A Lâmina na Ponta do Reflexo - Arthur Ferreira Jr.'. - Simetria Macabra Crônicas do Mythos de Cthulhu

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  • 7/31/2019 A Lmina na Ponta do Reflexo - Arthur Ferreira Jr.'. - Simetria Macabra Crnicas do Mythos de Cthulhu

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    "My reflection, dirty mirrorThere's no connection to myself

    I'm your loverI'm your zeroI'm your face in your dreams of glass"

    Smashing Pumpkins, Zero

    "E naqueles trs dias, s uma coisa me aliviou o cansao provocado pelas providncias a tomar epelos estranhos e inesperados pesadelos. Essa coisa foi Anna."

    Virglio Mago, em O Farol na Escurido

    "NO DIGA QUE SOU INOCENTE!", meu grito ecoava pelos corredores da manso.

    "Eu j cansei de dizer a voc, tenho dezessete anos, j voto nos corruptos que voc apoia.

    Nem queira que eu continue com a lista de razes que lhe convenam de que eu no sou umamenininha ingnua, pai." Eu ofegava e me agarrava com unhas e dentes (naquele ponto, mais unhasque dentes; se ele insistisse muito, os dentes agiriam) ao grosso pacote de livros em cima,apertando-o de jeito a quase esmagar meus prprios seios.

    "Anna... esses livros no so para voc. So parte do meu negcio de antiguidades, nemmesmo eu dou tanta ateno a eles. Largue isso... agora mesmo." O homem parado minha frente,de voz firme mas mos trmulas (comeava a mostrar os sinais da doena de Parkinson), no se

    parecia em nada comigo, mas era meu pai. Olhos muito negros, a calvcie incipiente eliminando oscabelos tambm muito negros, aquele era o senhor Vicente Leonardi, meu pai adotivo.

    "Se so negcios, ento, eu pago. Tenho minhas reservas de dinheiro, a mesada que vocmesmo me d no gasta com bobagens, voc mesmo me ensinou isso", meus cabelos ruivos,levemente encaracolados, cobriam parte dos meus olhos, mas eu no estava nem a, de to furiosa."No sou igual s minhas amigas, tenho direito a ter meus prprios interesses, ento estoucomprando esse pacote."

    "Anna. NO. E no me faa repetir. Acontece que estes livros..." foi interrompido pelo rudoda porta do gabinete sendo aberta, e um rapaz louro, magro mas atltico, de feies duras mas olhosafveis, entrou, abotoando sua camisa polo. Esse era meu irmo... meio-irmo... meu melhor amigodentro daquela casa, Victor. Ele olhou bem fundo em meus olhos verdes e virou-se para papai,

    "Deixe, afinal de contas ela precisa aprender a gerenciar os prprios desejos. E vai fazer isso com odinheiro que tem. Os livros so bem caros, no ? No faa desconto, ento, papai. Deixe que elapague por seus caprichos, vai ter que aprender com isso."

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    O velho abanou a cabea, pensativo: "Aprender, hum... no sei, no sei, as coisas nesseslivros..."

    "Fantasias, papai." Victor sorriu, condescendente. "Outra coisa com que ela vai ter queaprender a lidar. A frustrao uma excelente professora."

    "E o arrependimento, mais ainda," murmurou papai. "Est bem, meu filho, quem sabe voctenha razo. Faa o depsito na minha conta, Anna. E agora saiam os dois do meu escritrio,

    preciso rever umas contas, e quero paz. Coisa que nenhum dos dois me d de graa."

    Sa correndo, de brao dado com Victor. "Essa foi fantstica, sabia? Nunca deixo de memaravilhar com o jeito que voc dobra ele e outras pessoas." Afobada, fui indo na direo do meuquarto, segurando o pacote e sem deixar de agarrar o brao do meu irmo. Na porta do cmodo,Victor riu e falou, sussurrando: "J vai querer me agradecer pelo favor?"

    "Victor, pare," olhei meu irmo adotivo bem no fundo dos olhos, como ele costumava fazer

    comigo, "bem sei que o que fazemos no errado, voc no meu irmo de sangue, mas aindaestamos de dia, vai dar na vista dos empregados. E a eu quero ver o que que voc ia inventar pra

    papai."

    "No me teste, sua boba." Ele riu e se desvencilhou do meu brao. "Eu sei que voc queragora explorar seus novos livrinhos. Vai juntar queles que voc comprou, escondida de papai."

    Resmunguei uma resposta qualquer e fechei a porta. No na cara dele, que j estavaadiantado no corredor, rindo baixinho. E ento, fiz exatamente o que ele disse que ia eu ia fazer.

    OSMANUSCRITOS PNAKTICOSainda no estavam completos, e provavelmente eu ia levarmuito tempo na compilao. Mas oLiber Ivonis estava ali, e tambm uma verso em italiano dosCnones do Kleshayana... juntei tudo em cima da cama e peguei oPercepes Anmalas do Tempo,do psiclogo Wingate Peaslee. Esse livrinho foi bem popular no sculo XX e hoje em dia, emboratenha virado uma obscuridade, citado at por autores de autoajuda... ainda bem que eu consigochegar s fontes com mais rapidez do que as outras pessoas.

    Se tem alguma coisa que me interessa mais do que sexo, conhecimento. Ento, nada debrincadeiras com o irmo adotivo nessa hora do dia. O captulo do dr. Peaslee sobre a Hora do

    Sonho, dos aborgenes australianos, ia me ajudar muito naquele momento.Eu sempre gostei de brincar com o desconhecido, tambm. Era o que me dava mais teso,

    alm de brincar e jogar com coisas extremamente familiares e ntimas... tipo meu irmo adotivo. Oque seria mais desconhecido que o que se esconde no fundo dos sonhos? Se o que eu juntara a partirdos livros estava certo, eu podia assegurar para mim algo muito mais importante que ser amenininha mimada, herdeira de metade da fortuna de uma famlia tradicional da grande metrpolede Novo Portal.

    Tudo se reduzia, ento, ao ego. A existncia era maior do que a identidade. A identidade noqueria morrer e por isso ramos egostas. Como impor a identidade existncia? Eu adorava ser

    quem eu era, e no queria deixar de ser eu mesma, depois de morrer ou sei l o qu. No importa oque viesse depois da morte. Ou se no existia nada depois da morte. Eu no queria ser mais do queeu era: queria assegurar que seria a mesma. Era uma ideia sensual a que eu acalentava, que chegava

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    a me fazer tremer. Impor a vontade sobre o universo...

    Segundo as anotaes que eu tinha feito... estava comeando a juntar tudo em captulosordenados, o primeiro recebera o nome de Simetria Macabra... tudo se resumia, tambm, linguagem: os sonhos eram uma linguagem, a linguagem da eternidade, do inconsciente, tentando secomunicar com o ego, a identidade, proporcionalmente menor, aquela ponta do iceberg da mente.

    Do topo do meu prprio iceberg eu conduziria as mars geladas ao meu favor, ento: era essa avantagem de se estar acima da superfcie, enxergar o horizonte.

    Ento, a linguagem. Os sigilos. Os smbolos ancies dayog-sothotheria. Eram vriossmbolos os que eu havia coletado, aqueles smbolos ancies, como o que parecia uma folha de

    palmeira, aquele que parecia um pentagrama distorcido, o smbolo amarelo... eu j haviaconseguido forar um pouco da magia, ayog-sothotheria, daqueles sgilos; mas no tinhaconseguido resultados muito impressionantes, pelo menos no para o meu grau de exigncia.

    O Cnones do Kleshayana falava da importncia de uma arma mgica: um instrumento comque manipular a tessitura da existncia... e, como s podia ser, com a arma escrever os sigilos

    ancies que abriam os Portes da Eternidade. Outros... magos... usaram armas como varinhas,bastes, chaves prateadas, enfim, coisas que do uma sensao de poder ao serem empunhadas.Qual seria a minha? O Kleshayana dizia que deveria ser algopessoal.

    Fiquei nesse impasse at que aconteceu um acidente...

    NUNCA VI UMA RACHADURA TO PRECISA. O espelho era da mais pura qualidade, rendiacentenas de dlares, e o haviam deixado despreocupadamente num dos cantos da casa. Fui cutucar,atrada por aquele brilho soturno que ele tinha... o espelho era quase melanclico. Sempre fui toafoita. Quebrei o espelho.

    Sete anos de azar, hein? Foda-se.

    Preo muito baixo a se pagar pela arma mgica que eu precisava: o espelho rachou, crac! e ofragmento que dele se destacou tinha a forma muito similar de uma adaga... era uma adaga feitade espelho! Me ajoelhei e segurei a adaga de espelho em minhas mos... a parte que deveria ser ocabo no era afiada, e no me machucou. J a ponta... afiadssima.

    Fiquei ali, encantada com minha prpria imagem, meu reflexo, minha identidade, surgindonos lados da adaga, que eu virava com a mo... comeava a me perder em minha prpria epifania, e

    o encanto devagar se transformou em horror... coisas, coisas macabras, coisas medonhas, viviamalm dos sonhos, entre os mundos, e queriam tomar minha adaga! Eram criaturas nojentas, feitas deuma substncia empelotada, branca... e eles queriam minha adaga. No, eu no podia deixar queeles levassem minha imagem, meu reflexo, minha identidade, minha arma mgica.

    Eu s podia lutar. Sempre fui to afoita. Tinha que defender minha propriedade, minhaimagem, meu reflexo, minha identidade. Girei a arma na mo e fiz um movimento de corte para afrente, rasgando uma daquelas coisas parecia o lder, era maior e mais ameaador, tinha seis dedosem cada mo e nada no rosto a no ser dois olhos transidos, um em cima do outro, que se colocavaonde devia estar a boca e a coisa caiu no cho, ferida, mas no morta. Os outros sumiram.

    Tudo aquilo tinha sido como uma vertigem. Uma miragem. Eu me reequilibrei e percebi...que quem estava ferido no cho era meu pai. Mas que merda!

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    O velho foi se levantando e disse, com raiva, a barriga rasgada por um corte fundo,segurando a hemorragia com uma das mos: "Eu estou bem! Mas voc, voc no est nada bem. Eudisse que no devia ficar lendo aqueles livros! Me d esse caco de espelho, AGORA!"

    Dar a ele minha adaga ritual, pela qual devia pagar to caro, sete anos de azar? Nemfudendo.

    "NO! No vou dar, ela minha!"

    Ele avanou para mim, esquecendo o prprio ferimento, gritando, "Me d isso aqui,menina..."

    E ento aconteceu. Eu no queria perder minha adaga, e no queria perder meu pai. Semprefui to afoita. Decises tomadas num milsimo de segundo. E imagina quem perdeu?

    O cadver do homem que havia me criado estava no cho, e a adaga, firme e segura comigo.No percebi que meu irmo havia entrado no quarto e sua voz soou perto de mim, "Ele no tinha

    mesmo razo. Voc... no nada inocente."

    EU AINDA ERA MENOR DE IDADE e meu irmo precisava acobertar aquilo. Uma das criadaslevou a culpa, havia tomado uma droga alucingena por conta prpria e acabara agredindo meu pai.A coisa da droga era verdade, ela s no era to alucingena, e meu irmo fez questo de arranjar ascoisas como se tudo parecesse verdade. A adaga funcionou muito bem, mas no era suficiente.

    Nunca nada suficiente. E eu agora j tenho outras perspectivas, outros horizontes abertos, estou nauniversidade, no exterior, para onde meu irmo me mandou, enquanto ele ficou de custdio daminha parte da fortuna durante aqueles dois anos.

    Durante aquele tempo ele fora um bom amante, mas nunca com a mesma intensidade,depois da morte de papai. Acabei percebendo que meu irmo no servia para os planos que eu tinha.Uma pena, quem sabe eu teria de arranjar outra pessoa...

    Sem contar que percebi que, estudando em Massachusetts, dificilmente teria tempo pra meuirmo. A ideia era aproveitar o mximo possvel antes de meu inevitvel retorno... durante os doisltimos anos, minhas pesquisas e andanas me renderam alguns frutos, ou melhor seria dizer,algumas sementes que poderiam gerar os frutos que eu desejava. Minha busca pela supremacia daidentidade sobre a eternidade poderia se revelar numa nica palavra: imortalidade.

    Mas eu tinha certeza de que as lendas alqumicas sobre imortalidade, dentre outras balelasque andei lendo, no seriam a melhor trilha para seguir. Elas no representavam adequadamente odomnio da identidade sobre a eternidade... e meu poder rudimentar nayog-sothotheria acabou maisuma vez se revelando apenas uma brincadeira, eu queria avanar para um novo estgio, mas estava

    paralisada.

    Foi ento que me caiu nas mos um dirio de um certo Walter Gilman, dcadas antes umestudante na mesma Universidade Miskatonic onde eu estava. Esse dirio estava cheio de anotaesde matemtica e fsica, comparaes com ideias bsicas dayog-sothotheria (seria ele tambm uminiciado? Mas o livro no continha instrues prticas, s teorias) e conceitos que s depois da

    poca do autor seriam postulados publicamente. Eu at cheguei a acreditar que o livro era umafarsa, mas um contato em quem eu confiava um professor cinquento que sutilmente dava emcima de mim assegurou que no, que era verdadeiro, mas que o livro no era levado muito a srio

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    e estava guardado na Biblioteca da Miskatonic mais como uma curiosidade do que por outra coisa.O autor, contou-me esse professor, havia desaparecido misteriosamente em sua poca e um colegaficara com o dirio, mais tarde doado Universidade.

    Mesmo fazendo Belas Artes, tive de cursar matrias de matemtica e fsica, paracompreender direito o livrinho. E consegui uma cpia dele. Ao contrrio de outros guardados a sete

    chaves na seo proibida da Biblioteca, aquele era considerado incuo... tanto quanto uma brochurade pouca tiragem,Azathoth e Outros Horrores, do poeta lgubre Edward Derby. E ironicamenteesses dois livros me levaram ao passo seguinte em minha busca.

    Usando as ideias dos livros de Gilman e Peaslee, mais as inspiraes providas por Derby,consegui um vislumbre: um caminho de poder. Minha cpia do Cnones do Kleshayana no

    passava de um comentrio quase leigo a respeito daquela seita bizarra oriental que era oKleshayana, escrito por um mercador italiano que havia se envolvido com esse culto indiano. Mashavia me dado as primeiras chaves para ayog-sothotheria. E voltando a ler os Cnones, pude

    perceber uma srie de aluses que ficavam claras... as anotaes de Walter Gilman falavam dehipergeometria, mundos paralelos, coisas que hoje so cobertas pela teoria das cordas e pela fsica

    quntica. Segundo ele, haviam infinitos mundos, separados por malhas ou corredores, ondeespreitavam criaturas geomtricas e seres incompreensveis. J o psiclogo Peaslee falava de umatribo aborgene que tinha a Hora do Sonho uma dimenso criativa a partir da qual nasceu omundo, e que acessada por sonhos e epifanias xamnicas como uma camada protetora queseparava este nosso mundo natural de outras realidades, universos como... espelhos... mas espelhosmuitas vezes distorcidos, reflexos quebrados. Os Cnones mencionavam um ritual macabro: umsacrifcio geraria o poder suficiente para iniciar uma jornada inicitica, perfurando uma parede de

    sonhos e fazendo a sacerdotisa saltar de um smile para outro, roubando segredos de vidasdiferentes e finalmente retornando com a imortalidade. Esses smiles eram referenciados pela

    palavra alem doppel, apesar do texto estar em italiano. No se referiam s transmigraes dobudismo tibetano (que os ignorantes normalmente chamam de reencarnaes), como eu pensarainicialmente. Depois de ler as poesias de Derby, percebi o bvio que havia se escondido de mimdurante aqueles anos: erapossesso, eu poderia caminhar por entre os corpos de minhas cpias emoutros mundos, conseguindo seus segredos, impondo minha prpria identidade s minhas infinitasvariaes e assim domando a eternidade!

    MAS O RITUAL EM SI ainda estava inacessvel. O livro s o citava, no o continha... praticamenteenlevada pela potica derbyana e por estranhos sonhos dos quais no conseguia me lembrar porcompleto, pintei seis quadros diferentes esboando minhas intuies sobre o ritual mas nada disso

    chegava a ter qualquer aplicao prtica. A frustrao, com o passar das semanas, foi tomando contade mim, e depois de uma noitada pelas boates de Arkham, tentando extravasar, eu trouxe comigouma dose de liao: uma droga de origem chinesa, carssima, e dizem, derivada da infame ltus negra.O que me contavam das viagens daquelas drogas me chamou a ateno, quem sabe com a mentemais aberta, eu conseguiria quebrar o segredo do ritual, sem precisar ir at o Tibete e passar talvezanos, correndo grandes riscos, procurando o Culto do Kleshayana, que no deveria ter o nome deveculo da corrupo, caminho do veneno toa?

    Tentei algo diferente. Fiz um crculo de proteo com o smbolo ancio amarelo, esmagueitrs cpsulas de liao e joguei o pozinho numa soluo de soro fisiolgico, dentro de um nebulizador.Liguei a QuickCam, estava comeando a filmar minhas operaes mgicas, por convenincia ou at

    curiosidade com a nova tecnologia. Mas no deixava de ser irnico o modo com que estava meentregando quele estratagema da alquimia taoista, mesmo depois de toda minha repulsa poralquimia. Ou talvez, minha ignorncia da alquimia. Talvez eu tenha errado em algum ponto do

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    processo... talvez estivesse cansada demais, depois de tanto sexo e msica noturna; mas agora,agora eu agradeo por qualquer erro que eu tenha cometido antes de pr a mscara do nebulizadorno rosto e inspirar fundo, girando a adaga de espelho em gestos ritualsticos, libidinosos, como seela fosse um pndulo rasgando os espaos, diante de meu rosto.

    Agradeo que pelos erros eu tenha conseguido a vitria. Mesmo que no tenha sido como eu

    planejava exatamente... alguns minutos ali e minha vista comeou a distorcer, os cheiroscomearam a se confundir e me vi envolta num turbilho de tempo e espao. Toda audio haviasumido meus ouvidos foram enchidos de um zumbido ameaador e depois, nada. Rudos brancosnum buraco negro... quando de repente uma figura espectral surgiu diante de mim, e no sei como,ultrapassou as protees do crculo amarelo. Aquilo no deveria acontecer, pois s eu tinha

    permisso de estar ali dentro do crculo.

    No, o crculo no estava falho. O vulto se aproximou, envolto em chamas verdes, e seusolhos estavam amarelados, quase dourados, com o poder do smbolo no crculo, seus cabelosvermelhos como os meus, suas formas femininas e nuas, idnticas s minhas... ou quase idnticas...era como se fosse uma duplicata mais velha, um... smile.

    Entrei em pnico, e num instante de horror, eu compreendi. No consegui reagir, a lmina naponta do reflexo, cravada bem no centro de minha testa e desfez-se, escoando, escorrendo paradentro da ferida, numa nuvem de miasma amarelado que apagou as chamas verdes que a envolviam.Minha identidade foi esmagada, anulada, empurrada para abaixo da linha do inconsciente e sobreaquele iceberg psquico, imperou Anna Feiticeira, j de posse dos segredos do ritual, vinda de outradimenso para roubar o corpo de sua duplicata.

    A ltima coisa que eu vi e senti foi a morte de meu pai, repassando continuamente diantedos olhos da mente, e a cada vez mais uma memria mais fragmentria e distante, substituda pelasfrmulas do ritual, pelas inmeras variaes do ritual em mirades de realidades onde o Kleshayanase manifestava com diferentes nomes e em diferentes culturas a necessidade do sacrifcio de umfeto de menos de cinco meses, segundo os aborgenes, antes da entrada formal do esprito dacriana, vindo da Hora do Sonho; uma verso cigana da carta do tar A Morte, rasgada em dois erevelando trs meses e treze dias como o momento ideal para o aborto; o pai da criana deveria serum visionrio onrico, algum com o dom inato de sonhos lcidos; numa segunda etapa o ritualimolaria a sacerdotisa, transportando-a para o corpo de uma de suas smiles... e o Kleshayana no seimportava se o ritual deixava para trs um leviat caador de sonhos, o tulpa aberrante do embriosacrificado; nem com a trilha de smiles absorvidas pela sacerdotisa que buscava o poder total e averdadeira imortalidade.

    Por fim a viso de meu pai expirando, no cho, coberto de sangue, encerrou com seu rostotransformando-se no de meu irmo adotivo Victor, sussurrando no estertor da morte, como nuncahavia acontecido: Voc ainda no estava... pronta... Passado, futuro e possibilidades semisturavam, e no estando pronta nem digna, acabei morrendo naquele pesadelo, junto com os dois;mas no importa. So memrias tolas, embora agradveis, pois mostram os meios de minha vitria.Sou Anna Feiticeira, e esta no foi a primeira nem a ltima vez que matei a mim mesma, mascontinuo viva, desejo e sabedoria unidos numa busca que talvez no tenha fim; mas dizem que oque vale a jornada e no a chegada, no mesmo?

    E olhando mais uma vez o reflexo na ponta da lmina, penso divertida: eu sou a prpriaadvertncia Cuidado com o que deseja!...