição é obra do

consentimento dos homens (pacto social). Ela é gerada pela vontade do povo,

expressão coletiva da liberdade natural de cada um de seus integrantes. O povo,

porque é livre, tem o poder de estabelecer o contrato social, tem o poder de

constituir (e limitar) o poder. Tem o poder constituinte. Formada a sociedade pelo

livre acordo entre os homens, é necessário que estes se sujeitem a um poder, a fim

3 LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 2. ed. Rio de Janeiro: Liber Júris, 1988, p. 31.4 LASSALE, op. cit., p. 49.5 HESSE, op. cit., p. 19.6 A teoria da separação dos poderes, proposta por Montesquieu - também conhecida como a “teoria dos freios e contrapesos” - constitui-se num instrumento de limitação entre um poder e outro, bem como possibilita que haja um controle das ações de cada poder.7 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e constituição. 2. ed. ver. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 73-4.

de que os objetivos comuns sejam realizados. Este poder, no entanto, deve ser

constituído pelos homens integrados em sociedade. Esta “constituição” não importa

apenas na organização do Governo, mas também na sua limitação, para a

preservação da liberdade e dos direitos naturais.8

A Constituição Federal é, pois, o espaço que garante as

relações democráticas entre o Estado e a sociedade. Constituição, nas palavras de

Streck, “significa constituir alguma coisa; é fazer um pacto, um contrato, no qual toda

a sociedade é co-produtora. Desse modo, violar a Constituição ou deixar de cumpri-

la é descumprir essa constituição do contrato social”. Ela é a materialização do

contrato social, colocando à disposição mecanismos para a concretização de seus

objetivos.9

Neste sentido, ela é a lei não em decorrência da vontade

arbitrária do poder constituinte, mas da vontade de um poder constituinte limitado

pelo direito, fundado no direito natural. Não é propriamente criação do constituinte,

mas especificação de uma organização no âmbito do justo natural. A constituição

impõe o respeito do Direito e fixa procedimentos ou formalidades para manter os

poderes, e órgãos secundários, na obediência ao Direito.10

Uma constituição, porém, já é o sistema normativo de grau mais elevado na ordenação jurídica do país. Situa-se no vértice das demais fontes formais do Direito. Regula a produção das demais normas da ordem jurídica. Norma e confere validade a todo o ordenamento normativo nacional, cuja unidade, coesão e conexão de sentido encontram nela seu fundamento. As demais normas jurídicas que dela discordarem ou divergirem são ilegítimas, inválidas, inconstitucionais, e devem ser ineficazes juridicamente, em princípio.11

É certo que a Constituição, não é de hoje, o instrumento

político-jurídico mais importante da organização social, sendo sua superioridade

hierárquica amplamente reconhecida. Contudo, seu conteúdo e caracteres sofreram

8 FERREIRA FILHO, op. cit., p. 78.9 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 214-5.10 FERREIRA FILHO, op. cit., p. 82.11 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 55.

alterações ao longo do tempo – fruto das influências de cada momento histórico.12

Portanto, ela está em plena fase de mutação, refletindo a realidade e as conquistas

sociais de cada momento.

A idéia constitucional significa, pois, em síntese, a tentativa de – através de uma lei formal – limitar e controlar o poder político e vincular o exercício desse poder a normas bilateralmente vinculantes para os detentores do poder político e para os cidadãos. Esta viragem deixa transparecer, por seu turno, uma transformação na compreensão da Constituição, que já não se apresenta mais como mera ordenação da vida em sociedade, mas, mais do que isso, é ato constitutivo dessa ordenação, que inaugura uma nova realidade jurídica e política.13

Mas, se as normas constitucionais gozam de supremacia, que

elemento é capaz de conferir sua legitimidade? Segundo Lassale, a diferença entre

a Constituição e a lei é que a primeira, para reger, necessita de aprovação

legislativa, tem que ser também lei. Ela é mais que uma simples lei. Entre os dois

conceitos não existe somente afinidades; há também dessemelhanças. E mais

adiante, o mesmo autor determina que “no espírito unânime dos povos, uma

constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de mais

imóvel que uma lei comum”. A Constituição não é uma lei como as outras, mas é

uma lei fundamental da nação, que deverá informar e engendrar as outras leis

comuns originárias da mesma. A lei fundamental deverá atuar e irradiar-se através

das leis comuns do país. Não se pode decretar outras leis contrárias à lei

fundamental.14

O instrumento que melhor pode ordenar os regramentos sobre competências e atribuições, de uma maneira neutra e racional (sob a ótica liberal), é a lei; entretanto, para que vincule inclusive o Estado ao respeito da mesma, ela deve ter um status diferenciado, capaz de efetivamente obrigar a todos os entes políticos: o de lei constitucional.15

Neste sentido, segundo Hesse, a concretização plena da força

normativa constitui meta a ser almejada pela ciência do Direito Constitucional, o qual

deve explicitar as condições sob as quais as normas constitucionais podem adquirir

12 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como princípio. Barueri, São Paulo: Manole, 2003, p. 1.13 Idem. Ibidem., p. 29.14 LASSALE, op. cit., p. 7-11, passim.15 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 123-4.

maior eficácia possível, propiciando, assim, o desenvolvimento da dogmática e da

interpretação constitucional. Compete, pois, ao Direito Constitucional realçar,

despertar e preservar a vontade da constituição (wille zur verfassung) que,

indubitavelmente, constitui a maior garantia de sua força normativa.16

No Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988,

novas diretrizes e perspectivas foram impostas à vida social em nosso país,

servindo, além disso, como parâmetro para interpretação e aplicação do Direito. Ela

é a norma máxima do Estado, com uma forte tendência social, criando, novas regras

e parâmetros que vinculam o ordenamento jurídico infraconstitucional na sua

totalidade e de forma unânime.

Assim, a Constituição de 1988 pode ser definida como uma

Constituição do Estado Social. Portanto, os problemas constitucionais referentes a

relações de poderes e exercício de direitos subjetivos têm que ser examinados e

resolvidos à luz dos conceitos derivados daquela modalidade de ordenamento. Uma

coisa é a Constituição do Estado Liberal; outra é a Constituição do Estado Social. A

primeira é uma constituição antigoverno e anti-Estado; a segunda, uma constituição

de valores refratários ao individualismo no Direito e ao absolutismo no Poder.17

A Constituição é a organização de alguma coisa. Em tal

acepção, o termo não pertence apenas ao vocabulário do Direito público. Assim

conceituado, é evidente que o termo se aplica a todo grupo, a toda sociedade, a

todo Estado. Designa a natureza peculiar de cada Estado, aquilo que fez este ser o

que é. Evidentemente, nesse sentido geral, jamais houve e nunca haverá Estado

sem Constituição.18

A concretização plena da força normativa constitui meta a ser almejada pela ciência do direito constitucional [...] o direito Constitucional deve explicitar as condições sob as quais as normas constitucionais podem adquirir maior eficácia possível, propiciando, assim, o desenvolvimento da dogmática e da interpretação constitucional. Portanto, compete ao Direito Constitucional realçar, despertar e preservar a vontade da constituição (wille zur

16 HESSE, op. cit., p. 27.17 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 336.18 GUERRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 31. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 10-1.

verfassung) que, indubitavelmente, constitui a maior garantia de sua força normativa.19

Em face da força normativa da Constituição, os direitos

fundamentais exprimem uma ordem de valores que se irradiam por todos os campos

do ordenamento, inclusive sobre o Direito privado, cujas normas têm de se

interpretadas ao seu lume.

Importante destacar ainda, que a Constituição possui

diferenças em relação às demais leis, porque há o requisito de um processo

legislativo mais dificultoso e mais solene para sua aprovação.20 O sentido da norma

brasileira deve ser buscado junto à Constituição Federal, que é a norma máxima do

Estado, a qual vincula todas as demais normas infraconstitucionais. Assim, no

próximo item serão analisadas algumas questões gerais e críticas acerca da

legitimidade da jurisdição constitucional.

2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO

Vale ratificar que há duas concepções de contrato no contexto

hodierno: a clássica ou liberal e a moderna ou social. Neste sentido, a primeira

concepção é aquela do século XIX, que surgiu numa época marcada pelo

liberalismo na economia e individualismo nas relações jurídicas, baseada no

absolutismo da autonomia da vontade, que predominou no Código Napoleônico. Já

pela teoria social dos contratos, há inegavelmente uma intervenção maior do Estado

nas relações contratuais, mitigando a liberdade e a autonomia da vontade em prol

dos direitos fundamentais. Passou-se, assim, de uma concepção de Estado Liberal

para um Estado Social e interventor, que visa, sobretudo, a dignidade da pessoa

humana e o bem-estar social.

19 HESSE, op. cit., p. 27.20 Há a necessidade da criação de um órgão legislativo específico - a Assembléia Constituinte – fruto do poder constituinte originário, que tem como função específica de elaborar a Constituição; a necessidade de um quorum especial, mais rigoroso que aquele exigido pelas leis ordinárias; e a submissão do projeto de constituição à aprovação popular. Cf.: BASTOS, C. R. MEYER-Pflug, S. A. interpretação como fator de desenvolvimento e atualização das normas constitucionais. In: SILVA, Virgílio Afonso da. (org.). Interpretação Constitucional. São Paulo, Malheiros, 2005, p. 149.

A época liberal-individualista-patrimonialista foi caracterizada

pela dicotomia existente entre o Direito público e o Direito privado, pois o primeiro é

o ramo que disciplinava o Estado, sua estruturação e funcionamento, ao passo que

o Direito privado é compreendido como o ramo que disciplina as relações entre as

pessoas privadas, a sua capacidade, estado, família, propriedade, sob o signo da

liberdade.

Numa época em que o individualismo era concebido isoladamente no espaço social e político e a sociedade e o Estado eram considerados dois mundos separados e estanques, cada um governado por uma lógica de interesses própria e obedecendo, por isso, respectivamente, ao direito privado ou ao direito público, não admira que os direitos fundamentais pudessem ser e fossem exclusivamente concebidos como direitos do indivíduo contra o Estado.21

Entretanto, a doutrina liberal dos direitos humanos consolidou

dois sistemas diferentes para a proteção da liberdade humana, ou seja, nas relações

entre Estado e indivíduo – valia a Constituição, enquanto que no campo privado,

prevalecia o Código Civil, que desempenhava a função de constituição da sociedade

civil.22

À Constituição caberia, ao invés, ordenar as relações públicas,

onde participasse o Poder Público, e proteger o indivíduo frente ao poder de império

do Estado. Isto explica que as normas constitucionais não se supunham aplicáveis

às relações entre particulares, dotados de igual capacidade jurídica. Assim, o

paralelismo entre o direito civil e o direito constitucional fica representado por duas

“Constituições”: a Constituição era dirigida à disciplina da vida pública, ao passo que

o Código civil disciplina as relações privadas, sendo reconhecido, portanto, como a

Constituição privada, baseada na propriedade e no contrato.23

Este era o denominado “modelo da incomunicabilidade”, ou

seja, Constituição e Código Civil andavam paralelos, como mundos que não se

tocavam senão sob o aspecto formal. Afora esses pontos de contato formais, os dois 21 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Reflexões histórico evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Organizador) Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 271.22 SARMENTO, op. cit., p. 27.23 NEGREIROS, Teresa. A teoria do contrato..., op. cit., p. 49.

principais estatutos normativos da vida na cives pouco se relacionavam:

configuravam campos diversos (um, o estatuto do Estado e do homem político,

outro, o estatuto da sociedade civil e do cidadão-proprietário. Os objetivos eram

diversos, como diversas eram as matérias que continham; conformavam dois

mundos apartados, e apartados eram também valorativamente, à constituição

cabendo tratar de interesse do Estado, ao Código Civil, cuidar dos interesses do

indivíduo.24

Na verdade, a clássica dicotomia existente entre o Direito

público e o Direito privado foi derrubada, devido à influência dos princípios

constitucionais na seara privada. Isto foi possível devido à força normativa da

Constituição.25 Assim, o poder público distancia-se da sua posição anterior,

caracterizada pelo absenteísmo na esfera econômica, e passa a assumir um papel

mais ativo, ou seja, o Estado Liberal transforma-se no Estado Social, preocupando-

se não apenas com a liberdade, mas também com o bem-estar do cidadão. A

intervenção do Estado nas relações contratuais recebeu o nome de dirigismo

contratual.26

Desta forma, o dirigismo contratual incide nas relações

contratuais de forma mais indireta, à medida que procura, pelo poder do Estado,

equilibrar as relações contratuais na busca da justiça contratual. Nesta perspectiva,

segundo Lobo, o estado pode fazer valer o dirigismo Contratual por três vias

distintas: o dirigismo judicial – feito por meio de decisões do Judiciário; o dirigismo

24COSTA, Judith Martins. Os direitos fundamentais e a opção culturalista do novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Organizador). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 65-6.25 A partir daí assiste-se a um crescente intervencionismo estatal em prol da parte mais fraca das relações sociais. O Direito do Trabalho, por exemplo, desmembra-se do Direito Civil, a fim de regular a matéria trabalhista de forma mais minuciosa e protetiva ao trabalhador- parte mais fraca.26 Neste sentido, importante mencionar que, apesar de serem tratados como sinônimos, os conceitos de constitucionalização do Direito privado e de publicização do Direito Civil não são sinônimos. A segunda expressão é o processo de intervenção estatal, caracterizada também pelo dirigismo contratual, principalmente no âmbito do Poder Legislativo, limitando a autonomia privada, a fim de proteger a parte hipossuficiente da relação, enquanto que a constitucionalização do Direito Civil é mais do que um critério hermenêutico, pois constitui etapa mais importante do processo de transformação ou de mudanças de paradigmas do Estado Liberal para o Estado Social. Cf. LOBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. http://www.jus.com.br. Acesso em 17 de outubro de 2005.

legislativo – feito por meio das leis; e o dirigismo administrativo – feito pelos setores

pertencente à Administração.27

Outra influência direta do fenômeno da Constitucionalização

do Direito privado são os microssistemas. O legislador teve que fazer uso dessas

leis excepcionais, “de emergência”. O Código Civil era dotado de uma idéia de

completude, de exclusividade. Essas leis extracodificadas corroboravam o papel

constitucional do Código, permitindo que situações não previstas fossem reguladas

excepcionalmente pelo Estado. A legislação de emergência pretendia-se episódica,

casuística, fugaz, não sendo capaz de abalar os alicerces da dogmática do Direito

Civil. Esta é a primeira fase da ação intervencionista do Estado, que teve início logo

após o Código Civil de 1916.28

Inegavelmente, a legislação especial é instrumento dessa

profunda alteração social. O Código Civil preocupava-se me garantir as regras do

jogo, ou seja, a estabilidade das normas, ao passo que as leis especiais as alteram,

a fim de garantir os objetivos sociais e econômicos definidos pelo Estado. O Poder

público passa a intervir, desenvolvendo programas sociais, valendo-se do dirigismo

contratual. O legislador busca atender as demandas sociais. Fala-se, então, de uma

“orgia legiferante”.29

Assim, com a fragmentação do Direito privado, passa-se de

um sistema monolítico (monossistema), representado pelos códigos totalizantes do

século XIX, para um polissistema ou plurissistema. Essa é a chamada “era dos

estatutos”, que demonstra a insuficiência do Código Civil para regular determinadas

relações jurídicas do âmbito privado, que passam a exigir uma disciplina especial.

Esse longo percurso histórico, cujo itinerário não se poderia aqui palmilhar, caracteriza o que se convencionou chamar de processo de descodificação do direito civil, com o deslocamento do centro de gravidade do direito privado, do Código Civil, antes um corpo legislativo monolítico, por isso mesmo chamado de monossistema, para uma realidade fragmentada pela pluralidade de estatutos autônomos. Em relação a estes o Código Civil perdeu qualquer capacidade de influência normativa, configurando-se um

27 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Dirigismo Contratual. Revista de Direito Civil, Imobiliário e Agrário e empresarial, São Paulo, v. 52, abr.-jun, 1990, p. 65.28 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 4-5.29 TEPEDINO, 2004, op. cit., p. 7.

polissistema, caracterizado por um conjunto crescente de leis tidas como centros de gravidade autônomos e chamados, por conhecida corrente doutrinária, de microssistemas.30

Com efeito, o paralelismo entre o Direito Civil e o Direito

Constitucional – como se dois mundos separados e distanciados fossem – passou a

dar lugar à convergência, em que a Constituição conquistou a condição de suprema

fonte do direito, tanto no âmbito público como no privado. Este fenômeno também é

conhecido como a “força normativa da Constituição”.31

O Código Civil deixa de ser a Constituição de Direito privado.

Os textos constitucionais definem princípios relacionados a temas antes reservados

exclusivamente ao Código Civil e ao império da vontade, como a função social da

propriedade, os limites da atividade econômica, a organização da família, matérias

típicas do direito privado, passam a ser vistos sob a ótica constitucional. O próprio

Direito Civil, através da legislação extracodificada, desloca sua preocupação central

– reservada ao indivíduo – para as atividades por ele desenvolvidas e os riscos

delas decorrentes.32

Assim, os contratos passaram a ter uma concepção social,

com a harmonização entre os interesses privativos dos contratantes e os interesses

de toda coletividade. O Direito Civil Constitucional pode ser definido como o

sistema de normas e princípios normativos institucionais integrados na Constituição, relativos à proteção da própria pessoa e nas dimensões fundamentais familiar e patrimonial, na ordem de suas relações jurídicas privadas gerais, e concernentes àquelas outras matérias residualmente consideradas civis, que tem por finalidade fixar as bases mais comuns e abstratas da regulamentação de tais relações e matérias, as quais podem ser eventualmente aplicadas de forma imediata ou podem servir de marco de referência da vigência, validade e interpretação da normativa aplicável ou de pauta para seu desenvolvimento.33

30 TEPEDINO, Gustavo. Problemas de Direito Civil – Constitucional. In: ______ (coordenador). O Código civil, os chamados microssitemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. Renovar: Rio de Janeiro, 2001, p. 5.31 A expressão “A força normativa da Constituição”, que também é conhecida como “die normative Kraft der Verfassung”, dá título à aula inaugural que Konrad Hesse proferiu na Universidade de Freiburg, em 1959, traduzida para o português por Gilmar Ferreira Mendes.32 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, op. cit., p. 7.33 FLOREZ-VALDES apud LORENZETTI, op. cit., p. 253.

Essa mudança de paradigma desencadeou-se por meio da

implementação de princípios constitucionais no ordenamento privado. Ao invés da

autonomia da vontade e da igualdade formal, sobrepõem-se os interesses de

proteção de uma população que aguarda providências e prestações estatais. Estes

valores, que estavam centrados no Direito Civil, passam a constar nas

Constituições.

Na verdade, a Constituição passou a ser a lei máxima do

Estado, que vincula o Direito infraconstitucional a observar os seus ditames. O

princípio máximo a ser obedecido por todos os ramos do direito é o da dignidade da

pessoa humana, diante de uma mudança de concepção do homem-proprietário,

passando a receber a efetiva tutela do Estado o homem detentor de dignidade.

2.1 A função social do contrato como princípio

Inegavelmente, os princípios à época liberal diferem bastante

dos princípios atuais no que se refere ao seu conteúdo e objetivos. Na visão

clássica, três eram, basicamente, os princípios fundantes da disciplina do direito

contratual. Tratava-se do princípio da liberdade das partes (ou da autonomia da

vontade), que compreende a plena liberdade de contratar, do que contratar e de com

quem contratar. Indiscutivelmente, a autonomia da vontade foi a base de um

conceito absoluto, constituindo-se num instrumento de afirmação econômica da

classe burguesa.

Nesta fase predominavam também os princípios da força

obrigatória do contrato (pacta sunt servdanda ou da intangibilidade dos contratos) e

do princípio da relatividade de seus efeitos, ou seja, o contrato não prejudica nem

favorece terceiros, além das partes contratantes. Para alguns autores, haveria de se

acrescentar ainda o princípio do consensualismo ou da supremacia do interesse

público. Hoje, porém, outros princípios foram inseridos pela ordem constitucional,

como a boa-fé objetiva e a função social do contrato. A função quer dizer "papel a

desempenhar", "obrigação a cumprir, pelo indivíduo ou por uma instituição”. E social

qualifica o que é "concernente à sociedade", "relativo à comunidade, ao conjunto dos

cidadãos de um país". Logo só se pode pensar em função social do contrato,

quando este instituto jurídico interfere no domínio exterior aos contratantes, isto é,

no meio social em que estes realizam o negócio de seu interesse privado.34

A partir da implementação do princípio da função social do

contrato no Código Civil, constata-se que nas relações contratuais interessa não

somente a situação das partes, mas também deve ser levado em consideração a

coletividade (terceiros). Assim, se uma das partes for prejudicada com uma cláusula

que torne o cumprimento do contrato excessivamente onerosa, levando a parte ao

empobrecimento, a lei determina a resolução do contrato ou a revisão de seus

termos, a fim de restabelecer o equilíbrio contratual. Neste caso, podem ser

aplicados os princípios da boa-fé objetiva e/ou a teoria da imprevisão.

Na realidade, o negócio jurídico tem relevante papel na ordem

econômica indispensável ao desenvolvimento e aprimoramento da sociedade. Os

terceiros também têm direito de evitar reflexos danosos e injustos que o contrato,

desviado de sua natural função econômica e jurídica, possa ter na esfera de quem

não participou de sua pactuação.35

Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a função social não se

apresenta como meta do contrato, mas como limite da liberdade do contratante de

promover a circulação dos bens patrimoniais (Código Civil, art. 421)36. Mas como um

limite que interfere profundamente no conteúdo do negócio, pelo papel importante

que o contrato tem de desempenhar na sociedade.37 Para que o contrato atinja a sua

função social deve haver uma ponderação de valores, através do princípio da

proporcionalidade38, a ser realizada pelo juiz.34 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 13.35 THEODORO JÚNIOR, op. cit., p. 30.36 O Art. 421 determina que: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.37 THEODORO JÚNIOR, op. cit., p. 99-100.38 Não é objeto central deste estudo a análise do princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsgrundsatz), porém, pela sua relevância e atualidade, podemos destacar, em síntese, que o mesmo significa um axioma (Grundzatz), que possui como subprincípios a adequação (Geeignetheit), a necessidade ou medida mais benigna (Erforderlichkeit) e a proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit im engeren Sinne), que é a ponderação propriamente dita. Cf.

A função social do contrato deve ser extraída do caput do art.

170 da Constituição Federal39, de modo que os contratos devem estabelecer-se

numa ordem social harmônica, visando inibir qualquer prejuízo à coletividade. Isso

porque os contratos, como principal instrumento de circulação de riquezas, exercem

influência em dois níveis, ou seja, no intrínseco (entre as partes), e no extrínseco

(em face da coletividade/bem comum). Assim, tem a função de promover a

igualdade, o equilíbrio e a justiça contratual.

2.2 A função social do contrato e a função econômica

Em primeiro lugar, há que se esclarecer que a função social do

contrato e a função econômica do contrato são coisas distintas, e devem coexistir

harmonicamente. Segundo Bierwagen, o contrato possui três principais funções:

uma econômica, pois é instrumento de circulação de riquezas e difusão de bens;

outra regulatória, pois através deste instrumento são constituídos direitos e

obrigações; e por fim, social – dirige-se à satisfação de interesses sociais.40

Não se pode olvidar, que a função social que se atribui ao

contrato não pode ignorar sua função primária e natural, que é a econômica. Ao

contrato cabe uma função social, mas não uma função de "assistência social". Por

mais que o indivíduo mereça assistência social, não será no contrato que se

encontrará remédio para tal carência. O instituto é econômico e tem fins econômicos

a realizar, que não podem ser ignorados pela lei e muito menos pelo aplicador da

lei.41

STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 210.39 Art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III – a função social do contrato;40 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 41.41 THEODOR JÚNIOR, op. cit., p. 98.

Originariamente, o contrato surgiu como um instrumento de

concretização da vontade das partes, tendo por objetivo a circulação de riquezas,

motivo pelo qual possui estreita relação com a propriedade. Com o fenômeno da

constitucionalização do direito privado e com a influência direta dos princípios

constitucionais, o contrato passou a ter uma função a mais além da circulação de

riquezas, desempenhando, precipuamente, um relevante papel social.

3 A (IM)PENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR: uma análise à luz dos princípios constitucionais

No contexto atual está em destaque o princípio da

vinculatividade e da supremacia da constituição Federal, que prevê uma série de

princípios valorativos, com destaque à dignidade da pessoa humana. No caso, a lei

8.009 de 29 de março de 1990, surgiu com a finalidade de proteger o chamado “bem

de família”, ao estabelecer a impenhorabilidade da casa residencial própria do

devedor.42

A regra prevista no Processo Civil dispõe que o patrimônio do

devedor constitui a garantia comum dos seus credores, consoante o disposto no art.

591: “o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os

42 O texto legal assim considera: "O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei". As exceções, ou seja, as hipóteses em que a penhora era permitida - eram seis: I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel; III - pelo credor de pensão alimentícia; IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens. Note-se que o inciso V era de nítida proteção às instituições bancárias. Entretanto, em 18 de outubro de 1991, o presidente Fernando Collor sancionou a lei federal nº 8.245, que dispôs sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes, sendo que em seu art. 82 acrescentou o inciso VII às exceções de penhorabilidade da lei nº 8.009/90, permitindo a constrição judicial do imóvel residencial para garantir o pagamento decorrente de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

seus presentes e futuros.” Neste sentido, subentende-se que a lei refere-se aos

bens suscetíveis de execução forçada43 (da penhora à alienação em hasta pública).

A demonstração direta e mais notória desse zelo pela

permanência da responsabilidade patrimonial reside nos institutos jurídicos da

fraude contra credores e a da fraude de execução. Os credores, neste contexto,

possuem interesse juridicamente protegido. A fiança não deixa de ser uma garantia

a mais aos credores. Portanto, a seguir abordar-se-á acerca dos aspectos gerais do

bem de família, seu conceito e conteúdo.

3.1 O bem de família: aspectos gerais

Em relação ao bem de família, o Código Civil de 2002 traz as

seguintes inovações: a) o bem de família é instituído pelos cônjuges, por entidade

familiar ou por terceiros44; b) pode abranger além do imóvel residencial com suas

pertenças e acessórios, valores mobiliários, cuja renda seja destinada à

conservação do imóvel e ao sustento da família – art. 1712; c) desde que a soma de

tais valores não exceda ao valor do imóvel – art. 1713; d) desde que a soma total da

parcela de patrimônio instituída como bem de família não ultrapasse 1/3 (um terço)

do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição – art. 1711. Há, além disso, a

necessidade de escritura pública e de registro, assim como a inalienabilidade do

43 A partir da lei Poetelia Papiria a execução passou a ser patrimonial e não mais pessoal. Até hoje este princípio impera em nossa legislação, e só em casos excepcionais é permitida a prisão do devedor insolvente, conforme prevê a Constituição Federal de 1988, em seu Art. 5º, inciso LXVII: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.” Segundo Monteiro: “Primitivamente, o devedor respondia com o próprio corpo pelas obrigações assumidas. Estava ele então sujeito a duríssima execução corporal, por intermédio da manus injectio. A situação do devedor impontual era análoga à do escravo, exposto à vingança do credor sobre a própria pessoa, em detrimento da sua liberdade e até da vida. Com o advento da famosa lei Potelia Papiria, inspirada em altos sentimentos humanitários, a execução transferiu-se do corpo do devedor para o seu patrimônio (...). (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – parte geral. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 225).44 Neste último caso, a eficácia da instituição fica sujeita à aceitação expressa dos cônjuges ou da entidade familiar por ela beneficiada, conforme o disposto no art. 1.711 do Código Civil: “Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial”.

bem de família, conforme o disposto na Lei de Registros públicos – Lei 6.015/73. A

publicidade tem em vista a proteção a credores.45

Neste sentido, consoante o disposto na Lei 8.009/90, tem-se

que: a) o imóvel residencial próprio do casal ou entidade familiar é impenhorável e

não responde por qualquer dívida contraída pelos cônjuges e pelos pais ou filhos

que sejam seus proprietários e nele residem, salvo nas hipóteses previstas na lei –

art. 1º; b) a impenhorabilidade compreende o imóvel, com as construções,

plantações, benfeitorias, equipamentos e móveis que guarneçam a cada, desde que

quitados – parág. único; c) excluem-se os veículos de transporte, as obras de arte e

os adornos suntuosos – art. 2º; d) em caso de imóvel locado, a impenhorabilidade

refere-se aos bens móveis – art. 1º, parág. único; e) a impenhorabilidade é oponível

em qualquer processo de execução, com exceção dos incisos I a VII, do art. 3º; f)

não se beneficia o devedor de má-fé, com em caso de insolvência, adquirir um

imóvel mais valioso e transferir para lá a sua residência – art. 4º; g) neste caso,

poderá o juiz anular a venda, ou transferir a impenhorabilidade para a moradia

familiar anterior, de forma a liberar o imóvel mais valioso - art. 4º, §1º; h) quando a

residência familiar for imóvel rural, a impenhorabilidade se restringirá à sede da

moradia, com os respectivos bens móveis – art. 4º, §2º46; i) residência, para o efeito

de impenhorabilidade, é o único imóvel utilizado pelo casal ou entidade familiar para

moradia permanente – art. 5º; j) se o casal ou entidade familiar possuir vários

imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor

valor, salvo se outro tiver registrado, para este fim, no Cartório de Registro de

imóveis – art. 70 do Código Civil.47

Neste diapasão, constata-se que há um confronto entre as

disposições do Código Civil de 1916 – liberal-individualista e patrimonialista – e a Lei

8.009/90 – mais humana, social e protetiva ao bem de família. Isso demonstra que

45 Há que se observar que a Lei 8.009/90 não torna o bem de família inalienável, pois o caráter de impenhorável resulta da destinação do imóvel, prescindindo da declaração de seu proprietário em forma de escritura pública registrada no Cartório de Registro de imóveis. Cf. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 439.46 A pequena propriedade rural é impenhorável, conforme o disposto no inciso XXVI, do art. 5º da Constituição Federal: “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;”.47 NEGREIROS, op. cit., p. 439-440.

há uma ruptura com o modelo tradicional, notadamente diante da moderna teoria

contratual, que prevê a observância dos princípios constitucionais.

Assim, no conceito de bem de família insere-se a o casal ou

entidade familiar, em que merece proteção, inclusive, a pessoa solteira48, conforme a

orientação de Negreiros: “tende-se a incluir nesta categoria as pessoas que morem

sem família no prédio que seja o seu único imóvel”.49 Nota-se, no que se refere ao

termo “pessoas” que a doutrina e a jurisprudência vem ampliando o seu conceito,

haja vista que qualquer pessoa precisa de um lar para morar (direito à moradia).50

Apesar da proteção conferida ao bem de família, há hipóteses

que não se enquadram nesta modalidade, como é o caso do bem de família do

fiador, que se inclui numa das exceções previstas na lei, sendo que a seguir, será

estudada a sua (in)constitucionalidade.

3.2 A (im)penhorabilidade do bem de família do fiador

Inicialmente, pode-se considerar que no contexto atual, há

duas correntes de pensamento: uma, orienta-se no sentido da possibilidade de

penhora do bem de família do fiador; a outra, critica esta possibilidade, em face da

prevalência dos direitos humanos e fundamentais previstos na Constituição Federal

de 1988, violando, em especial, o princípio da isonomia entre o devedor principal e o

fiador, além de significar uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana -

princípio fundamental máximo do Estado Democrático de Direito.

48 Neste sentido: REsp. nº 159.851/SP, 4º Turma, Rela Min. Ruy Rosado de Aguar, v. u., j. 19.03.98, DJ 22.06.98). O Supremo Tribunal de Justiça reconheceu, inclusive, a aplicação do dispositivo “à pessoa”, quer seja solteira, casada, viúva, separada oiu divorciada, consoante o disposto no REsp. nº 182.223/SP, 6º Turma, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, v. u., j. 17.12.98, Data do julgamento de 10.05.99).49 NEGREIROS, op. cit., p. 452.50 Neste sentido, ver REsp. 450.989/RJ, 3º Turma, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, v. u., j. 13.04.2004. Data do julgamento de 07.06.2004).

Portanto, uma das exceções à impenhorabilidade do bem de

Família está prevista no art. 3º, inciso VII da Lei 8.009/90 cumulada com o art. 82 da

Lei 8.245/91 – Lei do Inquilinato. A respeito dessa questão, divergem tanto a

doutrina quanto a jurisprudência acerca da sua (in)constitucionalidade dessa lei,

principalmente, em face do princípio da função social do contrato.

Como se há de verificar, a teoria da inconstitucionalidade deste

artigo ainda enfrenta resistências, haja vista que no Brasil, infelizmente, não há

tradição constitucionalista, motivo pelo qual a observância dos ditames

constitucionais ainda é muito tímida. Está é uma questão de cultura a ser superada,

e que depende da atuação dos operadores do Direito, em especial dos juízes,

promotores e advogados em adotar a teoria constitucional, notadamente a que prevê

a função social do contrato. Esta resistência pode ser facilmente constatada nas

jurisprudências, que ainda se orientam no sentido de que a penhora do bem de

família decorrente de fiança locatícia é plenamente possível.51

Em determinadas decisões, o inciso VII, do art. 3º da Lei

8.009/90 é considerado plenamente constitucional, o que autoriza a possibilidade de

penhora do bem de família do fiador. Neste sentido, seguem as seguintes decisões:

Locação – Fiança – Penhora – Bem de família. Sendo proposta a ação na vigência da Lei 8.245/1991, válida é a penhora que obedece seus termos, excluindo o fiador em contrato locatício da impenhorabilidade do bem de família. Recurso provido. 52 (grifo nosso)

Execução – Penhora – Bem de família – Fiador – Inconstitucionalidade do art. 3.º, inciso VII, da Lei 8.009/1990 – Não reconhecimento. Não é inconstitucional a exceção prevista no inciso VII do art. 3.º, da Lei 8.009/1990, que autorizou a penhora do bem de família para a satisfação de débitos decorrentes de fiança locatícia.53 (grifo nosso).

LOCAÇÃO. FIANÇA. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. EXCEÇÃO. ARTIGO 82, LEI 8.245/91. ARTIGO 3º, LEI 8.009/90. NOVA REDAÇÃO. O ordenamento jurídico pátrio possui como regra a

51 Neste sentido, ver outras decisões: REsp 539.982 - SE, 6ª Turma, STJ. Apelo desprovido. (Apelação Cível Nº 70009780271, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vicente Barrôco de Vasconcellos, Julgado em 20/10/2004). REsp 196.452/SP, 5ª Turma, Rel. Min. EDSON VIDIGAL, DJ de 19/06/2000. REsp 120.806/RJ, 6ª Turma, Rel. Min. VICENTE LEAL, DJ de 26/04/1999.52STJ – REsp 299663/RJ – j. 15.03.2001 – 5.ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, Data do julgamento 02.04.2001, p. 334.53 2.º TACSP, Ap. c/ Rev. 656.658-00/9 – 1.ª Câm. – Rel. Juiz Vanderci Álvares – j. 27.05.2003,

impenhorabilidade do bem de família. Porém, com as disposições trazidas pela Lei 8.245/91, em seu artigo 82, que não confere ao referido bem, aindaque seja o único, o caráter da impenhorabilidade, nova redação foi dada ao artigo 3º da Lei 8.009/90, mormente pela introdução do inciso VII em seu rol. Configura-se válida a penhora do bem de família para garantir débitos decorrentes de fiança locatícia. Precedentes do STJ. Esta Corte tem como recomendação mais adequada a orientação segundo a qual o bem, se for indivisível, será levado por inteiro à hasta pública, cabendo à outra metade proprietária, 50% do preço alcançado.54 (grifo nosso)

Sem embargo, a corrente tradicional confere ao devedor

principal - o locatário – o benefício da impenhorabilidade, ao passo que o seu fiador

pode ter o seu bem penhorado. Os defensores da penhorabilidade do bem de família

do fiador alegam que os fiadores estão plenamente conscientes da possibilidade de

penhora, até porque não se admite o desconhecimento da lei, conforme o disposto

no art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil.55 Portanto, as exceções devem ser

respeitadas. Além disso, a alegação de que esta medida fere os direitos previstos

constitucionalmente, gera, de certa forma, muita insegurança contratual, ao retirar do

contrato a força de lei entre as partes.

LOCAÇÃO. FIADOR QUE PAGA A DÍVIDA AO LOCADOR. SUB-ROGAÇÃO LEGAL. EXECUÇÃO CONTRA O LOCATÁRIO-AFIANÇADO. BEM DE FAMÍLIA. PENHORA. IMPOSSIBILIDADE LEGAL. 1. A impenhorabilidade do bem de família é regra, somente cabendo as exceções legalmente previstas. Nos termos da Lei nº 8.009/90, art. 3º, VII (incluído pela Lei nº 8.245/91, art. 82), é possível a penhora do bem de família como garantia de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. 2. O fiador que paga integralmente a dívida a qual se obrigou, fica sub-rogado nos direitos e garantias do locador-credor. Entretanto, não há como estender-lhe o privilégio da penhorabilidade do bem de família em relação ao locatário-afiançado, taxativamente previsto no dispositivo mencionado, visto que nem mesmo o locador o dispunha. 3. Recurso conhecido e provido.56 (grifo nosso).

A decisão do Supremo Tribunal Federal, inclusive, foi no

sentido de considerar a penhora do bem de família do fiador plenamente

constitucional57, pois a falta de fiança torna inviável a locação. Desta forma, pode ser

afetada a dignidade e o direito fundamental à moradia de milhares de inquilinos, que

54 REsp 583.484/GO, 6ª Turma, Rel. Min. PAULO MEDINA, DJ de 29/03/2004.55 Art. 3o Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.56 REsp 255663 / SP ; RECURSO ESPECIAL. 2000/0037792-9. Rel. Ministro EDSON VIDIGAL. T5 - QUINTA TURMA. Data do julgamento em 29/06/2000. Data da publicação DJ 28.08.2000 p. 125.57 Em 08 de fevereiro de 2006, houve o julgamento de um recurso extraordinário (nº 407688), do Supremo Tribunal Federal, em que a decisão, por maioria, conheceu e negou provimento ao recurso que trata justamente sobre a penhora do bem de família do fiador. Este julgamento reconheceu a penhorabilidade do imóvel do fiador. Mais detalhes no site: http://WWW.stf.gov.br.

necessitam deste tipo de garantia. Além disso, a fiança é considerada uma das

principais formas de garantia aceita no direito pátrio.

No entanto, uma pequena parcela, orienta-se no sentido de

considerar inconstitucional o inciso VII, do art. 3º da Lei 8.009 de 1990, introduzido

pela Lei 8.245 de 1991, eis que não foi recepcionado pelo art. 6º da Constituição

Federal, conforme a redação dada pela Emenda Constitucional de nº 26/2000. O

Supremo Tribunal Federal, em decisão inédita no país, considerou-o

inconstitucional:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR. IMPENHORABILIDADE. Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora “por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”: sua não- recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido. 58 (grifo nosso).

A partir da análise dessas decisões, pode-se visualizar o

princípio da função social do contrato, diante do entendimento favorável à

impenhorabilidade do bem de família do fiador, que leva em consideração o princípio

da dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à moradia, previstos

constitucionalmente. Na verdade, os valores existenciais referentes à habitação

como direito fundamental, são possíveis no plano prático, através do uso de

cláusulas gerais, com amplo impacto na leitura da norma infraconstitucional.

Não se pode olvidar, que com a penhora do bem de família do

fiador, também há uma violação direta ao princípio fundamental máximo da

dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III)59 e do direito à moradia (art. 6º),

58 REsp. 352.940/SP, de 25 de abril de 2005. Rel. Min. Carlos Velloso.59 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana;

ambos previstos constitucionalmente.60 O próprio conceito de bem de família decorre

de constituir a moradia um direito fundamental.

Neste sentido, o art. 827 do Código Civil determina quanto aos

efeitos da fiança, que o “fiador demandado pelo pagamento da dívida tem direito a

exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro executados os bens do

devedor”, e no seu parágrafo único, que o “fiador que alegar o benefício de ordem, a

que se refere este artigo, deve nomear bens do devedor, sitos no mesmo município,

livres e desembargados, quantos bastem para solver o débito”. Além disso, a

Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça considera que: “O fiador na locação não

responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu”. Assim, o

fiador pode alegar o benefício da ordem. Segundo Tartuce: “A lesão à isonomia

reside no fato da fiança ser contrato acessório, que não pode trazer mais obrigações

do que o contrato principal (locação)”.61

Desta forma, há dois aspectos a serem relevados: por um lado,

a corrente favorável à impenhorabilidade está em sintonia com as premissas de um

Estado Social, que prevê a força normativa da Constituição e pressupõe o bem-estar

social; por outro lado, os locadores, com essa orientação, podem começar a exigir

outras modalidades de garantia, com a qual nem sempre o locatário vai dispor.

Hodiernamente, pois, constata-se uma profunda transformação

social, que exige a construção de uma dogmática mais hermenêutica e voltada para

a preservação dos direitos sociais. Neste caso, há o problema de decidibilidade,

diante de diversas possibilidades interpretativas da norma, com destaque à fórmula

valorativa da função social, que amplia, em conseqüência, o campo de atuação do

intérprete.

Assim, a dogmática, cada vez mais preocupada com as

normas, conceitos e regras, distanciou-se do fato social, mas a necessidade de

60 Acontece que o art. 6º da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional nº 26, de 2000, ficou assim redigido: “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a segurança a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” 61 TARTUCE, Flávio. Direito à moradia – penhora de imóvel. In: http://www.flaviotartuce.adv.br. Acesso em 16 de fevereiro de 2006, p. 2.

conexão da norma ao fato social tem levado à consciência de rever o pensamento

dogmático, pois o Direito, não repousando apenas nas suas normas, mas tendo

outras dimensões, vai exigir da dogmática jurídica uma reformulação constante dos

seus próprios conceitos. Assim, a função social é hoje uma das perspectivas da

dogmática jurídica - trata-se de um verdadeiro princípio diretivo do ordenamento

jurídico, pois indica uma justificação e fundamento dos institutos do direito privado

ante os fundamentos do Estado Social e Democrático de Direito e às exigências do

bem comum.62

A concepção social da dogmática jurídica é fruto não só do fato de ser o homem um membro da coletividade e de estar nesta integrado, tentando conviver em harmonia, mas de uma necessidade de evolução da ciência jurídica, sobretudo para que o direito de liberdade possa coexistir com o direito de igualdade, afirmando uma nova concepção do Direito que deixou de ser meramente coletiva, mas instrumento de mudança social.63

A adoção da perspectiva Civil-Constitucional impõe ao

intérprete a tarefa de reordenar valorativamente o Direito Civil, preenchendo as

formas conceituais com o conteúdo axiológico da Constituição. O intérprete e

aplicador do Direito é visto como protagonista da reconstrução do sistema jurídico,

não mais centrado no Código Civil, mas na Constituição.64 Portanto, a questão da

penhora do bem de família do fiador deve passar por uma análise à luz dos valores

e princípios constitucionais, com especial destaque à função social do contrato e à

dignidade da pessoa humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À luz do que foi exposto, pode-se constatar que a

impenhorabilidade do bem de família é a regra, mas há exceções legalmente

previstas na lei 8.009/90, sendo que entre elas consta a possibilidade de penhora do

único bem de família do fiador.

62 ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. A função social da dogmática jurídica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 6-7.63 Idem. Ibidem., p. 8.64 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 56-7.

Neste sentido, constata-se a resistência da doutrina e da

jurisprudência em adotar a inconstitucionalidade do art. 3º, inciso VII da lei 8.009/90,

pois o país não possui tradição constitucionalista – reflexo da época liberal-

individualista e patrimonialista – em que o Direito Civil e o Direito Constitucional

eram incomunicáveis, como se fossem dois mundos que não se tocavam.

Com a crise desse modelo, a Constituição Federal passou a

ser a norma máxima do Estado, vinculando todas as demais normas

infraconstitucionais aos seus princípios. Nesse contexto, merece destaque a

corrente de pensamento que se orienta no sentido da inconstitucionalidade da

penhora do bem de família do fiador, porque viola: o princípio da isonomia (art. 5º,

caput) - pelo fato de tratar desigualmente situações iguais; a proteção da dignidade

da pessoa humana – prevista no art. 1º, inciso III; e o direito à moradia –

indispensável à vida digna, previsto no art. 6º, previstos constitucionalmente. Além

disso, os legisladores devem pensar em novas garantias, que não afetem a

dignidade do ser humano e suas necessidades básicas.

Aparentemente, o inciso VII, do art. 3º da lei 8.009/90 é

inconstitucional, pelo fato de violar: o princípio da isonomia entre o locatário e o

fiador; a dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à moradia. Por outro

lado, a falta da fiança inviabiliza a locação e, conseqüentemente, inúmeros

locatários podem ser afetados pela falta desse tipo de garantia, prevista no Direito

pátrio.

Portanto, os argumentos dessas duas correntes são válidos e

devem ser interpretados à luz dos princípios constitucionais, com especial destaque

ao princípio da função social do contrato, que, por sua vez, preconiza a dignidade da

pessoa humana e a justiça social. Por isso, fala-se num Direito Civil Constitucional,

pois os valores constitucionais passaram a influenciar as normas do Direito privado,

conferindo unidade ao sistema, de modo que o indivíduo passa a ser o vértice do

ordenamento jurídico.

Neste contexto, o Direito deve ser visto como uma realidade

dinâmica que está em perpétuo movimento, que acompanhando as relações

humanas, modificando-se, adaptando-se às novas exigências e necessidades da

vida, por meio da interpretação. Desta forma, os operadores do Direito possuem

uma relevante função: a de extrair da Constituição Federal os elementos que lhe

permitem decidir de modo a fazer valer o conteúdo do direito do seu tempo.

Apesar das divergências, este estudo teve a intenção de

contribuir com o desenvolvimento deste estudo, trazendo à discussão algumas

considerações relevantes, bem como destacamos os aspectos favoráveis e

contrários de cada corrente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. A função social da dogmática jurídica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.

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