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54 A LEITURA DE DOIS PRÓLOGOS LATINO-AMERICANOS SOBRE A OBRA DOM QUIXOTE Aline Venturini 1 RESUMO: A pesquisa proposta trata da análise da leitura de dois prólogos das edições da obra Dom Quixote de la Mancha: a primeira consiste na edição do IV centenário, cujo prólogo selecionado é o de Mário Vargas Llosa “Uma novela para el siglo XXI” e a tradução de Sérgio Molina, da Editora 34, do qual a apresentação é realizada por Maria Augusta da Costa Vieira. Os dois textos trazem a leitura dos dois intelectuais, sendo o primeiro um escritor latino-americano e a segunda, uma das principais críticas de Dom Quixote no Brasil. Ambos têm em comum a análise da obra como precursora do romance moderno, a qual traz características preliminares desse gênero, presentes na obra de escritores modernos e contemporâneos. Nesse sentido, o objetivo da pesquisa é investigar a leitura dos dois intelectuais sob a luz dos parâmetros teóricos da Estética da Recepção proposta por Jauss (1994) e do estudo da hermenêutica de Gadamer (1988), investigando o que os dois prólogos trazem de leituras anteriores sobre a obra. Desse modo, Jauss (1994) afirma que uma obra literária deve romper com os horizontes de expectativas dos leitores e Gadamer (1988) pontua que a leitura de alguém está sempre presa, em certa medida, ao seu contexto literário e social e ao passado, o que não significa que este seja o único pressuposto. O fato é que um leitor dificilmente poderá ver muito além do que o seu contexto permite. Em relação aos prólogos dos dois críticos, resguardando a função social de cada um e suas especificidades, podemos afirmar que a leitura de ambos é influenciada pelo conhecimento que já possuem de outras obras e da evolução do gênero romance desde o século XVI, época da primeira publicação de Dom Quixote, para os tempos atuais. PALAVRAS-CHAVE: Prólogos. Estética da recepção. Romance. 1. Introdução Este texto propõe a investigação em torno da abordagem do gênero de Dom Quixote como precursor do romance moderno em dois prólogos latino-americanos: “Apresentação de Dom Quixote”, de Maria Augusta da Costa Vieira-tradução de Sérgio Molina-6ª. Edição, 2001 e “Una novela para el siglo XXI”, da Edição do IV Centenário de morte de Cervantes-Real Academia Española, 2005. Dom Quixote é entendido como precursor do romance moderno pelos críticos latino- americanos e também pelos estudiosos que escreveram os prólogos em questão neste estudo, destacando as seguintes características: 1) a não aceitação da realidade; 2) a intertextualidade das histórias interpoladas (vários gêneros literários presentes na obra); 3) a discussão do papel de autoria e a presença dos diversos narradores e leitores na história; 4) a polifonia no texto. Nem sempre a obra foi entendida como um gênero novo. Em sua primeira publicação, ainda estava sendo avaliada e não se tinha clareza de que gênero estava sendo instituindo naquele momento. A perspectiva de Quixote como precursora virá depois, evidentemente, a partir das leituras dos romances modernos, a partir do século XIX. Tal visão ocorre de acordo com o que Gadamer (1997) teoriza sobre o estudo do fenômeno da interpretação, intimamente ligado, neste caso, com a relação com outras obras de arte surgidas depois do Quixote e que apresentam características nele presentes. Isso significa que não era possível existir essa perspectiva durante um longo período depois da primeira publicação das aventuras do “Cavaleiro da Triste figura”. Jauss (1994) encontra concordâncias entre a Teoria da Recepção e a 1 Professora de Língua e Literatura Hispanoamericana e Espanhola pela UNESPAR, Mestre em Letras com ênfase em Literatura Brasileira relacionada com a Hispanoamericana e doutoranda pela UFRGS, sob a orientação do professor Dr. Ruben Daniel Castiglioni.

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A LEITURA DE DOIS PRÓLOGOS LATINO-AMERICANOS SOBRE A OBRA DOM QUIXOTE

Aline Venturini1

RESUMO: A pesquisa proposta trata da análise da leitura de dois prólogos das edições da obra Dom Quixote de la Mancha: a primeira consiste na edição do IV centenário, cujo prólogo selecionado é o de Mário Vargas Llosa “Uma novela para el siglo XXI” e a tradução de Sérgio Molina, da Editora 34, do qual a apresentação é realizada por Maria Augusta da Costa Vieira. Os dois textos trazem a leitura dos dois intelectuais, sendo o primeiro um escritor latino-americano e a segunda, uma das principais críticas de Dom Quixote no Brasil. Ambos têm em comum a análise da obra como precursora do romance moderno, a qual traz características preliminares desse gênero, presentes na obra de escritores modernos e contemporâneos. Nesse sentido, o objetivo da pesquisa é investigar a leitura dos dois intelectuais sob a luz dos parâmetros teóricos da Estética da Recepção proposta por Jauss (1994) e do estudo da hermenêutica de Gadamer (1988), investigando o que os dois prólogos trazem de leituras anteriores sobre a obra. Desse modo, Jauss (1994) afirma que uma obra literária deve romper com os horizontes de expectativas dos leitores e Gadamer (1988) pontua que a leitura de alguém está sempre presa, em certa medida, ao seu contexto literário e social e ao passado, o que não significa que este seja o único pressuposto. O fato é que um leitor dificilmente poderá ver muito além do que o seu contexto permite. Em relação aos prólogos dos dois críticos, resguardando a função social de cada um e suas especificidades, podemos afirmar que a leitura de ambos é influenciada pelo conhecimento que já possuem de outras obras e da evolução do gênero romance desde o século XVI, época da primeira publicação de Dom Quixote, para os tempos atuais.

PALAVRAS-CHAVE: Prólogos. Estética da recepção. Romance.

1. Introdução

Este texto propõe a investigação em torno da abordagem do gênero de Dom Quixote como precursor do romance moderno em dois prólogos latino-americanos: “Apresentação de Dom Quixote”, de Maria Augusta da Costa Vieira-tradução de Sérgio Molina-6ª. Edição, 2001 e “Una novela para el siglo XXI”, da Edição do IV Centenário de morte de Cervantes-Real Academia Española, 2005.

Dom Quixote é entendido como precursor do romance moderno pelos críticos latino-americanos e também pelos estudiosos que escreveram os prólogos em questão neste estudo, destacando as seguintes características: 1) a não aceitação da realidade; 2) a intertextualidade das histórias interpoladas (vários gêneros literários presentes na obra); 3) a discussão do papel de autoria e a presença dos diversos narradores e leitores na história; 4) a polifonia no texto.

Nem sempre a obra foi entendida como um gênero novo. Em sua primeira publicação, ainda estava sendo avaliada e não se tinha clareza de que gênero estava sendo instituindo naquele momento. A perspectiva de Quixote como precursora virá depois, evidentemente, a partir das leituras dos romances modernos, a partir do século XIX. Tal visão ocorre de acordo com o que Gadamer (1997) teoriza sobre o estudo do fenômeno da interpretação, intimamente ligado, neste caso, com a relação com outras obras de arte surgidas depois do Quixote e que apresentam características nele presentes. Isso significa que não era possível existir essa perspectiva durante um longo período depois da primeira publicação das aventuras do “Cavaleiro da Triste figura”. Jauss (1994) encontra concordâncias entre a Teoria da Recepção e a

1 Professora de Língua e Literatura Hispanoamericana e Espanhola pela UNESPAR, Mestre em Letras com

ênfase em Literatura Brasileira relacionada com a Hispanoamericana e doutoranda pela UFRGS, sob a

orientação do professor Dr. Ruben Daniel Castiglioni.

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Hermenêutica em torno da reflexão de uma obra de arte como Dom Quixote. Provocar interpretações diversas em seus leitores, porém, ligadas ao passado que conhecem, bem como a sua atualidade:

Conforme demonstrou H. G. Gadamer, o ideal da história universal transformou-se, assim, num embaraço para a investigação histórica. O historiador-escreveu Gervinus- pode somente pretender apresentar séries acabadas de acontecimentos uma vez que, desconhecendo as cenas finais, não lhe é possível julgar. (JAUSS, 1994, p.11)

O fato de prefigurar características que ficariam evidentes na forma romance futura fez com que Dom Quixote representasse, em sua época de produção, um gênero ainda desconhecido e mal compreendido. Conforme a visão dos autores explicitada por Jauss (1994), o historiador da literatura não consegue analisar toda a trajetória de uma obra de arte, posto que não tem acesso a tudo que se produz sobre ela. Ele está preso ao seu contexto histórico e ao que conhece do passado, isto é, às leituras existentes a respeito do objeto sobre o qual se debruça. Por isso, não consegue julgar de forma plena, necessitando, também, do crítico e dos futuros historiadores que possam continuar o trabalho. Desse modo, verificar se uma obra representou um gênero novo e se influenciou outras obras é algo que só pode ser verificado após o trabalho de vários historiadores e críticos literários ao longo do tempo. Jauss (1994) avalia o surgimento de um gênero novo, ou de formas estéticas novas, partindo do pressuposto da Estética da Recepção:

O novo torna-se também categoria histórica quando se conduz a análise diacrônica da literatura até a questão acerca de quais são, efetivamente, os momentos históricos que fazem de novo em uma obra literária o novo; de em que medida esse novo é já perceptível no momento histórico de seu aparecimento; de que distância, caminho ou atalho a compreensão teve de percorrer para alcançar-lhe o conteúdo e, por fim, a questão de se o momento de sua atualização plena foi tão poderoso em seu efeito que logrou modificar a maneira de ver o velho e, assim, a canonização do passado literário. (JAUSS, 1994, p. 45)

Dom Quixote é considerado novo em sua época por, primeiramente, questionar as novelas de cavalaria, parodiando-as. No entanto, questiona-se em que medida o novo já foi perceptível em seu momento histórico, pois nem tudo o que a obra apresentou foi inteiramente compreendido por seus contemporâneos, já que era considerada uma obra de entretenimento e nada mais. Nesse sentido, a sua canonização ocorreu um pouco mais tarde, embora a obra já tivesse grande recepção dos leitores da sua época. Dom Quixote, portanto, levou um certo tempo para ser visto como novo em relação a sua categorização de gênero precursor do romance moderno. Todavia esse efeito foi de tal maneira poderoso, que ele é considerado e lido hoje ainda como um gérmen das novas características do romance, bem como de ideias em relação a valores da humanidade, como, por exemplo, a liberdade e a instituição de sistemas políticos revolucionários, como o anarquismo, conforme é apontado por Llosa em seu prólogo “Uma novela para el siglo XXI”, da edição de 2005 do IV centenário da primeira parte de Dom Quixote, realizada pela Real Academia Espanhola.

A forma romance existe em diferentes denominações antes, ainda, de Quixote. Mas, o que é romance exatamente e quais foram suas diferentes flutuações ao longo dos séculos? O que era Dom Quixote enquanto gênero literário? Existiam romances no tempo de Cervantes? Para responder a essas perguntas, recorre-se a Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Teoria da Narrativa (1988) e a Mikhail Bakhtin que, em sua obra Questões de Literatura e de Estética (1998), faz um panorama e uma discussão da flutuação que o termo romance adquiriu desde a sua primeira denominação grega até o romance moderno, preconizado pelo Quixote.

O romance, segundo Reis e Lopes (1988) pode ser preliminarmente identificado como:

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A Diferenciação de sub-gêneros narrativos verifica-se sobretudo no domínio do romance, gênero narrativo cujo destaque histórico e maleabilidade estrutural consentem amplas modulações; sem, porém, pôr em causa as dominantes do gênero que caracterizam o romance (nem, como é óbvio, a sua vinculação ás qualidades da narratividade (v.) que modalmente o regem), subgêneros como o romance epistolar, o romance picaresco, o romance histórico ou o romance de formação, entre outros, definem-se a partir de concretas opções temático-ideológicas e semionarrativas. (REIS E LOPES, 1988, p. 94)

Segundo essa concepção posta por Reis e Lopes (1998), o romance possui vários tipos e modulações, conforme a época. Assim, Dom Quixote se apresentou como um tipo novo de romance, inexistente até o momento de sua publicação, posto que uniu vários outros tipos desse gênero em sua forma. Pode-se dizer que ele se originou da leitura dos outros, bem como da discussão literária sobre eles que empreende em seu enredo. Dessa maneira, Bakthin (1998) identifica três tipos básicos de romance na antiguidade: o romance de aventuras e provações, ou ainda, chamado romance grego; o romance de aventuras e costumes e o romance biográfico. Já na Idade Média, surgiu o romance de cavalaria, gênero que será parodiado e criticado por Cervantes em Quixote, e o romance ligado às baixas camadas da sociedade, cuja característica principal é a comicidade. Os três tipos básicos de romance são significativos para entender a gênese do romance europeu, bem como a elaboração do Quixote.

O romance europeu, segundo o mesmo autor, se divide em duas linhas estilísticas principais: os pertencentes à primeira linha, caracterizados por uma “estilização rígida e sistemática” e os de segunda linha, mais plurilíngues. Os primeiros consistem nos romances sofistas, os quais possuem uma única linguagem, geralmente nobre e culta, e um herói que não se modifica ao longo da narrativa. Pertencem a esta linha as novelas medievais (de cavalaria), barrocas e pastoris. Os segundos, de segunda linha, possuem mais variedade de vozes e, por isso, são plurilíngues. A voz das classes mais baixas já começa a aparecer e a ganhar maior importância, contrapondo-se às vozes nobres. Além disso, o narrador já não possui tanta confiabilidade e há interpolação de gêneros. O humor e a ironia ganham espaço, pois antes, a narrativa da novela tinha caráter mais sério.

Consoante Bakhtin (1988), Dom Quixote é um romance característico de segunda linha, pois apresenta todas as características de forma, inclusive, superadas. Isso significa que foi uma obra além do seu tempo:

Em contraposição à categoria de literaturidade, o romance de segunda linha apresenta a crítica do discurso literário enquanto tal, e sobretudo a crítica do discurso romanesco. Esta autocrítica do discurso é uma particularidade essencial do gênero romanesco. O discurso é criticado na sua relação com a realidade: nas suas pretensões de refleti-la fielmente, governá-la e remanejá-la (pretensões utópicas do discurso), substituí-la como seu sucedâneo (o sonho e a invenção substituindo a vida). Já em Dom Quixote o discurso literário romanesco é posto à prova pela vida, pela realidade. E no seu desenvolvimento posterior o romance de segunda linha continua a ser, em grande parte, o romance de provações do discurso literário, e podem ser observados os dois tipos de provação. (BAKHTIN, 1988, p. 202)

O autor afirma que, ao contrário dos romances de primeira linha, os quais seguem a “literaturidade”, os da segunda linha contrapõem a literatura à realidade, isto é, apostam no contraste entre as duas. Em Dom Quixote, essa premissa está na máxima potência, posto que o protagonista está em total desacordo com o mundo na primeira parte e na segunda ficção e realidade confundem-se o tempo todo. Nos romances de primeira linha isso dificilmente ocorre, porque somente os nobres e sua linguagem são representados. Eles seguem a tese da Mímesis de Aristóteles, segundo a qual o literário é a representação da tragédia, que se refere à nobreza e o antiliterário é o que se refere à vida prosaica e ao pobre, principalmente.

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A inovação de Dom Quixote reside nesta característica, de acordo com Bakhtin (1988), pois o contraste entre a linguagem empolada do cavalheiro e a vulgar de Sancho Pança resulta em um novo tipo de literaturidade. Este serve, justamente, para parodiar os romances de cavalaria, tipos característicos da primeira linha, a fim de promover uma crítica sobre essa literatura.

O romance de cavalaria consiste em uma variação do romance grego e é organizado, conforme Bahktin (1988), a partir das várias aventuras que o cavaleiro vivencia. Neste tipo de romance, não há espaço para o prosaico, pois o mundo do herói é todo maravilhoso. Por isso, ele se aproxima da epopeia do romance grego, havendo apenas uma diferença: os heróis dos romances de cavalaria são diferentes uns dos outros, enquanto os do romance grego são todos iguais.

Dom Quixote derruba a ideia do herói perfeito e ideal presente tanto no romance grego, quanto no de cavalaria, contrastando a realidade e a linguagem, ao colocar o cavaleiro fora de sua época. Por isso, o discurso literário é posto à prova frente à realidade, resultando no grotesco e no humorístico. Isso ocorre a partir de todas as características apontadas no primeiro capítulo: o deslocamento do protagonista frente a sua realidade, posto que deseja viver a sua fantasia literária de cavalheiro; o contraste entre a linguagem nobre, culta e interpolada do protagonista e a vulgar, prosaica e simples de seu escudeiro, resultando no plurilinguismo apontado por Bakhtin (1988); a presença de vários gêneros literários, principalmente os de primeira linha, sobre os quais discute e tece uma crítica literária; a intervenção dos leitores o tempo todo na narrativa, sendo que os vários narradores também são leitores e críticos e a presença do elemento irônico e humorístico, o que resulta na desconfiança em torno tanto dos personagens, quanto dos narradores.

Sobre esta questão do humor e da ironia, Bakhtin (1988) aponta que essa característica romanesca se desenvolveu a partir de três tipos de personagens, os quais foram fundamentais para a gênese do romance europeu: o trapaceiro, o bufão e o bobo. Os três subvertem a realidade, segundo o mesmo autor, criando a sua realidade paralela:

O trapaceiro ainda tem uns fios que o ligam à realidade; o bufão e o bobo “não são deste mundo” e por isso têm direitos e privilégios especiais. Estas figuras que riem, elas mesmas são também objeto de riso. Seu riso assume o caráter público da praça do povo. Elas restabelecem o aspecto público da representação, pois toda a existência dessas figuras, enquanto tais, está totalmente exteriorizada, elas, por assim dizer, levam tudo para a praça, toda a sua função consiste nisso, viver no lado exterior (é verdade que não é a sua própria existência, mas o reflexo da existência de um outro; porém elas não têm outra). Com isso cria-se um modo particular de exteriorização do homem por meio do riso paródico. (BAKHTIN, 1988, p. 276)

Esses personagens geraram o romance picaresco, que se configura como um tipo de romance de segunda linha. Este consiste na sobrevivência do pobre a partir de pequenas subversões das leis e do seu contexto para superar as dificuldades, mas em um tom sempre cômico. Esses elementos estão presentes em Dom Quixote nas ações dos demais personagens em torno do protagonista e também do próprio, no sentido de que cria e segue suas próprias leis, porém, não para a sobrevivência, mas devido a própria insatisfação com sua realidade. Dessa forma, Bakhtin (1988) destaca que:

De uma forma ou de outra, neste ou naquele nível, todos os traços analisados por nós se manifestam no “romance picaresco”: em Dom Quixote, em Quevedo e Rabelais (...) É característico que o homem interior –subjetividade pura e “natural “-só tenha podido ser revelado com a ajuda das figuras do bufão e do bobo, pois não foi possível encontrar para ele uma forma de existência adequada, direta (não alegórica do ponto de vista da vida corrente). (BAKHTIN, 1988, p. 279)

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As figuras do bufão e do bobo criam o próprio mundo em contraposição à realidade que se apresenta a eles. A forma como o fazem revela a sua subjetividade. Por isso, essas figuras ajudaram a compor os traços dos personagens dos romances picarescos e, mais tarde, de acordo com a teoria marxista e histórica de Georg Luckács (1960), o homem moderno, insatisfeito e desajustado em relação ao seu contexto social no romance moderno ou burguês, como aponta Bakhtin (1988).

Dessa forma, o bufão e o bobo preconizam o indivíduo que não está de acordo com a sua realidade. Por isso, podemos relacionar essa semelhança com o fidalgo que, motivado pela leitura dos livros de cavalaria, cria o seu próprio mundo, com o fim de buscar a felicidade. Vieira (1998) afirma que encontra semelhanças entre o protagonista de Dom Quixote e o homem desajustado do romance moderno. A única diferença é que o moderno apresenta luta de classes, identificada pela teoria marxista, enquanto que em Dom Quixote não há.

A Estética da Recepção procura entender, através da análise diacrônica e sincrônica das leituras efetuadas sobre as obras, como os gêneros são formados, bem como por que se tornam perenes. Essa teoria se mostra como alternativa para responder as lacunas deixadas pelas teorias marxista e formalista. Aqui Dom Quixote será analisado como formador do romance moderno e a razão de sua perenidade.

A linha teórica que põe o leitor em foco na construção da história da Literatura ou de uma obra em especial, em seus aspectos, sobretudo, de gênero e instituição de comportamentos novos é a Estética da Recepção, a qual embasa este trabalho. O crítico José Montero Reguera trata sobre essa questão, no âmbito da obra dom Quixote, em seu livro El Quijote y la crítica contemporânea (1997), mais precisamente no quinto capítulo “La recepción del Quijote.”. O autor aborda as leituras realizadas dentro desse pressuposto teórico e esclarece que ele consiste em localizar o leitor na posição central dentro da construção da história da literatura, especialmente no que diz respeito ao Quixote.

Isso significa que Reguera (1997) vai apontar como essa obra de Cervantes perpetuou a sua importância e capacidade de gerar novas interpretações no decorrer dos séculos através da recepção de seus leitores, principalmente os escritores, os quais sofreram uma grande influência deste em suas obras no que tange à estética e à interpretação do homem moderno. Isso acontece em uma cadeia sucessiva de leituras, que influenciam umas às outras. Jauss (1994) explica, nesse sentido, a essência da Estética da Recepção:

A história da literatura é um processo de recepção e produção estética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete. A soma – crescente a perder de vista – de “fatos” literários conforme os registram a história da literatura convencional é um mero resíduo desse processo, nada mais que passado coletado e classificado, por isso mesmo não constituindo história alguma, mas pseudo-história. (JAUSS, 1994, p. 35)

O crítico é visto como um tipo de leitor dessa cadeia, o qual se relaciona com o autor, também leitor de outras obras e produtor. A sucessão de perspectivas leitoras vai formando uma história da obra no decorrer do tempo e de como ela continua sendo importante do ponto de vista da interpretação e nos sentidos que é capaz de suscitar. É por isso que Jauss (1994) destaca a ineficiência de se estudar uma obra relacionando-a somente a grandes períodos literários ou mesmo “fatos”, como ele mesmo nomeia, pois o papel do leitor é negligenciado dessa forma.

Os fatos literários são considerados insuficientes para Jauss (1994), pois não compreendem as possíveis interpretações dos leitores, já que são ignorados nesse processo. Isso ocorre porque a obra é vista somente como um produto do meio e um reflexo, uma imitação da sociedade de sua época. Isso faz com que a interpretação desta seja muito restrita. Se somente o contexto histórico fosse importante, como explicar o interesse de leitores não pertencentes a sua

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época de produção, posto que não viveram naquele período? Considerar apenas fatos significa anular também a independência do leitor, uma vez que sua liberdade de interpretação e como sente o texto não contariam se ele não se inteirar do contexto histórico. Ademais, tal concepção desconsidera a existência de múltiplas leituras, pois a história traria somente um único sentido se tida como critério de leitura preponderante sobre os demais.

Por isso, a Estética da Recepção surge a partir dos anos 70 como uma reação a critérios totalitários, isto é, a atribuição da interpretação de uma obra literária somente à história ou à estética. Para Jauss (1994) essas duas perspectivas não explicam suficientemente a existência de leituras diferentes de uma mesma obra, bem como a sua permanência. Desse modo, Reguera (1997) afirma sobre a teoria da recepção:

Esta corriente crítica de reflexión sobre la obra literaria, surgida a comienzos de los años setenta, ha puesto de relieve la importancia del lector. En realidad, según los partidarios de la estética de la recepción, una obra literaria del tipo que sea sólo tiene valor y sentido en tanto en cuanto es leída y conocida por un lector.Este énfasis en la función del lector ha permitido dirigir las investigaciones de dicha escuela hacia la busca, por ejemplo, de la estructura de una obra mediante la comparación de las diversas lecturas de que ha sido objeto y su reducción a un esquema básico; a estudiar la manera en que el lector es capaz de rellenar los “blanks’ o “vacíos” que el autor ha dejado a lo largo de su obra; a mostrar la variedad de respuestas que un mismo texto ha tenido a lo largo del tiempo; etc. (REGUERA, 1997, p. 101-102)

Toda obra literária possui uma certa margem de interpretação, ou seja, o sentido não é inteiramente fechado. Essa abrangência é permitida pelas relações que o leitor realiza com seu contexto, com o conhecimento prévio que possui e, sobretudo, pela universalidade do tema abordado pela literatura. Isso torna possível que o leitor complete esses vazios existentes no texto. No entanto, essa linha foi acusada de ser superficial, uma vez que a opinião do leitor não pode ser suficientemente “científica”, mas carregada de “psicologismo”.

Jauss (1994) reconhece que isso pode acontecer se as perspectivas dos leitores forem analisadas individualmente, e não em conjunto. Se vistas de forma entrelaçada, podem demonstrar os possíveis elos entre as recepções e poderão adquirir um caráter mais científico. No que diz respeito a Dom Quixote, um dos elos importantes é a subjetividade de seu protagonista, a qual corresponde à primeira característica romanesca moderna prevista.

O enredo de Dom Quixote, o qual trata de um fidalgo doente às portas da morte, insatisfeito com a própria vida, buscando viver um sonho das páginas dos livros que lê é bastante universal, pois trata da própria insatisfação do ser humano. Este se caracteriza como um elo importante entre as recepções de Quixote, que o levou a ser considerado precursor do romance moderno. Também podemos dizer que se trata do vazio existente dentro desse texto literário, que foi atualizado por diversos leitores em diferentes épocas, através da comparação com outras leituras já realizadas por eles, no caso, de romances burgueses modernos.

A interpretação atualizada de cada leitor pode, no entanto, não compreender suficientemente toda a abrangência da obra literária, posto que ele está preso às suas circunstâncias atuais e ao que ele efetivamente conhece ou ouviu falar sobre ela. Isso significa que ele não consegue abarcar as futuras interpretações, uma vez que as ignora. Um leitor contemporâneo à obra de Cervantes não poderá ter a mesma dimensão do texto de um que vive no século XXI, por exemplo.

Esse aspecto tem a ver com a Hermenêutica proposta por Gadamer ([1900 ] 1997). Esta consiste em um estudo da interpretação. De acordo com Gadamer (1900, edição 1997) qualquer leitura será reduzida ao seu contexto, mesmo que este não seja o único critério:

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A universalidade do ponto de vista hermenêutico não tolera uma restrição, segundo meu

parecer, também lá onde se trata da multiplicidade da tomada de interesses históricos,

que se reúnem na ciência da história. Certamente que existem muitos modos de escrever

a história e de pesquisar a história. Não se pode dizer, de modo algum, que toda tomada

de interesse histórico tenha seu fundamento na realização consciente de uma reflexão

histórico-efeitual. A história da tribo dos esquimós norte-americanos é com certeza

completamente independente de que ela possa ter tido influências ou não na “história

universal da Europa”, e de quando isso possa ter ocorrido. E, no entanto, não se pode

negar, em sã consciência, que essa reflexão histórico-efeitual vá se mostrar poderosa

também face a esta tarefa histórica. Quem voltar a ler a história dessas tribos, escrita hoje,

daqui a 50 ou 100 anos, não somente achará esta história velha, porque nesse meio

tempo ele sabe mais ou interpreta as fontes mais corretamente –ele pode também

admitir que no ano de 1960 liam-se as fontes de modo diverso, porque estava motivado

por outras questões, por outros pressupostos e interesses. Querer simplesmente

substituir a grafia e a investigação histórica à competência da reflexão histórico-efeitual,

significaria reduzi-la à indiferença extrema. É justamente a universalidade do problema

hermenêutico que questiona retrospectivamente todas as espécies de interesse pela

história, porque envolve cada vez mais naquilo que está como fundamento para a

“questão histórica”. (GADAMER, 1900, EDIÇÃO 1997, p.19-20)

Cada leitor entra em contato com uma determinada obra motivado por interesses e pressupostos diversos, seja por motivos particulares, ou por seu contexto. Por isso, a interpretação, segundo Gadamer (1997), não pode estar presa nem só ao seu contexto e nem somente ao do leitor, de modo que ela não está restrita a nenhum elemento em especial. É o que também podemos dizer de Dom Quixote: em sua época, a obra não poderia ser entendida como o marco de um gênero literário novo sem a comparação com as obras literárias que viriam posteriormente. No entanto, essa universalidade em torno desse ponto de vista hermenêutico só poderia surgir depois dos romances de Dostoiévski, Joyce, entre tantos expoentes do romance moderno. Por isso, uma interpretação não é feita somente com base no contexto histórico-efeitual, mas em todo o conhecimento produzido em torno dela até então.

Dessa forma, segundo Zilbermann (1989), o estudo da literatura baseado somente no contexto efeitual perde o sentido, pois ele deve ser apenas um dos aspectos a ser levado em conta e não o principal:

A análise de Jauss leva-o a denunciar a fossilização da história da literatura, cuja metodologia estava presa a padrões herdados do idealismo ou do positivismo do século XIX. Somente pela superação dessas orientações seria possível promover uma nova teoria da literatura, fundada no “inesgotável reconhecimento da historicidade” da arte, elemento decisivo para a compreensão de seu significado no conjunto da vida social; não mais, portanto, na omissão da história. Indiretamente ele está acusando as correntes a- ou anti-históricas vigentes nos estudos literários alemães, resultantes das influências diversas recebidas desde o final da guerra. (ZILBERMANN, 1989, p. 9)

Além da questão do contexto, Zilbermann (1989) trata da forma de estudar a literatura moldada pelo idealismo e pelo positivismo. O idealismo busca ver a obra literária somente como uma crítica social ao seu tempo de gestação. Essa visão também influenciou a maneira como Dom Quixote foi lido por boa parte do século XIX e XX. A crítica comenta que a historicidade da arte deve ser levada em conta principalmente quando o conhecimento do leitor é acessado. Já o positivismo vê a obra de arte como uma espécie de doutrinação de valores em seus leitores, bem como o compromisso de mostrar uma bela estética formal, de acordo com os seus parâmetros do que significa “belo”: uma obra vista como correta, que segue determinados padrões estabelecidos, geralmente os neoclássicos. Nenhuma dessas orientações é vista por Jauss (1998) como suficiente para ler uma obra literária e nem para construir uma história dela. Para fazer

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sentido, ela depende das diversas reações de seus leitores ao longo do tempo. Para isso, estabelecem-se três estágios: 1) verificar a recepção da obra em seu contexto histórico de publicação ou mesmo em outras épocas isoladamente, de forma diacrônica; 2) analisar as diversas recepções diacrônicas, estabelecendo um elo entre elas, ou seja, de forma sincrônica; 3) a obra só será perene quando for capaz de trazer sempre um dado novo para o leitor e modificar seu comportamento social, através da constante quebra de horizontes de expectativas.

De acordo com Jauss (1994, p. 28), uma obra de arte perene só o será se for capaz de romper constantemente as expectativas de seus leitores, trazendo algo novo:

O caso ideal para a objetivação de tais sistemas histórico-literários de referência é o daquelas obras que, primeiramente, graças a uma convenção do gênero, do estilo ou da forma, evocam propositadamente um marcado horizonte de expectativas em seus leitores para, depois, destruí-lo passo a passo – procedimento que pode servir apenas a um propósito crítico, mas produzir ele próprio efeitos poéticos. Assim é que Cervantes faz com que, da leitura de Dom Quixote, resulte o horizonte de expectativa dos antigos e tão populares romances de cavalaria, romances estes que a aventura deste último cavaleiro parodia, então, profundamente. (JAUSS, 1994, p. 28)

Romper um horizonte de expectativa significa fazer o leitor pensar de uma forma diferente na sua interpretação sobre uma dada obra de arte, o que pode levá-lo a gostar dela ou odiá-la. Isso faz com que tenha que rever seus conceitos de leitura sobre ela e elaborar outros. Foi o que Dom Quixote realizou em torno das obras de cavalaria, as quais eram amadas pelos leitores da época. Por continuar a romper horizontes de expectativas e suscitar novas interpretações é que a obra se tornou perene e se mantém como um referencial de literatura ocidental quase tão lido quanto a Bíblia.

É por causa de sua perenidade que Dom Quixote é considerado um clássico. Esse conceito tem a ver com a capacidade de uma obra manter-se sempre no imaginário dos leitores, além de ser, ela mesma, a fundação de um gênero literário novo, visto como modelo para obras futuras. Porém, Jauss (1994) e Gadamer (1997) discordam em um ponto em relação ao que se considera como clássico, que tem a ver justamente com o rompimento de horizontes de expectativas dos leitores. Enquanto para Gadamer a obra clássica sempre proporá uma nova pergunta aos leitores conforme o tempo em que se situam, Jauss afirma que nem sempre a obra clássica poderá instigar o leitor, pois no momento em que cai no Olimpo das obras perenes e clássicas, corre o risco de não mais motivar e ou propor nada ao leitor. De acordo com Jauss (1994):

Evidentemente, determina tal contradição o fato de Gadamer ter se apegado a um conceito de arte clássica que, fora de sua época de origem – a do Humanismo –, não se sustenta como fundamento geral de uma estética da recepção. Trata-se do conceito de mímesis, entendido aqui como “reconhecimento”, conforme expõe Gadamer em sua explicação ontológica da experiência da arte. (JAUSS, 1994, p. 39)

Para a escola Humanista, a qual pertence Gadamer, o clássico tem, em si mesmo, uma estética que sempre permanecerá e será capaz de fazer o leitor de qualquer época se identificar com a leitura, porque trata de questões humanas consideradas universais, além de trazer uma estética que considera ideal. Isso significa conceber formas e linguagem consideradas “perfeitas” esteticamente, compreendendo o homem como centro do universo, bem como uma linguagem considerada culta e elevada. Por isso, o clássico se torna um modelo literário a ser seguido. No entanto, Jauss (1994) contesta essa visão, uma vez que o perigo da obra clássica seria o de não ser mais questionada pelo fato de que suas questões não seriam mais reconhecidas. O autor, contudo, reconhece que a obra pode propor questões novas à medida que os leitores as reconhecem, as atualizam conforme o seu tempo ou, até mesmo, se a obra prefigura coisas futuras que ainda serão reconhecidas, pois os seus leitores contemporâneos não foram capazes

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de apreendê-las. Segundo Jauss (1994, p. 39): “A obra de arte pode também transmitir um conhecimento que não se encaixa no sistema platônico; ela o faz quando antecipa caminhos da experiência futura, imagina modelos de pensamento e comportamento ainda não experimentados ou contém uma resposta para novas perguntas. ”

Dessa maneira, Dom Quixote é considerado perene e clássico dentro do sentido que Jauss colocou, pois previu não apenas questões humanas e sociais futuras, mas também, características estéticas inovadoras, presentes nos romances modernos.

É por isso que a ironia criada sobre os romances de cavalaria não esgota a capacidade de Dom Quixote de propor novas leituras. Essa visão da paródia que o livro efetuou nos leitores de sua época é, para Jauss (1994), a perspectiva diacrônica que as obras literárias possuem em determinada época. Nesse caso, é o seu tempo de publicação. No entanto, apenas essa perspectiva não basta, pois é preciso ver a obra sincronicamente. De acordo com Jauss (1994):

Mesmo o efeito das grandes obras literárias do passado não é um acontecer que se mediava a si próprio, nem pode ser comparado a uma emanação: também a tradição da arte pressupõe uma relação dialógica do presente com o passado, relação esta em decorrência da qual a obra do passado somente nos pode responder e ”dizer alguma coisa” se aquele que hoje a contempla houver colocado a pergunta que traz de volta a pergunta de seu isolamento. (JAUSS, 1994, p. 39-40)

Isso significa que, ao se estudar a perspectiva diacrônica de Dom Quixote em cada época em que foi recebido, desde a sua publicação até os tempos atuais, é preciso efetuar uma análise sincrônica, percebendo os elos que essas recepções possuem entre si, para estabelecer uma pergunta. Desta forma, ao comparar as perspectivas diacrônicas entre si e estabelecer a união através de vários pontos em comum entre elas, verifica-se que a obra preconizou características romanescas presentes nas obras posteriores e isso só ocorreu pela relação dialógica entre o passado e o presente, pois a pergunta estabelecida pelos leitores posteriores foi em que Dom Quixote, enquanto um gênero novo em sua época, contribuiu para a gestação de novas obras literárias.

A Estética da Recepção procura ver o papel do leitor na formação da história de uma obra literária e ver como esta contribuiu para trazer um dado novo, de modo que desafie este leitor. Para Jauss (1994), Dom Quixote provocou os seus leitores a terem uma visão diferente de mundo da que possuíam baseados somente na leitura dos romances de cavalaria, isto é, a visão diacrônica do seu momento de publicação. Por isso, os estudos teóricos dessa corrente procuram, nesta obra, a importância da interpretação desse leitor e da necessidade de estimulá-lo em suas diversas épocas. Aí teremos a visão sincrônica.

Contudo, ainda assim, as perspectivas diacrônica e sincrônica não são suficientes para construir a história da literatura, ou mesmo de uma obra literária, neste caso, o Quixote. Segundo Jauss (1994):

A tarefa da história da literatura somente se cumpre quando a produção literária é não apenas apresentada sincrônica e diacronicamente na sucessão de seus sistemas, mas vista também como história particular, em sua relação própria com a história geral. (...) A função social somente se manifesta na plenitude de suas possibilidades quando a experiência literária do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua vida prática, pré-formando seu entendimento de mundo e, assim, retroagindo sobre seu comportamento social. (JAUSS, 1994, p. 50)

Nesse sentido, Dom Quixote cumpre esse papel na medida em que influenciou escritores do mundo todo a adotar as características romanescas que apresentou e também suscitou intepretações leitoras diversas, de modo a fazer esses leitores se identificarem com o texto e

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analisarem sua realidade através dessa obra. A cadeia de recepções em seu entorno construiu o elo com os romances modernos que surgiram no século XIX, bem como em relação a ideias como liberdade, justiça, discussão literária, que também engloba a função narrativa e a desconfiança em torno da mesma, a questão da autoria, enfim, as questões que são identificadas com as características romanescas dessa obra, e que foram expostas no capítulo 1.

A própria obra, por sua vez, já se caracteriza como uma história de leitores e de sua contínua recepção. Este ponto, no entanto, é visto por Reguera (1997) como ainda muito pouco explorado pelos estudiosos da recepção, pois, segundo o autor, eles somente desejam aplicar a teoria em torno das leituras sobre o Quixote. São citadas algumas exceções de intelectuais que o fizeram, mas insuficientes, posto que realizaram suas análises baseadas em perspectivas muito longevas, como os já citados idealismo, positivismo e outros, como a correlação da história do autor com a gênese da obra, embora existam algumas relações. Reguera (1997) explica que:

(...) llama la atención el poco interés que el estudio del Quijote ha merecido por parte de

los seguidores de la estética de la recepción. Y, sin embargo, es un libro que el que

abundan los elementos susceptibles de ser analizados desde esa perspectiva: los sonetos

preliminares, en los que personajes anteriores a la composición de la obra responden a

héroes venideros, creando una especie de recepción reversible; personajes que expresan

sus reacciones ante la lectura de un soneto, de una carta o de una narración más o menos

extensa; los reflejos del éxito de la primera parte de la segunda; la hipótesis de que

Cervantes modificara, cambiara, etc su plan inicial en función de los reparos efectuados

por los lectores del Quijote de 1605; posibles relecturas por Cervantes de sus propias

obras; las llamadas del narrador a la libertad del lector para interpretar un pasaje;

llamadas de atención sobre la posible veracidad o no de los hechos narrados… Estos y,

seguramente, otros elementos tendrían cabida en un análisis realizado desde la

perspectiva de la estética de la recepción. Queden, pues, como atractivas posibilidades del

trabajo. (REGUERA, 1997, p. 103)

O prólogo, o qual introduz uma obra literária aos leitores, manifesta a leitura de seu autor sobre a mesma. Geralmente, é escrita por um especialista no assunto, como um crítico literário. Através da leitura de dois prólogos: “Apresentação de Dom Quixote”, de Maria Augusta da Costa Vieira-tradução de Sérgio Molina-6ª. Edição, 2001 e “Uma novela para el siglo XXI”, da Edição do IV Centenário de morte de Cervantes-Real Academia Española, 2005, vamos investigar duas posições leitoras em torno das características romanescas modernas precursoras de Dom Quixote.

A investigação das perspectivas das leituras dos autores dos dois prólogos é uma outra forma de construir a história de Dom Quixote através da recepção, teoria desenvolvida por Jauss (1960). Ele afirma que a recepção valoriza o papel do leitor, fato que não ocorre com as teorias formalista e histórica, as quais o deixam em segundo plano ou o desconsideram totalmente. Afirma, ainda, que uma obra prima literária se define pelo rompimento de horizontes de expectativas de seus leitores, tarefa empreendida por Dom Quixote, ao parodiar os romances de cavalaria e destruindo a perspectiva dos leitores de sua época de que Quixote corresponderia ao modelo da novela de cavalaria. Sendo assim, Jauss (1994) considera que Dom Quixote se tornou um clássico ocidental, embora subverta as regras clássicas literárias, por trazer uma nova visão ao leitor. Por isso, suscita discussões até a atualidade

Pensando na recepção, voltamos para a questão de como esses dois críticos literários- Maria Augusta da Costa Vieira e Mário Vargas Llosa- leem as características romanescas de Quixote e quais delas eles destacam em seus textos

Em “Apresentação de D. Quixote”, Maria Augusta da Costa Vieira (2011) foca na participação do leitor no Quixote, destacando que o próprio protagonista é um leitor que decide viver as suas fantasias literárias vindas das novelas de cavalaria na realidade representada. Além

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disso, enfatiza outros personagens que leram as aventuras do personagem na segunda parte, modificando, inclusive, o enredo. O prólogo, para a crítica, tem papel importante na obra, pois ali já começa a reflexão em torno do papel do leitor e da criação literária presentes no Quixote. Neste texto, o suposto autor conversa com um amigo e lhe confidencia as dúvidas de como conduzir a narrativa e fazer o prólogo. O outro, por sua vez, discorre sobre diversas técnicas e questiona o modo como os escritores da época elaboravam o seu prólogo, usando de uma linguagem extremamente culta, com muitas citações e referências de outros escritores de prestígio que recomendavam a leitura de suas obras. De acordo com Vieira:

É possível dizer que, se por um lado se sente a falta de outros escritos, por outro, os

prólogos cervantinos constituem momentos privilegiados de declaração de princípios

estéticos, especialmente o “Prólogo” da primeira parte do Quixote. Não restam dúvidas de

que os prólogos, no final das contas, oferecem pistas valiosas, mas é preciso dizer também

que, por via de regra, Cervantes opta por formas inusitadas que em alguns casos

poderiam ser consideradas como um “antiprólogo” ou um “metaprólogo”. Um exemplo

claro desta particularidade encontra-se justamente no “Prólogo” da primeira parte, que

prima pela originalidade, tendo-se em conta o gosto e as convenções literárias que

vigoravam em 1600. (VIEIRA, 2011, p. 14)

Para a escritora, uma das características do romance moderno já está presente na subversão que o autor faz do prólogo, transformando-o em uma espécie de metaprólogo ao discutir a sua própria função. Além disso, aponta que Cervantes começa o debate em torno do fazer literário da época usando a ironia, uma das armas que se constituem no cerne do romance moderno. Ao representar um escritor que está inseguro diante de sua obra a um amigo e também ao leitor, na verdade, o que deseja mesmo é criticar a maneira de fazer prólogo na época, que pouco ou nada tinha a ver com a apresentação da obra em si.

Cervantes utiliza da ironia para discordar da forma pedante com que seus contemporâneos faziam o prólogo na época, enchendo-o de citações de outros escritores e filósofos famosos para reafirmar autoridade (VIEIRA, 2011, p. 15). Dessa forma, a estudiosa destaca que, aparentemente, parece que o autor é muito modesto em seu discurso, quando, na verdade, demonstra muita sagacidade e agudeza ao apontar a estética da época. Ao mesmo tempo, coloca o leitor em um lugar privilegiado.

Outra questão que a estudiosa destaca é o plurilinguismo, destacando a importância que empresta a língua falada, tanto na forma de escrever o texto, com maior naturalidade, quanto na dos dois protagonistas, Quixote e Sancho Pança. Segundo Vieira:

O eixo de sustentação da obra é o longo diálogo entre D. Quixote e Sancho que

transparece para o leitor como um extenso e amplo ato de fala entre o cavaleiro e seu

escudeiro: um deles, letrado e com vasta cultura literária; o outro, analfabeto. No entanto,

é preciso ter em conta que esta naturalidade no estio guarda diferentes níveis de

compreensão da obra, que podem transitar s anedótico, simplesmente, ás questões mais

complexas relacionadas com o próprio fazer literário. Além disso, ao que tudo indica,

Cervantes não apenas optou por uma escrita pautada pela naturalidade como também

soube ridicularizar tão bem como Erasmo no Elogio da loucura (1509) a erudição

pedante. (VIEIRA, 2011, p. 13)

Vieira vê não apenas o plurilinguismo representado por Quixote e Sancho Pança como uma marca do romance apontado por Bakthin, como, também, instrumento de metalinguística, para criticar o que já previu no prólogo: a erudição pedante e a necessidade dos escritores de 1600 de reafirmarem autoridade. Isso também mostra a intenção do autor de fazer um livro para todos os tipos de leitores e não somente para os mais cultos. Essa característica, para Vieira

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(2011), se constitui em uma inovação do romance moderno. Nesse sentido, destaca a leitura dos românticos alemães como sendo fecunda para mostrar que o Quixote instituiu um novo gênero literário:

D. Quixote e Sancho foram vistos, especialmente, a partir de múltiplos desvios que apresentavam com respeito aos seus modelos literários que encontrou no texto a plasmação de um novo gênero literário- o romance- e, na ação do cavaleiro, um sentido simbólico. Já não era o caso de destacar as conexões da obra com seu contexto histórico e literário, mas sobretudo salientar, ou melhor, acomodar seu sentido à expressão das questões mais fundamentais do homem moderno, como se o texto contivesse a capacidade de desvendar a essência da condição humana muito além do seu tempo histórico específico. A interpretação romântica foi fecunda e se propagou pelos tempos. (VIEIRA, 2011, p.18-19)

Pode-se dizer que o texto de Mario Vargas Llosa possui um certo viés romântico quando afirma que a obra de Cervantes de trata de uma obra para o século XXI já no título. Diferentemente de Vieira (2001), não exporá as diferentes leituras e sim, discorrerá sobre as características romanescas do Quixote. A questão apontada por Vieira (2001) sobre a capacidade da obra de desvendar a essência da condição humana e de expressar o caráter do homem moderno, será destacada por Llosa (2005).

O prólogo de Mario Vargas Llosa sobre Dom Quixote, presente na edição do IV centenário dessa obra e denominada Una novela para el siglo XXI, divide-se em cinco partes: 1) “La ficción y la vida”; 2) ”Una novela de hombres libres” e 3) “Las pátrias del Quijote.”; 4)“Um libro moderno” e 5)“Los tempos de Quijote”. Nelas, o escritor destaca os pontos que são para ele fundamentais para a análise da obra, sendo que os três se constituem como uma espécie de características preliminares da gestação do romance do século XXI. Tais pontos, dentre eles, a relação entre realidade e ficção, o conceito liberal de liberdade, a ideia da diversidade de pátrias em uma só, e as inovações formais, como a interpolação de narradores, de tempos, de estilos e falas opostas estão presentes na ficção dos romancistas modernos.

Neste primeiro subtítulo, Llosa trata especialmente da segunda parte do Quixote. Vai comparar o recurso utilizado por Cervantes com outros escritores da atualidade, como Jorge Luís Borges.A ideia fixa do protagonista é um ponto destacado por Llosa. Esta também está presente nos romances do escritor brasileiro Machado de Assis. Esta mistura da realidade com a ficção também é apontada por Bakhtin (1998, p.276), como elementos constituintes importantes do romance, pois trata da ficcionalização do indivíduo, do uso de máscaras e também da individualidade como componente importante do anti-herói moderno.

Llosa (2005) destaca a postura do personagem Dom Quixote em sua ideia fixa de viver como cavaleiro medieval, inspirado pelas novelas de cavalaria. Depois disso, sua “loucura” passa a contagiar os outros personagens, inclusive Sancho Panza, antes tão centrado na realidade. A segunda parte, inclusive, é a narração da ficcionalização que toma conta da realidade. Segundo Llosa (2005):

La ficción es un asunto central de la novela, porque el Hidalgo manchego que es su

protagonista ha sido “desquiciado”- también en su locura hay que ver una alegoria o un

símbolo antes que un diagnóstico clínico- por las fantasias de los libros de caballerías, y,

creyendo que el mundo es como lo describen las novelas de Amasises y Palmerines, se

lanza a él en busca de unas aventuras que vivirá de manera paródica, provocando y

padeciendo pequeñas catástrofes. Él no saca de esas malas experiências una lección de

realismo. (LLOSA, 2005, p. XV)

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Llosa se refere ao desejo de Dom Quixote de viver a literatura que leu como se fosse realidade, não importando se isso o faria passar por louco. A sua intenção é justamente fugir da realidade, e criar um mundo à parte. O escritor destaca que todas as suas aventuras serão malsucedidas, mas o protagonista pouco se importa, pois o que vale é a fantasia. Por isso, afirma que não tira delas uma lição de realidade, nem sequer uma possibilidade real de modificá-la, embora, como na sua fantasia de cavaleiro, profira isto o tempo todo. A descrição que faz de si mesmo como salvador dos fracos e menesterosos faz mais parte da fantasia do que um real desejo de mudar a realidade e suas injustiças.

É por isso que a abordagem que mistura a ficção com a realidade que Llosa realiza, nesta edição do IV Centenário de Dom Quixote, dialoga com a leitura de Aurebach (1976):

A dificuldade reside no fato de que na ideia fixa de Dom Quixote, o nobre, o puro e o

redentor estão ligados com o absolutamente insensato. Uma luta trágica pelo ideal e pelo

desejável em primeiro lugar só pode ser representada, de tal modo que intervenha de

forma sensata no estado real das coisas, estremecendo-o e importunando-o; de tal

maneira que, contra o sensatamente ideal, surja uma oposição igualmente sensata, seja

proveniente da inércia, da maldade mesquinha e da inveja, quer de uma visão mais

conservadora. A vontade idealista deve estar de acordo com a realidade existente pelo

menos até o ponto de poder atingi-la, de tal forma que uma penetre na outra e surja um

verdadeiro conflito. O idealismo de Dom Quixote não é desta espécie. Não se baseia numa

visão das circunstâncias fatuais da vida; embora Dom Quixote tenha uma tal visão, ela o

abandona tão logo o idealismo da ideia fixa dele se apodera. Tudo o que faz depois é

totalmente carente de sentido e tão inconciliável que a única coisa que resulta disso é

uma cômica confusão. Não só tem possibilidade de êxito, mas não encontra nenhum

ponto de apoio na realidade; atinge o vazio. (AUERBACH, 1976, p. 307)

Por isso, Aurebach (1976) afirma que Dom Quixote não é trágico, pois não há luta de classes no livro. O que ocorre é que o personagem cria um mundo totalmente separado da realidade e deseja tão somente realizar o seu desejo individual, que é viver a sua fantasia, pois a sua vida não tem mais sentido. Somente a arte, a literatura, é que empresta algum significado para ele. Na primeira parte, o que ocorre é o confronto direto, o que resulta no cômico e no grotesco.

Outros pontos destacados por Llosa como precursores do romance moderno e que estão presentes em Dom Quixote: Narração interpolada com várias histórias; Sentido de pátria globalizada e multiidentitária; Individualidade e subjetividade do protagonista; Desacordo com o mundo (Lúckacs); Metalinguagem (leitura e criação literária); Narrador irônico e Reflexão sobre liberdade.

O restante da obra é uma metalinguagem do próprio processo de criação literária, bem como da história da literatura. Llosa (2005) descreve as obras que são nomeadas em Dom Quixote, bem como a intertextualidade presente nela:

Esto explica la floración de histórias, la selva de cuentos y novelas que es Dom Quijote de la Mancha. No sólo el escurridizo Cide Hamete Benengeli, el otro narrador de la novela, que se jacta de ser apenas el transcriptor y traductor de aquél (aunque, en verdade, es también su editor, anotador y comentarista) delatan esa pasión por la vida fantasiada de la literatura, incorporando a la história principal de Dom Quijote y Sancho, historias adventícias, coo la del Curioso impertinente y la de Cardenio y Dorotea. También los personajes participan de esa propensión o vicio narrativo que los lleva, como la bella morisca, o al caballero del verde Gabán, o a la infanta Micomicona, a contar historias ciertas o inventadas, lo que va creando, en el curso de la novela, un paisaje hecho de palavras y de imaginación que se superpone, hasta abolirlo por momentos, al otro, ese paisaje natural tan poco realista, tan resumido en formas tópicas y de retórica

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convencional. Don Quijote de la Mancha es una novela sobre la ficción en la que la vida imaginaria está por todas partes, en las peripécias, en las bocas y hasta en el aire que respiran los personajes. (LLOSA, 2005, XVIII)

A referência que Llosa faz às histórias que estão presentes na primeira parte de Dom Quixote aponta para a constante mistura entre ficção e realidade. A ficção tem um espaço especial por se tratar de uma discussão metalinguística. Isso significa que, embora o personagem esteja vivendo um mundo à parte e na contramão da realidade dos demais, a ficção está presente desde sempre na vida do povo, através das histórias populares e, também, das obras literárias circulantes na época. Essas obras são, inclusive, citadas pelo narrador, desde o episódio da fogueira de livros, no capítulo VI, até os personagens que surgem no caminho do fidalgo e de seu escudeiro, fazendo pequenos interlúdios dentro da primeira parte, ao narrarem suas histórias e de outrem.

No que diz respeito à liberdade o próprio autor, Miguel de Cervantes, não teve em grande parte de sua vida, sofrendo, também, necessidades materiais. Llosa (2005) atribui essa representação, em Don Quixote, à própria vida de Cervantes, que esteve preso muitos anos pelos mouros de Argel. Por isso, nunca a frase do personagem adquiriu tanta força e a ideia de liberdade nunca foi tão revolucionária. Por influência de sua própria vivência, Cervantes pode ter plasmado, de acordo com Llosa (2005), a suas ideias de igualdade e liberdade em seu protagonista, que não acredita nas autoridades como garantia da liberdade e da justiça, porque estas são ausentes no romance. Segundo a leitura de Llosa (2005):

El Quijote no cree que la justicia, el orden social, el progresso, sean funciones de la autoridade, sino obra del que hacer de indivíduos que, como sus modelos, los caballeros andantes, y él mismo, se hayan echado sobre los hombros la tarea de hacer menos injusto y más libre y próspero el mundo en el que viven. Eso es el caballero andante: un individuo que, motivado por una vocación generosa, se lanza por los caminhos, a buscar remédio para todo lo que anda mal en el planeta. La autoridad, cuando aparece, em vez de facilitarle a tarea, se la dificulta.¿Dónde está la autoridad, en la España que recorre el Quijote a lo largo de sus três viajes? Tenemos que salir de la novela para saber que el rey de España al que se alude algunas veces es Felipe III, porque, dentro de la ficción, salvo contadíssimas y fugaces apariciones, como la que hace el gobernador de Barcelona mientras don quijote visira el puerto de esa ciudad, las autoridades brillan por su ausência. Y las instituciones que la encarnan, como la Santa Hermandad, cuerpo de justicia en el mundo rural, de la que se tiene anúncios durante la correrias de don Quijote y Sancho, son mencionadas más bien como algo lejano, oscuro y peligroso.( LLOSA, 2005, p. XX)

As autoridades, ao contrário de garantir o bem-estar de todos, como se imagina, são vistas pelo personagem como perigosas. O povo não as respeita, mas as teme, porque a justiça não é realizada com os malfeitores e os corruptos, mas justamente com os mais pobres. Assim, para o protagonista, o bem acontece pela livre iniciativa dos indivíduos, nos quais coloca sua esperança nos antigos cavaleiros medievais, que socorriam os pobres, viúvas e sofredores por sua iniciativa generosa, sem exigir nada em troca.

Essa ideia da repartição dos bens igualmente a todos e da inexistência de autoridades que garantam a justiça e a liberdade do pensar livre são ideias que ganharam corpo séculos adiante. É considerada como uma utopia, pois nem sempre os indivíduos são capazes de pensar e agir generosamente a ponto de prescindir das leis e das autoridades que também se mostraram incapazes de garantir a liberdade, a igualdade e a justiça para todos. Segundo Llosa (2005):

La aventura donde don Quijote lleva su espíritu libertário a un extremo poco menos que suicida-delatando que su idea de la libertad antecipa también algunos aspectos de la de

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los pensadores anarquistas de dos siglos más tarde-es una de las más célebres de la novela: la liberación de los doce delincuentes, entre ellos el siniestro Ginés de Pasamonte. (LLOSA, 2005, p. XXI)

Para o protagonista, o cavaleiro é símbolo do homem que age generosamente e com heroísmo, pois era assim que os romances de cavalaria o mostram. O Hidalgo, imbuído de suas leituras, tenta viver esse ideal justiceiro e tenta realizar as tarefas que as autoridades deveriam executar.

Os dois prólogos apresentam, em torno do tema das características romanescas modernas precursoras de Dom Quixote, as perspectivas dos dois críticos de acordo com suas especificidades. Maria Augusta da Costa Vieira aborda, em seu texto, aspectos de sua pesquisa, principalmente sobre a recepção literária, enquanto que, para Llosa, sendo escritor, importa mais o processo de criação literária. Ambos, de acordo com Gadamer (1989) só chegaram à conclusão de que Dom Quixote é precursor do romance moderno e, por isso, uma obra atemporal, pelas leituras que fizeram posteriormente à sua publicação, pois o teórico afirma que a leitura é, de alguma maneira, datada, posto que não há como o leitor antecipar as próximas perspectivas que surgirem em torno da obra, mesmo que o contexto histórico não seja o único critério a ser levado em conta.

Referências

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