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A INTIMIDADE DO CRISTO R. Garrigou-Lagrange, O. P. “Potestis bibere calicem quem ego bibiturus sum?” “Podeis beber o cálice que hei de beber?” (Mt 20,21). Para melhor penetrar nas profundezas do mistério da Redenção, é preciso falar da intimidade do Cristo ou da amizade de predileção que Ele tem por certas almas mais fiéis e mais generosas. Entre essas almas, uma é chamada no Evangelho por essas simples palavras: “O discípulo que Jesus amava”. Se queremos compreender o valor da amizade do Salvador, seu princípio, seu motivo, sua ternura, sua força, seus dons inestimáveis, contemplemos aquela que Ele teve por São João. O mais amado de todos os apóstolos devia ser bem perfeito, para que Nosso Senhor experimentasse tal agrado por ele; sua pureza o encantava. Não era, no entanto, a perfeição de João que atraía o amor de Jesus; ela foi, ao contrário, o efeito, o resultado deste amor que encontrou agrado nessa perfeição, diz Bossuet, como o artista agrada-se com uma obra bem feita. O amor de Deus e de Jesus por nossas almas não pressupõe a amabilidade em nós, mas Ele a põe em nós, Ele a cria e aumenta, assemelhando-nos a Ele. Detendo-se sobre nós, o amor divino produz em nós a vida da graça e Ele não cessa de fazê-la crescer se não lhe opomos obstáculos 1 [1]. Vejamos como Nosso Senhor, pela sua amizade, tornou São João cada vez mais parecido com Ele mesmo; vamos nos inspirar em Bossuet 2 [2], que assinala que o Salvador deu ao discípulo bem amado três dons: sua cruz, sua mãe e seu coração. Mas parece preferível seguir a ordem inversa, que é a do tempo: ele mostra melhor o progresso da vida da graça em São João, e como o discípulo bem amado penetrou cada vez mais na intimidade de Cristo. Na Ceia, Jesus lhe deu seu coração; pouco depois, morrendo, deu-lhe sua Mãe; e em seguida, para fecundar seu ministério, Ele lhe deu sua Cruz. Na última Ceia Jesus dá a São João seu coração. Todos os apóstolos, nesse momento, são ordenados padres, recebem o caráter sacerdotal e também a Santa Comunhão. Mas João se aproxima mais do coração do Mestre, repousa sua cabeça sobre o peito sagrado do Salvador. No momento da instituição do sacramento que tem por fim aumentar em nós o amor de Deus, Nosso Senhor quis que um dos seus apóstolos privilegiados sentisse mais vivamente as batidas de seu Coração, que não cessaria agora em diante de viver na Eucaristia, para a consolação e regeneração perfeita das almas. Que graça interior recebeu então São João? Pode-se concebê-lo lembrando que do corpo de Jesus saía uma graça que vivificava os corações. Certamente, João recebeu então uma graça de luz e de amor: conheceu experimentalmente que o Coração do Salvador só vive por amor de Deus e das almas, compreendeu como a Eucaristia é, aqui embaixo, a grande manifestação desse amor e, sob aparências muito humildes, a própria vida de Deus sempre presente entre nós. Predestinado de toda a eternidade a ser o grande doutor da caridade, João vem beber a caridade na sua fonte mesmo, e receber a inspiração das palavras que os fiéis esperarão santamente até o fim dos tempos. Para melhor falar do amor do Salvador por nós, ele vem sentir de perto o ardor desse fogo espiritual que queima sem destruir e que quer nos transformar n’Ele. 1 2

A Intimidade Do Cristo

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A INTIMIDADE DO CRISTOR. Garrigou-Lagrange, O. P.

Potestis bibere calicem quem ego bibiturus sum?

Podeis beber o clice que hei de beber? (Mt 20,21).

Para melhor penetrar nas profundezas do mistrio da Redeno, preciso falar da intimidade do Cristo ou da amizade de predileo que Ele tem por certas almas mais fiis e mais generosas. Entre essas almas, uma chamada no Evangelho por essas simples palavras: O discpulo que Jesus amava. Se queremos compreender o valor da amizade do Salvador, seu princpio, seu motivo, sua ternura, sua fora, seus dons inestimveis, contemplemos aquela que Ele teve por So Joo.O mais amado de todos os apstolos devia ser bem perfeito, para que Nosso Senhor experimentasse tal agrado por ele; sua pureza o encantava. No era, no entanto, a perfeio de Joo que atraa o amor de Jesus; ela foi, ao contrrio, o efeito, o resultado deste amor que encontrou agrado nessa perfeio, diz Bossuet, como o artista agrada-se com uma obra bem feita. O amor de Deus e de Jesus por nossas almas no pressupe a amabilidade em ns, mas Ele a pe em ns, Ele a cria e aumenta, assemelhando-nos a Ele. Detendo-se sobre ns, o amor divino produz em ns a vida da graa e Ele no cessa de faz-la crescer se no lhe opomos obstculos[1].Vejamos como Nosso Senhor, pela sua amizade, tornou So Joo cada vez mais parecido com Ele mesmo; vamos nos inspirar em Bossuet[2], que assinala que o Salvador deu ao discpulo bem amado trs dons: sua cruz, sua me e seu corao. Mas parece prefervel seguir a ordem inversa, que a do tempo: ele mostra melhor o progresso da vida da graa em So Joo, e como o discpulo bem amado penetrou cada vez mais na intimidade de Cristo. Na Ceia, Jesus lhe deu seu corao; pouco depois, morrendo, deu-lhe sua Me; e em seguida, para fecundar seu ministrio, Ele lhe deu sua Cruz.Na ltima Ceia Jesus d a So Joo seu corao.Todos os apstolos, nesse momento, so ordenados padres, recebem o carter sacerdotal e tambm a Santa Comunho. Mas Joo se aproxima mais do corao do Mestre, repousa sua cabea sobre o peito sagrado do Salvador.No momento da instituio do sacramento que tem por fim aumentar em ns o amor de Deus, Nosso Senhor quis que um dos seus apstolos privilegiados sentisse mais vivamente as batidas de seu Corao, que no cessaria agora em diante de viver na Eucaristia, para a consolao e regenerao perfeita das almas.Que graa interior recebeu ento So Joo? Pode-se conceb-lo lembrando que do corpo de Jesus saa uma graa que vivificava os coraes. Certamente, Joo recebeu ento uma graa de luz e de amor: conheceu experimentalmente que o Corao do Salvador s vive por amor de Deus e das almas, compreendeu como a Eucaristia , aqui embaixo, a grande manifestao desse amor e, sob aparncias muito humildes, a prpria vida de Deus sempre presente entre ns. Predestinado de toda a eternidade a ser o grande doutor da caridade, Joo vem beber a caridade na sua fonte mesmo, e receber a inspirao das palavras que os fiis esperaro santamente at o fim dos tempos. Para melhor falar do amor do Salvador por ns, ele vem sentir de perto o ardor desse fogo espiritual que queima sem destruir e que quer nos transformar nEle.Como So Paulo se lembra, ao escrever, que foi elevado ao terceiro cu, So Joo se recorda que ele repousou sobre o Corao do Mestre.E como falou a guia dos Evangelistas! Ele vincula toda a doutrina crist a esses pontos fundamentais: Deus luz e amor. Ele que, primeiro e gratuitamente, nos amou; nosso amor deve ser uma resposta quele que Ele nos mostrou, e a caridade fraterna deve ser o grande sinal de nosso amor a Deus.O prprio So Joo resume isto escrevendo na sua primeiro Epstola (4,7-16): Meus bem-amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus, e conhece Deus. Aquele que no ama no conheceu a Deus, porque Deus amor. Ele manifestou seu amor por ns enviando seu Filho nico ao mundo, para que ns vivamos por Ele. E este amor consiste em que no fomos ns que amamos a Deus, mas ele que nos amou e que enviou seu Filho como vtima de propiciao por nossos pecados. Meus bem-amados, se Deus nos amou assim, devemos tambm amarmo-nos uns aos outros... Deus amor; e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele. em resumo todo o dogma, e tambm toda a moral crist reduzida a seu princpio: o amor de Deus e do prximo, a caridade que deve inspirar e animar todas as virtudes. Ns sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos nossos irmos (1Jo 3,14). o grande sinal do amor de Deus.O que Joo recebeu, o Corao do Mestre, ns o receberemos tambm. Na Comunho, podemos receber todos os dias o Corao Eucarstico de Jesus. E se o recebemos, se Nele cremos, devemos imit-lo. O Corao do Salvador se abre a todos os fiis, Nele somos todos reunidos, para sermos consumados na unidade. Ele no descarta ningum.Para entrar na intimidade de Cristo, preciso tambm, a seu exemplo, ter um corao que no exclua ningum, que esquea os defeitos do prximo, um corao sensvel aos sofrimentos do outro, um corao generoso ou magnnimo, que no retenha nada s para si, que d sua vida aos outros e a possua, no entanto, melhor. Lembremo-nos de que os bens de Deus se multiplicaro tanto mais quanto os dividirmos com nossos irmos; no se perde a verdade, a bondade, quando as damos: ns as possumos mais e santamente.Alegremo-nos tambm de ver no prximo o que nos falta; longe de nos deixar levar pela inveja, gozemos com suas qualidades, que so nossas em um sentido, pois que somos um no Corpo Mstico do Cristo. A mo pode se alegrar com o que o olho v. A caridade enriquece assim nossa pobreza; ela nos d todos os bens comuns; faz nossos em certo sentido todos os dons do Corpo Mstico do Salvador, e nos faz participar desde j em certa medida de todos os bens da cidade de Deus.Mas, para entrar mais ainda na intimidade de Cristo, preciso ser da escola de Maria, que mais que nenhuma criatura penetrou nesse santurio. Por isso Jesus, no momento em que ia morrer, confiou sua Me a So Joo.Entre todos os apstolos, s Joo est ao p da cruz. Ele l est, o corao triturado, testemunha de todas as torturas fsicas e morais do Mestre. Jesus o atraiu invisivelmente ao p da Cruz, para faz-lo ouvir suas ltimas palavras e para lhe dar uma ltima prova de seu amor.Aqueles que vo morrer deixam aos que lhes so mais caros um testemunho de afeio, o mais expressivo possvel. No momento de morrer, o que deixar Jesus a So Joo? Ele no tem mais nada; est despojado de tudo, abandonado por todos. Parece mesmo repelido por Seu Pai, quando, vtima em nosso lugar, diz a primeira palavra do Salmo: Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste? Nessa completa nudez, o que deixar Jesus a So Joo?Deixa-lhe uma lembrana viva, a alma Santssima que Ele quis mais que todas as outras juntas. Ele lhe deixa Maria: Filho, diz Ele, eis vossa Me, e a Maria: Mulher, eis vosso filho (Jo 19,27). E depois dessa hora, diz o quarto Evangelho, o discpulo a levou para sua casa.Se o contato do Corao de Jesus na ltima Ceia vivificou espiritualmente o corao de Joo, esta palavra do Salvador, dita do alto da Cruz, produz, como uma palavra sacramental, o que ela significa. dita por Aquele que vai morrer, mas que ainda bastante forte para tocar os coraes e os enriquecer como lhe agrada.Esta palavra criou, entre Maria e Joo, por assim dizer, um lao espiritual muito ntimo, anlogo quele que une Jesus Sua Santa Me. Ela deu a Maria uma afeio toda maternal e muito profunda que cobrir de agora em diante a alma de Joo, e ao discpulo uma ternura toda filial e respeitosa que faz dele verdadeiramente o filho espiritual de Maria.Nesta hora de agonia, esta palavra do Cristo moribundo entra no fundo de suas almas como um blsamo para suavizar seus sofrimentos e acalmar os ferimentos de seus coraes. Foi uma imensa consolao para So Joo, e tambm para Maria, por que Els, que via as almas, descobriu no discpulo bem-amado, o que ele mesmo no via, a imagem viva do Salvador, alter Christus, imagem que Maria foi encarregada de aperfeioar, de tornar cada vez mais semelhante ao Divino Modelo.Assim, muitas vezes na histria das almas, quando Jesus parece se retirar para provar a confiana de seus amigos, Ele lhes deixa sua Santa Me, confia-os a Maria.No se saberia dizer tudo o que So Joo recebeu da Virgem. Se as conversas de Santo Agostinho e de Santa Mnica em Ostia foram to elevadas, o que pensar daquelas de Maria e de So Joo?Pela plenitude da graa que ela tinha recebido, a Me de Deus era superior aos Anjos; seu corao queimava de uma caridade cuja intensidade a arrebatava sobre a de todos os santos reunidos; esta viva chama no cessava um instante de se elevar a Deus, mesmo durante seu sono, onde se verificava a palavra do Cntico (5,2): Ego dormio, sed cor meum vigilat... (Eu durmo, mas meu corao vigia).Em semelhante intimidade sobrenatural, quanto deve ter crescido tambm a caridade de So Joo, sobretudo quando celebrava a Santa Missa em presena de Maria, em suas intenes, e lhe dava a comunho! No sabia ele que a Virgem lhe era incomparavelmente superior pela compreenso do Sacrifcio do Altar que perpetua em substncia Aquele da Cruz? Maria no tinha o carter sacerdotal e no podia consagrar, mas Ela tinha recebido a plenitude do esprito do sacerdcio, que o esprito do Cristo Redentor [3]. Mediadora universal e Corredentora, ela no cessava de elevar a Deus a alma do apstolo que se encantou, assim, pela vida escondida e se tornou o modelo dos contemplativos. a pureza que tinha preparado So Joo para viver na intimidade de Cristo; ela que o qualificou para herdar o amor de Cristo por Maria, que foi profundamente sua verdadeira Me espiritual.Seguindo o exemplo de So Joo, ponhamo-nos sob a direo imediata da Virgem, como nos convidava S. Grignion de Montfort. Ela nossa mediadora aos ps de Cristo, como Ele mesmo nosso mediador aos ps de Seu Pai. Ela ser nosso conselho e nossa fora, nossa defesa contra o demnio; aumentar o valor de nossos mritos oferecendo-os, ela mesma, a seu Filho; abandonemos a Maria o valor satisfatrio e impetratrio de nossas aes, de nossas lutas, de nossas oraes para que ela consiga com isso, segundo seu agrado, benefcios para as almas que tm mais necessidade. Despojarmo-nos assim ser nos enriquecer. Sob a direo de Maria, caminharemos mais seguramente pela via traada pelo Verbo, que lhe obedeceu sobre a terra; corremos assim pela via dos mandamentos de Deus, porque recebemos a graa que dilata o corao, segundo a palavra do Salmo: Viam mandatorum tuorum cucurri, cum dilatasti cor meum. A bem-aventurana da Virgem nos ensinar mil coisas por suas inspiraes, como um boa me entrega a seu filho, com um simples olhar, sem rudo de palavras, o tesouro de sua vida interior. Com ela e na sua intimidade faremos mais progresso em alguns dias do que durante anos de trabalho pessoal cumprido longe dela. Assim fala So Luiz Grignion de Montfort, verdadeiro filho espiritual de Maria, como foi So Joo[4].Nosso Senhor deu a So Joo seu Corao e sua Me, que lhe dar ainda para fecundar seu ministrio apostlico? Ele lhe dar sua Cruz e progressivamente o far compreender qual o seu valor inestimvel.A amizade de Jesus s tem douras e complacncias; ela to forte quanto terna, tende a purificar pela provao e a se associar s almas no mistrio da Redeno pelo sofrimento.Os apstolos no compreenderam tudo de incio. Como Jesus falava da fundao do reino de Deus, os apstolos se perguntavam um dia quem dentre eles seria o maior nesse Reino. Ento, como conta So Mateus (18,3), Jesus, tomando uma criana, colocou-a no meio deles e lhes disse: Eu vos digo, em verdade, se vs no vos converterdes e no vos tornardes como crianas, no entrareis de modo algum no Reino dos Cus. Muitas vezes tambm o Mestre havia dito: "Se algum quiser vir atrs de mim, que renuncie a si mesmo, carregue a sua cruz e me siga. [5] Mas os apstolos no compreendiam ainda todo o sentido dessa palavra: a cruz. Eles no podiam imaginar que Jesus seria crucificado embora Ele o houvesse predito para eles vrias vezes.Um dia, subindo a Jerusalm com eles, Nosso Senhor renova a profecia da sua Paixo, de sua Crucificao, de sua Ressurreio; Ele queria grav-la mais profundamente no esprito de Joo e de seu irmo. Nesse momento, a me destes se aproxima de Jesus e se prosterna como para pedir alguma coisa. Como o conta So Mateus (20,21), Jesus lhe diz: O que queres? Ela responde: Ordene que meus dois filhos que aqui esto se sentem um Vossa direita, outro Vossa esquerda, no Vosso Reino". Jesus diz-lhes: Vs no sabeis o que pedis. Podereis beber do clice que Eu hei de beber? Podemos, lhe dizem eles. Ele lhes responde: Vs bebereis com efeito do meu clice, quanto a estardes sentado minha direita ou minha esquerda, no cabe a mim vo-lo conceder, mas ser para aqueles para quem meu Pai o preparou. Desde esse dia, Jesus deu sua Cruz a seu discpulo bem-amado.Essa palavra do Salvador, como as duas outras ditas a So Joo, produziu na alma do discpulo o que ela significava. A partir desse instante, Joo no procurou mais ser o primeiro; comeou a amar o sofrimento, a humilhao e este amor no cessou de crescer em seu corao sob a influncia da graa.Jesus o tornou cada vez mais semelhante a Ele; ora, Ele veio para sofrer como vtima da salvao, para nos salvar pela Sua agonia mais que pelos seus discursos. Ele unir ento, cada vez mais, So Joo sua vida laboriosa e crucificada. Quando Jesus entra em algum lugar, diz Bossuet, Ele ali entra com sua cruz e seus espinhos; Ele concede parte nisso queles que O amam. Ora, Joo seu apstolo bem-amado, Ele lhe faz ento presente desta enorme graa que o amor da Cruz.Joo cria de incio que, para ter um lugar escolhido no Reino do Filho de Deus, era preciso estar sentado sua direito e revestido de sua glria. Ele vai aprender porm que entra-se profundamente no Reino, desde aqui embaixo, pelo sofrimento; Ele saber como a provao nos torna clarividentes para contemplar Jesus nas almas. A aflio lhe abrir os olhos, Joo compreender o sentido profundo da mais alta das bem-aventuranas, a mais surpreendente para a razo humana: Bem-aventurados aqueles que sofrem perseguio pela justia, porque deles o Reino dos Cus. Ele deles desde aqui embaixo, no meio mesmo da perseguio, pela paz profunda que Jesus lhes d.Qual foi a cruz de Joo? Vendo as coisas de fora, parece que, de todos os apstolos, ele tenha tido a mais leve. S ele no foi morto nos sofrimentos do martrio. Sofreu, no entanto, a perseguio, sob Domiciano; foi mergulhado, em Roma, num banho de leo fervendo. Mas este leo se transformou em orvalho, ele saiu dali refrescado e purificado. Foi em seguida exilado para Patmos, onde Nosso Senhor glorificado lhe apareceu e lhe revelou seus segredos, ordenando-lhe que os escrevesse nesse livro, o mais misterioso de todos os livros sagrados, o Apocalipse.Vendo as coisas de fora, a cruz de So Joo parece ter sido mais leve que a dos outros apstolos. Mas como diz Bossuet[6]: A cruz de So Joo foi a maior d todas no interior. Consideremos o mistrio, as duas cruzes de Nosso Salvador. Uma se v no calvrio, e ela parece a mais dolorosa; a outra aquela que Ele levou durante todo o curso de sua vida, a mais penosa. Jesus diz vrias vezes a Santa Catarina de Sena, esta cruz interior aquela do desejo da salvao das almas, desejo combatido pelo esprito do mal, pelo esprito do mundo, pela cobia que arrasta milhares de almas para sua perda. Na vida de Jesus segue-se o progresso da malcia daqueles que se encarniam contra Ele, o que torna mais ardente a sede da salvao das almas que O queima e O consome. O martrio do corao muitas vezes mais doloroso que o outro e pode durar, no somente algumas horas, mas longos anos. sobretudo esta cruz interior do desejo da glria de Deus e da salvao das almas que Jesus deu a So Joo. Ela no atingia pois os sentidos, mas estava impressa por Deus no fundo da alma com o vivo desejo da salvao dos pecadores. Para tornar o apstolo capaz de carregar esta cruz interior, Jesus lhe inspirava o amor dos sofrimentos, que avivava o desejo mas acalmando-o e impedia a alma de repousar fora de Deus. O mesmo acontece a certas almas chamadas santidade: se se detm de um modo natural demais numa satisfao que vem das criaturas, logo Nosso Senhor derrama sobre tal satisfao uma gota de amargura; e esta amargura ultrapassa de muito o prazer experimentado; uma graa crucificante e purificadora.Enfim a cruz interior para So Joo veio sobretudo das heresias que mutilaram a Santa Igreja negando a divindade de Jesus. Quanto esta negao deve ter torturado o corao daquele que escreveu o quarto Evangelho, que tinha por finalidade mostrar o Verbo feito carne em toda sua glria! Esta cruz interior vinha tambm das divises que se produziram na Igreja nascente, para grande detrimento da caridade. Assim, o apstolo, com oitenta anos, fazia-se levar pelos seus discpulos Igreja de feso e, no podendo mais pregar longamente, dizia: Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros. Ele que, na sua juventude, por causa do seu ardor, tinha sido chamado por Nosso Senhor, junto com seus irmos, boarnerges, filhos do trovo, ele no sabia mais falar a no ser da caridade fraterna, o grande sinal do amor de Deus. Joo no tinha perdido nada do seu ardor, da sua sede de justia, mas esta estava espiritualizada e era acompanhada de uma grande doura. E como os ouvintes lhe perguntavam por que ele repetia sempre a mesma coisa, Joo respondia: o preceito do Senhor e se vs o cumprirdes, suficiente.Tal foi a cruz de Joo, sobretudo interior.O Senhor no-la d tambm. H trs espcies de cruz: aquelas que ficam inteis como a do mau ladro; aquelas que se carrega para reparar as prprias faltas e para merecer a salvao, como a do bom ladro; e aquelas que fazem pensar na Cruz do Salvador, e que se carrega para trabalhar com Ele para a salvao das almas. A cruz bem carregada nos carrega por sua vez; ela abre os olhos e conduz contemplao, a ver Deus escondido nas almas. Se ela nos parece por vezes bem pesada, peamos ao Salvador dar-nos o amor do sofrimento, orientar-nos, pelo menos, neste caminho. o que Ele quer, pois que nos deu Seu Corao, o qual um corao sofrido. Ele nos deu tambm Sua Me, e uma das maiores graas que Nossa Senhora das Dores possa nos obter a de saborear a cruz que o Senhor nos imps para nos purificar e nos fazer trabalhar para a salvao das almas[7]. Isto verdadeiramente entrar na intimidade de Cristo e participar de sua vida escondida e dolorosa antes de termos parte na sua vida gloriosa no Cu[8].Notas:[1] Cf. S. Toms, I, q. 20, a. 2: "Amor Dei est infundens et creans bonitatem in rebus". a este princpio que S. Toms liga todo o tratado da graa; cf. Ia. IIae, q. 110, a. 1, c et ad 1m: "Causatur ex dilectione divina, quod est in homine Deo gratum".[2] Panegrico de S. Joo.

[3] So palavras de M. Olier.

[4] Ver seu "Tratado da Verdadeira Devoo Santssima Virgem", cap. IV, a. 5; cap. V, a. 2, e o resumo que fez sob o ttulo: "O Segredo de Maria".

[5] Mateus, 16, 24.

[6] Panegrico de S. Joo, primeiro ponto.

[7] A expresso "saborear a cruz" lembra que Nosso Senhor declarou: "Muitos no provaro a morte antes que vejam vir o Filho do homem no seu reino" (Mt 16, 28). Santo Toms diz a este respeito (in Mathaeum, 16, 28): Pecatores absorbentur morte sed justi gustabunt mortem": Os pecadores so absorvidos, como engolidos pela morte, os justos saboreiam a morte, que a entrada na vida eterna.

[8] Para entrar na intimidade de Cristo, releiamos s vezes o hino composto por uma abadessa beneditina do sculo XIV:

Jesus dulcis memoria,Dans vera cordis gaudia;sed super mel et omnia,ejus dulcis praesentia.

Nil canitur suavius,Nil auditur jucundius,Nil cogitatur dulcius.quam Jesus Dei Filius.

Jesu, spes poenitentibus,Quam pius es petentibus!Quam bonus te quarentibus!Sed quid invenientibus?Doce a lembrana de Jesus,Ele d as verdadeiras alegrias do corao;Mais que o mel e todas as coisasdoce a sua presena

No se canta nada mais suavenada se ouve de mais agradvelnenhum pensamento mais doceque Jesus o Filho de Deus.

Oh Jesus! esperana dos penitentes.como Vs sois terno para os que vos imploramcomo sois bom para os que Vos procurammas o que no sois para os que Vos encontram!

No menos bela essa orao alem cantada h muito tempo pelos fiis:

Ich danke dir, Herr Jesu Christ

Dass du fr mich gestorben bist

Lass dein Glut und deine Pein

An mir doch nicht verloren sein

O liebe, o unendliche Liebe Gottes!Obrigado Senhor Jesus

Por terdes morrido para nos salvar

No permiti que Vosso sangue e Vossa CruzSejam para sempre perdidos por mim amor, amor infinito de Deus por ns!

Digamos como Santo Nicolau de Fle: Nimm mich mir, und gib mich Dir - Senhor, tomai-me de mim e dai-me a Vs.

Para entrar na intimidade de Cristo, releiamos s vezes o hino composto por uma abadessa beneditina do sculo XIV: