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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Santos et al. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 4(gt4):1-20 A INTEGRAÇÃO NATURAL-TÉCNICO: UM OLHAR CTS PARA A URBANIZAÇÃO ALÉM DO ANTROPOCÊNTRICO GT 04 – Políticas públicas e desenvolvimento local: interveniências e interações entre tecnologia, sociedade e democracia Leticia Costa de Oliveira Santos Niklas Werner Weins Augusto Frederico Junqueira Schmidt Tatiana Maria Cecy Gadda Silvestre Labiak Junior Christian Luiz da Silva Resumo: Com o desenvolvimento tecnológico do século XX houve também modificações nas formas das pessoas se relacionarem entre si, com o que fazem e o que consomem. As cidades são comumente entendidas como artefatos sociotecnológicos da civilização humana e diferenciadas da natureza. Uma visão dicotômica entre natural e sociotécnico tem influência sobre o planejamento das cidades, já que as decisões dos planejadores são influenciadas por estruturas cognitivas compartilhadas em contextos culturais específicos. As interconexões entre urbano e natural podem ser identificadas de pelo menos duas formas: nos impactos e modificações da ação antrópica em praticamente todos os ecossistemas e na dependência humana das funções ecossistêmicas. O objetivo deste trabalho é identificar as contribuições da Teoria Crítica da Tecnologia (TCT) neste novo paradigma. A partir das considerações de Yearley (2008), este trabalho aborda as considerações sobre "o natural" e suas implicações para pensar sobre a relação cidade-natureza na obra dos principais autores da escola de Frankfurt: Herbert Marcuse e Andrew Feenberg. A CTS, apesar de interdisciplinar, é tradicionalmente antropocêntrica. A TCT sugere que o distanciamento entre urbano e natural deriva da sensação de adiamento dos feedbacks resultantes da ação técnica (urbanização). Há uma separação aparente entre atores (humanos) e objetos (natureza) e pela abstração dos atributos úteis da natureza e sua apreensão pelo objeto técnico. As lentes da CTS podem contribuir para um olhar integrador entre natureza e cidades identificando os aspectos ecológicos da urbanização e os sociotécnicos da natureza. O planejamento pautado neste paradigma e o empoderamento dos cidadãos pode ser o caminho para a construção de cidades mais sustentáveis. Palavras-chave: Urbanização; Natureza; Teoria Crítica da Tecnologia; Escola de Frankfurt.

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Santos et al. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 4(gt4):1-20

A INTEGRAÇÃO NATURAL-TÉCNICO:UM OLHAR CTS PARA A URBANIZAÇÃO ALÉM DOANTROPOCÊNTRICO

GT 04 – Políticas públicas e desenvolvimento local: interveniências einterações entre tecnologia, sociedade e democracia

Leticia Costa de Oliveira SantosNiklas Werner Weins

Augusto Frederico Junqueira SchmidtTatiana Maria Cecy Gadda

Silvestre Labiak JuniorChristian Luiz da Silva

Resumo: Com o desenvolvimento tecnológico do século XX houve também modificações nas formasdas pessoas se relacionarem entre si, com o que fazem e o que consomem. As cidades são comumenteentendidas como artefatos sociotecnológicos da civilização humana e diferenciadas da natureza. Umavisão dicotômica entre natural e sociotécnico tem influência sobre o planejamento das cidades, já queas decisões dos planejadores são influenciadas por estruturas cognitivas compartilhadas em contextosculturais específicos. As interconexões entre urbano e natural podem ser identificadas de pelo menosduas formas: nos impactos e modificações da ação antrópica em praticamente todos os ecossistemas ena dependência humana das funções ecossistêmicas. O objetivo deste trabalho é identificar ascontribuições da Teoria Crítica da Tecnologia (TCT) neste novo paradigma. A partir das consideraçõesde Yearley (2008), este trabalho aborda as considerações sobre "o natural" e suas implicações parapensar sobre a relação cidade-natureza na obra dos principais autores da escola de Frankfurt: HerbertMarcuse e Andrew Feenberg. A CTS, apesar de interdisciplinar, é tradicionalmente antropocêntrica. ATCT sugere que o distanciamento entre urbano e natural deriva da sensação de adiamento dosfeedbacks resultantes da ação técnica (urbanização). Há uma separação aparente entre atores(humanos) e objetos (natureza) e pela abstração dos atributos úteis da natureza e sua apreensão peloobjeto técnico. As lentes da CTS podem contribuir para um olhar integrador entre natureza e cidadesidentificando os aspectos ecológicos da urbanização e os sociotécnicos da natureza. O planejamentopautado neste paradigma e o empoderamento dos cidadãos pode ser o caminho para a construção decidades mais sustentáveis.

Palavras-chave: Urbanização; Natureza; Teoria Crítica da Tecnologia; Escola de Frankfurt.

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IntroduçãoQue desenvolvimento queremos? É por meio desta pergunta que as abordagens críticas

ao desenvolvimento padrão do capitalismo começam a questionar o status quo (ACSELRAD,

2008). Em poucos fenômenos ficam mais evidentes as implicações das respostas a essa

pergunta do que na urbanização. A urbanização do século XX, tanto nos países de capitalismo

avançado, quanto daqueles em desenvolvimento, tem trazido com a sua forma de

planejamento, e em conjunto com os avanços nas tecnologias de comunicação e de produção

mudanças nunca vividas em tão pouco tempo na história da humanidade.

Na metade do século XX, o filósofo alemão Herbert Marcuse, após de ter que fugir o

seu país natal por causa das ameaças postas ao seu pensamento pelo nazifascismo e o governo

de Adolf Hitler, começou em um dos seus primeiros textos publicados, a questionar o papel da

tecnologias, a individualização e suas consequências para a convivência em sociedades

humanas. Marcuse é um dos pilares de um movimento moderno de Ciência, Tecnologia e

Sociedade (CTS) e seus estudantes como Andrew Feenberg continuam acompanhando e

criticando os desdobramentos da técnicas modernas em todos os âmbitos da vida moderna.

As cidades modernas provocam impactos para além de suas fronteiras, que são

desproporcionais nas escalas local, regional e global (GRIMM et al., 2008). Mas, embora as

áreas urbanizadas cobrem apenas uma pequena porção da superfície do planeta, elas

representam uma grande parte dos impactos antropogênicos na biosfera. A dependência do

capital natural e dos serviços ecossistêmicos aumenta continuamente no nosso planeta

urbanizado (GÓMEZ-BAGGETHUN et al., 2010; GUO et al., 2010). Ainda assim, os

impactos da urbanização na biodiversidade e nos ecossistemas, bem como os potenciais

benefícios da restauração dos ecossistemas em áreas urbanas, ainda não são bem

compreendidos (YEARLEY, 2008; GÓMEZ-BAGGETHUN et al., 2013).

Desta forma, a integração de áreas urbanas com seus meios naturais é um objetivo

relevante por reduzir impactos indesejados e os custos de remediação destes impactos e

mesmo, garantindo a manutenção da capacidade de suporte à vida (humana) no planeta

(VASISHTH, 2015, p. 11771).

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Este artigo é um ensaio teórico cujo objetivo é discutir a dualidade entre o natural e o

urbano na perspectiva CTS. Para explorar esta questão, primeiramente, é abordado o

entendimento dos filósofos da escola de Frankfurt sobre o papel das técnicas em relação ao

“natural” no século XX. São exploradas as cidades como objetos sociotécnicos no marco das

instrumentalizações primária e secundária conforme análise de Feenberg (2003) para discutir

essa oposição natural-técnico. Para tal é necessário entender como são conceitualmente

integrado a urbanização e os ecossistemas em aspectos de um mesmo sistema socioecológico.

A CTS têm de atentar para que no uso do conceito popular de serviços ecossistêmicos1 não

tome um caráter demasiadamente antropocêntrico. O tecnológico e o ecológico poderiam

assim subsidiar políticas urbanas mais integradas, menos hierárquicas, contribuindo para uma

construção crítica e democrática dos conceitos que guiam a busca por sustentabilidade

(ACSELRAD, 2008, p. 9).

2. CTS e a Teoria Crítica da TecnologiaA Escola de Frankfurt surgiu como escola de pensamento da teoria social e da filosofia

que se juntou nos anos 1920/30 no Instituto para Pesquisa Social da Universidade de

Frankfurt, Alemanha. Inicialmente era um núcleo de cientistas sociais críticos do marxismo

ortodoxo, o qual eles viam não apto para explicar adequadamente os extremos

desenvolvimentos que aconteceram no início do século XX nas sociedades capitalistas.

No entanto, os membros da escola se vêem como herdeiros de Hegel e Marx

(WIGGERSHAUS, 1995, p. 1). Desta forma, os seguidores da Escola de Frankfurt podem ser

vistos como críticos tanto do capitalismo quanto do socialismo como foi praticado na União

Soviética (HELD, 1980, p. 14). Eles queriam propor um debate amplo sobre um caminho

alternativo para o desenvolvimento social, que até hoje forma a base de muitos programa de

orientação CTS.

A base de pensamento da escola seguiu sendo a crítica do sistema capitalista

expressada por Marx no século IX, tentando entender as condições que possibilitaram tais

mudanças sociais drásticas desde a Revolução Industrial focando nas instituições racionais e

suas influências nas escolhas de estilo de vida, no trabalho e no consumo das pessoas (HELD,

1 Os benefícios para o bem-estar humano derivado do funcionamento dos ecossistemas.

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1980, p. 15). A ênfase no componente "crítico" da teoria foi significativamente a sua tentativa

de superar os limites do positivismo, materialismo e determinismo, retornando à filosofia

crítica de Kant e ao seu sucessor Hegel, com sua ênfase na dialética e contradição como

inerentes à realidade (HELD, 1980, p. 15).

Herbert Marcuse, um dos pensadores da Escola de Frankfurt da primeira geração que

inspirou muitos movimentos estudantis e ambientais, justifica sua crítica da tecnologia na

prática histórica da sociedade. De acordo com Abromeit e Cobb (2014, p. 189) Marcuse

distingue entre "o essencial" e "o histórico". Na medida em que apresenta o automóvel como

um exemplo de razão tecnológica, e tudo o que implicou - desde as técnicas de produção, os

padrões de consumo e a distribuição, até o planejamento urbano - a natureza dessa prática

histórica para Marcuse resume-se ao Fordismo. Assim, como um exemplo típico de um

artefato que Marcuse utiliza na sua obra, o automóvel representa, na forma de uma

sinécdoque2, o deslocamento da crítica pela razão tecnológica e, com isso, o crescente eclipse

da possibilidade de um conjunto qualitativamente diferente de arranjos sociais.

Para Abromeit e Cobb, Marcuse não trabalha com uma divisão conceitual muito

simples entre a "natureza" e "sociedade", na qual se deve concordar, por um lado,

inteiramente com as agendas da racionalização social e a conservação da natureza para

promover a produção econômica, ou andar completamente, por outro lado, no campo da

natureza para defender a selvageria, o verde e outras qualidades naturais "autênticas".

Marcuse admite como a natureza e a sociedade são realmente completamente entrelaçadas.

Mais importante ainda para Marcuse, segundo Abromeit e Cobb (2004, p. 236), é a ênfase de

como a dominação da natureza sempre leva à dominação das pessoas, em pensamento e

comportamento (como o consumismo).

Em seus textos, Herbert Marcuse trata da racionalização tecnológica e suas

implicações para a vida em sociedade humana. Em um ensaio da década de 1970 intitulado

"Ecologia e Crítica da Sociedade Moderna", escrito por Marcuse pouco antes de sua morte em

1979, o autor constatou que a ecologia genuína requer uma transformação da natureza

humana. De acordo com Keller (1992, p. 43), para Marcuse o ser humano era um ser natural,

2 entendimento simultâneo

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fazendo “parte e parcela da natureza” desde sempre e que só com a chegada do capitalismo

isto mudou. O capitalismo, na sua visão, produziu uma alienação dos seres humanos ao

alienar os indivíduos da atividade multifacetada natural deles e forçando os a uma divisão de

trabalho capitalista especializada e unilateral (KELLNER, 1984, p. 43). Marcuse seguiu esta

crítica marxista inicial do capitalismo ao longo de sua vida.

No citado ensaio, baseado em uma palestra sobre a sua obra Eros and Civilization,

Marcuse trata dos conceitos freudianos que no final da sua vida e obra guiaram os seus

pensamentos críticos sobre o indivíduo na sociedade. Assim se entende que para Marcuse

(1992, p. 33) "o progresso técnico está ligado à manipulação progressiva e controle de seres

humanos." Este apresenta um aspecto que é de interesse particular para esta exploração.

Marcuse (1992, p. 30) considera uma "destruição geral que caracteriza nossa sociedade" que

para ele se origina nos próprios indivíduos da sociedade, isto é, uma destrutividade

psicológica dentro dos indivíduos.

Para melhor entender estes pensamentos, vale compreender o que Marcuse diz sobre

Sigmund Freud. Freud argumenta que o organismo humano exibe um “impulso primário”

para um estado de existência sem tensão dolorosa, para um estado de liberdade de dor. Freud

localizou esse estado de realização e liberdade no início da vida, na vida no útero.

Consequentemente, ele viu o impulso para um estado de indolência como desejo de retornar a

um estágio anterior de vida, antes da vida orgânica consciente (MARCUSE: 1992, p 35).

Ele atribuiu esse desejo de retornar aos estágios anteriores de vida para um instinto de

morte e destruição. Este instinto de morte e destruição, de acordo com Marcuse se esforça

para alcançar uma negação da vida através da externalização. Isso significa que esta unidade é

dirigida para fora do indivíduo, longe de si mesmo. É direcionado para a vida fora do

indivíduo. Esta unidade é externalizada. É direcionado para a destruição de outros seres vivos

e da natureza. Freud chamou essa unidade de "um longo desvio para a morte" (MARCUSE,

1992, p. 35-36).

Como ideia central, Marcuse aponta o caráter político e psicológico dos movimentos

ambientais, que na sua época foram muito inspirados por ele.

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“O movimento ecologista revela-se em última análise como movimento político e

psicológico de libertação. Assim, ele é político porque confronta o poder concertado do grande

capital, cujos interesses vitais o movimento ameaça. É psicológico porque (e este é um ponto

muito importante) a pacificação da natureza externa, a proteção do ambiente de vida, também

irá pacificar a natureza entre homens e mulheres. Um ambientalismo bem sucedido, dentro dos

indivíduos, subordinará energia destrutiva à energia erótica (MARCUSE, 1992, p. 36).

Marcuse encerra a palestra esclarecendo que além do nível animal, os seres humanos

são maleáveis, em corpo e mente, até na sua própria estrutura instintiva: “Homens e mulheres

podem ser computadorizados em robôs, sim - mas eles também podem recusar” (1992, p. 38).

Joel Kovel (1992, p. 41) identifica na obra de Marcuse o "instinto como a

potencialidade de uma natureza totalmente humanizada". De acordo com este autor precisa-se

entender o corpo como uma natureza humanizada, e como tal totalmente dialética.

Considerando que os seres humanos vivem, colocando sempre alguma distinção entre si e a

natureza, a própria linguagem é formada neste espaço como condição prévia para a

socialidade e codifica o mundo com significado humano.

Desta forma, tanto o corpo, isto é, a natureza reivindicada pelo eu e a natureza externa

que não é reivindicada pelo eu, são atraídos para essa zona de diferença (KOVEL, 1992, p.

41). Este aspecto identificado por Kovel apresenta uma observação interessante sobre a

hipótese inicial deste trabalho sobre a dicotomia entre o natural e o técnico dentro de um olhar

antropocêntrico.

No entanto, Kovel sugere que é um escolha entre se dividir da natureza e torná-la

radicalmente Outra - se diferenciar da natureza reconhecendo-la "em nós mesmos, como

corpo e nos reconhecer nela, como aqueles que cuidam da terra" (KOVEL, 1992, p. 41).

Assim afirma que existe uma alternativa à atitude cartesiana clássica impulsionado pelo

capitalismo.

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A divisão caracteriza tanto a "visão freudiana do instinto como o id animal para o ego

humano", como também uma visão que nega todos os termos do instinto e vê os humanos

como totalmente socialmente construídos (KOVEL, 1992, p. 42). A diferenciação, por outro

lado, compreende a visão de Marcuse (1992 e outras) do instinto, em que a natureza e a

humanidade se transformam mutuamente, mas contribuem para isso com uma dimensão

especificamente humana. Seria possível neste ponto identificar na interpretação de Marcuse

por Kovel que a TCT é antropocêntrico. Mas é essa visão deliberativa?

Para Kovel a divisão na visão de Marcuse nega o seu oposto enquanto a diferenciação

envolve seu oposto em uma dialética, preservando a diferença, mas transformando

radicalmente tanto a si mesmo como à outra. Este é um caminho muito radical, uma vez que

exige a completa destruição sistemática de todas as formas de dominação. De outro lado,

haverá um ser plenamente humanizado, capaz de emancipação, além de cuidar da terra

(KOVEL, 1992, p. 42). Nas suas reflexões, Marcuse aponta, no final das contas para a

necessidade de transformação da natureza humana por essa visão e por meio de uma ecologia

genuína (KELLNER, 1992, p. 43).

Wiggershaus (1995, p. 581) aponta que o problema da dialética entre os efeitos da

natureza interna e externa, que repetidamente levou os autores da Dialética do Iluminismo a

ambiguidade e contradição, caiu mas bem no caminho da sugestão de Habermas de que a

idéia de reconciliação com a natureza poderia ser substituída pela idéia de emancipação3.

Assim, admitindo apenas uma alternativa entre ou a comunicação com a natureza ou o

controle sobre ela em termos de ciência e tecnologia modernas, e depois declarando que esta

última é a única escolha possível, ao mesmo tempo que mantém a noção de emancipação,

pode resultar em uma problemática como a conceptualização de dicotomia que guia a

exploração deste trabalho (WIGGERSHAUS: 1995, p. 581).

Andrew Feenberg entende o seu trabalho como uma continuação da linha de

pensamento que Marcuse começou. Há, no entanto, significativas diferenças, tendo em vista o

tempo radicalmente diferente em que viviam e trabalhavam os dois pensadores, e como pode

3 Uma ideia central da obra de Habermas.

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ser observado por exemplo no papel central da ecologia nas discussões que se iniciou quando

Marcuse já tinha idade avançada (MARICONDA; TULA MOLINA, 2009, p. 2).

Enquanto Marcuse aponta a questão do dualismo entre o determinismo da técnica e o

protagonismo da humanidade, Feenberg (2001) vai além e sugere que ao não se deixar

apartados os aspectos técnicos e os não técnicos (ou a dimensão sociohistórica da técnica) é

possível enxergar o potencial de recuperar os aspectos democráticos da tecnologia. Deste

modo, pode-se relacionar com Marcuse, que a tecnologia pode ser um instrumento de

liberdade ou dominação, uma vez que não é a priori boa ou má. Também não significa

defender a neutralidade da técnica numa visão instrumentalista, de modo a sustentar uma fé

liberal no progresso. A visão da Teoria Crítica da Tecnologia de Feenberg justamente propõe

uma reflexão sobre as características não neutras e não autônomas da técnica.

Ele indica, neste sentido, que não se suponha que tudo pode ser explicado pelo

construtivismo ou pelo determinismo. Ele considera que a tecnologia por um lado é localizada

no tempo e no espaço e sofre fortes interações com a sociedade em sua construção e objetivos.

Por outro lado há aspectos que são, de certo modo, inerentes à racionalidade técnica que

submetem a sociedade a esta racionalidade. De modo que se poderia aproximar de uma

análise mais acurada e abrangente se são considerados os dois aspectos em constante

interação. Nisto, ele propõe a estrutura analítica de duas instrumentalizações: a primária e a

secundária. Na instrumentalização primária são observados os aspectos estritamente técnicos,

funcionais dos objetos técnicos. Na instrumentalização secundária o objeto técnico é

reintegrado a seu contexto social. Os dois níveis de análise se complementam de modo a

apresentar um panorama mais complexo e, portanto, mais real sobre as interações entre

tecnologia e sociedade (FEENBERG, 2003).

Visões substancialistas da tecnologia, que abstraem desta a substância que permanece

e considera aspectos sociais como externalidades, podem sustentar ideias alarmistas sobre a

tecnologia e sua capacidade de impactar negativamente a sociedade sem que isso possa ser

modificado, ou seja, atribuindo à tecnologia autonomia em relação à sociedade. Esta

perspectiva também é uma perspectiva a-histórica, que supõe que a essência não muda se

mudam os processos sociais ao longo do tempo (FEENBERG, 2003).

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Feenberg defende que a tecnologia não é inerentemente destrutiva da natureza ou das

estruturas humanas e que tampouco é o progresso um acidente na essência da tecnologia. Sua

ideia de transformação democrática da tecnologia parte da possibilidade de mudar os

desígnios da tecnologia de forma integrada às mudanças sociais - política tecnológica

socializante (FEENBERG, 2003).

Por que não apenas reificar o conceito de tecnologia e tratá-lo como uma essência

singular? O problema com tal abordagem é que continuariam a existir pequenas, mas ainda

significativas, diferenças que se tornariam mais importantes no futuro e não menos como

pressupõe a teoria essencialista. Além disto, tais diferenças muitas vezes dizem respeito

justamente aos pontos identificados como centrais à vida humana. Determinam eles a natureza

da comunidade, educação, cuidados médicos, trabalho, nossa relação com o ambiente natural,

as funções de inventos como os computadores e automóveis de maneiras favoráveis ou

desfavoráveis à preservação de significado e de coisas focais. Qualquer teoria da essência da

tecnologia que traz obstáculos ao futuro portanto exige que tratemos da questão das

peculiaridades na esfera técnica (FEENBERG, 2003, p. 18).

2.1. Os dois níveis das Instrumentalizações

Feenberg (2003) apresenta dois níveis de compreensão sobre a tecnologia já

mencionados acima: as instrumentalizações primária e secundária, como se pode ver na

Figura 1. A instrumentalização primária reifica a prática técnica, desconectando-a de seu

sistema tecnológico (ACHTERHUIS, 2001, p. 90; FEENBERG, 2003. p. 26). Já a

instrumentalização secundária restaura a técnica a seus meios sociais, técnicos e naturais,

reaproximando-a do real (FEENBERG, 2003, p. 29).

Figura 1. Instrumentalização primária e secundário de acordo com Feenberg.

Primária

Funcionalização

Secundária

Realização

Objetificação descontextualização sistematização

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redução mediação

Subjetivação autonomização

posicionamento

vocação

iniciativa

Adaptado de Feenberg, 1999 apud. Achterhuis, 2001, p. 91.

Descontextualização x Sistematização

Um dos quatro aspectos definidos por Feenberg trata de um lado da retirada e

recolocação da técnica em contextos. A Descontextualização é a retirada de objetos técnicos

do mundo, em função de seus aspectos úteis (FEENBERG, 2003. p. 26-27). Em sentido

oposto, a Sistematização posiciona as técnicas noutros sistemas sociotécnicos - mais ou

menos afastados do ambiente natural - em novas formas de conexão e combinação

(FEENBERG, 2003. p. 30).

Redução x Mediação

Redução é o entendimento de dada técnica por suas qualidades úteis, de modo a deixar

de lado ou suprimir suas funções secundárias (FEENBERG, 2003. p. 27). Em oposição à

Mediação, que é a atribuição de qualidades secundárias às tecnologias a partir de reflexões

éticas ou estéticas (FEENBERG, 2003. p. 30).

Autonomia x Vocação

A Autonomia se refere à desproporcionalidade ou ausência de feedbacks - ou à

sensação de ausência - decorrentes da ação técnica, que faz com que o agente da ação técnica

não perceba o resultado de suas ações (FEENBERG, 2003. p. 28). A Vocação já se refere aos

resultados da ação técnica no próprio agente, isto é, as reações da ação que podem inclusive

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ser positivas, como a aquisição de habilidades que resultam da prática constante

(FEENBERG, 2003. p. 32).

Posicionamento x Iniciativa

Finalmente, Posicionamento refere-se ao entendimento de que o sujeito técnico não

tem como modificar as leis básicas a que seus objetos estão submetidos, então deve se

apropriar delas a seu favor. Esta ideia também está relacionado à compreensão dos

mecanismos psicológicos e sua aplicação para dominação das pessoas (FEENBERG, 2003. p.

28-29). Já a Iniciativa trata o sujeito para além de seu caráter passivo, assumindo uma postura

ativa em relação ao que pode ser modificado nos meios sociotécnicos e a superar a dominação

hierárquica pela auto-organização e cooperação (FEENBERG, 2003. p. 32).

3. Cidades e o distanciamento do naturalAs escolhas feitas pelas sociedades humanas quanto à ocupação levavam em conta os

aspectos do ambiente de modo a melhor aproveitar elementos e processos naturais, como os

ventos, insolação, regimes de cheia e materiais disponíveis além de reconhecer capacidade

limitada de regeneração natural (LIMA, 2002; MAXIMIANO, 2004, p. 84).

No entanto, também se verifica que a ação exploratória da humanidade sobre o meio

ambiente tem base em aspectos culturais muito antigos e enraizados, pautados na “supremacia

humana sobre todos os outros seres” (PEREIRA; CURI, 2012, p. 42). O aproveitamento

destes elementos e processos naturais na construção do habitat humano se dá desde a

antiguidade de forma seletiva, apropriando-se do que é útil e valioso e expulsando o que é

potencialmente nocivo (MAXIMIANO, 2004, p. 84).

As cidades são entendidas como “artefatos sociotécnicos por excelência da civilização

humana” (VASISHTH, 2015, p. 11756). Elas são resultado de esforços de adaptação e

modificação do meio para a sobrevivência humana, com crescente acúmulo de conhecimento

e desenvolvimento de técnicas (LIMA, 2002, p. 22-23). Esse desenvolvimento

tecnocientífico, que é fruto da urbanização, passou, por sua vez, a ditar a forma como esta

mesma urbanização se dá. O processo de construção das cidades passa a ser mediado cada vez

mais pela figura do técnico, cujas práticas dão origem a modelos padronizados e higiênicos de

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cidade que, por um lado garantiram a melhoria da qualidade de vida humana, mas ao mesmo

tempo tentam afastar as pessoas comuns da formação orgânica da cidade e da relação com o

próprio meio. Tem que ser levada séria a responsabilidade e o papel dos agentes, entendendo

as transformações dos dois lados.

A urbanização e o desenvolvimento tecnológico reforçam a ideia de que a humanidade

urbana é independente do meio natural (AUSUBEL, 1996 apud. GÓMEZ-BAGGETHUN;

BARTON, 2013, p. 235). No entanto, esta é uma interpretação errônea uma vez que segue

aumentando a dependência de serviços ecossistêmicos para a sustentação da vida humana

(Guo et al. 2010). Cidades, como qualquer sistema socioecológico, dependem de interações

com os ecossistemas. Destas interações são obtidos os serviços básicos de provisão de

alimentos, água e ambientes saudáveis para convivência (GÓMEZ-BAGGETHUN;

BARTON, 2013, p. 235). Da mesma forma a urbanização e a conversão da superfície terrestre

para usos urbanos é um dos impactos humanos mais irreversíveis na biosfera global,

provocando perda de terras agrícolas e fragmentação de habitats, afetando o clima local e a

biodiversidade (SETO et al, 2011, p. 1).

Para Bell (2015), as infraestruturas urbanas são essencialmente sistemas tecnológicos

de grande escala que oferecem funções urbanas essenciais à vida humana. Ela ressalta, no

entanto, que as tecnologias de infraestrutura existem dentro de um contexto social e político

mais amplo, que não pode operar independentemente dos sistemas de infraestrutura e,

portanto, dos interesses humanos e dos objetos técnicos (BELL, 2015, p. 4).

Para Feenberg (2001) a tecnologia é mais que a simples dominação da natureza, e os

critérios do desenvolvimento tecnológico não se restringem à questão da eficiência. Quando,

no planejamento, acontece uma apropriação da natureza nas cidades, ela pode ser considerada

uma descontextualização e redução dessas funções nos termos de Feenberg, mas outros

valores éticos ou estéticos são acrescidos a estes objetos técnicos.

Há uma tendência de busca por técnicas cada vez mais integráveis ao meio e a

considerar qualidades secundárias que sejam compatíveis com valores éticos do

desenvolvimento sustentável. A arborização, a criação de áreas verdes, e infraestruturas de

provisão de água, assim como o aproveitamento de outras funções naturais para a garantia de

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serviços entendidos como vitais para a humanidade, podem ser enxergadas de forma

diferente, se forem entendidas na sua complexidade não reduzida a uma mera função técnica.

Isto é principalmente relevante quando consideramos as qualidades secundárias importantes

que vão se perdendo se não forem consideradas, como as funções ecológicas relevantes para

os seres não-humanos ou mesmo para sociedades humanas não hegemônicas.

Por exemplo, a maneira como engenheiros lidaram com águas urbanas nos últimos

séculos seguiram, em geral, princípios de controle e dominação. Essas abordagens permitiram

o desenvolvimento de nossas cidades e estilos de vida com possibilidade de garantir provisão

de água potável para grandes populações. No entanto, isto se deu ao custo de alto consumo de

energia, degradação de corpos hídricos e ecossistemas e, principalmente, a ilusão de que a

provisão de água pode ser sustentada indefinidamente mesmo com o aumento significativo da

demanda (BELL, 2015).

Mas as cidades impactam o meio ambiente da mesma forma como o meio impacta as

cidades (LIMA, 2002. p. 42). Corpos hídricos degradados e ecossistemas desequilibrados

comprometem os serviços ecossistêmicos dos quais a cidade depende e, consequentemente a

própria manutenção da vida humana. Feenberg (2004, p. 110) entende que a ação técnica tem

por resultado o feedback desproporcional sobre o autor da ação em relação ao impacto sobre o

objeto. Por não terem representação institucionalizada, isto significa uma ameaça para valores

não-técnicos como a natureza (FEENBERG, 2003, p. 3).

Também é importante reconhecer que a ideia de natureza intocada é dificilmente

identificada na prática. Mesmo sociedades pré industriais contribuíram para as modificações

nos meios naturais. A agência humana é historicamente relevante para a conformação de

habitats e ecossistemas tais como os conhecemos ao impactar os processos evolutivos - de

espécies não humanas e da própria espécie humana, e reduzir e aumentar a provisão de

serviços ecossistêmicos (BOIVIN et al., 2015, p. 6392). A natureza modificada para atender

às necessidades de sobrevivência humana pode, portanto, também ser compreendida como um

sistema sociotécnico no qual não só os agentes humanos transformam o espaço, mas em que

também os humanos são transformados por ele.

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O desenvolvimento da técnica depende de aspectos da humanidade, mas também os

modifica: tanto em aspectos ligados à biologia humana, como nossas capacidades físicas e

intelectuais - fala, manuseio, funções cerebrais, duração da vida - e também de aspectos

sociais, como a forma como passamos a nos organizar - sedentarismo, estruturas sociais e

políticas (DIAMOND, 2005. p. 261). Feenberg (2003) destaca que algumas das

consequências do distanciamento dos feedbacks: a) que se ignora o poder dos agentes sobre os

objetos; e b) as mudanças sobre os próprios agentes em decorrência da ação técnica. Isto pode

ser entendido pela alienação dos cidadãos quanto a sua capacidade de transformação das

cidades e do meio ambiente, e a submissão aos desígnios dos que são portadores da titulação

de técnicos, tidos como os legítimos atores sobre a cidade e, consequentemente sobre a vida

dos cidadãos.

3.1. Planejamento das cidades e CTS

O planejamento é um ofício de tomada de decisão deliberativa. Para a realização de

uma abordagem genuinamente ecológica é necessário que se supere as imagens metafóricas e

os jargões do holismo e se assuma de maneira pragmática a complexidade (VASISHTH, 2015:

11771-11772).

Planejadores precisam definir os problemas, formular objetivos e tomar decisões sobre

ações. O julgamento quanto a estas decisões é pautado tanto por valores individuais quanto

por valores coletivos. A prática do planejamento é, portanto influenciada, além das

subjetividades inerentes ao planejador, por contextos socioculturais que também vão orientar

outras esferas como a legislação, as práticas e a entrada de novas técnicas (OTHENGRAFEN,

2014). Deste modo, a maneira como se percebe a dualidade entre o urbano e o natural tem

impacto nas escolhas de planejamento, e não apenas a disponibilidade de alternativas

tecnológicas mais eficientes.

Mudanças tecnológicas, sociais e políticas são fundamentais para que se atinja a tão

almejada sustentabilidade. Feenberg (2010) destaca que a mudanças na “escala tecnológica”

não irão determinar, por si só, mudanças nas estruturas e valores sociais e políticos. São

necessários "elementos estratégicos alternativos" que possam modificar de forma que

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contribuam para um desenvolvimento democrático, que seja social e ambientalmente

sustentável (ACSELRAD, 2008. p. 9).

Feenberg (2004) restitui à humanidade a capacidade de orientar este desenvolvimento

no sentido que for mais conveniente. O mesmo autor (2004, p. 16) discorda das afirmações de

que o caminho para o desenvolvimento é guiado pela necessidade técnica e pela procura por

eficiência. Para o autor este tipo de discurso sustenta a restrição da participação ativa e na

democracia. Da mesma forma, reconhecer o papel humano num longo processo de

desenvolvimento dos ecossistemas e da biodiversidade como os temos hoje é fundamental

para se reafirmar a capacidade transformativa da sociedade (BOIVIN et al., 2015, p. 6394).

O geógrafo e urbanista Matthew Gandy (2005)4, usa a co-evolução da infraestrutura da

água, higiene pessoal e governança das utilidades da água como um exemplo das relações

complexas que constituem a vida urbana e não correspondem às demarcações convencionais

entre corpos, natureza, infraestrutura, política, cultura, arquitetura e assim por diante. Sua

análise leva a um chamado para uma maior atenção à política de tecnologia na cidade e à

reformulação da esfera pública para explicar a hibridação de cidades e sujeitos.

Ainda, Bell (2015) destaca o quanto natureza, gênero, tecnologia, cultura, política e

sociedade se entrelaçam nas cidades, sendo que essas complexas redes de relacionamentos,

podem ser difíceis de rastrear através de diferentes perspectivas teóricas e críticas. Os padrões

de uso de recursos nas cidades são moldados por diferentes padrões de relações sociais,

infraestrutura e tecnologia. Para esta autora, um quadro viável para planejadores urbanos,

designers e engenheiros para analisar os padrões de infraestrutura atuais e futuros requer uma

fundamentação na análise teórica das relações entre tecnologia, natureza e sociedade como é

proposta por Marcuse, Feenberg e outros.

As infraestruturas urbanas, como constituintes das cidades, também são fruto de

interações entre aspectos técnicos e seus contextos sociais, políticos e econômicos (BELL,

2015). As alternativas e os códigos técnicos também são ditados por lógicas de produção

dominantes, mas as mesmas podem também objetivar a sustentabilidade, incorporando

4 Ver Gandy, 2005 para um debate interessante sobre as complexidades das cidades contemporâneas, no que ele define como Cyborg Urbanization.

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preocupações sociais, políticas e espaciais que ultrapassam os indicadores convencionais de

eficiência. Bell (2015) aponta que, no exemplo da infraestrutura de água, o desafio para sua

reforma é maior por aspectos técnicos desta estrutura. No entanto esta reforma é imperativa

uma vez que é demonstrado que estas estruturas são ou serão inadequados para atender às

necessidades atuais e futuras (FEENBERG, 2010 apud BELL, 2015).

As relações entre cidades, tecnologias e água estão mudando (BELL, 2015). Os

códigos técnicos das infraestruturas de água urbana mostram o fortalecimento do discurso do

tecnicismo. Esse discurso encontra-se também na obra de Herbert Marcuse, como por

exemplo na sua obra “Algumas implicações sociais da tecnologia moderna” de 1941. Diante

do que Marcuse (1968, p. 4) aponta é interessante considerar a autonomia individual que ele

define como “liberdade autodidata e especialmente independência moral” pensando nos

planejadores e as considerações que eles fazem na escolha de decisões técnicas.

A medida em que se tenta negociar uma configuração de sistemas de infraestrutura

urbana que atinge um mínimo do que é definido como sustentabilidade nas próximas décadas,

essas relações e entendimentos de individualidade e autonomia terão grandes impactos nas

decisões políticas e técnicas. Bell (2015, p. 9) sugere que os planejadores urbanos, designers e

engenheiros conscientes da natureza discursiva e técnica das infra-estruturas serão os

melhores posicionados para atuar como intermediários honestos para os cidadãos, políticos e

financiadores, uma vez que os debates sobre a sustentabilidade ultrapassam a eficiência

(puramente técnica) e a proteção ambiental (puramente ecológica). Assim, de acordo com Bell

“as infraestruturas urbanas estabilizam as relações entre pessoas, tecnologia e natureza” e ela

propôs, se baseando nas ideias de Feenberg (2010) sobre a possibilidade de reforma do status

quo, que a forma futura de relações urbanas com a água está agora aberta para a renegociação.

4. Considerações finaisAs cidades são produtos sociotécnicos, mas seu desenvolvimento não se deu isolado

do meio natural onde estão inseridas. Um olhar consciente permite que se reconheça a

influência recíproca do meio natural sobre o meio urbano. O que se percebe é que o

desenvolvimento tecnológico se dá pela abstração dos aspectos funcionais e úteis do natural,

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desprezando o que é tido como inútil ou indesejável. Além disto, são mascarados os impactos

e efeitos colaterais que resultam em uma sensação de afastamento entre urbano e natural.

O presente trabalho aponta para o papel central das técnicas no que tange os impactos

da humanidade e suas cidades no meio. A conceitualização de uma técnica somente pelas suas

qualidades primárias, isto é, as funções e os fins puramente técnicos, desconsiderando as

características secundárias, acabam orientando o próprio desenvolvimento tecnológico em seu

caráter puramente funcional e tecnicamente eficiente. Não levando em conta os impactos

sobre as funções ecológicas relevantes para seres não-humanos ou sociedades humanas não

hegemônicas, por acreditar na neutralidade das técnicas, estas escolhas terão consequências

imprevisíveis.

A humanidade tem então a capacidade técnica e científica de mudar esta realidade.

Mas isso deve ser deliberado, pela não alienação dos cidadãos quanto a seu poder.

Promovendo assim o desenvolvimento de uma capacidade mais crítica, e não apenas uma fé

num progresso autônomo.

De todo modo, a abordagem de CTS quanto à dualidade natural e técnico é

fundamentalmente antropocêntrica. No planejamento contemporâneo a ideia da natureza

como barreira do desenvolvimento já está sendo superada, mas por uma ideia de natureza

como oportunidade de desenvolvimento. Ou seja, ainda é uma abordagem utilitarista da

natureza, e potencialmente excludente de características secundárias. Este é o caso de

compensações ambientais ou de infraestruturas urbanas baseadas em ecossistemas.

As cidades contemporâneas com suas inter-relações complexas precisam ser

analisadas de forma que não se coloque ênfase em somente um dos lados do debate sobre o

bem-estar humano ou ecológico. Para tal será necessário uma revisão cuidadosa dos conceitos

que guiam o entendimento do papel do que é considerado como "natural". Com essa tendência

utilitarista omite-se o aspecto ético com grandes implicações: será a natureza por si só uma

finalidade? Um planejamento que entenda a natureza como um fim em si poderia ser uma

proposta radical para tentar mudar as atuais abordagens tecnicistas.

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O propósito do desenvolvimento tecnológico e urbano e, consequentemente, os rumos

do meio ambiente, deve ser um assunto de debate social, público e democrático, sem perder

de vista que as pessoas poderão também representar os interesses dos não-humanos. O

presente trabalho reforça a afirmação que é necessário um olhar da CTS para a urbanização

além do antropocêntrico.

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