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A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL E A NECESSÁRIA JUSTIFICAÇÃO PREVISTA NA LEI 13.655/2018 Inês Moreira da Costa Juíza de Direito da 1ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Porto Velho, Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. Associação dos Magistrados do Estado de Rondônia AMERON. Resumo: O constitucionalismo relativizou o princípio da separação de poderes, permitindo ao Judiciário sindicar atos de outros Poderes. Esse controle dos atos e omissões dos gestores públicos pelo Judiciário, no fenômeno denominado “judicialização das políticas públicas”, possui diversas causas, e dentre elas se destaca o reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente. A discricionariedade administrativa fica delimitada, sob o controle da juridicidade, o que significa que o Judiciário deve analisar a compatibilidade do conteúdo dos atos administrativos com os princípios e objetivos insertos na Constituição Federal. Introdução O objetivo geral deste trabalho é compreender como a judicialização das políticas públicas, no direito brasileiro, vem sendo reconhecida pelo Poder Judiciário, e qual o papel que os juízes devem desempenhar nesse novo sistema, especialmente em razão de recente alteração legislativa, que determinou o controle da adequação, necessidade e consequências das decisões que afetam políticas públicas. O trabalho encontra-se dentro da temática estabelecida pela Associação dos Magistrados Brasileiros AMB, qual seja, “a judicialização das políticas públicas”, para deliberação no XXIII Congresso Brasileiro de Magistrados.

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A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL E A NECESSÁRIA

JUSTIFICAÇÃO PREVISTA NA LEI 13.655/2018

Inês Moreira da Costa – Juíza de Direito da 1ª Vara de Fazenda Pública da

Comarca de Porto Velho, Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia.

Associação dos Magistrados do Estado de Rondônia – AMERON.

Resumo: O constitucionalismo relativizou o princípio da separação de poderes, permitindo ao Judiciário sindicar atos de outros Poderes. Esse controle dos atos e omissões dos gestores públicos pelo Judiciário, no fenômeno denominado “judicialização das políticas públicas”, possui diversas causas, e dentre elas se destaca o reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente. A discricionariedade administrativa fica delimitada, sob o controle da juridicidade, o que significa que o Judiciário deve analisar a compatibilidade do conteúdo dos atos administrativos com os princípios e objetivos insertos na Constituição Federal.

Introdução

O objetivo geral deste trabalho é compreender como a judicialização das

políticas públicas, no direito brasileiro, vem sendo reconhecida pelo Poder Judiciário,

e qual o papel que os juízes devem desempenhar nesse novo sistema, especialmente

em razão de recente alteração legislativa, que determinou o controle da adequação,

necessidade e consequências das decisões que afetam políticas públicas.

O trabalho encontra-se dentro da temática estabelecida pela Associação dos

Magistrados Brasileiros – AMB, qual seja, “a judicialização das políticas públicas”,

para deliberação no XXIII Congresso Brasileiro de Magistrados.

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O fenômeno da judicialização das políticas públicas e o direito

fundamental à boa administração pública

Ao estatuir que a República Federativa do Brasil é um Estado Social

Democrático de Direito (art. 1º), a Constituição Federal de 1988 adota uma

intervenção maior do Estado nas relações sociais, especialmente na salvaguarda de

direitos fundamentais e sociais.

Nesse contexto, a Constituição passa a ser o centro do sistema jurídico, criando

um nível de juridicidade superior e vinculante. Com o chamado

“neoconstitucionalismo”, que pretende explicar um conjunto de textos constitucionais

que começam a surgir depois da Segunda Guerra Mundial, sobretudo a partir de 1970,

as constituições passam a conter altos níveis de normas materiais ou substantivas

que condicionam a atuação do Estado por meio da ordenação de certos fins e

objetivos.

A terminologia “neoconstitucionalismo” é criticada por alguns doutrinadores1,

por não designar nem um sistema nem uma teoria do Direito, e sim um Estado Liberal

de Direito que, no caso do Brasil, conforme visto acima, denomina-se Estado Social

Democrático de Direito. Por isso, adotar-se-á neste trabalho o vocábulo

constitucionalismo, para indicar esse novo Estado, que envolve mudanças na teoria

constitucional, e passa a considerar, doravante: a) o reconhecimento da força

normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de

aplicação do Direito; b) rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou

“estilos” mais abertos de raciocínio jurídico, como ponderação, tópica, teorias da

argumentação etc; c) constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e

valores constitucionais para todos os ramos do ordenamento; d) reaproximação entre

o Direito e a Moral; e e) judicialização da política e das relações sociais, com um

1 José Afonso da Silva afirma que acrescentar o prefixo “neo”, com intenção de sinalizar para o novo, não raro retrocede para o velho e superado (SILVA, José Afonso da. Teoria do conhecimento constitucional. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 72-73). Manuel Atienza e Luigi Ferrajoli o consideram ambíguo, não designando nem um sistema nem uma teoria de Direito (ATIENZA, Manuel. Dos versones del constitucionalismo, Revista Doxa, Cuadernos de Filosofia del Derecho, 34 (2011) ISSN: 0214-8676, p. 73-88) e (FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. Revista Doxa, Cuadernos de Filosofia del Derecho, 34 (2011) ISSN: 0214-8676, p. 20).

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significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o

Poder Judiciário2.

Uma dessas mudanças que mais impacto tem na sociedade brasileira é o

avanço da justiça constitucional sobre a política majoritária, e o destaque que vem

sendo dado ao Poder Judiciário

A conjugação do constitucionalismo social com o reconhecimento do caráter normativo e judicialmente sindicável dos preceitos constitucionais – inclusive seus princípios mais vagos – gerou efeitos significativos do ponto de vista da importância da Constituição no sistema jurídico, bem como da partilha de poder no âmbito do aparelho estatal, com grande fortalecimento do Poder Judiciário, e, sobretudo, das cortes constitucionais e supremas cortes, muitas vezes em detrimento das instâncias políticas majoritárias3

E isso se percebe, com muita frequência, quando é abordada a judicialização

das políticas públicas, em matérias que envolvem diretamente a prestação de serviços

a cargo do Poder Executivo.

A primeira indagação que devemos fazer é: devemos imputar essa

responsabilidade unicamente ao Poder Judiciário?

Inicialmente, convém observar que a judicialização não é uma escolha do

Judiciário. Ao contrário, ela deriva, em um primeiro momento, da legitimidade da

jurisdição constitucional, que tem origem na teoria do poder constituinte (de

Emmanuel Joseph Sieyés, de 1789) e na separação de poderes (de Montesquieu,

1748), que foi adotada no art. 2º da nossa Carta Magna: “são poderes da União,

independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Nesse sistema de freios e contrapesos, o Judiciário atua em duas frentes:

corrigindo atos oriundos de outros Poderes, e colmatando lacunas decorrentes da

omissão na execução de políticas que deveriam estar previamente disponibilizadas

aos seus destinatários. Com isso, fala-se hoje em relativização do princípio da

2 NETO, Cláudio Pereira de Souza; SARMENTO, Daniel. Controle de constitucionalidade e democracia:

algumas teorias e parâmetros de ativismo. In SARMENTO, Daniel (org.). Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 95-96. 3 NETO, Cláudio Pereira de Souza; SARMENTO, Daniel. Controle de constitucionalidade e democracia, p. 76.

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separação de poderes, justamente por conta da interferência que o Poder Judiciário

vem realizando sobre o Legislativo e, em especial, sobre o Executivo.

Registre-se que a Constituição Federal de 1988 outorgou ao Chefe do Poder

Executivo grandes poderes, seja para editar medidas provisórias (atividade legislativa

que antes era exclusiva do Parlamento), seja para executar as políticas de governo

que visam atender aos direitos fundamentais e sociais, atividade que lhe é própria,

mas, dado o grande rol de direitos preconizados, acaba lhe dando proeminência na

conjuntura política brasileira.

Por outro lado, a democratização operada com a Constituição de 1988, a ampla

divulgação da Carta, tornando-a bastante conhecida e com um quantitativo de direitos

nela insculpidos, ao ponto de ser chamada “Constituição cidadã”, aliado ao princípio

da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV), transformou o Poder Judiciário na

última tábua de salvaguarda desses direitos que são, constantemente, desrespeitados

pelos outros Poderes.

Os políticos, diante da perda de eficácia e de abrangência dos mecanismos próprios ao welfare, e igualmente conscientes da distância, nas democracias contemporâneas, entre representantes e representados, passam a estimular, pela via da legislação, os canais da representação funcional. Por meio de suas iniciativas, a Justiça se torna capilar, avizinhando-se da população com a criação de juizados de pequenas causas, mais ágeis e menos burocratizados. A institucionalização das class actions generaliza-se, instalando o juiz, por provocação de agências da sociedade civil, no lugar estratégico das tomadas de decisão em matéria de políticas públicas, e a malha protetora do judiciário amplia-se mais ainda com a legislação dos direitos do consumidor4.

Assim, não sendo o Estado capaz de atender à grande demanda de uma

sociedade cada vez mais complexa, que faz surgir novos direitos em áreas onde antes

nem sequer se imaginava (bioética, novas configurações familiares e comunicativas,

especialmente em decorrência da globalização), o Poder Judiciário precisa atuar cada

vez mais de forma inovadora.

E isso abrange analisar questões que, pelas regras constitucionais, deveriam

ficar na alçada de outros Poderes.

4 VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo Baumann; SALLES, Paula Martins. Dezessete anos de judicialização da política. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 2, p. 40-41.

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Assim, essa responsabilidade da judicialização de políticas públicas não pode

ser atribuída exclusivamente ao Judiciário. Conforme esclarece Luís Roberto

Barroso5, dentre as causas dessa judicialização estão, em primeiro lugar o

reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como elemento

essencial para as democracias modernas. Em seguida, está uma certa desilusão com

a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos

parlamentares em geral. E, finalmente, uma terceira causa está no fato de que os

próprios políticos preferem, muitas vezes, que o Judiciário seja a instância decisória

de certas questões polêmicas, sobre as quais exista desacordo moral razoável na

sociedade, evitando, assim, o próprio desgaste, a exemplo das uniões homoafetivas,

interrupção de gestação ou demarcação de terras indígenas.

Esse protagonismo, de assumir a função política de controle dos atos dos

demais Poderes, leva o Judiciário a ser alvo de críticas, por conta, justamente da

legitimidade democrática para essa interferência. Questiona-se que essas decisões

políticas somente seriam admissíveis em um sistema no qual os juízes fossem eleitos

para mandatos fixos, ou seja, no qual pudessem ser responsabilizados por seus erros

através de um controle regular da sociedade6. Essa “falta de legitimidade

democrática”, que introduz nos sistemas representativos um elemento inadmissível,

contramajoritário, desvirtuaria a função que as constituições desempenham nas

sociedades pluralistas contemporâneas, considerando que, ao anular ou impugnar

certas políticas públicas, os tribunais estariam “constitucionalizando”, de maneira

indireta, um modelo de desenvolvimento concreto7.

No entanto, esse não deve ser o fundamento para deslegitimar a atuação do

Poder Judiciário. Isso porque a tutela dos direitos fundamentais e dos princípios

ligados ao Estado Social Democrático de Direito não pode ficar, exclusivamente, sob

responsabilidade do Legislativo e do Executivo. Ainda mais quando se considera que,

nesse processo político de eleição de seus representantes, muitas vezes certos

direitos fundamentais são mencionados unicamente em época de campanhas

5 BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. In Tratado de Direito Constitucional: constituição no século XXI, vol. 2/ coordenadores Felipe Dutra Asensi e Daniel Giotti de Paula, 1ª ed,. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 761-762. 6 APPIO, Eduardo. Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005. p.74. 7 PISARELLO, Gerardo. Los derechos sociales y sus garantias. Elementos para una reconstrucción. Madri: Trotta, 2007, p. 89.

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eleitorais, e depois que ultrapassado esse período, alguns acabam no limbo das

omissões públicas.

Portanto, adotando os ensinamentos de Paulo Cruz e Zenildo Bodnar8,

incumbe ao Poder Judiciário a importante missão constitucional de “promover o

tratamento dos conflitos, sempre objetivando assegurar e harmonizar dialeticamente

a fruição dos direitos fundamentais e imputar o respeito e o cumprimento dos deveres

fundamentais, em especial ao Poder Público”. Como consequência, na ótica adotada,

é recomendável que os juízes atuem como agentes de mudanças sociais, como

corresponsáveis pela atividade providencial do Estado. Nesse papel, compete aos

juízes o controle das omissões administrativas e da execução das políticas públicas,

e “quanto maior o grau de vinculação da atividade administrativa, mais intenso revela-

se o controle judicial, como ocorre nas hipóteses de restrições de direitos

fundamentais”.

Assentado esse ponto, da importância que o Poder Judiciário desempenha na

promoção do tratamento dos conflitos e no controle das omissões do poder público,

força salientar que sobreleva o papel que a vinculação da atividade administrativa

desempenha na atualidade.

No âmbito do direito administrativo, por muito tempo se sustentou que o mérito

do ato administrativo, pelo seu conteúdo eminentemente discricionário, não poderia

ser apreciado pelo Poder Judiciário, em razão do princípio da separação dos poderes.

No entanto, esse postulado restou ultrapassado, seja pela teoria do desvio do poder,

seja pela teoria dos motivos determinantes. Convém, assim, sindicar as razões das

escolhas públicas. Tanto é que a Lei da Ação Popular brasileira (Lei n. 4771, de 1965),

estabelece como nulos os atos lesivos ao patrimônio público nos casos de

incompetência, vício de forma, ilegalidade do objeto, inexistência dos motivos e desvio

de finalidade. E com a inclusão do princípio da moralidade e da eficiência no rol do

art. 37 da Constituição Federal, ampliou-se, ainda mais, esse exame.

Defende-se, nesse prisma, que mais do que controle do mérito, o que será

sempre admissível e obrigatório é o controle do “demérito ou dos vícios (omissivos ou

8 CRUZ, Paulo Márcio; BODNAR, Zenildo. A atuação do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas ambientais. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD) 4(1): 81-89 janeiro-junho 2012.

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comissivos), sem que isso acarrete o fenômeno da excessiva judicialização da

política”9.

Pode-se assim falar que houve uma mudança no controle de legalidade para o

controle da juridicidade, o qual se concretiza “através da análise da compatibilidade

do conteúdo dos atos administrativos com os princípios gerais do Direito, inseridos

expressamente na Constituição ou dedutíveis de seu espírito” 10.

E nesse controle de juridicidade, importante assegurar o direito fundamental à

boa administração pública, “eficiente, eficaz, proporcional, cumpridora de seus

deveres, com transparência, sustentabilidade, motivação proporcional, imparcialidade

e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas

condutas omissivas e comissivas”11.

Nessa ótica, além do controle sobre o mérito do ato administrativo, fala-se hoje

que o Judiciário tem que atuar de forma prospectiva12, para garantir os direitos

inseridos na Constituição Federal, o que faz, especialmente, pela determinação de

implementação ou correção de políticas públicas.

Quanto à aplicação do Direito na atualidade, não pode o intérprete

deixar de considerar a multiplicidade de relações que envolvem o

funcionamento do Estado Contemporâneo, as suas carências e

limitações e também a sua função primordial, que é fomentar o pleno

desenvolvimento humano com qualidade de vida em todas as suas

formas. Julgar com responsabilidade não é criar falsas e ilusórias

expectativas para o jurisdicionado, mas sim reparar injustiças e

garantir direitos fundamentais legítimos e factíveis em determinado

tempo e lugar13.

E aqui surge outra indagação: qual o sentido que pode ser atribuído à política

pública?

9 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5ª edição. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 102. 10 MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública, 2ª edição. São Paulo: Dialética, 2004, p. 137. 11 FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública, 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 21. 12 Implementar políticas públicas observando os parâmetros constitucionais e legais, distinguindo-se, portanto, do ativismo judicial, este considerado um pronunciamento que “substitui a legalidade vigente pelas convicções” (conforme ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 76). 13 BODNAR, Zenildo. A (des)judicializaçao das políticas públicas de saúde na Vara Federal Cível de

Criciúma. Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva, vol. 7, n. 1 (2013), p. 304

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O conceito de política pública não é uníssono. Canela Júnior14 define políticas

públicas, no Brasil, como todas aquelas atividades desenvolvidas pelas formas de

expressão do poder estatal tendentes à realização dos objetivos insculpidos no art. 3º

da Constituição Federal.

Vanice Regina Lírio do Valle15, no conceito dado por Bucci, atribui às políticas

públicas o sentido de “programas de ação governamental visando a coordenar os

meios à disposição do Estado e as atividades privadas para a realização de objetivos

socialmente relevantes e politicamente determinados”.

Juarez Freitas16, por sua vez, esclarece que as políticas públicas não são

meros programas episódicos de governo, mas sim políticas constitucionais de Estado

que devem ser implementadas mediante programas eficientes, eficazes e justificados

intertemporalmente, em conjunto com outros atores políticos, e são caracterizadas por

três elementos:

a) São programas de Estado Constitucional (mais do que de governo) b) São enunciadas e implementadas por vários atores políticos, especialmente pela Administração Pública; e

c) São prioridades constitucionais cogentes. Vale dizer, são programas que precisam ser enunciados e implementados a partir da vinculação obrigatória com as prioridades estatuídas pela Carta, cuja normatividade depende de positivação final (insubstituível) pelo administrador17.

Essa característica das políticas públicas como programas de Estado e

intertemporais, impõe ao administrador público a escolha justificada das prioridades

constitucionais. Para tanto, as avaliações se tornam necessárias.

Ocorre que ainda não existe uma “política” de obrigar os gestores a justificar

suas escolhas para que possa existir uma avaliação adequada, e o texto

constitucional, que coloca o princípio da eficiência como máxima administrativa, deixa

de ser observado.

14 CANELA JÚNIOR, Oswaldo. A efetivação dos direitos fundamentais através do processo coletivo: um novo modelo de jurisdição. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009, p. 41. 15 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Políticas públicas, direitos fundamentais e controle judicial. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 44. 16 FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública, p. 43. 17 FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública, p. 33-34.

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Essa omissão de justificação ocasiona duas falhas, assaz comuns, na

Administração: “a negação da eficácia dos direitos fundamentais e sua afirmação

claudicante ou fraseológica. Desproporcional em ambas as situações”, de modo que

o “Estado-Administração não pode ser convertido em segurador universal, todavia não

se admite a Administração descumpridora contumaz de seus deveres”18.

No intuito de não deixar os direitos fundamentais serem desconsiderados, o

Judiciário acaba intervindo. Desse modo, no universo de direitos individuais e sociais,

sobressaem os do direito à saúde (disponibilização de medicamentos e tratamentos),

à educação (oferecimento de creches, escolas e transporte), à segurança (construção

e reforma de presídios, estruturação das polícias judiciárias), ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado (definição/confirmação de áreas de proteção ambiental,

construção de esgotamento sanitário), à moradia (disponibilização de imóveis para

pessoas com baixa renda, retirada de áreas de risco e alocação em projetos

habitacionais), etc. Enfim, são inúmeras as áreas em que o Poder Judiciário tem sido

invocado para atuar.

O amplo controle de constitucionalidade realizado pelo Judiciário tem levado o

Supremo Tribunal Federal a um intenso exame dos julgamentos embasados no

controle das políticas públicas. Em uma rápida pesquisa ao repertório de

jurisprudência desse Tribunal, as mais recentes (anos 2018 e 2017) envolvem:

suficiência de profissionais na área da saúde (RE 684612, com repercussão geral

reconhecida), restauração de rodovias (ARE 1043740), atendimento em creche (RE

1076911), reforma de escola pública (ARE 928654), criação de vagas destinadas ao

recolhimento de presos (ARE 919467), construção de unidades prisionais (ARE

1001496), alocação para a guarda de bens apreendidos (RE 851097), melhorias nas

instalações e soluções concretas para carência de pessoal no Ciep da Cidade de Deus

(ARE 1062995), reassentamento em virtude de desalojamento (ARE 925712),

adequação de espaço para socieducandas grávidas e lactantes (ARE 963663),

realização de obras em estabelecimentos penais (RE 1026698), manutenção de

escola (RE 958246), construção em encostas com risco de desabamento (RE

18 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais, p. 121.

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909943), construção de necrópole (ARE 1014959), transporte escolar (ARE 990934),

acessibilidade de deficientes físicos em ambiente escolar (RE 877607).

No entanto, começam-se a perceber algumas mudanças no cenário brasileiro.

Recentemente, a Lei n. 13.655, publicada em 25 de abril de 2018, trouxe

alterações importantes na Lei de Interpretação às Normas do Direito Brasileiro

(Decreto-Lei n. 4.657/1942). Agora, tanto o administrador, quanto os órgãos de

controle e judicial, deverão apresentar motivação que demonstre a “necessidade e

adequação da medida imposta”:

“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas. ” Art. 21. A decisão que, na esfera administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos. ”

Essa lei traz para o campo das análises das políticas públicas, um forte

componente justificador, pois, doravante, tanto o administrador, quanto os órgãos de

controle, e até mesmo os órgãos jurisdicionais, deverão avaliar a adequação das

políticas adotadas e possíveis alternativas, além de indicar suas consequências

jurídicas e administrativas. Além disso, o art. 22 da mesma Lei estabelece que, na

interpretação das normas jurídicas sobre gestão pública, “serão considerados os

obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a

seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”.

Agora, o magistrado deverá justificar porque determinada política pública é

mais adequada/necessária, e o que ela ocasiona. Sem dúvida, exigirá dos juízes um

maior esforço interpretativo, pois além do conhecimento jurídico e da necessidade de

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estar a par de matérias que, até então, ficavam apenas no domínio dos gestores

públicos, como, por exemplo, finança e orçamento público, também é preciso ter

acesso às informações que possam indicar os motivos das escolhas políticas para

determinada área de atuação, ao invés de outras. Analisar eficiência e

proporcionalidade das políticas públicas é, assim, a bola da vez do Judiciário.

Com isso, o princípio da cooperação, inserto no Código de Processo Civil (art.

6º), ganha força, competindo às partes, a partir de agora, prestar todas essas

informações ao juiz, para que as escolhas que sejam determinadas por ele possam

estar amparadas nos critérios acima. Talvez tenhamos até que repensar o instituto da

conciliação envolvendo entes públicos, buscando um maior diálogo para compreender

como as escolhas de determinadas políticas estão inseridas em um contexto maior,

da própria administração pública.

Nessa nova “reconfiguração” do papel do juiz, propõe-se, assim, uma abertura

dialógica, ou de coparticipação, com a Administração Pública, para que seja possível

avaliar, com mais acerto, a adequação, necessidade e consequências das escolhas

de determinadas políticas públicas. Por outro lado, também é preciso, doravante, ficar

atento às justificativas que o próprio gestor terá que apresentar para convencer de

seu acerto na escolha da política pública adotada, pois, pelo princípio da motivação a

que está obrigado, não existe mais discricionariedade administrativa sem limites.

Considerações finais

Como visto, o direito constitucional brasileiro, especialmente após o

constitucionalismo, impõe ao Judiciário, cada dia mais, o controle dos atos e omissões

dos agentes públicos responsáveis por implementar políticas públicas que almejam,

em seu fim último, atender os comandos prioritários da Carta Constitucional,

especialmente aos objetivos inscritos em seu artigo 3º.

Nesse contexto, cumpre exigir dos gestores a justificação das escolhas

administrativas, não sendo mais possível falar-se em discricionariedade pura e

simples. Ao mesmo tempo, se atribui ao juiz, nesse novo papel avaliativo preconizado

pela Lei n. 13.655/2018, verificar a adequação/necessidade e as consequências de

determinar a implementação de uma política pública. Para tanto, propõe-se uma

abertura dialógica com o Poder Executivo, para munir-se de dados e elementos

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necessários a essa avaliação, especialmente no que tange a orçamento público e

políticas adotadas para o caso que está sob análise.

Esse parece ser o melhor caminho a ser trilhado na gestão pública, da qual o

Judiciário passa a fazer parte, nos limites constitucionais. Almeja-se que tanto os

gestores quanto os juízes obtenham o necessário discernimento para aplicação

dessas novas formas de avaliação da eficiência, eficácia e economicidade dos gastos

públicos que poderão, enfim, servir, efetivamente, para assegurar a implementação

de políticas públicas aneladas aos objetivos fundamentais do Estado Democrático de

Direito, e, assim, garantir o direito a uma boa administração pública.

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