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A invenção do viver bem: transformações nos hábitos de consumo na cidade do Natal, 1900-1930 Hélder Viana PPGH - UFRN Nas três primeiras décadas do século XX, a sociedade natalense passou por profundas transformações. Hábitos, formas de consumo e de sociabilidade centenárias foram sendo abandonados. À frente dessas mudanças estavam pedagogos, médicos, engenheiros e comerciantes. Todos, ao seu modo, criticavam os hábitos e os costumes tradicionais, vendo neles fatores que dificultavam o progresso da cidade e o contato da população com os ares da modernidade. Nesse processo, as transformações realizadas no comércio e nos serviços tiveram desdobramentos importantes, ao mesmo tempo em que são chaves fundamentais para se compreender a natureza das mudanças sociais operadas. O comércio de vestuário e de calçados, por exemplo, inseria-se cada vez mais num sistema de moda, introduzindo entre a população o hábito de consumir periodicamente esses produtos. Por outro lado, um novo mercado de serviços surgia associado às novas demandas decorrentes das transformações na vida urbana. Este trabalho busca entender tais mudanças no consumo de bens e serviços como, por parte da população, um meio de internalização de valores modernos. Tais valores apresentavam-se na forma do cuidado com o corpo, preocupação com o conforto, adoção de noções de comodidade e estilo. Procuro compreender como essa internalização – que antes não passavam de idéias abstratas e de pouca importância social – serviu não só como um novo referencial de status e redefinidor da hierarquia social, mas como algo central no processo de expansão do individualismo. Por outro lado, compreender procura-se compreender como essas mudanças também como a importância social atribuída aos objetos de consumo possibilitou uma reorganização do espaço urbano pautado na “segmentação” da cidade, no estabelecimento de uma nova

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A invenção do viver bem: transformações nos hábitos de consumo

na cidade do Natal, 1900-1930

Hélder Viana PPGH - UFRN

Nas três primeiras décadas do século XX, a sociedade natalense passou por profundas

transformações. Hábitos, formas de consumo e de sociabilidade centenárias foram sendo

abandonados. À frente dessas mudanças estavam pedagogos, médicos, engenheiros e

comerciantes. Todos, ao seu modo, criticavam os hábitos e os costumes tradicionais, vendo

neles fatores que dificultavam o progresso da cidade e o contato da população com os ares

da modernidade.

Nesse processo, as transformações realizadas no comércio e nos serviços tiveram

desdobramentos importantes, ao mesmo tempo em que são chaves fundamentais para se

compreender a natureza das mudanças sociais operadas. O comércio de vestuário e de

calçados, por exemplo, inseria-se cada vez mais num sistema de moda, introduzindo entre a

população o hábito de consumir periodicamente esses produtos. Por outro lado, um novo

mercado de serviços surgia associado às novas demandas decorrentes das transformações na

vida urbana.

Este trabalho busca entender tais mudanças no consumo de bens e serviços como, por

parte da população, um meio de internalização de valores modernos. Tais valores

apresentavam-se na forma do cuidado com o corpo, preocupação com o conforto, adoção de

noções de comodidade e estilo. Procuro compreender como essa internalização – que antes

não passavam de idéias abstratas e de pouca importância social – serviu não só como um

novo referencial de status e redefinidor da hierarquia social, mas como algo central no

processo de expansão do individualismo.

Por outro lado, compreender procura-se compreender como essas mudanças também

como a importância social atribuída aos objetos de consumo possibilitou uma reorganização

do espaço urbano pautado na “segmentação” da cidade, no estabelecimento de uma nova

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hierarquia de prestígio e de distinção dos lugares da cidade, além de introduzir novas formas

de julgamento social entre os indivíduos.1

Propaganda, comércio, serviço e novidades do viver bem

Um dos indicadores da mudança do consumo da sociedade local foi a propaganda.

Esta tornou-se corriqueira na cidade do Natal, ao aparecer cada vez mais nos jornais

divulgando o crescente comércio e os novos serviços oferecidos à população.

O aumento da propaganda nos jornais foi notório, considerando que no século XIX ela

ocupava apenas algumas pequenas notas no pé da página em meio a matérias políticas. No

decorrer dos anos, alguns jornais chegavam a dedicar toda uma sessão à veiculação de

propagandas, que recebiam também novas formas de diagramação e ilustrações. Sua

linguagem foi também alterada, ficando muito mais persuasiva em seu apelo comercial. Em

alguns casos, chegava a ser bastante ardilosa, com alguns anunciantes criando diversos apelos

propagandísticos, que buscavam seduzir o leitor. Em um deles, um suposto freguês faz

campanha aberta, de modo aparentemente despretensioso, para uma casa comercial. Há

nele um clamor aos leitores para aproveitar os produtos oferecidos pelo estabelecimento

comercial como um negócio de ocasião sem igual. A nota do hipotético freguês foi publicada

em diversos números do jornal e em todas as ocasiões ela aparece ao lado da propaganda da

referida casa comercial.

1 A noção de “segmentação” da cidade aparece inicialmente nos trabalhos do urbanista Louis Wirth, de Chicago,

sendo retomada por Richard Sennett no seu estudo sobre as transformações operadas no espaço público no mundo contemporâneo. SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 172.

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(fig.1) Nos anos 1930 é possível ver a propaganda do xarope Peito de Aço estampada em uma das principais avenidas da cidade, através desta estratégia o interesse pelos produtos poderia ser despertado em qualquer transeunte, mesmo sem escolaridade.

Na propaganda do tônico Emulsão de Scott, um pai dá o seu testemunho dos

benefícios que o remédio teria proporcionado à saúde de sua filha, durante anos acometida

de eczema e anemia. Antes do depoimento aparece o seguinte texto: “Sra. Leonor Pedrozo.

Embelecida com a Emulsão Scott”, seguido do desenho de uma bela e vigorosa jovem. O

mesmo anunciante, em uma outra propaganda, usa o desenho de uma jovem e bela senhora

antecedido pela seguinte frase “Esta senhora foi curada radicalmente da tuberculose

pulmonar”. A apresentação é seguida de um longo testemunho do marido que conclui assim:

“Quando já pareciam esgotados todos os recursos da ciência, dou graças a Deus por ter conhecido o Dr. R Patrón, desta cidade, quem receitou a Emulsão Scott e a esta maravilhosa medicina – alimento, deve minha esposa ter curado completamente de tão terrível enfermidade”’ – José Walker, Ensign do Exército da Salvação – La Plata, Argentina (A República, 23/03/1910).

Apesar de preponderante nos jornais da época, a propaganda não se restringia a eles.

As casas comerciais passavam a introduzir novas maneiras de chamar atenção de seus

clientes. Panfletos, catálogos ilustrados, placas, apareciam na cidade mudando aos poucos o

andar calmo e descomprometido dos transeuntes.

A presença constante das propagandas nos jornais, a variedade de produtos e apelos

apresentados por elas denotam a pujança do comércio e dos serviços na cidade. Pela

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natureza dos produtos ofertados percebe-se que se trata de um comércio varejista

direcionado ao mercado local e não mais um comércio atacadista de produtos de exportação,

como predominou no século XIX.

Apesar de amplo, o comércio propagado não atingia todas as classes e segmentos

urbanos. Em grande parte estava voltado para a crescente classe média urbana e para as

camadas mais altas. O aparecimento desse comércio significou mudanças sociais mais

profundas, sobretudo para essas camadas sociais. Por outro lado, a expressiva propaganda e

a proliferação do comércio e serviços assinalam um novo sentido dado à noção de viver.

1. Cuidados com o corpo

Um dos aspectos que marcou o comércio no período foi o sortimento de produtos

medicinais e de higiene. Nos jornais proliferam os anúncios de medicamentos, todos

prometendo solucionar diferentes problemas de saúde: tônicos, elixires, depuradores, cremes

e pomadas eram espalhados em grande escala pela emergente indústria farmacêutica.

Nas listas de medicamentos e associados aparecem: o Kolyohimbina, tônico

“acelerador das forças e da nutrição”, que também era indicado para o tratamento da prisão

de ventre; a Cadina, medicamento destinado à cura de moléstias da pele; o Gastricol:

remédio para os males do estômago; o Elixir 914, um depurador do sangue, entre outros.

Alguns anunciantes eram persuasivos na sua propaganda, ao associar as propriedades

terapêuticas dos medicamentos a soluções de problemas cotidianos. Assim, em um dos

anúncios do Elixir 914 vinha a advertência: “Ninguém deveria contrair matrimônio, sem

primeiro depurar o sangue usando o Elixir 914”. O aviso assinalava um aspecto nas atitudes

diante de temas tabus ligados à sexualidade, como o contágio de doenças venéreas. Ao levar

a questão para o universo da propaganda, o mercado possibilitava à população encará-la com

mais naturalidade, ao mesmo tempo em que a persuadia ao uso indiscriminado dos

medicamentos.

Muitas propagandas procuravam associar as propriedades do medicamento com a

restituição da beleza. Nesse aspecto, o público feminino era o principal foco do apelo

publicitário.

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Nada desfeia mais o rosto das senhoritas como a cor macilenta, os cravos, espinhas, eczemas e outras erupções da pele que provém da impureza do sangue. A Emulsão de Scott regenera e enriquece o sangue melhor e mais rapidamente do que nenhum outro remédio expele do sistema toda a impureza e dá à tez a cor rosada que é distintiva de beleza e saúde (A República, 28 de março de 1910).

A busca de uma higiene e saúde também atingiu a produção de alimentos. Alguns

comerciantes e produtores de alimentos, como a Padaria Independência, procuravam atestar

publicamente que o seu estabelecimento “oferece superioridade aos seus congêneres por

serem as massas preparadas por um maquinismo aperfeiçoado, movido a vapor, não

podendo haver competência em asseio, preços e qualidades na fabricação de todos os

artefatos” alimentares (Diário do Natal, 10 de novembro de 1904). Assim, era cada vez mais

incutido na população que a escolha dos alimentos passava necessariamente pelos cuidados

com a higiene com que eles eram preparados. A demonstração da obediência a esses critérios

era um certificado para o sucesso de aceitação do produto. Através de propagandas como

essa podemos perceber o quanto a preocupação com a alimentação foi aos poucos se

tornando um pilar importante na definição da saúde da população.

Além do comércio, uma série de serviços atentava para a preocupação com o corpo.

Médicos, dentistas, farmacêuticos, mas também barbeiros demonstravam a importância dada

ao corpo naquela sociedade.

Nos anúncios de dentistas aparecia fortemente a preocupação em pôr fim ao medo

dos tratamentos dentários. Para isso, apelavam para a eficácia das novas técnicas de arrancar

dentes sem dor. Alguns, como o doutor Armagillo de Loyola, anunciava a realização de

“extrações dentárias absolutamente sem dor, com aplicação de anestesia pela refrigeração”

(Gazeta do Comércio, 15/11/1901), outro como o doutor Pedro Nunes de Sá atestava o efeito

do anestésico local Stovaina como garantia de insensibilidade absoluta (A República,

4/8/1910).

Os dentistas também ofereciam seus serviços de restauração e implantação de dentes

postiços (coroas, próteses), difundindo ainda mais entre a população local o cuidado com a

aparência física. Assim, os casos de ausência de dentes tornavam-se cada vez mais uma

mostra de desleixo e falta de cuidado do indivíduo, o que deveria ser repugnado por uma

sociedade saudável.

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No decorrer das décadas primeiras décadas do século, os médicos e seus consultórios

estavam cada vez mais presentes na sociedade. Em relação ao século XIX, os serviços médicos

deixavam de ser uma quase exclusividade de uma elite abastada que podia pagar por um

atendimento domiciliar, para se tornar uma profissão mais popularizada, acessível,

sobretudo, às camadas médias. As mulheres apareciam como um dos principais pacientes

desses médicos. Muitos deles dedicavam-se a serviços de obstetrícia e ginecologia, aos

tratamentos dos “males da mulher”.

As farmácias proliferaram no período, muitas delas exercendo funções que iam além

da venda de medicamentos. Nos jornais elas aparecem como testemunhas das funções

terapêuticas dos seus próprios remédios. Entre esses medicamentos anunciados muitos se

mostram associados à revitalização da aparência física e da higiene pessoal. Eram tônicos que

afirmavam curar o problema da caspa e da queda de cabelo, óleos, cremes e vaselinas que

ajudavam a cuidar das barbas, bigodes e cabelos; os pós dentifrícios que apareciam como

meio eficaz de limpeza dos dentes e de combate ao mau hálito.

Na tentativa de dar aos seus produtos um valor a mais, os comerciantes faziam da

aprovação dada aos seus produtos medicamentosos pela autoridade oficial, através dos

órgãos de saúde pública, um referencial de propaganda, um atestado da eficácia e idoneidade

do produto.

O crescimento de propagandas de remédios nos jornais parece estimular um consumo

exacerbado de medicamentos sem acompanhamento médico, uma prática que causava

grande indignação da categoria médica. Em seu livro Notas de um médico de província, o

doutor Januário Cicco alertava sobre o poder de convencimento das propagandas de jornais

no estímulo ao consumo de remédios sem prescrição médica por parte da população pobre:

O cliente pobre, que assina o nome e tem a infelicidade de ler jornal, cata nos anúncios a nomenclatura dos remédios em voga e suas aplicações, e compra o que lhe convém, certo da cura que lhe promete o industrial. Conta-se que uma vez uma senhora leu, num jornal de certa província, o atestado de seu médico, recomendando uma droga farmacêutica muito ‘vantajosa’ para incômodos femininos. Comprou um vidro e o resultado foi negativo. Dirigiu-se, então, ao médico e narrou os males que lhe advieram com o tal preparo, respondendo-lhe o esculápio que “atestado de jornal é receita para o drogista. (CICCO, 1926).

As farmácias também desempenhavam funções de consultórios médicos, alargando

ainda mais o campo de cobertura do atendimento médico à população. A farmácia Torres,

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por exemplo, localizada no bairro da Ribeira, possuía um consultório com seis médicos que

davam plantões diários das oito da manhã às cinco horas da tarde.

O cuidado com o corpo aparecia também através do grande aumento no número de

artigos destinados à prática de esportes. Os jornais anunciavam a venda de ditos para

ciclistas, roupas esportivas, equipamentos para a prática do remo, demonstrando a

proliferação e a especialização dos artigos necessários para todos aqueles que quisessem

exercer alguma atividade esportiva.

O apelo das propagandas à prática de esportes parece responder ao sombrio

diagnóstico apresentado por Eloi de Souza, ainda em 1908, sobre a ausência de atividade

física entre as mulheres natalenses: “Cidade igualmente campestre e marítima, não existe

talvez em toda ela três raparigas que saibam nadar ou vinte senhoras que montem a cavalo

sem grande enfado” (SOUZA, 1908: 43).

As novas propagandas estavam em consonância com o espírito reformador pregado

por pedagogos como Henrique Castriciano, que propunha uma profunda mudança no ensino.

Para ele o ensino feminino deveria ser uma alternativa às rotinas domésticas, à falta de

valores estéticos e à educação livresca. Já o masculino deveria ser permeado pela prática de

“jogos higiênicos”, ou seja, aqueles destinados a formar a disciplina e a sugerir a decisão

pronta.

A partir da década de 1920, a prática de vários esportes mostra-se bastante difundida

na cidade. O futebol e o remo eram disseminados pelos clubes esportivos, através de

freqüentes competições.

Foi ainda na década de 1910 que surgiram os dois principais clubes náuticos da cidade:

o Esporte Clube de Natal e o Centro Náutico Potengi. Em pouco tempo esse esporte ganhava

praticantes e admiradores em toda a cidade, conforme observou o pedagogo Henrique

Castriciano, em relação às atividades desenvolvidas pelo Centro Náutico: “Começou há um

ano e já conta cento e dezoito sócios bem disciplinados: quase todos já sabem nadar e remar

e a transformação moral e psíquica que pode ser averiguada por todos” (CASTRICIANO, s/a:

324).

A importância da prática do remo e de outros esportes como o futebol, o tênis, a

ginástica e a natação foi enaltecida por proporcionar um novo modelo corpóreo baseado

numa estrutura física avantajada, com músculos definidos, que deveria ser tomada como “o

primeiro passo consciente para a regeneração física da juventude”.

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Num artigo da revista Cigarra, o jornalista esforçou-se por estabelecer uma relação

entre estética e moral, associando o corpo robusto do remador a saúde física e ao

comportamento moral desejável, e os corpos frágeis dos boêmios inveterados.

O todo harmônico de um remador que metodicamente se tenha desenvolvido e caminhe para a sua perfeição física, faz, com certeza, que o jovem que maneje o remo, que lute com a água, que se encrispe de energia, de vigor e de saúde, volte os olhos do seu para o corpo emasculado e franzino dos que deixam levar pela vida desregrada dos “bars”, dos “cabarets”, dos vícios, do aniquilamento físico, afinal. E deste confronto nascerá, na verdade, o júbilo da sua riqueza corpórea, o desejo de transformar-se em artista do seu igual (CIGARRA, 1929: v. 3).

Uma outra experiência eu também demonstrava esta preocupação com o corpo e a

disciplina foi o escotismo. Coube também a Castriciano propagar o movimento no estado do

Rio Grande do Norte, estimulando desde cedo o gosto de crianças e jovens pelas atividades

físicas, o amor à pátria e o contato com a natureza. O apelo ao escotismo aparecia ligado ao

esforço patriótico (sobretudo em tempos de guerra) pautado na obediência ao superior e a

tudo que estivesse ligado ao Estado nacional. Quanto às qualidades físicas e disciplinares,

Castriciano via o escotismo como para o estímulo do esporte e de obediência aos superiores:

“o êxito da vitória do esporte em Natal vem justamente da convicção de que muitos dos

monitores dos futuros escoteiros poderão já sair das associações esportivas já formadas por

moços capazes de comandar e obedecer” (CASTRICIANO, s/a: 324).

Outra novidade introduzida na época que denotava um novo sentido dado ao corpo

foi a preocupação em enrubescê-lo. A prática esteve presente nas falas da imprensa dos anos

1920, que não se cansava em associar o novo padrão corpóreo a um traço de civilização e de

bom gosto:

É chic, é gostoso, é do estilo das praias civilizadas o banho de sol, do sol que faz bem a pele saltar, vendo-a carne rubra. Mademoiselle tem uma paixãozinha por esse bárbaro sistema de enrubescer os ombros, o busto, os braços. Ao seu lado, aquele moço, que sabe tão bem guiar um carro, participa da terapêutica solar.

A estética da pele bronzeada pelo sol (que se afastava do gosto pela pele branca e

leitosa que havia marcado o século XIX), juntamente com a defesa médica da importância dos

raios solares na prevenção de doenças de pele constituíram um novo padrão de referência

corporal e de sociabilidade.

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Apesar de toda esta preocupação com a saúde, não é possível acreditar que todos os

hábitos considerados deletérios ao bem-estar do corpo tivessem sido abolidos pelas novas

práticas de consumo. Em alguns casos, costumes nocivos como fumar e ingerir bebida

alcoólica foram até realçados e estimulados pelas propagandas comerciais. Num anúncio da

Tabacaria Dois Irmãos, a modernidade aparece relacionada ao uso de certos utensílios

aplicados à prática do fumo, como as “piteiras coco”, conforme se observa em um de seus

anúncios: “O rapaz que hoje não possui uma piteira coco, não está na ponta!” (Gazeta do

Comércio, 15/11/1901).

2. Vestir-se na moda

Também as primeiras décadas do século XX testemunharam a proliferação de casas

comerciais em Natal especializadas em roupas. Propagavam armazéns e magazines voltados

para a venda de tecidos e roupas prontas. Este fenômeno vinha atestar um crescimento

vertiginoso do consumo de vestuário. Em relação ao século XIX, ocorreu a profunda

transformação do hábito de se vestir, que passou a ser fortemente inscrito dentro de um

sistema de moda de expansão.

As referências nas propagandas ao que “há de mais moderno” tornava-se um quesito

fundamental para a venda das roupas e acessórios. Assim, a dicotomia antigo-moderno

aparece fortemente para atestar a diferença entre aquele que esta fora dos “novos tempos” e

aquele que está em sintonia com eles.

Ainda no início do século XX predominavam as referências à Europa, sobretudo a Paris.

Essas aparecem associadas à boa qualidade dos produtos e ao bom gosto do consumidor.

Além de Paris, também era forte o apelo aos produtos nacionais, sobretudo aqueles

produzidos ou procedentes do Rio de Janeiro. Assim, para assegurar à referência dos

produtos a essas praças tradicionais, muitos comerciantes não se limitavam a referir a origem

dos artigos, mas faziam questão de demonstrar o processo da compra: da viagem de um

representante até um centro produtor e até as transações realizadas lá. O investimento na

compra desses artigos, descritos pelos comerciantes nos seus anúncios, procurava dar-lhes

um status ainda maior ao associá-los ao esforço e à seleção. Era dentro desse sentido que o

anúncio do armazém de modas “O Progresso”, depois de demonstrar ao consumidor a

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variedade de seus artigos, procurava ressaltar a “superioridade de condições em que foi feita

a compra por escolha pessoal de nosso gerente na sua recente viagem à Capital Federal”

(Diário de Natal, 10/11/1904).

Muitas lojas procuravam atestar a diversidade de seus produtos, falando do “variado

sortimento”, dos “diversos tipos desde o mais moderno até o mais simples”, da “maior soma

de artigos de gosto”, fazendo acreditar que a variedade era um elemento libertador da

conformação, da monotonia e da penúria. O novo apelo fazia crer que assim o indivíduo daria

um passo para superar a precariedade, a falta de opção, o estado de miséria, passando a viver

num estado de aparente profusão e de escolha.2

Entre as qualidades mais ressaltadas na moda das primeiras décadas do século

estavam a higiene e a segurança. Tais preceitos deveriam estar presentes em todos os

vestuários, calçados e assessórios. O medo de epidemias, como a febre amarela e o cólera, e

de doenças como a tuberculose, ainda se faziam presentes, o que induzia a população a

escolher artigos que atestassem graus de higiene e de saúde.

Novos hábitos também serviram para impulsionar o mercado da moda. A prática do

esporte serviu para difundir a moda esportiva entre os natalenses. Também o hábito de ir a

praia, que se tornou freqüente no período, sobretudo nos balneários das praias do Meio e de

Areia Preta, e na Limpa.

Uma outra noção importante que foi difundida pela propaganda foi a de “estação”,

entendida como um período regular de mudança de vestuário. Essa noção induzia ao

consumidor uma compra periódica de roupas, em que deveria ser considerado não apenas o

desgaste natural das peças, mas a adequação do vestuário a um dado período do ano, com

características apropriadas.

A força proporcionada pela propaganda e as novas preocupações dos indivíduos com a

aparência pública faziam com que o controle dos pais sobre a escolha das vestimentas dos

filhos fosse aos poucos diminuído. No romance Gizinha, uma conversa entre jovens sobre o

assunto, leva um deles a sentenciar o fim do controle familiar e a soberania do mercado sobre

os gostos e escolhas individuais: “A moda é quem manda, e aí não há pai, nem irmão, nem

marido que se meta.” (FEITOSA, 1930: 62).

2 Jean Baudrillard observou no amontoamento e na profusão de mercadorias dos grandes armazéns um princípio

fundamental da sociedade de consumo: “Os grandes armazéns, com a exuberância das conservas, vestidos, bens alimentares e da confecção constituem como que a paisagem primária e o lugar geométrico da abundância. (...) No amontoamento, há algo mais que a soma dos produtos: a evidência do excedente, a negação mágica e definitiva da rareza, a presunção materna e luxuosa da terra da promissão.” (BAUDRILLARD, 1995: 16).

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Entretanto, as mudanças provocadas no vestuário e a intensificação de um consumo

de roupas e de acessórios parecem ter despertado em alguns membros da cidade indignação,

levando-os a estabelecer uma censura sobre o gosto. Através dessa censura, buscava-se

conter o consumo de uma gama de produtos e serviços considerados deletérios à sociedade

local.

(fig.2) A difusão de um vestuário próprio para a prática de esportes estava relacionada a mudanças mais profundas na relação dos indivíduos com seus corpos. As roupas esportivas procuravam valorizar o corpo, definindo melhor a anatomia, expondo músculos e valorizando a silhueta. Deste modo, realizava-se uma crítica mordaz à estética da adiposidade e do encoberto.

Para uma colaboradora da revista feminina Via-Láctea, a moda deveria ser limitada

por uma conduta de simplicidade e decoro. Assim, a mulher deveria controlar sua vaidade e

se ater ao princípio da economia e da domesticidade: “A moda em si não é má; antes

administrável, quando usada sem o exagero e o luxo excessivo que transforma a mulher

numa vaidosa mundana, frívola, preocupada com os aplausos de sua beleza.” (Via-Láctea,

1914: 52).

A noção de uma moda “harmoniosa”, em oposição às tendências conflitantes com os

padrões preconcebidos, estava ligada a uma imagem própria da mulher, uma imagem

infantilizada e casta:

A moda é harmoniosa; quando se apresenta simples, elegante, realçando a esbelta silhueta, envolvida no traje de musselina, de tafetá, ligeiramente ajustado, com túnica de ninom plissado, sobre uma saia grandiosamente drapeada. É encantadora, adornando a mulher com a graça infantil das blusas amplas de cinto descidos, onde faixas escocesas revelam apurada estética completando a garridice do talhe, as mangas compridas que deixam

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aparecer com discrição a pequenina mão, dando a impressão de uma haste flexível onde se prende um formoso lírio de cinco pétalas (Via-Láctea, 1914: 52).

A tentativa de um controle sobre o consumo passaria também por um domínio sobre

as cores das roupas. A escolha das roupas deveria obedecer a “arte da combinação das

cores”. Neste aspecto deveriam ser evitadas as “cores extravagantes”, “carnavalizadas”,

preferindo-se assim, as “cores neutras” e “pastéis”. Por outro lado, tudo que pudesse

demonstrar opulência e sensualidade precisaria ser banido. A simplicidade, a castidade e o

consumo contido deveriam ser buscados como requisito fundamental da boa mulher e todas

as atitudes que desobedecessem a esses princípios deveriam ser condenadas socialmente:

... esta combinação espalhafatosa de cores carnavalescas que se dizem em rigor e melhor em contraste com a ternura de minhas meiguissímas conterrâneas; ao traje excessivamente estreito; aos decotes aprofundados, pouco descentes; às pinturas ridículas, a estas superfluidades triviais, todo o nosso protesto, como também à moda desapiedada que é de usarem pirilampos como adorno luminoso de suas toaletes, sacrificando-os aos caprichos vaidosos (Via-Láctea, 1914: 52).

Estas preocupações de moralistas e pedagogos atestavam que as práticas por eles

abominadas já se faziam presentes na sociedade natalense, denotando assim uma

intensificação nos hábitos de consumo para além dos antigos códigos de conduta moral e de

respeitabilidade.

3. Conforto e estilo no lar

Uma das principais transformações no modo de vida dos natalenses encontra-se no

lar. Durante as primeiras décadas do século XX, o investimento na moradia torna-se

constante. Em grande parte, esses melhoramentos nas casas foram impulsionados pelas

novas legislações urbanas que procuravam estabelecer uma padronização para os processos

de construção na cidade. Essa padronização estava fundamentada sobre os referenciais de

higiene, as modas arquitetônicas e estilos de moradias.

Já em 1900, o jornal A República, porta-voz do governo, apresentava uma forte crítica

aos modelos de residências construídas pelos mestres-de-obras oitocentistas: “corredores

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compridos que vão dar numa alcova, ou em qualquer quarto escuro, quartos de dormir dando

para as salas de visitas ou para as de jantar, onde não se pode entrar sem passar por elas.” (A

República apud. OLIVEIRA, 1999: 60).

Este tipo de moradia passava a ser condenado pelas autoridades urbanas, que viam

nelas espaços propícios para a proliferação de doenças e abrandamento da moralidade. Tais

supostos problemas deveriam ser solucionados através de uma nova redefinição do ambiente

doméstico. Assim, para resolver os inconvenientes causados pelos espaços diminutos, a

mistura de atividades desempenhadas no interior das casas e promover a adequada

circulação, as autoridades propunham:

Todas as casas devem ter uma ante-sala. A porta da escada nunca deve dar diretamente na sala de visitas e muito menos na sala de jantar. Regra geral: os quartos e as salas devem ser regulares, espaçosos e de fácil acesso (A República apud. OLIVEIRA, 1999: 60).

A noção de casa moderna passa a ser apregoada pelas autoridades urbanas e

veiculada pela imprensa como sinônimo de uma residência que possuía ante-sala, quartos

amplos e arejados por janelas, corredores laterais, banheiro, entre outras dependências e

equipamentos. Nela deveria prevalecer a claridade natural do sol e a circulação do ar, como

forma de garantir condições ideais de higiene e de combate à proliferação de doenças. As

novas casas também deveriam ser munidas de luz elétrica e água encanada, inovações que

associavam comodidade com higiene.

Entretanto, alguns compartimentos das casas estavam mais sujeitos a essa

necessidade modernizadora e higienizadora. Sobre a cozinha, por exemplo, ainda perdurava

uma imagem negativa associada à insalubridade e ao contato cotidiano das donas-de-casa

com seus serviçais. Na maioria dos casos era o local da fumaça, dos cheiros fortes e da

gordura. Lugar também de trânsito dos domésticos que a usavam como corredor para

introduzir as compras e retirar os dejetos das residências.

Essa imagem ainda reinava no início do século XX, tornando-se uma preocupação

posta por Henrique Castriciano para a melhoria da condição social das mulheres no interior

dos lares.

A cozinha, o lugar em que é solicitada a cada momento a presença da dona de casa, é a coisa mais anti-higiênica do mundo: quente, mal arejada, sem

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utensílios de fácil asseio e para cúmulo, com o terrível fogão de chapa espirrando fumaça, como dizem que o diabo expira enxofre pelo nariz. Ao lado, a cozinheira malcriada, enxugando, ao menor cuidado da dona de casa, o suor na toalha destinada a limpar os pratos ou acendendo o cachimbo ordinário. Este é um dos principais motivos porque as senhoras odeiam a cozinha (CASTRICIANO, op. cit.: 301).

Outras inovações, como o transporte fácil, também foi assinalado. Ele deveria facilitar,

sobretudo, o deslocamento dos serviçais até as residências mais afastadas do antigo núcleo

urbano, evitando que muitos continuassem morando nas residências de trabalho.

A partir da década de 1920, proliferam na imprensa local anúncios de aluguel e venda

de imóveis que seguem os padrões modernos de habitação propagados:

Vende-se baratíssimo uma boa casa, recentemente construída, à Avenida Potengy, com sala de visita, de entrada, três ótimos quartos com janelas, sala de jantar, despensa, cozinha, banheiro e aparelho sanitário. É quase toda alpendrada, com bastante terreno e algumas fruteiras; muito próxima da Praça Pedro Velho e portanto na linha de bondes de Petrópolis (A República, de 25/3/1922).

As novas residências deveriam levar em consideração não só a noção de higiene, tão

propagada desde as últimas décadas do século XIX, mas também a noção de privacidade. O

acesso ao interior das residências tornou-se mais seletivo. A difusão dos terraços, ante-salas,

corredores, salas de visitas, quartos com janelas tornaram possíveis às pessoas viverem em

casas que reuniam privacidade e aconchego.

O aumento da construção residencial e de reformas pode ser evidenciado pela

proliferação de diversas casas de venda de material de construção. A sofisticação das novas

construções foi acompanhada por um processo de especialização nos ramos de material de

construção. As firmas passavam a se especializar em diferentes produtos. Entre as firmas do

período aparecem a loja de Miguel Barra, que vendia exclusivamente pedra e mármore e a

Pinho do Paraná, de Veiga e Filho, dedicada à venda de madeira como taboas, ripas e vigotes.

Grande parte das melhorias na vida doméstica foi possibilitada pelo comércio de

móveis, utensílios e equipamentos. Esses tornaram a vida do lar mais aconchegante e pessoal.

A venda de móveis, por exemplo, foi sendo intensificada no decorrer das primeiras décadas.

Até por volta de 1910, os móveis ainda eram vendidos na forma de leilões, ou da venda por

particulares. Considerados um produto de luxo e devido ao seu alto preço muitos eram

aproveitados por várias gerações. Em período de dificuldade financeira, muitos se desfaziam

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de algumas peças para poderem ter um certo rendimento com sua venda. Assim, pode-se

entender porque muitos dos móveis oferecidos nos leilões eram usados.

Também nos anos 1920 surgiram na cidade as primeiras casas especializadas na venda

de móveis, como a Casa Sion, de Tobias Palatinick e irmãos, o Bon Marché de Leon Josuá e a

Movelaria “Loja da Noiva”. Nesse período, os móveis já não aparecem apenas isolados, mas

formando conjuntos, como os de salas de jantar, de dormitórios, de salas de estar, etc. Os

conjuntos formam unidades que não devem ser desmembradas, com risco de reduzir o valor

das peças.

Por ouro lado, o período presenciava também uma valorização no interior das casas,

que passou ser tomado como uma unidade e não como um espaço contendo uma série de

objetos individualizados e com valor próprio. Esta percepção aparece na fala de um articulista

da revista “Cigarra” que denominou o processo de uma revolução na arquitetura e no

mobiliário.

O princípio predominante na atualidade é o do conforto e esteticamente é o do conjunto. O móvel despersonalizou-se para aumentar a importância e a elegância do ambiente interior. O conjunto absolveu-o quase integralmente (CIGARRA, 1929: v. 3).

Esta mudança significava uma profunda redefinição do ambiente doméstico.

Representava uma crítica à estrutura do “interior burguês de ordem patriarcal” fundada

sobre móveis individualizados, imponentes e hierárquicos que havia marcado as residências

das classes abastadas até o final do século XIX. Uma crítica ao arranjo tradicional baseado

numa estrutura assentada sobre “a relação patriarcal de tradição e de autoridade e cujo

coração é a complexa

A referida “revolução” propagada pode representava a adoção de novos móveis

travestidos sobre o discurso da funcionalidade. 3

Neste novo ambiente, a aquisição de peças de arte também se apresenta como uma

solução no embelezamento no mundo privado. Por alguns comentários feitos nos jornais

3 Conforme assinalou Jean Baudrillard em seu estudo sobre a questão, os objetos e os arranjos modernos

vinham empobrecer o espaço interno das residências, ao procurar extrair a dimensão moral, a densidade afetiva que impunha uma constante sensação de presença, capaz de garantir o controle sobre os indivíduos. chamou atenção para o papel dos móveis na definição das estruturas das relações sociais. Assim, Para uma análise detalhada da questão, ver: BAUDRILLARD, 1992, especialmente capítulo 1. As estruturas do arranjo. P. 21-35.

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sobre a presença de pinturas no interior doméstico é possível observar como essa experiência

vai se tornando um elemento de admiração e prestígio.

Mas para aqueles que não podiam possuir móveis caros ou objetos de arte, uma

colunista de Via Láctea aconselhava às donas de casa a realização ou mesmo a aquisição de

trabalhos manuais como meio de embelezamento das residências:

(...) o artefato e a bugiganga aqui concorrem para o embelezamento de muita habitação e guarnecem mais de um modesto utensílio; se nos faltar quase tudo que diga estética e luxo no mobiliário; temos mesmo uma arte caseira na qual se afirmam muitas conterrâneas operando prodígios de

habilidade e paciência (Via-Láctea, 1914: 77).

Assim, o investimento no espaço doméstico passava a denotar também a busca de

estilo e de tudo aquilo que pudesse por a marca do morador. Cada vez mais as classes médias

altas estavam mais propensas a buscar no mundo privado uma forma de se individualizarem.

Neste aspecto já não é mais possível falar de padrão de residência predefinido como havia

marcado as habitações oitocentistas, mas de formas de moradia que deveria ser moldas a

partir também das necessidades dos seus proprietários. Este novo contexto abre espaço para

a proliferação do ecletismo que permite esta mais adequação de desejos individuais e

estrutura arquitetônica.

Este mesmo processo foi estendido ao mobiliário e aos objetos domésticos, definindo

uma prática totalmente integrada:

(...) temos para cada tipo de casa um mobiliário especial e a variedade deste é tão numerosa que um espírito elegante encontra sempre no ornamentar uma casa, uma oportunidade para adquirir alguma coisa diferente das que existem nas casas dos seus amigos (Cigarra, 1929: v. 3).

4. Viver num “bom lugar”

Esta difusão da noção de viver-bem aparece fortemente associada não só ao edifício

residencial, mas à sua localização. O que vai definindo a boa moradia já não era a

proximidade do centro urbano, mas uma relativa distância que permita ao morador a

facilidade de idas regulares, sem que houvesse sua fixação ao centro comercial e

administrativo da cidade. O barulho e o trânsito foram se tornando sinais de incômodos para

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aquele que vivia na cidade. Por isso, muitos que tinham dinheiro, preferiam lugares mais

calmos e bucólicos.

Por volta dos anos 1920, os anúncios de venda e aluguel de imóveis anunciam a

avenida Rio Branco, região da Cidade Alta mais distante do antigo núcleo urbano, como área

onde prosperam as residências mais bem construídas e com cômodos mais aconchegantes,

providas de aparelhagem doméstica como fornos e sanitários. Mas foi na Cidade Nova, que

surgiu a localidade mais convidativa para o sonho da moradia moderna.

Ainda no final do século XIX, Pedro Velho havia esboçado o plano da construção dessa

nova localidade, que compreenderia mais tarde os dois novos bairros da cidade: Petrópolis e

Tirol.

Conforme lembrou Câmara Cascudo, inicialmente houve uma grande resistência para

se morar naquela localidade, pois o lugar era considerado por muitos como uma área

esquisita. Apesar disso, ela foi sendo ocupada no decorrer das décadas. Os primeiros a

estabelecem residência na nova localidade eram pessoas de bom rendimento, como

comerciantes, profissionais liberais e altos funcionários públicos, sobretudo.

Muitas dessas novas propriedades ainda dispunham de características rurais; algumas

eram chácaras e vilas, como a Betânia, a Pretória, a Quinta dos Cajuais, a Vila Cincinato e a

Solidão, denotando que muitos dos seus moradores advinham do interior do estado, e

procuravam reproduzir antigos referenciais na moradia urbana (CASCUDO, op. cit.: 332-333).

Na década de 1920, o crescimento do mercado imobiliário no período, vinha atestar

que o sonho da casa moderna na nova localidade estava mais perto do que se imaginava:

Vende-se Bom terreno em lugar aprazível, medindo cerca de 30 metros de frente por 50 de fundo, estando quase toda a frente murada, contendo duas casinhas, sendo uma de telha e tijolo e outra de taipa, cujo terreno presta-se para edificar-se uma casa moderna, sito à Avenida Floriano Peixoto na Cidade Nova e bem perto da Praça Pedro Velho (A República, 24/3/1922).

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Em 1929, durante sua visita a Natal, Mário de Andrade ficou impressionado com o

Tirol, bairro alto, de ruas largas e abertas que fazia lembrar a “Florença renascentista”. Nesse

período a população da cidade já freqüentava, mais assiduamente, o novo bairro, em grande

parte pela facilidade dos transportes, que além dos carros particulares, os bondes e os ônibus

(“dondocas”) realizavam esse trajeto. Na sua descrição da população que passava a

freqüentar o novo bairro, o escritor paulista deixava claro que se tratava de um novo rico,

com maneiras e atitudes bastante peculiares: “gente de branco, gente de encarnado, de azul,

moças bonitas, soldadinhos, no geral gente chata, de pele bronzeada, cabelo liso

acastanhado, boas dentaduras se rindo, pouca mulataria” (ANDRADE, 1976: 244).

A ocupação da Cidade Alta foi acompanhada pela fixação de residência na orla

marítima. As praias que durante o século XIX abrigavam apenas as comunidades de

pescadores e eram freqüentadas esporadicamente, em épocas de veraneio, pela população

citadina para lá se deslocava. A partir das primeiras décadas do século XX, a população

natalense passou a encarar a orla marítima como um lugar de residência. Já em 1908, Eloy de

Souza assinalava o aparecimento de diversas moradias novas no litoral: “Sobre os morros, ao

(fig.3) A bela residência em estilo eclético e o automóvel tornavam-se um sonho de consumo na

sociedade natalense.

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longo da costa, alteiam-se agora habitações amplas e arejadas, dominando o vasto oceano

verde” (SOUZA, op. cit.: 46).

No final da década de 1920 os balneários natalenses encontram-se em plena

atividade. O principal deles era a praia de Areia Preta, considerada “a melhor praia de banho

de Natal”. Em grande parte o hábito do banho de mar foi facilitado pela melhoria dos

transportes ligando a cidade às praias. Já em 1915, o bonde elétrico que ia até Petrópolis

passava pela praia de Areia Preta, aumentando a freqüência dos veranistas e motivando a

construção de casas novas na orla marítima (CASCUDO, op. cit.: 243).

A mais marcante dessas construções foi a primeira casa de veraneio do governador

Alberto Maranhão, localizada no topo da colina do morro Petrópolis. A residência chamava

atenção por sua localização estratégica permitindo uma vista panorâmica da orla marítima.

Dela podia-se ver o estuário do rio Potengi, o centenário forte dos Reis Magos, toda a praia

do Meio até a Ponta do Morcego. O aparecimento dessa residência assinala mudanças

profundas na percepção das praias e do mar por parte das classes superiores locais. Essa

percepção procurava compatibilizar a idéia higiênica e curativa das praias e dos banhos de

mar com a idéia romântica e bucólica da paisagem costeira. Através dessa residência as

classes mais abastadas instituíam, definitivamente, um novo referencial de local para morar.

Nele, procurava-se compatibilizar a tranqüilidade das localidades mais distantes, o contato

mais próximo com a natureza e os melhoramentos urbanos e residenciais que permitiam o

desfrute das mesmas comodidades da casa do centro.

O novo espaço social urbano e a expansão da cultura hedonista individualista

Todas essas mudanças nas maneiras de consumo estiveram associadas a uma

reordenação do espaço urbano de Natal. Em grande parte, tais mudanças ligavam-se à

importância crescente do comércio e de outros serviços que passaram a localizar-se em

certas partes específicas da cidade, produzindo uma nova geografia do urbano. Ruas foram

abertas ou receberam calçamento e iluminação elétrica, novas edificações foram construídas

e antigas foram reformadas, os transportes urbanos modernos se instalam definitivamente, o

telegrafo e o telefone possibilitaram encurtar as distâncias, integrando parte da cidade em

expansão.

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As modificações sofridas por Natal vinham atender às demandas das novas

sociabilidades e do mercado. As noções de diversão, descanso e comodidade foram

profundamente modificadas, ou mesmo criadas. Os saraus em família, os pagodes na praia, os

folguedos populares e os bailes no palácio foram aos poucos sendo substituídas pelas

modernas diversões urbanas, sobretudo o cinema, o clube, o jóquei, o futebol e o passeio nas

praças. Cada atividade destas necessitava de novos lugares, ou da transformação profunda de

antigos, que muitas vezes tornavam-se irreconhecíveis. Um dos aspectos importantes dessas

mudanças foi que as novas formas de diversão estavam mercantilizadas. Os locais de

sociabilidade requeriam cada vez mais vestimentas adequadas. Tornava-se cada vez mais

inaceitável estar vestido de maneira imprópria. Assim, o passeio no litoral pedia trajes

apropriados, da mesma forma que ir ao cinema, ou ao clube.

Já as formas de diversão estavam cada vez mais inseridas nos quadros de uma

incipiente indústria cultural. O cinema é o melhor exemplo. Em 1911 foi criado o primeiro

cinema da cidade, o Politeama, localizado na Ribeira. Anos mais tarde, a Cidade Alta ganharia

também o seu cinema - o Royal. Estes eram uma das principais instituições responsáveis por

estabelecer a ligação da população natalense com o mundo, mas especificamente com a

Europa e os Estados Unidos.

Os novos referenciais de consumo e as investidas modernizadoras foram responsáveis

por uma mudança na percepção do urbano. As transformações ocorridas na sociedade da

Primeira República foram responsáveis pela recusa de uma série de aspectos que lembravam

o mundo tradicional. As ruas de terra deveriam ser substituídas por ruas calçadas de

paralelepípedos, pois além dos inconvenientes para o tráfego, havia o problema da sujeira

causada pela poeira e pela lama. Assim, andar descalço tornava-se não só um incômodo para

os pés, mas uma mostra definitiva de total incapacidade de se inserir nos quadros da

modernidade. As avenidas largas deveriam se constituir como um espaço que fosse permitido

uma melhor apreciação do comércio, dos edifícios e também das pessoas. Tais avenidas

possibilitavam realizar um hábito que já era comum nos grandes centros do mundo: flanar.

As mudanças trazidas pelo comércio e os novos hábitos de consumo não ficaram

restritas ao universo das práticas sociais e simbólicas. Muitos dos novos estabelecimentos

comerciais foram responsáveis por introduzir um novo padrão de sociabilidade e de

comunicação. Alguns deles, como os cafés, se constituíram em lugares de difusão cultural, das

ideologias e da prática política. Eram neles que as notícias veiculadas pelos jornais, livros e

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panfletos ganhavam uma grande dimensão social, ao mobilizar leitores e ouvintes. Alguns

cafés, como o Magestic, de propriedade do poeta Jorge Fernandes, chegaram a desempenhar

um papel importante na constituição da formação da vanguarda modernista na cidade

(ARAÚJO, 1995: 49).

Eram neles também que os grupos políticos criavam seus espaços privados no interior

do território público, dando-lhes um caráter de agremiação. Em suas memórias, Lauro Pinto

recorda que o Café Cova da Onça constituiu-se, durante muito tempo, no “Quartel General do

Partido Popular”, enquanto que o Café Magestic era o “quartel general da brigada de choque

comandada pelo jovem Renato Wanderley” (PINTO, 2003: 31-42). O mesmo Lauro Pinto

lembra como tais lugares se constituíram, durante a primeira metade do século XX, em

espaços onde ocorreu uma série de conflitos e de lutas políticas na cidade.

Na crônica do jornalista e bacharel Raimundo Nonato sobre a presença da Coluna

Prestes no Rio Grande do Norte, fica evidenciado como a repercussão deste acontecimento

na capital atingiu espaços muito precisos de aglomeração e de sociabilidade, como cafés,

barbearias, bares, hotéis e cinemas.

Na Capital, irradiava-se essa onda de agitação pelos pontos de concentrações populares – o café “Cova da Onça”, na Ribeira, o “Grande Ponto” na Cidade Alta, centro mesmo de mais convergência, e Alecrim, na expansão de sua coletividade característica. Estabelecia-se o vai-e-vem das comunicações. As primeiras horas da manhã, ao abrir das portas, o café ‘Cova da Onça’, mais perto do cais do porto e do telégrafo naquele tempo, como ainda hoje, um pouco mais adiante, ficava de mesas apinhadas com a presença de pessoas representativas das mais diferentes classes sociais... do mundo político, dos círculos de negócios dominantes na Ribeira, funcionários públicos, motoristas de praça, etc. um mar de curiosos, enfim, todos de ouvidos no ar, pegando as notícias, as conversas... Daí saíam os boateiros, informados da leitura dos matutinos, levando as novidades do momento, as histórias, que na primeira esquina, chegavam aumentadas, e na outra rua mudavam de cor e de sentido como se troca de roupa.... No percurso, a barbearia de ‘seu Sílvio’ transformava os bate-papos, havendo fregueses que, num interregno qualquer, abandonavam as cadeiras para troca de notícias com os que passavam, ou estacionavam o minuto do trânsito. Mas à frente, giravam pelo bar do Anaximandro, os freqüentadores do café ‘Esporte’ e do ‘Globo’ faziam suas paradas. Volta e meia, como buscapés, entravam pelas travessas ou becos vizinhos, e boatavam em alvoroço os hóspedes do Hotel Avenida, ou antigo Hotel dos Leões. Prosseguiam então pela Junqueira Aires e atiçavam fogo nas rodas de mesa do “Magestic”, de Firmino Guerra, de onde a melhor turma dos amigos do copo saia para o mercado público, à vista, quase ao lado. Ensejavam-se uma e

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outra reuniões de transeuntes, às portas de entradas, alguns com suas cestas, mas envoltos na espécie de tumulto ali formado... A poucos passos, rodava-se pelo “Grande Ponto”, a barricada de todos os movimentos democráticos, da Capital; protestos, comícios, passeatas tinham naquele trecho o seu ponto máximo, e as notícias apresentavam novo caldo de cultura (NONATO, 2006: 32-34).

Outro aspecto a considerar sobre as mudanças operadas no espaço urbano com as

transformações do consumo foi a maior separação entre os bairros centrais e os novos

bairros. Enquanto os primeiros aprofundavam ainda mais suas características comerciais e

administrativas, os segundos nasciam essencialmente residenciais.

É possível associar essas transformações mais contundentes na maior divisão

funcional entre os bairros com a modificação na prática secular de reunir no mesmo edifício,

o local de moradia e de trabalho. Observa-se que a partir da década de 1920 torna-se cada

vez mais comum que a moradia e o local de trabalho se organizem cada vez mais

independentes um do outro. Em relação aos médicos, dentistas, advogados e outros

profissionais liberais, eles podiam agora alugar uma sala em um dos diversos edifícios do

centro urbano e construir sua casa nos novos bairros da cidade. Apesar de alguns deles

continuarem atendendo em casa seus clientes e pacientes, o principal lugar de trabalho não

era mais a residência.

Essas mudanças assinalam a emergência de uma nova mentalidade em relação a

conquista da privacidade, e de uma melhor delimitação entre esses grupos sociais, dos

espaços público e privado. Assim, a busca por conter a presença de estranhos no espaço

privado torna-se uma atitude corriqueira, não só entre as classes mais abastadas, mas entre

as camadas médias.

A localidade da Ribeira que historicamente era um ponto de referência do comércio

agro-exportador, no decorrer da primeira metade do século XX havia se transformado no

centro comercial da cidade. Para lá se destinava não só o comércio atacadista, mas,

sobretudo o varejista. Lojas de roupas e de calçados, hotéis, consultórios médicos, escritórios

de advocacia, representantes comerciais, cafés, relojoarias, drogarias, entre outras,

proliferavam nas ruas do bairro. Antigas ruas e avenidas foram profundamente modificadas

com a chegada e a expansão dessas atividades. Em 1918, a Avenida Tavares de Lira foi aberta

atendendo a perspectiva das largas avenidas de inspiração francesa e no final da década de

1920, um novo plano urbanístico propõe uma reforma mais profunda no bairro.

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Com a intensificação do comércio local, várias ruas e avenidas passaram a se constituir

em um lugar de destaque em relação a outras. Algumas delas estavam associadas ao grande

comércio de miudezas, outras ao comércio de artigos de luxo, outras ainda a um determinado

serviço. A Avenida Dr. Barata passou a ser considerada a rua chique da cidade, pois nela era

possível caminhar e ver as novidades que acabavam de chegar.

Conforme recorda o antigo comerciante Julio César de Andrade:

A Rua Dr. Barata foi uma das principais de Natal. Pelo seu comércio de grande atividade, tornou-se um ponto de grande atração, freqüentada por toda a população da cidade. Era o local de comércio chique da cidade. Aqui ficavam as principais casas de moda, por isso o lugar indicado para o “footing” (ANDRADE, 1989).

Uma série de obras públicas destinadas a Ribeira, como o aterramento do bairro, a

abertura de avenidas, a construção de praças denotavam a importância que o bairro passou a

ter para a administração pública, já que grande parte dos investimentos no embelezamento

da cidade, tanto no governo de Alberto Maranhão (1908-1914) e de Juvenal Lamartine (1928-

1930) recaíram sobre a Ribeira. As reformas empreendidas no espaço urbano assinalavam

para uma tendência à funcionalidade dos espaços. A Ribeira deixou de ser onde moradia e

trabalho conviviam harmonicamente para tornar-se um local privilegiado da venda de

mercadoria e de prestação de serviços. Em suas memórias, Lauro Pinto descreveu o bairro no

período como “da maioria dos homens ricos de Natal, do comércio mais variado, das grandes

lojas, casas comerciais e empresas” (PINTO, op. cit.: 25). Mas, apesar de continuar sendo o

“bairro dos comerciantes” como lembrou Câmara Cascudo, aquele espaço social era outro, a

expansão do comércio local, o incremento dos transportes e a introdução das modernas

formas de comunicação davam ao bairro o sentido de movimento, contrastando com a

imagem quase estática e bucólica da Ribeira oitocentista.

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(fig. 4) Na foto vemos a loja Paris em Natal, localizada em frente à Praça Augusto Severo ao lado do edifício do Cine Politeama. A estrutura desses prédios e a clientela que os freqüentava terminava por conferir ao lugar uma dimensão de bom-gosto e sofisticação.

A Cidade Alta também foi profundamente marcada pela expansão do comércio e dos

serviços na cidade, atrelados à intensificação do consumo, sendo o aspecto mais

surpreendente, o surgimento de um novo espaço de sociabilidade, de compras e de serviço: o

Grande Ponto.

De alguma forma, a própria atividade comercial foi responsável por impor novos

padrões de percepção do meio urbano. As lojas sofisticadas apresentavam suas fachadas

adornadas, vitrines convidativas e atendentes solícitas, instituindo novos espaços de encontro

de grandes aglomerações anônimas, mas também de parceiros sociais que possuíam

finidades políticas, culturais e sociais comuns.

Enquanto a Ribeira e a Cidade Alta se transformaram definitivamente no centro do

comércio, dos serviços e da administração pública da cidade, a Cidade Nova, os bairros de

Petrópolis e Tirol, tornaram-se a partir das duas primeiras décadas do século XX, o lugar

destinado essencialmente à moradia. A localidade formada por uma extensa planície

contornada por uma grande porção de mata Atlântica sobre dunas apresentava-se como um

local ideal para se viver, sobretudo para aqueles que buscavam ar puro e sossego. Os grandes

lotes de terrenos permitiam erguer residências amplas e aconchegantes. O bonde, o telefone,

o automóvel encurtavam ainda mais a distância ao centro comercial, permitindo assim, viver

com tranqüilidade e comodidade.

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Observa-se também, nesse período, o declínio dos espaços de moradias

heterossociais. Conforme analisaram os historiadores urbanos, a cidade do Natal sofreu um

processo de “segmentação” em que os bairros passaram a ter uma maior uniformidade

social. Tal processo foi obtido tanto através das intervenções urbanas estabelecidas que

remanejavam as populações pobres residentes no centro da cidade para os bairros mais

periféricos como as Rocas e o Alecrim, como da pressão especulativa sobre as populações que

viviam em áreas de ascendente valor comercial como os bairros de Petrópolis e Tirol e a área

litorânea (OLIVEIRA, op. cit.).

No entanto, isto não significou que as camadas populares tenham abandonado o

centro da cidade. Com a intensificação do comércio e dos serviços nas primeiras décadas do

século XX, os bairros centrais se tornaram ainda mais atrativos. Para lá iam aqueles que

buscavam diversão barata, os desocupados, ou os que queriam ter algum ganho com a

presença da “boa gente” que freqüentava a Cidade Alta e a Ribeira.

Esta forte presença popular no espaço urbano não deixava de causar indignação de

certos setores elitizados, que a percebia como uma verdadeira invasão. Em 1914, uma

colaboradora da revista feminista Via-Láctea chegou a externar seu descontentamento em

face da presença dos populares nas praças e logradouros do centro da cidade:

Havia naquela tarde muita concorrência... Mas, a maior parte dela, valha a verdade, compunha-se de amas de crianças e de rapazolas mal educados que a cada instante nos tolhiam a passagem e nos deixavam atônitas pelo barulho ensurdecedor que faziam... A graça, a elegância, a beleza da terra, lá estavam brilhantemente representadas em diversas senhorias, mas a esses astros, eclipsava a massa do povaréu desencadeado. Procurei debalde, encontrar o encanto que as crônicas davam às retretas... Quis trazer uma impressão doce, uma recordação amenizadora que me diminuísse o mal-estar; não me foi possível. Abandonei o jardim sem saudades. Aquele ajuntamento de povo de todas as classes, aquela música que não passava dos ouvidos, que nada falava ao coração deixaram-me ainda mais triste como se aquela tarde se tivesse

desvanecido a última ilusão a que me apegara (Via-Láctea, 1914: 42).

Assim, a principal mudança no espaço urbano não estava apenas na sua distribuição

funcional, mas numa nova apropriação do mundo físico, que parecia vigorar através dos

novos referenciais de status social e de consumo, estabelecendo assim uma nova forma de

seletividade. Os referenciais de consumo adotados impunham cada vez mais formas de andar,

de vestir, de se divertir, de se comportar e de morar na cidade, sendo sua população atingida

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por essas mudanças de hábitos de forma desigual, onde o consumo aparece como um

referencial simbólico de distinção cada vez mais forte.

Apesar do esforço do mercado em ampliar o quadro de consumidores locais, através

da difusão de bens e serviços com preços populares, ou da introdução de ambientes voltados

para uma freguesia mais variada socialmente, ainda era fácil sentir a permanência das

divisões sociais em alguns estabelecimentos comerciais. Ao descrever o estabelecimento

onde se reuniam a vanguarda modernista na cidade, o Café Magestic, o historiador da

literatura Humberto Araújo chamou atenção para o fato de que, apesar do esforço do

proprietário em criar um ambiente mais democrático, e assim substituir o teor aristocrático

dos antigos cafés da cidade, como “A Potiguarânia”, ainda era visível a reprodução das

distinções sociais no interior do recinto:

O “Café Magestic” era um misto de ambiente popular e aristocrático, pois a sua freguesia era composta tanto das pessoas mais populares da cidade, como das figuras mais conhecidas nas rodas sociais e na vida pública. A divisão entre as classes era feita através da localização dos fregueses dentro do café, a tal ponto que o sótão existente no prédio servia de “reservado”, usado apenas nos dias de movimento excessivo e assim mesmo pela freguesia selecionada (ARAÚJO, op. cit.: 49).

A população mais pobre da cidade parece ter ficado à margem das benesses do

consumo. No Alecrim e nas Rocas, por exemplo, até o final da década de 1920, ainda

predominavam as casas dos operários com uma pequena sala que se comunicava com o

quarto de dormir por um corredor, a rede era utilizada para dormir e a comida era monótona,

baseada em farinha, feijão e carne-seca. Esses trabalhadores viviam em geral descalços, suas

vestimentas eram restritas a uma calça, um paletó de algodãozinho e um chapéu de palha de

carnaúba (ANDRADE, op. cit.).

Paradoxalmente, através da propaganda fazia-se crer que a exclusividade da posse dos

bens de consumo pelas classes mais abastadas estava com seus dias contados. Essa pregação

impulsionava as expectativas das camadas médias, mas estava ainda muito distante das

classes mais pobres.

As mudanças no consumo não interferiram apenas na estrutura física da cidade, dos

prédios, das ruas, das praças e logradouros em geral, mas exigiu uma nova forma de

relacionamento com o urbano. Esta nova forma passava por uma importância na

apresentação pública, numa especialização e na incorporação de papéis sociais que deveriam

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ser moldados conforme a circunstância. Assim, cada vez mais se tornava inaceitável que

alguém pudesse se banhar sem os convenientes trajes de banhos, que fizesse exposição da

doença e da sujeira, ou mesmo, usasse demasiado um mesmo lenço, quando ele já “pedia”

para ser lavado e engomado.

Assim, compreende-se melhor o episódio retratado no romance Gizinha, da zombaria

feita pelos jovens das classes abastadas ao uso impróprio do lenço pelos rapazes pobres que

serviam os convidados no baile do palácio:

O moço dos óculos, espetado dentro do seu alto colarinho lustroso, troça, ao ouvido de Castro, o lenço dos pobres rapazes. - Fazem muito bem – responde este. – O calor é forte, o engomado é caro e eles são pobres. Amanhã poderão ainda comparecer à repartição, onde são contínuos ou serventes, com o mesmo (FEITOSA, op. cit.: 75).

Para as populações mais pobres essas imposições significavam não apenas gastos

adicionais, mas também na necessidade de assumirem novos valores que sempre apareciam

de maneira autoritária e excludente e para o qual eles quase sempre significavam o oposto do

padrão desejado. Deste modo, a vida dos pobres em nenhum momento era valorizada, seus

objetos eram toscos, sua casa imprópria, sua alimentação deficitária, sua vestimenta comum.

Assim, com o crescimento populacional as antigas distinções sociais, que haviam

marcado a Natal oitocentista, já não se faziam tão eficazes. Em seu lugar emergiu uma

profunda separação do espaço social urbano, que se evidenciava não só pela hierarquia social

do território da cidade, mas pelo uso de objetos de distinção como meio de promoção social

e de afirmação individual.

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Fontes e bibliografia consultadas

1. Periódicos:

A República, 1910, 1922.

Diário de Natal, 1904.

Gazeta do Comércio, 1901.

Cigarra, v. 1, 1927; vol. 2, 1928, vol. 3, 1929. CD-Rom, Natal: Instituto de Pesquisas Norte-

riograndense Câmara Cascudo, 2008.

Via-Láctea. [1914-1915]. Ed-fac-similar. Natal, Editora NAC, CCHLA/NEPAM, Sebo Vermelho,

2003.

2. Artigos e livros:

ANDRADE, Julio César de. Comerciantes e firmas da Ribeira (1924-1989): reminiscências.

Natal, s.e., Natal, 1989.

ANDRADE, Mario. O turista aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria da Cultura, Ciência e

Tecnologia, 1976.

CASTRICIANO, Henrique. Seleta: textos e poesia. Natal: s/a/l. Geraldo Albuquerque (org.).

CICCO, Januário. O cliente pobre [1926] In: DAVIN, Paulo. (org.). Médicos de ontem por

médicos de hoje. Seleção de textos e comentários (1931-1940). Natal: Ed. do autor/co-edição

EDUFRN, 1999.

FEITOSA, Polycarpo. Gizinha. [1930] Natal: A.S. Editoras, 2003.

PINTO, Lauro. Natal que eu vi. [1971] Natal: Sebo Vermelho, 2003.

NONATO, Raimundo. Os revoltosos de São Miguel. [1966]. Natal: Sebo Vermelho, 2006.

SOUZA, Eloi de. Costumes locais [1909]. Natal: Sebo Vermelho; Verbo, 1999.

3. Bibliografia:

ARAÚJO, Humberto Hermenegildo de. Modernismo: os anos 20 no Rio Grande do Norte.

Natal: Editora da UFRN, 1995.

ARRAIS, Raimundo. Recife, culturas e confrontos: as camadas urbanas na Campanha

Salvacionista de 1911. Natal: Edufrn, 1998.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1993.

______. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos Ed.; Lisboa: Edições 70, 1995.

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CASCUDO, Luis da Câmara. História da cidade do Natal. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira; Brasília: INL; Natal: UFRN, 1980.

______. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos Ed.; Lisboa: Edições 70, 1995.

DEACTO, Marisa Midori. Comércio e vida urbana na cidade de São Paulo (1889-1930). São

Paulo: Editora do SENAC, 2002.

OLIVEIRA, Giovana P. De cidade a cidade. Natal; Edufrn, 1999.

LIMA, Pedro de. Natal século XX: do urbanismo o planejamento urbano. Natal; Edufrn, 2001.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero:

______. A felicidade paradoxal:

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo:

Companhia das Letras, 1988.