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1 A INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO E O ENCONTRO COM A PSICOLOGIA DA SAÚDE – O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES ABRIGADOS. Autor: Ricardo Rentes – Rentes, R. Coautora: Leila Tardivo – Tardivo, L. Universidade de São Paulo – USP Brasil – 2013 Autor Responsável: Ricardo Rentes Rua Pensilvânia, 360, apto 34, Brooklin – São Paulo – Brasil – CEP: 04564-000 Tels: (11) 5044-4909 e (11) 97283-7590 E-mail: [email protected] Número total de palavras do artigo: 6.947 palavras

A INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO E O ENCONTRO COM A ... · Desenho Estória com Tema, derivado do Procedimento de Desenhos Estórias de Walter Trinca, com base nos trabalhos de Tardivo

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A INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO E O ENCONTRO COM A

PSICOLOGIA DA SAÚDE –

O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

ABRIGADOS.

Autor: Ricardo Rentes – Rentes, R.

Coautora: Leila Tardivo – Tardivo, L.

Universidade de São Paulo – USP

Brasil – 2013

Autor Responsável: Ricardo Rentes

Rua Pensilvânia, 360, apto 34, Brooklin – São Paulo – Brasil – CEP: 04564-000

Tels: (11) 5044-4909 e (11) 97283-7590

E-mail: [email protected]

Número total de palavras do artigo: 6.947 palavras

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Título: A INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO E O ENCONTRO COM A

PSICOLOGIA DA SAÚDE –

O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

ABRIGADOS.

Title: THE SHELTER/ORFANAGE IN THE HEALTH PSYCHOLOGY –

THE EMOTIONAL DEVELOPMENT OF CHILDREN AND ADOLESCENTS

IN THE SHELTER/OFPHANAGE

RESUMO

O presente trabalho teve como objetivo compreender o impacto do acolhimento

institucional na vida de crianças e adolescentes em situação de acolhimento

institucional. Utilizamos como base teórica a psicanálise de Winnicott em relação ao

desenvolvimento emocional e o aporte de demais autores. O método utilizado foi

abordagem qualitativa e estudos de casos múltiplos. Participaram do estudo 10

crianças/adolescentes acolhidos em um abrigo em uma cidade de São Paulo – Brasil. A

amostra é caracterizada por idades diversas compreendendo a faixa etária de 10 á 17

anos, de ambos o sexos, 5 meninas e 5 meninos. Foi empregado como procedimento o

Desenho Estória com Tema, derivado do Procedimento de Desenhos Estórias de Walter

Trinca, com base nos trabalhos de Tardivo. Os temas dos desenhos foram: 1. Eu antes

do abrigo – 2. Eu hoje no abrigo e 3. Eu depois, fora do abrigo. Os resultados

alcançados através da aplicação dos Desenhos apontam que o processo de acolhimento

institucional marca profundamente a subjetividade humana, ao qual está diretamente

ligada ao rompimento com figuras parentais e de referência, como também a violência

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institucional muitas vezes promovida dentro da própria Instituição. Por outro lado, os

resultados apontam que o abrigo pode favorecer uma experiência integradora e

significante do desenvolvimento emocional e da concretização de projetos de vida para

as crianças e os adolescentes acolhidos. Chegou-se ao resultado de que o abrigo pode

ofertar um desenvolvimento humano exercendo, dentro de suas limitações e

particularidades, papel de um ambiente facilitador e de substituto provisório da família.

Palavras-chave: Abrigo, Criança, Adolescente, Violência e Desenvolvimento.

ABSTRACT

This work had the aim of understand the institutional shelter impact in the life of

children and adolescents under these conditions. The base of the analyzes was

Winncott’s theory psychoanalyze in relation to the emotional development and the

support of the other authors. The method used was the qualitative approach and study of

multiple cases. 10 children/adolescents look part of the study when they were in the

shelter/orphanage in the city of São Paulo – Brazil. The sample is characterized by to

individual of different ages from 10 to 17 of both sex 5 girls and 5 boys. The producer

applied was Drawn History with theme from procedures of Draws History of Walter

Trinca with base on Tardivo’s work. The themes of the Drawing were: 1. “I before the

shelter” 2. “I today in the shelter” and 3. “I after the shelter, out of it”. The results

achieved though the drawings show that institutional shelter process marks deeply the

human subjectivity with it is directed connected to the breakage of the parental figures

or reference and institutional violence produced by the on institutional. By the other

hand the results show that the shelter can benefit there emotional development by the

experience of integration and the realization of by life projects for children and

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adolescents sheltered. The conclusion was that the institution care/the shelter can offer

human development acting within its limitation and particularities the role of providing

environment and a family provisory substitute.

Key words: Shelter. Child. Adolescent. Violence. Development.

INTRODUÇÃO

No fundo da prática científica existe um discurso que diz: nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo o momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que, no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, a espera de nossa mão para ser desvelada. A nós, cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em qualquer lugar. (Foucault, 2008, p. 113).

A partir das palavras de Foucault, torna-se relevante pesquisar esse tema em

função do quadro atual brasileiro em relação à situação dos antigos orfanatos, abrigos,

hoje denominados e reconhecidos como SAICA (serviço de acolhimento institucional

para crianças e adolescentes).

Segundo algumas pesquisas realizadas, as mesmas apontam para realidades

preocupantes, como longos períodos de permanência, separação de grupo irmãos,

afastamentos inadequados da família de origem, além das situações de violências

institucionais.

Ainda é carente o número de pesquisas que ofertem um protagonismo a essas

crianças e adolescentes, que lhe ofertem o direito de falar, de olhar para o singular, para

sua história. Podemos citar, como exceção, o bonito trabalho desenvolvido pelo grupo

Fazendo história e pelo grupo APOIAR - USP, sendo esse último uma referência para a

construção do presente trabalho.

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Ao nos depararmos com a história social das crianças e adolescentes

abandonados em nosso país e no mundo, percebemos que muita coisa mudou, mas que

ainda resta muito a mudar. Percebe-se que o olhar, o comportamento e o serviço de

acolhimento ofertado a esse publico, ainda carrega muita influência dessa história,

influência essa prejudicial para esse contexto atual.

Por conta disso e por muito mais, é que se faz necessário ampliar o campo de

investigação, com o intuito também de ofertar maior espaço de expressão e de voz para

essas crianças e adolescentes.

Ao lembrarmo-nos do papel que a criança veio cumprindo ao longo da história

(Marcílio, 2006), podemos perceber que muitos não vivenciaram a dita cidadania, não

detinham consigo o direito de Ser no mundo. Infelizmente, isso ainda ocorre em nossos

dias, em específico dentro das chamadas Instituição de Acolhimento, os Abrigos, ao que

percebemos que, muitas vezes o mutismo por parte das crianças e adolescentes é

valorizado e até mesmo promovido.

Dessa forma, o presente trabalho visa ofertar o direito de voz, o olhar de quem

está dentro, a manifestação do ser, ou pelo menos uma tentativa de que isso ocorra, sem

falar do alto grau de desconhecimento ou distorção que a população em geral detém a

respeito desse tema.

O universo do abrigo ainda é um lugar, cheio de mitos, desencontros e para

muitos representa o desconhecido, o não desejado. Abrir um pouco mais essa janela,

desse mundo paralelo das instituições com esse fim, é acreditar e estabelecer que

aqueles que nela vivem possuem muito a nos ofertar e a nos ensinar.

O convite para o desconhecido fica aqui estabelecido e a grande pergunta

emerge: Será o Abrigo um lugar necessariamente ruim, violento, será essa a sua única

possibilidade?

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É essa pergunta que tal trabalho tenta responder a partir da vivencia de 10

crianças e adolescentes acolhidos em uma instituição de uma cidade da grande São

Paulo – Brasil.

Em função de tal artigo ser o recorte de uma pesquisa de maior amplitude, dos

10 casos, 1 caso em específico será ilustrado e aqui estudado ao longo do texto.

REFERENCIAL TEÓRICO

O presente trabalho propõe um olhar acerca dos impactos do acolhimento

Institucional na vida de crianças e adolescentes. Para tanto, como base teórica,

utilizamos autores clássicos e alguns teóricos mais contemporâneos, que estão

envolvidos direta e indiretamente com o tema.

Ao se preocupar com a singularidade humana, partindo do ponto de Ser, de

existir, dentro do coletivo, Goffman (2005) aponta:

Há mutilações do “eu” nas instituições totais; uma delas é a barreira entre o mundo externo e o mundo vivido na instituição; os ritos de passagem, para serem enquadrados na cultura organizacional, podem também ser uma outra mutilação; a perda do nosso nome é uma grande mutilação do eu. (Goffman, 2005 p.27)

Podemos perceber que tal local nos oferta um convite um tanto insano e

perverso, isto é, o convite de deixar de Ser e de deixar de continuar a Ser. A perda do

nome é somente o inicio de toda uma violência promovida pelo ambiente de uma

instituição com tais características acima citadas. Goffman (Ibid, 2005), ainda nos

mostra:

Um conjunto de bens individuais tem uma relação muito grande com o eu. A pessoa geralmente espera ter certo controle da maneira de apresentar-se diante dos outros. Para isso precisa decosméticos e roupas, instrumentos para usá-los, ou consertá-los, bem como de um local seguro para guardar esses objetos e instrumentos – em resumo, o indivíduo precisa de um “estojo de identidade” para o controle de sua aparência pessoal.(Goffman, 2005 p.28)

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Interessante observar tal afirmação acima exposta, a base de uma possibilidade

de ser simbolizada por um estojo, nesse caso um estojo de identidade, um lugar próprio,

único, responsável por guardar do humano aquilo de mais intimo, de mais singular, um

estojo que nos protege, nos mantem e que talvez funcione como um espelho da alma.

Goffman (2005) expõe: “a interpretação sociológica mais simples do individuo e

do seu eu é que ele é, para si mesmo, aquilo que seu lugar numa organização o define

que seja”. Nesse ponto podemos entender que o lugar, que o ambiente detêm o valioso

poder de formar indivíduos, ou ainda deformar.

Outro autor que se debruçou de maneira muito devotada e relevante em relação

às consequências de um processo de institucionalização foi Michel Foucault, filósofo

francês (1926 – 1984) ao que encontramos ao longo de sua obra inúmeras citações em

que de forma bastante incisiva nos apresenta aspectos e fatos históricos relevantes para

a compreensão de tal sistema institucional e seus desdobramentos. O autor problematiza

muito bem, o intuito das grandes instituições, seus objetivos e metas, vejamos:

Toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista, ou para vigiar o espaço exterior, mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado – para tornar visíveis os que nela se encontram; mas geralmente, a de uma arquitetura que seria um operador para a transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar domínio sobre o seu comportamento, modifica-los. As pedras podem tornar dócil e conhecível. O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento – do muro espesso, da porta sólida que impedem de entrar ou de sair. (Foucault, 2009, p. 166).

Será este o destino dos abrigos? Um lugar de difícil entrada do ponto de vista de

preservação da identidade e ao mesmo tempo de difícil saída em relação à politicas

públicas?

Por outro lado, como contraponto, Winnicott (2005), enfatiza também que em

alguns casos, a instituição se faz necessária, pois é somente ela que conseguirá, perante

algumas demandas, ofertar a continência que a criança/adolescente necessita. Por mais

triste que seja, os muros da instituição funcionam como o colo materno, que oferta,

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neste caso, um limite, uma possiblidade de não loucura, de não esfacelamento de si, o

ambiente institucional como uma possibilidade de existência e de manutenção desta.

Em sua obra Winnicott (2005) fala também dos diversos tipos de instituições de

acolhimento na época da segunda grande guerra. Nesse texto ele aponta para uma

diversidade de características que cada serviço possui. Winnicott enfatiza que a

instituição deve ir ao encontro das necessidades da criança e do adolescente, desde um

lar adotivo, passando por abrigos menores com poucas crianças, até uma instituição

com um regime mais severo, rígido e com um numero de acolhidos muito maior. O

autor aponta que esse último modelo de instituição não é o mais adequado e que ele

mesmo possui discernimento de que tal local ofertará ao seu publico alvo: “tanto a perda

da identidade quanto a perda da identificação com o ambiente total... Tais instituições

ainda terão que viver por algum tempo.” (2005, p.204 -205). De forma um tanto irônica

afirma também que esse tipo de instituição é um ambiente propicio para certos tipos de

gestão, e afirma: “Aqui está uma boa forma de sublimação para ditadores potenciais”

(Ibid, p. 205).

Contudo, Winnicott nos mostra também o valor da medida de certa rigidez

aplicada perante alguns casos em se se faz necessário. Diante disso ele nos diz:

É importante lembrar que, se o rigor do ambiente é a base, as crianças sentir-se-ão desorientadas se em tal ambiente houver exceções e escapatórias. Se é preciso haver um ambiente rigoroso, então que seja coerente, confiável e justo, para que possa ter valor positivo. (Winnicott, 2005, p. 207).

Cabe-nos aqui refletirmos sobre como se dá a realidade das instituições atuais.

Será que ainda reproduzem esses modelos descritos e o que de bom deve permanecer de

nossa história, o que deve ser banido para sempre?

Segundo Winnicott (2000, p 163 – 167) ambiente facilitador seria a capacidade

de transformar um não–Ser em Ser, ou seja, a partir da relação dual, mãe – bebê, se

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realizada de forma suficientemente boa, oferta a possiblidade ao bebê de constituir em

um ser integral, vivo, único e real.

Winnicott ainda frisa ao falar da importância do ambiente para o bebê, nesse

caso a mãe e o que a ela rodeia, que “Estamos nos aproximando da tão conhecida

observação de que a ansiedade mais antiga é aquela relativa a sentir-se segurado de um

modo inseguro” (2000, p. 164). Isso mostra o valor que o autor destina ao ambiente,

pois segundo ele sem esse ambiente facilitador inicial, desempenhado pela mãe ou

substituto desta, não poderia se chamar e existir enquanto um bebê, isto é:

“Isso que chamam de bebê não existe”. Fiquei alarmado ao me ouvir pronunciar essas palavras, e tentei justificar minha declaração dizendo que se vocês me mostrarem um bebê, mostrarão também, com certeza, alguém cuidando desse bebê, ou ao menos um carrinho ao qual estão grudados os olhos e ou ouvidos de alguém. O que vemos então é a “dupla amamentante” (Winnicott, 2000, p. 165).

A consequência de um bebê sem esse ambiente é desastrosa. Segundo Winnicott

uma das consequências seria a paralisação do processo de desenvolvimento, do

amadurecimento do humano, antecedendo a capacidade de integrar-se ou viver em

desintegração, ou seja, “em outras palavras, sem as técnicas que permitem cuidar do

bebê de um modo suficientemente bom o novo ser humano não teria chance alguma”

(2000, p.166).

Pensando dessa forma, será o abrigo um lugar, um ambiente nocivo, violento

para o sujeito? Será que esse ambiente pode causar alguma falha relevante e traumática,

ou ainda alguma impossibilidade perante o amadurecimento emocional do indivíduo

como algo paralisante? Terá ele esse poder? Da mesma forma, nos perguntamos se este

mesmo ambiente institucional pode também ser adequado e funcionar como o que

Winnicott denominou por ambiente facilitador e mãe suficientemente boa?

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A mãe suficientemente boa não é a mãe/ambiente perfeita, pelo contrário, ela

também frustra, falha e erra, mas na medida certa e no tempo adequado, quando e

quanto o bebê suporta. Dias (2003) nos aponta:

Por adaptar-se continuamente ao processo de mutação e amadurecimento da criança, a mãe favorece a desadaptação gradual, e ela o faz falhando gradualmente na adaptação à necessidade, de modo a ajudá-la a separar-se dela e a permitir-lhe viver a dependência relativa, para que faça as passagens que levam à independência (Dias, 2003, p. 141).

Winnicott parte da concepção de que o psiquismo e seus conteúdos não são

totalmente inatos e também adquiridos a partir do amadurecimento que é facilitado pelo

ambiente, através do outro, ao que o mesmo afirma citado por Dias:

O bebê vive pelo fato de ‘estar vivo’ e de haver alguém que responde satisfatoriamente a este fato; ele amadurece por ser dotado de uma tendência inata ao amadurecimento e pelo fato de haver alguém facilitando a realização desta tendência. (citado por Dias, 2003, p.79)

“A teoria winnicottiana do amadurecimento está fundada sobre duas concepções

de base (...): a tendência inata ao amadurecimento e a existência contínua de um

ambiente facilitador” (Dias, 2003, p. 93).

Todos nascem com tendências hereditárias para a maturação, mas para que elas se concretizem é necessário que exista um ambiente facilitador satisfatório. Isso significa uma adaptação inicial sensível da parte de um ser humano. Esse ser humano é mulher, e geralmente mãe (citado por Dias, 2005, p. 192).

Para que essa díade ocorra de forma satisfatória, é necessário que a mãe ou

alguém que desempenhe esse papel, apresente de forma espontânea e natural, aquilo que

Winnicott denominou como: Preocupação Materna Primária (2000) e Mãe dedicada

comum (2002).

Winnicott aponta como o significado da expressão: preocupação materna

primária como uma das condições para que a mãe seja suficientemente boa para o bebê,

a condição emocional que eleva a sensibilidade da mãe ou da substituta(o) desta,

perante as necessidades do bebê (Dias, 2003, p. 134).

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Segundo Winnicott, quando a mãe encontra-se no estado de Preocupação

Materna Primária a mesma se tonar capaz de:

Colocar-se no lugar do bebê, por assim dizer. Isto significa que elas desenvolvem uma capacidade surpreendente de identificação com o bebê, o que lhes possibilita ir ao encontro das necessidades básicas do recém-nascido, de uma forma que nenhuma máquina pode imitar, e que não pode ser ensinada (Winnicott, 2006, p. 30).

Ao realizar um paralelo com a realidade dos abrigos, consideremos a situação da

chegada de uma criança em qualquer entidade, nos perguntamos: Será que a instituição

dará conta de executar tais tarefas, uma vez que, identificada a necessidade de tal ação?

Estará a equipe do abrigo preparada para isso? Conseguira o abrigo ser o que o ECA –

Estatuto da Criança e Adolescente (1990) preconiza como um substituto provisório da

família, e o abrigo como um ambiente o mais parecido possível com um ambiente

familiar?

Winnicott (1990), ao falar de ambiente facilitador aponta que esse ambiente é

aquele que provê confiabilidade, continuidade, ritmo, proteção e estabilidade. Isso

significa que a criança, sendo espontânea, manifesta suas necessidades. Quando

encontra tal ambiente, nesse caso inicial, a figura devotada da mãe, tem suas

necessidade suficientemente atendidas o que leva o bebê a experienciar os o que

Winnicott chamou de estados tranquilos. Tudo isso permite ao bebê reconhecer e prever

coisas ao seu redor.

Quando o encanto ocorre e tal encontro se sucede a ilusão se cria “A adaptação

da mãe às necessidades do bebê, quando suficientemente boa, dá a este a ilusão de que

existe uma realidade externa correspondente à sua própria capacidade de criar”

(Winnicott, 1975, p. 27). Conseguirá a criança ser criativa dentro do abrigo? Surge

também o que Winnicott intitulou como a vivência da Onipotência, porém só pode criar

quem encontrou e foi encontrado, ou seja, o bebê vem para o mundo pronto para cria-lo,

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mas só conseguirá criar se esse mundo se fizer presente a sua frente de forma viva, real

e suficientemente boa, neste caso, “a crença de que o mundo é encontrável e confiável,

de que, em algum lugar, existe algo que faz sentido, ou alguém que compreende e

responde à necessidade” (Dias, 2003, p. 168).

Porém, há situações onde o encontro tão necessário com o outro não ocorre.

Safra (1999) nos aponta:

Não se constituir na situação de ilusão como parte dos aspectos do self, onde temos buracos no self, que ameaçam o individuo com a dispersão de si e com as ansiedades impensáveis. Nelas a pessoa não encontra a presença de outros que auxiliem a dar sentido humano e contornos àquelas vivências. (Safra, 1999, p.48).

É necessária que o bebê, a criança, transforme inicialmente o mundo nela

mesma, é como se ela no ato da amamentação, mamasse nela mesma. Safra nos mostra:

“Não basta para o acontecer do self do bebê, que o mundo esteja pronto com suas estéticas, com seus códigos, com seus mitos. A criança precisa pelo seu gesto, transformar este mundo em si mesmo. É preciso que o mundo, inicialmente seja ela mesma, para que ela possa apropriar-se dele e compartilhá-lo com outro”. (Safra, 1999, p. 139)

Será que a mistura que observamos entre instituição e acolhidos é sempre

nociva? Não será ela, fazendo um paralelo com o acima citado, necessária pelo menos

no inicio?

Quando o encanto do encontro ocorre e tal relação se sucede, a ilusão se cria “A

adaptação da mãe às necessidades do bebê, quando suficientemente boa, dá a este a

ilusão de que existe uma realidade externa correspondente à sua própria capacidade de

criar” (Winnicott, 1975, p. 27). Conseguirá a criança ser criativa no sentido

winnicottiano dentro do abrigo? Da mesma forma que será o abrigo capaz de atender as

necessidades do Ser de forma suficientemente boa?

Winnicott durante sua maravilhosa obra nos apresenta quatro das principais

funções maternas a serem desempenhadas pela mãe ou substituta desta. Eles nos

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apresenta: 1. o holding, 2. o handling, 3. apresentação de objetos e 4. função de espelho.

Resumindo tais funções maternas citadas por Mamede (2006) que nos aponta:

A mãe ambiente, nesse processo de identificação com seu bebê, exercerá algumas funções que serão fundamentais para a constituição desse bebê como único e vivo. Para relembrarmos sucintamente, são quatro as principais funções maternas descritas por Winnicott: - holding: a permanência dos cuidados que a mãe oferece ao longo do tempo e do espaço; - handling(manipulação): o contato do corpo da mãe com o corpo do bebê, seu manuseio, possibilitando a ele, aos poucos, integrar seu corpo e sua psique, de forma a começar o processo de integração de seu self; - apresentação de objeto: a mãe apresenta o mundo ao bebê “em pequenas doses”, de forma a não trazer do mundo o que ele ainda não consegue apreender ou receber; - função especular: o bebê só se reconhece no rosto de sua mãe, porque, como no início ele e a mãe são uma coisa só, o rosto dela que lhe faz face é sentido como o seu rosto (Mamede, 2006 p. 58).

Diante de tamanha função desempenhada pela mãe, tão bem explicitada e

resumida por Mamede (2006), ficam algumas perguntas norteadoras:

1) Pensando no modelo de instituição de acolhimento; como se dá a continuidade do

desenvolvimento emocional de crianças e adolescentes dentro desse ambiente?

2) Conseguirá o abrigo ser um ambiente facilitador? Suficientemente bom?

3) Será que conseguirá ir ao encontro das necessidades de cada um respeitando

singularidades e validando potencialidades?

Possuímos clareza de que talvez muitas dessas perguntas talvez não sejam

respondidas e contempladas por completo nesse trabalho. Contudo, o intuito também de

tais questionamentos é o de promover reflexão e de despertar interesses de novas

pesquisas em determinado campo.

Partindo agora para um olhar mais recente e atual do cenário de acolhimento

institucional, citamos um trecho em que Tardivo e Gil (2008) apontam para a relevancia

de tal investimento nesse seguimento da infancia, ao que dizem:

Há na literatura diversos estudos acerca de crianças abrigadas. Muitos destes mencionando as vivências emocionais destas crianças e buscando uma compreensão cada vez maior de sua experiência psíquica, dos efeitos que o abrigamento provoca em seu desenvolvimento e das medidas que podem ser pensadas para tentar minimizar os efeitos negativos da situação de institucionalização que, apesar de existir como uma condição temporária para as crianças que dela necessitam, por muitas vezes acaba se tornando condição permanente... (Tardivo e Gil, 2008 p. 472).

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Esse olhar para a família é fundamental em todos os sentidos, a luta por menores

desigualdades, ou seja, “É preciso que se olhe também para a família da criança

abrigada, procurando auxiliá-la, pois, dessa forma, a criança abrigada também será

beneficiada” (Tardivo e Gil, 2008 p. 481).

Pensando ainda nessa temática, das violências em relação ao destino das

crianças e familiares envolvidos nos abrigamentos, podemos citar o pensamento de

Endo em que afirma:

(...) está vetado a este indivíduo o campo das trocas, em que se escuta e se é escutado e a partir do qual o sujeito é reconhecido e inscrito no seio da cidade, como uma de suas partes integrantes e inalienáveis. Porções inteiras da população foram separadas de sua condição cidadã ao serem apartadas do seu direito ao lugar. São habitantes clandestinos, ilegais, tidos como posseiros da cidade ao pleitearem o direito de morar nela. Eles não são vistos como pertencentes à cidade. (Endo, 2005, p.75)

Uma vez vitima da ausência de olhar por parte do Estado, talvez um caminho

fosse o que Tardivo e Gil apontam:

Verificamos que, em muitos casos de abrigamento, uma medida que poderia contribuir para o retorno mais rápido da criança para casa seria a assistência psicológica à família. Consideramos importante que os pais das crianças abrigadas recebessem acompanhamento psicológico para seu próprio desenvolvimento e, dessa forma, pudessem se adequar para receber de volta o filho mais rapidamente. Na prática isso dificilmente acontece... (Tardivo e Gil, 2008 p. 481).

OBJETIVOS

O Presente trabalho teve como objetivo compreender o impacto do acolhimento

institucional (abrigamento) na vida de crianças e adolescentes em situação de medida de

proteção, utilizando como base o pensamento da psicanálise de Winnicott, juntamente

com o olhar de autores contemporâneos acerca do desenvolvimento emocional, bem

como um breve passeio pelo processo de institucionalização e suas consequências a

partir de alguns teóricos clássicos e técnicas projetivas como coleta de dados.

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MÉTODO, INSTRUMENTOS E PROCEDIMENTOS

O método utilizado está baseado na pesquisa qualitativa, em uma revisão

bibliográfica, juntamente com o Estudo de Casos Múltiplos (análise de conteúdo do

material produzido pelos participantes) realizadas dentro do Campo – Instituição de

Acolhimento (o Abrigo).

A escolha de tal método qualitativo e análise de conteúdo, vieram ao encontro

do desejo de dar voz à subjetividade do humano, a unicidade do ser, pois a abordagem

qualitativa denota uma riqueza técnica, um olhar mais singular e menos generalizado.

(Tardivo, 2007).

Por ser mais de um participante da pesquisa, a escolha por optar em paralelo

pelo Estudos de Casos Múltiplos, vai ao encontro da proposta, ao que ouvir um não

significa ouvir todos, porém ouvir todos é possiblidade de se encontrar um. Segundo

Mishima (2011), para entrar em contato com um caso é necessário conhecer outros,

sendo cada caso um em sua singularidade, porém construído em coletividade.

Tardivo (2004) nos aponta a riqueza do trabalho de campo, nos convida para

uma prática articulada, científica. Segundo a autora, a Pesquisa de Campo possui o

valioso e importantíssimo encontro entre teoria e prática, a significação de um com base

no outro, o encontro valioso que oferta uma práxis, pautada na vivencia pratica com a

articulação teórica.

A mesma autora afirma que “teoria sem prática é estéril e prática sem

fundamentação teórica pode ser superficial e até inconsequente” (Tardivo, 2004, p.201).

Buscando uma base sólida e ao mesmo tempo que represente fatos atuais, a escolha por

tal tipo de pesquisa vem ao encontro do nosso desejo enquanto pesquisadores.

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A pesquisa completa contempla um total de 10 participantes, 5 participantes do

sexo feminino e 5 participantes do masculino. As idades variam de 10 a 17 anos. Como

recorte para a construção do presente artigo, um caso foi eleito para aqui ser

exemplificado.

Os instrumentos utilizados foram as consultas aos prontuários (PIAs)1 da

Instituição bem como as cópias dos processos do Fórum2, e também o Desenho com

Tema apresentado pela Dra. Leila Tardivo (2007), procedimento derivado do D-E

(Trinca,1997).

A escolha de tal técnica está baseada também em sua validação e

reconhecimento no meio acadêmico, como apontado por Tardivo: “Essa técnica vem

desenvolvendo, o que propiciou sua validação para uso na clínica, em muitas pesquisas;

nos mais variados campos da psicologia; em distintos grupos de pessoas em diferentes

condições” (1996,1997 e 2001)

Cada encontro contemplava um participante, que executaria três desenhos e três

respectivas histórias. Os temas dos desenhos propostos pela pesquisa para a aplicação

dessa técnica foram: A - Eu antes do abrigo, B - Eu hoje no abrigo e C - Eu depois, fora

do abrigo.3

O participante escolhido para ser exemplificado, foi uma adolescente, do sexo

feminino, 17 anos. O nome fictício utilizado será Gabriela, visando a questão do sigilo e

dos demais princípios éticos.

1 PIA: Plano individual de Atendimento. É um instrumento confeccionado pela equipe técnica e coordenação do abrigo. Tal ferramenta foi implantada como exigência para as instituições de acolhimento. O seu intuito é de centralizar as principais informações acerca da criança/adolescente com fins de agilizar o processo jurídico, definição do caso e encaminhamentos pertinentes. Geralmente se tem um modelo padrão, porém cada Vara da infância e juventude adota o seu, não mudando muito entre um e outro.

2 A instituição de acolhimento em questão possui uma cópia do processo judicial de cada criança e adolescente em seus arquivos. Tal situação ocorre em função da parceria com o judiciário e visando uma apropriação da história de vida por parte de cada acolhido, ao que esse último tem acesso a tais documentos quando este solicitar.

3 Importante ressaltar que para a realização de tal trabalho envolvendo crianças e adolescentes, foi necessária a autorização previa da coordenação da instituição, bem como execução do termo de livre esclarecido a partir do consentimento do curador especial dos participantes envolvidos

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ANÁLISE DOS RESULTADOS

Caso escolhido para exemplificação:

Gabriela, 17 anos, sexo feminino, acolhida em 17/04/2001, frequenta regularmente a

escola, trabalha fora desde 16 anos. Há algum tempo Gabriela vem apresentando uma

mudança positiva de comportamento. Outrora não respeitava regras, era bastante

agressiva, desafiadora, e testava todos os limites. Chegou a fazer acompanhamento no

CAPSi por cerca de 2 anos. Já adolescente se recusou em continuar seu

acompanhamento. Atualmente mantém uma vida sexual ativa e tranquila, diferente de

momentos anteriores, onde conflitos entre namorados e suas respectivas famílias eram

constantemente presentes. Em função do seu comportamento instável e pouca tolerância

a frustrações, não se fixava em nenhum emprego e se envolvia sempre em conflitos

dentro do ambiente profissional, assim como na escola. Dentro da Casa-Lar os conflitos

também eram constantes, pois Gabriela não queria colaborar com a organização do

ambiente e não aceitava as regas colocadas pelos educadores. Hoje o cenário é outro,

Gabriela denota preocupação com sua saída do abrigo, os conflitos no ambiente escolar

diminuíram significativamente e está empregada em um escritório de contabilidade.

Respeita as regras e participa das atividades na Casa-Lar, possui uma vida social

considerada por todos como saudável. Ainda mantem uma intolerância a frustrações,

porém seus comportamentos reativos são menos violentos, denotando uma alteração

positiva. Gabriela está destituída do poder familiar. Não recebe visitas de nenhum

familiar. Atualmente a genitora possui paradeiro desconhecido e o pai já é falecido.

O pai sempre foi muito ausente e segundo informações das técnicas do Fórum da

VIJ, o mesmo era envolvido no trafico de drogas e diante de uma disputa de ponto de

venda de drogas, este foi assassinado. A genitora recebeu diversas ameaças dos

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traficantes e precisou fugir, deixando seus filhos com o cunhado, o qual não teve

condições de cuidar dos sobrinhos, abrindo mão desses, assim como os demais

familiares, como a avó materna por exemplo. Perante o envolvimento dos genitores com

drogas, tráfico e a ausência de uma família extensa que se comprometesse, as crianças

na época, permaneciam em situação de risco o que gerou o acolhimento. Logo após o

acolhimento a genitora realizou algumas visitas, sem manter uma frequência regular, se

ausentando definitivamente. Este fator também colaborou para destituição do poder

familiar.

Desenho Estória com Tema – Gabriela - Eu antes, hoje e depois do Abrigo.

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Análise

A adolescente Gabriela preferiu realizar um único desenho. Informou como

justificativa que teria dificuldade de separar uma coisa da outra. Após realizar seu único

desenho, informou que não gostaria de contar nenhuma história, emocionada, agradeceu

a oportunidade de desenhar sobre si e afirmou que o desenho falaria por si só.

Nesse momento, mais uma vez, podemos pensar no que Tardivo (2011), afirma

em relação ao caráter terapêutico das técnicas projetivas, ao que foi percebido que

através da técnica Gabriela permite-se entrar em contato com sua história de vida.

Logo de inicio, percebemos mais uma vez a marca do processo de

institucionalização, como apontado muito bem por Goffman (2005) e Foucault (2008 e

2009). A mistura dos tempos, a dificuldade de separação, da distinção dos períodos, do

tempo e do espaço, onde começa um e termina o outro. Esses aspectos de perda da

singularidade são comuns em longos períodos dentro de instituições. Por outro lado,

pode ser também a tentativa de unificar o seu tempo, a sua história, uma maneira de

integrar o que possivelmente encontra-se desintegrado.

O Antes é marcado por pessoas, por uma casa, por aquilo que poderíamos

chamar de família. O desenho está supostamente dividido em três tempos. No primeiro

quadrante, da esquerda para a direita, Gabriela desenhou sua mãe, seus irmãos e a ela

mesma. Podemos perceber a expressão da figura materna, um olhar mais marcado,

projetada a frente e em tamanho maior. Uma das coisas que chama a atenção no

processo judicial de Gabriela, é que segundo os altos, a mesma sempre reclamou muito

quanto à falta de uma referência feminina, que lhe servisse de espelho, de modelo.

A função do outro, do ambiente, segundo Winnicott (1990 e 2002), se faria

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necessária, mais do que um modelo a seguir, mas sim alguém que lhe ofertasse o olhar

desejante, o olhar que inclui a possiblidade de Ser e de continuar a Ser no mundo.

No segundo quadrante do desenho, encontramos o Agora, o atual do viver no

abrigo. Vale a pena relembrar que Gabriela passou por outras instituições de

acolhimento e que encontra-se a muito tempo acolhida, 11 anos. Nesse momento do

desenho, encontramos casas em meio ao mundo, possivelmente as instituições por onde

passou, varias casas... Dúvidas, incertezas permeiam esse universo, onde inúmeras

interrogações ao contrário surgem. O que está de ponta cabeça? Quais seriam essas

perguntas? O que ainda continua sem resposta?

Mesmo assim, parece que durante esse longo período que acolhimento

institucional algo marca essa passagem, isto é, algo permanece na vida de Gabriela e

num sentido positivo também. Durante a aplicação da técnica a adolescente pergunta se

poderia nessa parte do desenho, dias atuais, desenhar uma fotografia. Ao que a

orientação foi dada de que poderia desenhar o que quisesse. Nesse momento Gabriela

foi ao seu quarto no abrigo e ao voltar trazia uma fotografia em suas mãos. Uma foto

dela com duas amigas do abrigo. Nesse momento coloca a foto ao seu lado e começa a

desenhar. Durante a produção do desenho enfatiza que essas duas amizades construídas

eram as coisas mais importantes para ela, pois sabia que essas amigas eram sinceras e

que se sentia muito amada por elas, afirmando que elas, juntamente com seus irmãos, e

os funcionários da instituição de acolhimento, educadores sociais, eram sua família.

Percebemos com isso, que o que marca e permanece na vida do sujeito é a

certeza de ser amada, de se sentir desejada no olhar do outro. Nesse momento podemos

recorrer a Winnicott (1990), que enfatiza muito bem tal importância de um ambiente

que permita a existência do outro, que o sustente o permita em sua possibilidade de

criação.

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Percebemos pelos dados da história e pelo afeto aqui impresso que o abrigo

oferta a Gabriela a possiblidade de novas conquistas e de continuidade de seu

desenvolvimento emocional, de novos encontros e significativos.

No terceiro quadrante, situada no extremo direito do desenho, no canto superior,

destinada a parte com o tema Depois do Abrigo, podemos perceber que é a parte que

menos ocupa espaço em sua vida hoje. Quando olhamos o desenho, algo a princípio nos

assusta e nos choca. Podemos supor inicialmente, que sair do abrigo para Gabriela seria

a morte. O que será que de fato morreria, uma vez que Gabriela nunca apresentou

nenhum indício, ideação ou tentativa de suicídio? O que será que exatamente morre?

Podemos inicialmente compor um paralelo com as críticas levantas por Goffman

(2005) e Foucault (2008 e 2009) em relação ao processo cruel de institucionalização, a

toda violência envolvida, a morte do sujeito, da singularidade. Sair do abrigo é perder

tudo, não há mais sujeito, somente instituição, sendo assim, ao sair da instituição é

deixar de existir. Conseguimos também nos encontrar nas palavras de Tardivo quanto à

necessidade de cuidado psicológico e social diante de tal demanda, crianças e

adolescentes acolhidos.

O pensamento de Endo (2005) também vai ao encontro, pois sair do abrigo pode

ser visto aqui como um retorno à cidade, uma cidade que não oferta espaço, que não

permite uma existência no social, segregando e excluindo como uma espécie de

violência continuada, neste caso, sair do abrigo é morrer na cidade. Partindo do

principio que durante o acolhimento a adolescente obteve ganhos emocionais,

constituintes e relevantes para a sua continuidade de Ser, sair do abrigo pode denotar

para a jovem uma perda, a morte do que conquistou. A possibilidade de não encontrar

mais as pessoas e até mesmo as paredes protetoras do abrigo, podem significar uma

morte emocional. O que deveria ser continuidade passa a ser provavelmente um fim.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos que a marca da história da infância abandonada durantes os séculos

atrás, até hoje se faz presente, que o processo de institucionalização realmente deixa

impressa a violência seja ela manifesta ou latente.

Para os jovens participantes a vivência do abrigamento é marcante, por vezes

violenta, e que promove uma marca em seu Ser, como sentimento de despersonalização,

negação de sua própria história, idealização do passado, dentre outros.

Por outro lado, foi visto que o Abrigo nem sempre é vivido como prejudicial.

Para a maioria dos participantes, 9 de 10 acolhidos manifestaram que o abrigo e seus

cuidadores, em algum momento, se configuraram como ambiente facilitador (Winnicott

,1975, 1990, 2000, 2002 e 2005). Foi visto que tal ambiente pode favorecer o

desenvolvimento de funções maternas e paternas, ações estruturantes do ego,

possibilidades de ressignificações de histórias e oportunidades de novos encontros e

arranjos emocionais, de novos projetos de vida.

Os educadores residentes, mãe e pai social, bem como os amigos, foram

frequentemente citados, seja por desenhos, por histórias, vinculado a estes, carinho,

proteção, segurança, confiança, amor, limite e possiblidades de novos encontros

humanos.

O presente trabalho permitiu, a partir do olhar dos participantes acolhidos, uma

ampliação da compreensão do abrigo. Deparamo-nos com resultados significativos, com

encontros teóricos frutíferos e com histórias de vida marcantes.

Evidencia-se a relevância do trabalho em rede que é um dos grandes responsáveis

pelas possíveis mudanças no cenário do atendimento da infância e juventude. A

articulação dos diversos atores sociais torna-se fundamental para a boa aplicabilidade de

tal medida de proteção.

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Outro ponto relevante durante a aplicação do Desenho com Tema, foi que ao final

do processo a maioria dos participantes pesquisados se permitia entrar em contato com

sua verdadeira história no sentido de fatos e acontecimentos.

Perante tal gesto, em alguns casos, o olhar se modificava em relação a esse

passado, e um novo rumo se estabelecia. Pôde aparecer uma criança/adolescente mais

protagonista de sua história, e o Desenho com Tema como uma ferramenta de

empoderamento e um recurso terapêutico, como presenciamos em alguns casos, indo ao

encontro do que Tardivo (2011) apresentam o Desenho com Tema como ferramenta

terapêutica.

Dessa forma, é possível o abrigo favorecer o desenvolvimento de funções

maternas e paternas quando necessário, e agir como o ECA (1990) preconiza, ou seja,

como um substituto provisório da família.

Vale ressaltar o modelo institucional adotado pelo abrigo pesquisado, o regime de

Casa-Lar. A hipótese é que tal modelo de trabalho, vinculado à devoção dos

profissionais e somados as disponibilidade interna dos acolhidos, promove uma relação

com caráter criativo e de acolhida. O ambiente pode ser avaliado, dentro de suas

limitações, como facilitador e favorável ao desenvolvimento humano satisfatório.

Dessa forma, os impactos, perspectivas ressonâncias e consequências na vida

dessas crianças e adolescentes abrigados irá depender de que tipo de abrigo e filosofia

se prega, de como as relações afetivas são constituídas, quem irá compor a equipe de

trabalho e quem serão os acolhidos.

São necessários mais estudos para se comprovar tais hipóteses aqui lançadas,

principalmente em relação a qual modelo de instituição pode promover possibilidades

de desenvolvimento em um ambiente facilitador, ou então se configurar em ambiente

que repete a violência e a exclusão. Um lugar antigo na história, marcado por saberes.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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São Paulo: Ed. Vetor.

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