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A Inútil Poesia

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poesia

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A intil poesia de Mallarm

Folha de S.Paulo,13/3/1992.

H alguns anos, dei um curso sobre Mallarm a estudantes do quarto ano de graduao em letras. Quando lhes mostrei, pela primeira vez, "Um lance de dados"; a reao de um grupo foi forte. Primeiro, eles ficaram espantados; depois trocaram comentrios, abanaram a cabea e comearam a rir. Uma das alunas bateu o dedo na testa, querendo dizer: " doido: Quem se espantou, ento, fui eu. A resistncia daqueles alunos, leitores presumidamente especiais por terem escolhido o curso de letras e por estarem no fim de sua formao, obrigou-me ao que me parecia dispensvel: defender o poema de Mallarm. Os poemas romnticos, sentimentais, no encontram tal resistncia entre os leitores. Todos tm sempre um tempinho a perder, comparando a experincia existencial do poeta com as suas, projetando-se nela. O mesmo quanto a poemas que defendem causas polticas ou comemoram eventos. Victor Hugo louvando paternalistamente os pobres ou Castro Alves defendendo os escravos so sempre bem aceitos. Porque, nesses casos, a poesia "serve para alguma coisa; e, assim sendo, as excentricidades desse tipo de linguagem (mtrica, rima, palavras raras e sonoras) podem ser toleradas. Em nossa sociedade, tudo tem de ter serventia ou trazer lucro. J dizia Baudelaire que Hugo era benquisto pela burguesia porque oferecia uma lio de moral como forma de lucro. E Barthes observava que o ator de teatro que chora e sua muito em cena faz sucesso parque o espectador sente que o dinheiro do ingresso foi bem compensado. Ora, quando disseram a Mallarm que ele no chorava em seus versos, o poeta respondeu: "Tambm no me asso neles". Um poema como "Um lance de dados" d trabalho ao leitor e no lhe oferece nenhum prmio imediato, de prazer narcsico ou de informao prtica. E sobretudo essa falta de compensao, mais do que a dificuldade de leitura, que cria a resistncia dos leitores. O emprego de diferentes tipos grficos e do branco da pgina no , de modo algum, estranho aos leitores de hoje. O jornal, o cartaz e o anncio fazem largo e cotidiano uso desses recursos. Mas no poema essas coisas funcionam de modo mais difcil, objetavam meus alunos renitentes. De fato, para comear a entender "Um lance de dados" preciso descobrir que determinadas palavras, ou blocos de palavras, impressos em determinados tipos, atravessam o texto todo, formando frases autnomas; que essas palavras tambm funcionam, criando outros sentidos, com as que as cercam e so de outro formato; que o branco est no lugar do silncio, e que esse silncio no quieto; que o texto pode ser lido na vertical como na horizontal; que uma pgina justaposta a outra no , a, apenas uma contingncia de encadernao etc. Tudo isso de fato complicado. Mas ser mesmo to difcil? Nossa vida cotidiana est cheia de impressos extremamente complicados, cuja decifrao exige o domnio de cdigos complexos. Um extrato de banco ou o formulrio de imposto de renda, por exemplo. O jornal cotidiano tambm exige mais proficincia do que a simples alfabetizao. Sabemos que ele no precisa ser lido na ordem, da primeira ltima pgina, mas permite uma leitura salteada ou diagonal. Que podemos ler s o que est escrito em letras grandes, isto , as manchetes. E ningum estranha, e muito menos morre de rir diante deles, extratos, formulrios ou notcias de jornal. A grande diferena, que para o leitor comum justifica o esforo (tornado at imperceptvel pelo hbito), que todos esses impressos "servem para alguma coisa. E "Um lance de dados" difcil sem ser prtico. Uma vez decifradas as frases que atravessam o poema, verificamos que elas no nos informam nada de til, e nem ao menos tm um sentido seguro. A diferena, pois, que enfarruscou meus alunos de letras, no tanto a dificuldade quanto a utilidade presumida. Ora, se nos dispusermos a "perder tempo" e penetrar no que o intil poema nos diz, toda a utilidade dos outros impressos que ser posta em causa. E at mesmo a sanidade mental dos usurios dos impressos teis. Afinal, ser realmente sensato e necessrio, para vivermos plenamente a nica e breve vida que nos dada, passarmos tanto tempo s voltas com esses impressos? Comparemos: CH COMP T 107242 19.000 D mais srio do que O NMERO EXISTIRIA COMEARIA E CESSARIA CIFRAR-SE-lA ILUMINARIA? (Preciso dizer que a primeira frmula pertence a um extrato bancrio, e a segunda a Mallarm, em traduo de Haroldo de Campos?) E uma manchete qualquer de jornal mais verdadeira e esclarecedora do que UM LANCE DE DADOS JAMAIS ABOLIR O ACASO? Ainda mais: as frmulas de Mallarm no seriam, exatamente e de vis, um questionamento do extrato bancrio e das notcias do jornal? Chegamos ento ao X do problema, que uma questo de valor. No podemos responder seguramente s perguntas acima formuladas porque as frmulas comparadas pertencem a linguagens com funo e objetivo evidentemente diversos. Tambm no podemos afirmar de imediato a superioridade qualitativa do poema, a menos que nos apoiemos em valores absolutos como o Esprito, o Ideal ou a Beleza. Ora, mesmo que no se afirme a priori a qualidade superior do impresso-poema, podemos afirmar que ele tem uma superioridade sobre os outros: ele coloca a questo do valor, de seu prprio valor e de todos os outros textos que consumimos passivamente, sem duvidar de nada. Por sua prpria "inutilidade" o poema nos obriga a repensar a "utilidade" dos outros impressos. Usando as palavras com outros fins que no os prticos, sendo um "inutenslio" (Paulo Leminski), o poema pe em questo a utilidade dos outros textos e da prpria linguagem. Afirmando coisas inverificveis, irredutveis a um referente, o poema questiona a verificabilidade e a referencialidade das mensagens que nos chegam cotidianamente. O poema vem lembrar, imperiosamente, que tudo linguagem, e que esta engana. Que a linguagem est o tempo todo fingindo-se de transparente, de prtica e de unvoca, e nos enreda num comrcio que nada tem de essencialmente verdadeiro e necessrio. No por acaso Mallarm comparou a palavra moeda que passa de mo em mo e se gasta, perdendo o relevo e o brilho. Banalizada e desgastada no manuseio cotidiano, a linguagem perde seu valor-ouro e adquire um mero valor venal. Contaminadas pelas relaes econmicas, todas as relaes humanas, trocadas no mido da fala, se corrompem e se desgastam. A funo do poeta moderno, assumida exemplarmente por Mallarm, opor-se a esse comrcio aviltante, e propor a utopia de outras trocas linguageiras. Seu trabalho consiste em "dar um sentido mais puro s palavras da tribo, fazer com que elas, em vez de funcionar apenas como valores de representao da realidade, instaurem uma realidade de valor. Essa a alta funo dos poetas, aqueles inteis, aqueles doidos que passam seu tempo tirando as palavras da circulao normal, para lustr-las e ilustr-las num outro circuito, mais livre e essencial. E essa funo - crtica, restauradora, utpica - obriga-nos a repensar o ainda to malvisto hermetismo, a to malfalada "torre de marfim" dos poetas da modernidade. H mais de cem anos se tm condenado aqueles "elitistas" e "alienados"; que voltaram as costas para as questes "srias" de seu tempo e, aristocraticamente, ficaram brincando com seus bibels sonoros, enquanto a Histria urgia e rugia: Poe, Baudelaire, Mallarm, Pessoa e tutti quanti. Aos racionalistas incomoda o vago da linguagem potica, sua ausncia de sentido imediato, claro e fixo. Como se isso fosse um luxo indecente, um atentado contra a humanidade, que necessita de respostas concretas e solues rpidas. O que esses crticos no vem que a abertura do sentido, na poesia, um luxo doado a todos os homens, o direito a todos os desejos e a todos os futuros, a contracorrente do sentido nico da tica oficial, dos governos e das finanas. As "torres de marfim" em que se fecharam os poetas da modernidade foram uma reao, nunca um reacionarismo. Sua atitude no era de fuga, mas de protesto contra uma sociedade utilitarista, uma cincia arrogante e uma literatura naturalista. Mallarm ocultou-se sob a modesta condio de professor de ingls para dedicar-se, nas horas vagas, ao escndalo de sua sintaxe. Semelhante a ele, Flaubert, o ermito de Croisset, que trabalhava a prosa como se fosse poesia, decidiu passar os seus dias pesando as palavras de uma nica frase. Ambos tinham plena conscincia da escolha que faziam, da recusa que ela implicava sofreriam. Mallarm afirmava: "A poesia um edifcio estranho ao resto do mundo". O que no era vivido por ele como uma festa, mas corno uma condio assumida: "Tristeza de que minha produo fique, para estes, por essncia, como as nuvens ao crepsculo ou as estrelas, v". E escrevia a Verlaine, em novembro de 1885: "No fundo considero a poca contempornea um interregno para o poeta, que a ela no deve se misturar: ela est por demais caduca e em efervescncia preparatria para que ele tenha outra coisa a fazer seno trabalharem mistrio, com vistas a mais tarde ou a jamais. Neste outro fim de sculo, teremos j sado da caducidade e da "efervescncia preparatria" de um tempo hostil intil poesia? Na mesma poca que Mallarm, Holderlin perguntava: Para que poetas num tempo de indigncia?". E respondia que, enquanto "uma cabea ajuizada pondera lucros e perdas", o poeta " o que permanece, o que traz o rastro dos deuses desaparecidos s trevas nferas dos sem-deuses" (traduo de Jos Paulo Paes). Mallarm permanece exemplar. Tendo exercido a poesia como um sacerdcio, sua lucidez e sua integridade foram absolutas. Seu valor esttico hoje reconhecido; talvez ainda no tenha chegado o tempo de seu reconhecimento poltico, do reconhecimento da poesia como valor social. Lembremo-nos do que diz Roman Jakobson em Questes de potica:

A obra potica, no conjunto dos valores sociais, no predomina, no triunfa sobre os outros, mas no deixa de ser o organizador fundamental da ideologia, constantemente orientada para esse objetivo. a poesia que nos protege contra a automatizao, contra a ferrugem que ameaa nossa formulao do amor e do dio, da revolta e da reconciliao, da f e da negao [...] somente quando uma poca acaba de morrer, e quando se dissolveu a estreita interdependncia entre seus diversos componentes, somente ento que, do famoso cemitrio da histria, se levantam, acima de toda espcie de velharias arqueolgicas, os monumentos poticos.

A obra de Mallarm um desses monumentos.__________________________

PERRONE-MOISS. Intil poesia e outros ensaios breves. So Paulo: Companhia das Letras, 2000.