30
78 JANEIRO 2008 ANO X Selvageria ou Estado de Direito? Régis Richael Primo da Silva Teoria da Interpretação e Aplicação Justa da Lei: um Cotejo entre Kelsen e Dworkin Carlos Frederico Ramos de Jesus A Inobservância à IN STN n. 01/07 e Improbidade Administrativa Raphael Perissé Rodrigues Barbosa A Inconstitucionalidade da “Taxa de Diploma” Anselmo Henrique Cordeiro Lopes A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER DO ESTADO 1622005 – DR/BSB Fundação Pedro Jorge

A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

N° 78

JANEIRO 2008ANO X

Selvageria ou Estado de Direito?Régis Richael Primo da Silva

Teoria da Interpretação e Aplicação Justada Lei: um Cotejo entre Kelsen e Dworkin

Carlos Frederico Ramos de Jesus

A Inobservância à IN STN n. 01/07 eImprobidade Administrativa

Raphael Perissé Rodrigues Barbosa

A Inconstitucionalidade da “Taxa de Diploma”Anselmo Henrique Cordeiro Lopes

A LIBERDADE DE IMPRENSA COMOLIMITE AO PODER DO ESTADO

1622005 – DR/BSB

Fundação Pedro Jorge

Page 2: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 78� Janeiro / �008

expedienteFundação Procurador Pedro Jorge de Melo e Silva

Diretoria Executiva:Célia DelgadoEliana Peres Torelly de CarvalhoAlexandre Camanho de Assis

Administração :Ângela Maria Oliveira

Associação Nacional dos Procuradores da República - ANPR:

Presidente:Antônio Carlos Alpino Bigonha

Vice-Presidente:Lívia Nascimento Tinoco

Diretor Cultural:Wilson Rocha de Almeida Neto

Sum

ário

Sum

ário

Coordenação:Valtan [email protected]

Supervisão:Adriana Zawada [email protected]

Conselho Editorial:Adriana Zawada MeloFlávio Paixão de Moura JúniorLetícia Pohl MartelloMarcus da Penha Souza LimaRoberto Luís Oppermann ThoméValtan Furtado

Impressão: Millennium Editora

Tiragem: 2.700

Internet: www.pedrojorge.org.br

Código ISSN: N° 1519-3802Os artigos são de inteira

responsabilidade de seus autores.

Realização: Apoio:

06Osório BarbosaPor que o Presidente do Senado Preside o Congresso Nacional?

A Inconstitucionalidade da “Taxa de Diploma”Anselmo Henrique Cordeiro Lopes

27

03A Inobservância à Instrução Normativa STN nº 01/07 e Improbidade AdministrativaRaphael Perissé Rodrigues Barbosa

16Fernando CorrêaA Liberdade de Imprensa como Limite ao Poder do Estado

05Justiça e Políticas de ReconhecimentoSergio Gardenghi Suiama

09Teoria da Interpretação e Aplicação Justa da Lei: um Cotejo entre Kelsen e DworkinCarlos Frederico Ramos de Jesus

22Da Estabilidade e do Estágio Probatório perante a Avaliação Periódica de DesempenhoCarlos Augusto Valenza Diniz

Régis Richael Primo da Silva14Selvageria ou Estado de Direito?

Page 3: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

�Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

A inobservância à Instrução Normativa STN nº 01/07 e improbidade administrativa

A Inobservância à Instrução Normativa STN nº 01/07 e Improbidade Administrativa

Raphael Perissé Rodrigues BarbosaProcurador da República em Goiânia-GO

A pretensão do presente estudo é analisar se a conduta que não cumpre as disposições da Instrução Normativa 01/97, da STN/MF, na execução de convênio ou contrato de repasse pode caracterizar ato de improbidade administrativa.

É de se recordar, para que faça sentido o trabalho de-senvolvido, que a IN 01/97 é ato expedido pela Secretaria do Tesouro Nacional, e tem por objeto “Disciplina(r) a celebração de convênios de natureza financeira que tenham por objeto a execução de projetos ou realização de eventos e dá outras providências.”, sendo igualmente aplicável aos contratos de repas-se, consoante o art. �9, § único do mesmo ato normativo.

Analisando-se de forma mais detida as disposições da referida instrução normativa, percebe-se que houve uma preocupação de delinear todo o iter relativo à consecução do convênio, desde o momento que antecede a sua celebração (art. �º, que traz os re-quisitos para a celebração), passando pelo acompanhamento (art. 7º, VIII, que impõe ao convenente o dever de apresentar relatórios de execução físico-financeira), até momento ulterior à realização do objeto (art. �8, § 5º, que estabelece o prazo para a prestação de contas dos valores recebidos). Fica evidente a preocupação de desenhar uma seqüência de atos que viabilize rígido controle sobre a verba disponibilizada pelo concedente. Mais do que mero formalismo, preocupou-se em desenhar segurança – finalística - na execução de projetos decorrente de transferência voluntária de recursos.

Inobstante a disposição normativa, os preceitos vêm sendo malbaratados, ou sole-nemente ignorados, tanto pelo responsável pela liberação dos recursos do convênio ou contrato de repasse (atualmente a imensa maioria da transferência voluntária de recursos, gênero do qual os convênios e contratos de repasse são espécies, é feito por intermédio da Caixa Econômica Federal), que autoriza a saída dos recursos sem que tenham sido atendidas as exigências da IN 01/97, quanto por parte do representante legal dos convenentes (no mais das vezes, os municípios), sob a alegação de desconhecimento de suas dis-posições, ou de dificuldade no atendimento das mesmas.

Os exemplos são corriqueiros e se avolumam, podendo ser ci-tados, por amostragem: a) celebração de convênio sem a existência de plano de trabalho, em afronta ao art. �º, caput, da IN 01/97, ou

quando existente, sem nível de precisão mínimo, em dissonância do que preconiza o art. �º, § 1º, da IN 01/97 c/c art. 6º, IX, da Lei 8666/9�; b) não observância da exigência de movimentação dos recursos oriundos do convênio em conta corrente específica, conforme prevê o art. 7º, XIX, IN 01/97; c) utilização dos recur-sos provenientes de contrato de repasse em finalidade diversa da avençada, em estridente infringência ao que preconiza o art. 8º, IV, IN 01/97, ou aditamento com alteração do objeto, em desrespeito ao mesmo artigo, inciso III; d) realização de saque de recursos do convênio “na boca do caixa”, menosprezando a vedação contida no art. �0, IN 01/97; e) não prestação de contas dentro do prazo de sessenta dias após o término do convênio, burlando o comando contido no art. �8, § 5º, IN 01/97.

Curiosamente, somente esta última conduta vem sendo alve-jada pela propositura de demanda de improbidade administrativa, acoimando-se violação ao art. 11, VI, da Lei 84�9/9�, embora os atos exemplificados possam ser classificados como operação financeira, tomando-se, por empréstimo, o parâmetro da Lei Com-plementar 105/01, que possui em seu art. 5º, § 1º, definição de operação financeira “§ 1º. Consideram-se operações financeiras, para os efeitos deste artigo: I – depósitos à vista e a prazo, inclusive em conta de poupança; II – pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques; III – emissão de ordens de crédito ou documentos assemelhados; IV – resgates em contas de depósitos à vista ou a prazo, inclusive de poupança; (...)”

Inobstante, o espectro de incidência da Lei de Improbidade Administrativa sobre comportamentos tais quais os exemplifi-cados é bem mais amplo. Neste sentido, deve-se rememorar a conduta tipificada pelo art. 10, VIII, da Lei 84�9/9�, que assim dispõe:“Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das

entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:(...)VI - realizar operação financeira sem observância das nor-

mas legais e regulamentares ou aceitar garantia insuficiente ou inidônea; (...)”

“Reconhecida a validade da instrução normativa como ato regulamentar, resta evidente

que a realização de operação financeira sem a observância

de seus preceitos possui subsunção hipotética ao art.

10, VI, da Lei 8429/92.”

Page 4: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 784 Janeiro / �008

A maior parte dos doutrinadores, ao comentar o dispositivoa, cinge-se a tecer considerações sobre a conseqüência jurídica do descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/00). Porém, não se pode olvidar que o dispositivo legal em destaque re-fere-se à inobservância não apenas de normais legais, mas também das regulamentares, categoria onde possui assento a IN 01/97.

Para corroborar a assertiva supra, basta uma sintética recons-trução na hierarquia normativa atinente à IN 01/97, para perceber de onde o diploma infralegal aufere legitimidade.

A instrução normativa, conforme extrai-se de seu preâmbulo, foi editada pelo Secretário do Tesouro Nacional, valendo-se de atribuição outorgada pelo art. 155 do Decreto 9�.87�/86, que confere ao titular daquele cargo a atribuição de expedir instruções necessárias à unificação dos recursos de caixa do Tesouro Na-cional, bem como do art. 9º do Decreto 1.745/95, que estabelece as competências da Secretaria do Tesouro Nacional, sendo que ambos os decretos são decorrência direta do poder regulamentar do Presidente da República, previsto no art. 84, IV e VI da vigente Constituição da República e 81, III e V, da Carta Política que lhe antecedeu, sendo hipóteses amplamente admitidas pela doutrina de decreto autônomo�.

Reconhecida a validade da instrução normativa como ato re-gulamentar, resta evidente que a realização de operação financeira sem a observância de seus preceitos possui subsunção hipotética ao art. 10, VI, da Lei 84�9/9�.

Entender de outro modo implicaria deixar o cumprimento da instrução normativa – e o atendimento à sua finalidade – ao inteiro talante do administrador, além de amesquinhar o caráter de proteção que o Direito empresta às suas normas, pois seu tra-ço distintivo da Moral é justamente ser ele armado de garantias específicas�.

Restaria ainda enfrentar ainda a questão da lesão ao erário, referida no caput do art. 10, cuja solução pode ser obtida por duas vertentes: a) sustentar, como faz MARCELO FIGUEIREDO4, que a referência à lesão econômica não fica adstrita à perda patrimo-nial, mas alcança também o patrimônio moral da Administração Pública; b) alinhar-se ao entendimento preconizado por EMER-SON GARCIA, no sentido de que a “a noção de dano não se encontra adstrita à necessidade de demonstração de diminuição

patrimonial, sendo inúmeras as hipóteses de lesividade presumida previstas na legislação”5.

Já o enfrentamento à tese freqüentemente argüida por aqueles que gerem a res publica em pequenos municípios, no sentido de que o aparato administrativo existente não é capacitado para atender às exigências da IN 01/97, ou que o normativo não é com-patível com a relação dinâmica que rege a atividade municipal, reclama socorro à lição de KONRAD HESSE6, segundo quem “o significado da ordenação jurídica na realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas - ordenação e realidade - forem consideradas em sua relação, em seu inseparável contexto, e no seu condicionamento recíproco.”; ou seja, os mecanismos de controle devem ser tão mais rígidos conforme superlativamente poluta e corrupta seja a realidade fática onde aplicados, o que - a experiência largamente demonstra – é o caso do Brasil.

Assim, à guisa de conclusão, uma vez demonstrada a validade jurídica da Instrução Normativa STN/MF 01/97, a alta finalidade a que se propõe, bem como sua integral compatibilidade com os fins esperados da Administração Pública, e, mais importante, a possibilidade de adequação típica ao art. 10, VI, da Lei 84�9/9�, pode-se asseverar que caracteriza ato de improbidade adminis-trativa a realização de operação financeira em dissonância com aqueles preceitos legais, além de sujeitar o seu responsável a ter as contas julgadas irregulares pelo Tribunal de Contas da União, consoante o art. 16, III, b, da Lei 844�/9�.

Notas

1 MARINO Pazzaglini Filho. Lei de Improbidade Administrativa Comentada. SP: Atlas, �00�, pg. 80; PRADO, Francisco Octavio de Almeida. Improbidade Administrativa. SP: Malheiros, �001, pg. 106; GARCIA, Emerson et ali. Impro-bidade Administrativa. RJ: Lumen Juris, �006, pg �6�� por todos, Diógenes Gasparini, na monografia Poder Regulamentar, mimeo, 1976, pg. 60.� REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. SP: Saraiva, �7. ed., �004, pg. 4�4 Probidade Administrativa. SP: Malheiros, �000, 4ª ed., pg 805 in Improbidade Administrativa. RJ: Lumen Júris, �006, pg. �65 6 A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre, Sergio Fabris, 1991, pg. 1�

A inobservância à Instrução Normativa STN nº 01/07 e improbidade administrativa

Colabore com o Boletim dos Procuradores da República

Artigos terão preferência sobre peças processuais

Envie o seu artigo para publicação no Boletim,observando o seguinte: Os textos devem ser enviados aos endereços eletrônicos:

Os textos que excedam o tamanho máximo somente poderão serpublicados caso não haja textos dentro do padrão para completar a edição

[email protected], [email protected] e [email protected]. (61) 3313-5110

tamanho máximo de 20.000 (vinte mil) caracteres,com espaços, contando com eventuais notas de fimde texto e referências bibliográficas

1

ausência de conteúdo ofensivo.2

Page 5: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

5Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

Justiça e políticas de reconhecimento

Justiça e Políticas de Reconhecimento

Sergio Gardenghi SuiamaProcurador da República em São Paulo-SP

Na filosofia contemporânea, o termo “reconhecimento” tem sido usado para designar um parâmetro normativo de justiça. O significado remonta à filosofia de Hegel, que, em seus escritos de Jena, usou o conceito para descrever a estrutura interna da rela-ção ética entre dois sujeitos. Para o jovem Hegel, o processo de formação da identidade tem como pressuposto o reconhecimento recíproco entre sujeitos, de modo que somente quando um indiví-duo vê confirmada sua autonomia pelos demais é que pode chegar a uma compreensão completa de si mesmo como sujeito social. Em termos semelhantes, sugere Charles Taylor que a identidade é construída dialogicamente, a partir da relação do sujeito com os demais membros da sociedade de que faz parte. O conflito pro-pulsor da “luta por reconhecimento” surge quando o Outro deixa de atender a expectativa normativa de seu parceiro de interação, negando-lhe inclusive reciprocidade de tratamento.

A idéia original de Hegel foi retomada por autores contemporâ-neos como Axel Honneth (Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, São Paulo, Editora �4, �00�), Charles Taylor (Multi-culturalism: examining the politics of re-cognition, Princeton, Princeton University Press, 1994), Nancy Fraser (Redistribution or Recognition? A political-philosophical exchange, Londres, Verso, �00�) e Judith Butler (The Judith Butler reader, edited by Sara Salih with Judith Butler, Oxford, Blackwell, �004). Além disso, o conceito constitui a base argumentativa do discur-so de uma ampla gama de movimentos sociais, que buscam demonstrar como os padrões dominantes de representação, interpretação e comuni-cação importam em dominação cultural (estar sujeito a padrões de interpretação e comunicação associados a cultura estranha ou hostil), não-reconhecimento (ser considerado invisível pelas práticas representacionais, comunicativas e interpretativas de uma cultura) e desrespeito (ser difamado habitualmente em interações cotidianas ou representações públicas estereotipadas).

Exemplos de injustiça de reconhecimento são muitos, e afetam quase todos os grupos socialmente vulneráveis. No Brasil, a ambi-güidade de nossa mestiçagem não eliminou do imaginário social a idéia de inferioridade dos negros. Manifestações explícitas de não-reconhecimento incluem a representação estereotipada nos meios de comunicação (o homem negro como criminoso, a mulher negra como empregada doméstica), a invisibilidade em certos

espaços de socialização (lugares freqüentados pela elite, revistas de beleza), a privação cotidiana de direitos (salários inferiores, reserva dos piores postos de trabalho) e atos de violência física e moral. Gays, lésbicas e bissexuais igualmente sofrem injustiças de reconhecimento, uma vez que o discurso hegemônico, ao nor-malizar e naturalizar a heterossexualidade e a família patriarcal burguesa, negou aos sujeitos “desviantes” o reconhecimento de direitos iguais e a proteção contra agressões físicas, insultos e formas estereotipadas de representação. Análises semelhantes podem ser feitas também em relação a mulheres, presos, pes-soas com deficiência, indígenas, pobres, sem-terra, prostitutas, estrangeiros e outros grupos que sofrem algum tipo de déficit de reconhecimento.

A aplicação do conceito tem gerado muitas dúvidas, ainda não resolvidas de forma satisfatória. O que significa “reconheci-mento” quando se discutem políticas públicas não-universalistas focadas nos grupos acima referidos? Como distinguir demandas

por reconhecimento que são moralmente justificáveis de outras que não são? Quem seriam os titulares de um hipotético “direito ao reconhecimento”, apenas indivíduos ou também coletividades? Quais as melhores estratégias para enfrentar o problema?

Sobre essa última pergunta, Nancy Fra-ser propõe separar estratégias “afirmativas” de “transformativas”. As primeiras estão voltadas para a reavaliação positiva das identidades injustamente desvalorizadas, mantendo intacto, todavia, o conteúdo dessas identidades (expressões como “orgu-

lho gay”, “alma feminina” e “black is beatiful” repercutem essa primeira estratégia). Já estratégias “transformativas” voltam-se preferencialmente à desconstrução das identidades sociais, na medida em que questionam a própria validade do critério produtor da diferença.

O pano de fundo dos debates sobre reconhecimento é a existência de sociedades globalizadas e complexas, nas quais a convivência instável de múltiplas visões de mundo colocou em xeque as hierarquias sociais tradicionais. Ademais, a crise do Es-tado-Nação e das formas clássicas de democracia representativa reforçou a geração de poderosas identidades coletivas voltadas ora à transformação (ecologistas, feministas, hip-hop, vegetarianos, transexuais), ora à conservação da ordem tradicional (organizações que pregam o “orgulho branco”, a interpretação literal da bíblia

“Exemplos de injustiça de reconhecimento são muitos, e afetam quase todos os grupos socialmente vulneráveis. No

Brasil, a ambigüidade de nossa mestiçagem não eliminou do imaginário social a idéia de inferioridade dos negros.”

Page 6: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 786 Janeiro / �008

Por que o presidente do Senado preside o Congresso Nacional?

ou o “retorno aos valores da família”, por exemplo). A solução se torna mais difícil quando se atenta para o fato óbvio de que uma pessoa possui mais de uma identidade social (alguém pode ser ao mesmo tempo “homem”, “branco”, “juiz de direito”, “he-terossexual”, “mineiro”, “feminista”, “pessoa com deficiência”, “sadomasoquista”, “ateu” etc. etc.), cabendo a cada um definir a importância relativa que essas identidades desempenham em contextos específicos.

O aprofundamento dos debates sobre o tema pode contribuir

para que o reconhecimento se torne um conceito operativo im-portante na solução de casos concretos de injustiça contra grupos vulneráveis. É o que desejamos.

Notas

1 Artigo publicado originalmente no jornal “Constituição & Democracia”, Brasí-lia, UNB, abril de �007, p. ��.

Sumário: 1. colocação do problema; 2. antecedentes históri-cos; 3. possíveis justificativas; 4. Conclusão; 5. Bibliografia.

1. colocação do problema

Dia desses ouvi a seguinte pergunta: por que o presidente do Senado e não o presidente da Câmara dos Deputados preside o Congresso Nacional?

Referia-se o meu interlocutor à norma que dispõe que a Mesa do Congresso Nacional será presidida pelo Presidente do Senado Federal (art. 57, § 5º, da Constituição Federal).

Segundo seu entendimento, deveria presidir o Congresso Nacional o presidente da Câmara dos Deputados e não aquela outra autoridade, apresentando, em abono à sua tese, as seguintes razões:

Primeira: em se tratando da questão sucessória do presidente da República, (art. 80 da CF), constam aqueles que serão suces-sivamente chamados ao exercício da Presidência, na seguinte ordem: o Presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e o do Supremo Tribunal Federal.

Ou seja, em primeiro lugar o presidente da Câmara dos De-putados.

Segunda: a Câmara dos Deputados é a casa que representa o

povo (art. 45), pois pelo povo são eleitos os seus representantes que a compõem.

Terceira: o Senado é a casa que representa os Estados-membros (art. 46), ou seja, é composto de representantes dos Estados e do Distrito Federal.

Quarta: o processo de impeachment se inicia na Câmara dos Deputados (art. 86 da CF).

Portanto, concluiu: nada mais lógico que a presidência cou-besse à autoridade que indica.

Realmente, as razões apresentadas são ponderáveis, a elas gos-taria de apresentar, não contra-razões, mas possíveis justificativas para a opção do constituinte.

2. antecedentes históricos

Primeiro temos a tradição: encontram-se em Homero, Sócrates e no Senado Romano valorizações do poder senatorial, devido à idade e sabedoria dos integrantes.

Homero, na Ilíada1 e na Odisséia� já mostrava a valorização dos conselhos advindos dos mais idosos, apontados como fonte de sabedoria, mercê da sua experiência de vida.

Sócrates foi senador, quando teve a oportunidade de se opor ao julgamento conjunto de oito comandantes militares acusados de negligência, por entender que tal julgamento, onde não seria

Por que o Presidente do Senado Preside o Congresso Nacional?

Osório BarbosaProcurador Regional da República – 3ª Região / Mestre em Direito Constitucional – PUC/SP

Page 7: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

7Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

Por que o presidente do Senado preside o Congresso Nacional?

individualizada a conduta de cada acusado, contrariava a lei de Atenas�.

Já “o senado romano (Senatus) foi a mais remota assembléia política da Roma antiga, com origem nos Conselhos dos Anciãos da antigüidade oriental (4000 a.C.). Era a assembléia dos patrícios que constituía o Conselho Supremo de governo na antiga Roma. Um conselho assessor integrado por anciãos, donde vem o seu nome (senex, senectus, que quer dizer ancião, velhice, cabelos brancos).

Durante a monarquia ou realeza, o sena-do ou conselho dos anciãos era o conselho dos reis, a quem estava subordinado. Sua competência era consultiva relativamente ao rei e confirmatória referentemente aos comícios, para cuja validade deveria obter o patrum auctoritas.

Na fase republicana (de 510 a �7 a.C.), o senado tornou-se a mais alta autoridade do estado. Vitalícios, os senadores (sena-tores ou patres) fiscalizavam os cônsules, controlavam a justiça, as finanças públicas, as questões religiosas e dirigiam a política externa. Era o verdadeiro centro do povo, pois os magistrados tinham interesse em consultá-lo, antes de tomar deliberações mais importantes”4.

É essa tradição que se espalhou pelo mundo!Até hoje a questão etária – idade dos senadores – é considerada

um diferencial em relação aos deputados federais, sendo essa, a nosso ver, uma primeira justificativa para a opção constitucio-nal.

Tanto assim é que, dentre as condições de elegibilidade dos senadores consta a idade mínima de trinta e cinco anos, enquanto a idade mínima para deputado federal é de apenas vinte e um anos (art. 14, § �º, inciso VI, alíneas a e c, da CF).

A senectude, relembrando Bobbio, é fator de diferenciação.

3. Possíveis justificativas

Vamos às possíveis causas que ensejaram a opção constitu-cional pelo presidente do Senado.

A princípio gostaria de confessar uma, dentre as muitas igno-râncias que me acompanham. É a seguinte:

- Qual a diferença entre o povo que elege um deputado e o povo que elege um senador?

Ainda não consegui fazer a distinção, pois os mesmos eleitores podem votar para o mesmo deputado e mesmo senador, elegendo a ambos. Onde um desses eleitores é povo (para eleger o depu-tado) e não é povo (quando elege o senador que é representante do Estado-membro)?

Abandono essa minha preocupação e prossigo em outra.Todos sabemos que o Direito não regra todos os atos da vida em

sociedade. Quando regra, opta dentre as várias formas possíveis. Essa opção nem sempre obedece a lógica, a coerência, portanto.

Há, dentre os estudiosos, o entendimento divergente sobre a existência ou não de lacunas no Direito. Não é o caso de nos apro-fundarmos aqui sobre este assunto, mas nos filiamos àqueles que entendem que é possível a existência de lacuna; isso, contudo, não nega o entendimento da corrente contrária, muito pelo contrário, a pressupõe, pois entendemos que o simples fato de o assunto não ter sido objeto de atenção do legislador não significa que com ele o mesmo não tenha se preocupado, simplesmente pode ter entendido que não deveria normatizá-lo, deixando para as regras

de integração legislativa a incumbência de resolver as questões não normatizadas que por acaso surgirem. Assim, é possível con-ciliar ambos os entendimentos, acredito.

Como outra causa para a opção feita na Carta Magna em vigor, alinhamos o rol das competências do Senado (art. 5� da CF). Ele é significativamente maior, logo, também, pelo elenco das matérias que lhe são privativas, mais importante que aquele da Câmara dos Deputados (art. 51 da CF). Assim, podemos afirmar, o Senado recebeu maior responsabilidade legislativa que a outra casa congressual. Em especial no que concerne às matérias que lhe são exclusivas.

Por fim, mesmo considerando que a ad-missibilidade da acusação que dá início ao processo por crime de responsabilidade (impeachment) ocorre na Câmara dos Deputados, não se pode esquecer que o processo e julgamento do presidente, bem como das mais altas autoridades da República, compete ao Senado (art. 5�, inciso I, da CF). A Câmara dos Deputados apenas admite a acusação, mas todo o processo (a instrução com a colheita de provas) e julgamento é procedido pelo Senado.

Em arremate, podemos considerar ainda:- O menor número de senadores facilita a organização da casa

senatorial, em especial para as votações urgentes, onde todos podem ser convocados e se reunir com maior facilidade.

- A maior experiência, advinda da idade, indica-os a melhor presidir o todo, o Congresso Nacional.

- Sendo a Câmara dos Deputados a casa de ressonância imedia-ta das causas populares, nela é mais fácil se confundir a emoção com a razão. Mais uma vez pesa em favor do Senado a maior experiência, a vivência anterior das mesmas questões, o que lhe dá maior tranqüilidade na apreciação das causas e no refreamento dos ânimos mais exaltados.

- Ainda que se argumente que a Câmara dos Deputados é mais representativa do que o Senado (questão não abordada aqui), a representatividade não é a principal característica de uma boa Presidência do Congresso Nacional. Mesmo porque suas funções são mais administrativas e organizacionais do que deliberativas. A Presidência do Congresso Nacional deve ser ocupada por alguém equilibrado, capaz de moderar adequadamente os debates, de organizar bem as votações. E a experiência e o equilíbrio supos-tamente advindos da idade apontam para o Presidente do Senado como opção mais razoável.

“Como outra causa para a opção feita na Carta

Magna em vigor, alinhamos o rol das competências do

Senado (art. 52 da CF). Ele é significativamente maior, logo, também, pelo elenco das matérias que lhe são

privativas, mais importante que aquele da Câmara dos

Deputados (art. 51 da CF).”

Page 8: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 788 Janeiro / �008

Por que o presidente do Senado preside o Congresso Nacional?

4. Conclusão

De todo o sobredito, concluímos:a) que a opção do legislador constituinte não está submetida a

qualquer razão lógica, quando essa opção não deixa sem validade outra norma constitucional;

b) ao optar pelo presidente do Senado para presidir o Congres-so Nacional, não se pode dizer que ao constituinte tenham faltado razões e motivos para tanto. Ou seja, dentre as “possibilidades possíveis”, optou ele por uma das quais pode ser perfeita e racio-nalmente justificada, como tentamos fazer neste escrito.

Notas1 HOMERO. Ilíada, canto IX, Tradução de Carlos Alberto Nunes, São Paulo, Ediouro: �001.� HOMERO. Odisséia, Canto II, Tradução de Carlos Alberto Nunes, São Paulo, Ediouro: �001.

� COLLINSON, Diané. 50 grandes filósofos – da Grécia antiga ao século XX. São Paulo, Contexto: �004, p. �1.4 LIMA, Máriton Silva. “O Senado Federal”. Disponível em <http://www.cor-recaodetextos.adv.br/art1�6.htm>. Acesso em: 14 mar. �006.

Referências bibliográficas

COLLINSON, Diané. 50 grandes filósofos – da Grécia antiga ao século XX. São Paulo, Contexto: �004.HOMERO. Ilíada. �ª ed. Tradução de Carlos Alberto Nunes, São Paulo, Ediouro: �001._______. Odisséia. Tradução de Carlos Alberto Nunes, São Paulo, Ediouro: �001.LIMA, Máriton Silva. “O Senado Federal”. Disponível em <http://www.correcaodetextos.adv.br/art1�6.htm>. Acesso em: 14 mar. �006.

Page 9: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

9Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

Teoria da interpretação e aplicação justa da lei: um cotejo entre Kelsen e Dworkin

1. Resumo

A presente reflexão visa mostrar quais contribuições a teoria da interpretação pode fornecer para a busca da justiça no caso concreto. O esquema formal de interpretação é determinante para que se possa avaliar a justiça do ato de aplicação da lei.

Se tomarmos como base o esquema voluntarista, de Hans Kelsen, concluiremos pela impossibilidade de se considerar justa ou injusta uma decisão judicial, pois, para o austríaco, a aplicação da lei envolvia necessariamente um ato de vontade, cujo único parâmetro era o arbítrio do juiz.

Se nos embasarmos em Ronald Dworkin, veremos que o juiz deve levar em conta parâmetros objetivos (os princípios) na aplicação das regras, de modo que sua vontade atua em limites mais estreitos e, assim, mais racionais e passíveis da qualificação justo/ injusto.

2. Justiça

Quando se quer traçar a relação entre teoria da interpretação e justiça, é necessário deter-se um pouco sobre o último conceito. O que é um ato justo?

Esta pergunta, que preocupa os filósofos desde sempre, pode ser respondida com base em compreensões exarcebadamente emocionais, estribadas em oposições ideológicas irredutíveis. Quando estes debates passionais ocorrem no mundo jurídico, eles são reduzidos à mera contraposição de crenças arraigadas, com pouca contribuição para a decisão dos conflitos e, o que é pior, para a justiça em si.

Faz-se necessário, para resolver este impasse, buscar uma compreensão mais racional do que seja justiça, para que o Direito possa absorver progressivamente este valor e, principalmente, aplicar a lei visando-o. A grande diferença entre a visão racional e a visão emocional da justiça é expressa por Perelman: “A ação justa deve dar provas de uma racionalidade que faltaria ao ato que fosse apenas caridoso”1. Sob este prisma, atos justificáveis seriam justos, enquanto os não-justificáveis não o seriam.�

Para instrumentalizar nosso trabalho, portanto, é importan-te estipularmos uma definição do que seja o ato justo (sem a pretensão, evidentemente, de esgotar o conceito), sob pena de

incorrermos nos conceitos emocionais e não chegarmos a lugar algum. A definição de Perelman parece ser bastante adequada; para ele, a regra da justiça exige “um tratamento igual de seres essencialmente semelhantes”.�

O problema central, porém, é saber quem são os essencial-mente semelhantes, ou quais características serão tidas como relevantes para aferir tal semelhança. Ao se deparar com um conflito, caberá ao juiz decidir se deve julgar da mesma maneira que fez em um caso análogo ou se deve posicionar-se de maneira diversa; esta decisão envolve um juízo de semelhança essencial entre um caso e outro, e é ela que vai permitir avaliar a justiça dos atos. Pode-se afirmar que quanto mais este juízo de semelhança for racionalizável, mais teremos condição de imputar ou não a qualidade de justo a um ato; quanto mais arbitrário ele for, mais difícil será esta avaliação.

É precisamente neste ponto que a interpretação tem papel fundamental, pois através dela o juiz apura o conteúdo verbal da norma4 e o aplica ao caso concreto, da mesma forma ou de maneira diferente que procedeu em uma situação anterior. Pela interpretação, o jurista avalia quão semelhantes são o conflito atual e o precedente; vale dizer, ele avalia se a norma que incidiu sobre o caso anterior incide também no presente.

Para estabelecer qual norma (ou seja, qual sentido do texto normativo) vai ser aplicada, o modo de interpretar é determinante: se o intérprete puder escolher qualquer sentido, dentro dos limites da lei, será mais difícil aferir a similitude entre o precedente e o caso concreto atual; se incidirem parâmetros (além dos legais) na escolha da norma, a semelhança será mais aferível. No primeiro caso, pode-se aduzir que não é tão fácil dotar a escolha da norma de uma racionalidade e, assim, afirmar que a decisão é justa ou injusta; no segundo caso, é possível vincular uma racionalidade a tal escolha e conferir, com base neste paradigma racional, a qualidade de justa ou injusta ao ato judicial.

Estas duas posições representam, de maneira geral, o conceito de interpretação para os dois autores que analisaremos a seguir.

3. A interpretação para Hans Kelsen: o que ele superou

Quando o jusfilósofo austríaco Hans Kelsen lançou sua Teoria Pura do Direito, a ciência jurídica esperava dele uma teoria sobre a interpretação que confirmasse o que havia sido consolidado na

Teoria da Interpretação e Aplicação Justa da Lei: um Cotejo entreKelsen e Dworkin

Carlos Frederico Ramos de JesusMestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo / Servidor do MPF

Page 10: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 7810 Janeiro / �008

Teoria da interpretação e aplicação justa da lei: um cotejo entre Kelsen e Dworkin

tradição liberal do século XIX. Neste, predominava uma idéia de interpretação bastante coerente com os paradigmas da época.

Devemos nos lembrar de que o século XIX foi marcado pelo encontro de duas correntes jurídicas que pareciam opostas entre si, embora não o fossem: o jusnaturalismo moderno e o positivismo. Com efeito, as Codificações – a primeira delas foi o Código de Napoleão (1804) – estatuíram as regras do que era considerado direito natural, consagrando os contratos e a propriedade privada. Eram elas guiadas pelo ideal de segurança jurídica, que emergiu em uma época em que se buscava a todo custo a sedimentação do princípio da legalidade, colocando as leis acima dos governantes para evitar as arbitrariedades típicas do Antigo Regime.5

Com este pano de fundo, firmou-se no meio jurídico um con-ceito de interpretação condizente com os paradigmas vigentes. Para aplicar a lei ao caso concreto, o procedimento era o silogismo: aplicar a lei no caso concreto era semelhante a encaixar a premissa menor na maior e chegar a uma conclusão. O juiz não teria outra tarefa que não fosse executar esta operação mental.

Subjaz a esta concepção o paradigma racionalista, porque se imaginava que a interpretação era um processo apenas racional, que qualquer bom jurista poderia fazer sem ter a mínima dúvida quanto ao sentido da lei Esta era inequívoca, não continha ambi-guidades. E o conjunto das leis, por ser obra racional e abstrata, não casuística, previa todos os conflitos juridicamente relevantes e cominava-lhes soluções. O juiz deveria ser um bom funcionário público que lesse as regras com atenção e que as aplicasse; sua única preocupação seria ser tão racional quanto a lei. 6

Subjaz também a esta idéia de interpre-tação o paradigma da segurança jurídica. Uma vez que o juiz era “escravo da lei”, apenas revelando o que já estava escrito, não poderia haver surpresas nas decisões. Qualquer cidadão que consultasse um jurista antes de negociar seu direito de propriedade ou antes de se vincular a uma relação contratual, saberia com certeza quais seriam seus direitos se do negócio resultasse uma lide. Não havia mais risco de se sofrerem as arbitrariedades do “Governo dos Juizes”, que traumatizou a França pré-revolucionária. Os magistrados agora só poderiam dizer o que a lei diz.

Hans Kelsen, porém, combateu esta visão no capítulo VIII de sua Teoria Pura.

Ele mostrou que a visão positivista do ordenamento ainda pos-suía resquícios jusnaturalistas que constituíam grandes incoerên-cias metodológicas na compreensão do fenômeno jurídico. Kelsen argumentou que um ordenamento jurídico positivista deveria ser dinâmico, e não estático, como se imaginava. Ou seja, que as nor-mas do escalão superior só determinavam a forma de promulgação dos atos imediatamente inferiores. “A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) a ato através do qual é aplicada.”7 A lei não continha em seu texto o teor do decreto; ela poderia tão-somente prescrever como se faria o decreto: quem era a autoridade competente, quais entes teriam

de opinar etc. Se ela prescrevesse também o conteúdo do decreto, isto era aceitável e normal, mas não constituía a essência da lei; sua essência era determinar a forma pela qual os atos inferiores deveriam ser praticados para ter validade8.

O ordenamento, assim, seria um todo cuja regra de validade não estaria no conteúdo, mas na forma. Em outras palavras, não era necessário, para Kelsen, que todas as regras fossem unívocas, que todas expressassem uma mesma visão; só era necessário que todas fossem feitas segundo os trâmites previstos pelas regras hierarquicamente superiores.

A incoerência apontada pelo austríaco residia no fato de o pensamento jurídico positivista insistir em que a unidade do orde-namento se dava pelo conteúdo, de maneira que a regra superior já continha a prescrição da inferior e esta deveria ter seu conteúdo conforme àquela para ser válida. Mas esta era a regra para um sistema jusnaturalista/estático, e não positivista/dinâmico. Não era possível construir uma teoria positivista do direito estando-se preso a peias jusnaturalistas.

Assim como a norma superior não deveria necessariamente determinar o conteúdo do ato inferior, a lei também não determina-

va, por si só, a solução do caso concreto. Na verdade, a sentença judicial é o último ato de interpretação e aplicação da lei – o últi-mo degrau da pirâmide. Em cada passagem de norma superior para norma inferior, há esta relativa indeterminação do ato jurídico a executar9. Nada mais natural do que isto ocorrer também na sentença.

Kelsen argumentou que toda interpre-tação da lei envolve dois atos: um de co-nhecimento e outro de vontade. Pelo ato de conhecimento, o intérprete fixa as possibili-dades de sentido de um texto normativo, ele

procura buscar todas as maneiras cogitáveis de se entender aquele texto; este é um ato eminentemente racional. No ato de vontade, o intérprete escolhe livremente qual sentido melhor se adapta no caso concreto que ele busca resolver; esta etapa é eminentemente subjetiva e voluntária. Nela, o aplicador da lei descartará alguns sentidos possíveis e escolherá apenas um.

Foi o próprio Kelsen quem escreveu que: “a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias solu-ções”10; e, mais à frente, criticando a visão tradicional, “[a] teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma úni-ca solução correta (...). Configura o processo desta interpretação como se tratasse tão-somente de um ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade”11.

Nesta linha de raciocínio, o juiz não julga apenas segundo a ra-zão, mas também aplica sua vontade em uma sentença. Esta surge através de um ato racional e outro voluntário, em uma seqüência lógica na qual a razão apenas constrói “uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação”1�. Dentro desta

“... depois que se determinam todas as possibilidades de interpretação, não há mais

nenhuma racionalidade – segundo Kelsen – na escolha do sentido que se torna direito, ou seja, na escolha da norma a

aplicar.”

Page 11: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

11Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

Teoria da interpretação e aplicação justa da lei: um cotejo entre Kelsen e Dworkin

moldura, a atuação do intérprete é livre e sua vontade cria direito1� se ele for competente para isso (se for um juiz, por exemplo).

A grande inovação desta teoria foi a percepção de que o simples uso da razão não basta para interpretar uma lei e, posteriormente, construir uma decisão judicial. Em primeiro lugar, porque nem sempre o direito é formalmente racional, sendo muitas vezes contraditório14; então, quando há vários caminhos igualmente racionais e não-racionais de aferição de sentido, é preciso escolher um deles. Em segundo lugar, porque o direito não se faz apenas pela razão, porque são os homens que o fazem, desde o constituinte até o juiz de primeiro grau. E homens não são apenas razão; são também emoção, valores, crenças. A dimensão pessoal e íntima do sujeito que faz a lei ou que prolata a sentença reflete-se nestas, de alguma forma.

A teoria do jurista austríaco foi um grande choque para os positivistas da época. Como conceber que alguém pudesse afirmar que a vontade de um juiz possui papel relevantíssimo na criação do direito? Não seria a volta da arbitrariedade e o fim da segurança jurídica? Kelsen respondeu que “[e]m vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal [da segurança] somente é realizável aproximativamente.”15 A doutrina antes de Kelsen estava propagando um valor – a segurança jurídica – que talvez não pudesse ser sempre contemplado, pois o direito não é tal qual as ciências exatas, em que o resultado de um cálculo é sempre previsível. No Direito, opera-se com a razão prática, não com a razão teórica. A razão teórica serve para entender as relações baseadas na causalidade necessária, no determinismo, mas não as relações em que há liberdade – como é a deliberação humana.16 Enquanto a razão teórica permite a derivação de uma cadeia causal inteira a partir da premissa maior, a razão prática permanece apenas como um guia para a ação, que não dá uma solução exata para a deliberação. Por isso que “evi-dentemente, aceitar raciocínio provável de um matemático é tão bobo quanto exigir provas demonstrativas de um retórico.”17

Entretanto, o papel da segurança jurí-dica é extremamente relevante até hoje. Ela constitui uma das bases do sistema da legalidade. Perelman a associa intima-mente com a regra da justiça: “Qual será a importância da regra de justiça, concebida como regra puramente formal? Ela se atém a exigir que se seja, em sua ação, fiel a uma linha de conduta regular.”18

É lícito pensar que toda esta liberdade que Kelsen confere ao intérprete da lei pode confrontar-se com a regra de justiça, porque é possível a escolha de qualquer sentido do texto legal para se aplicar ao caso concreto. A questão é aguda: depois que se determinam todas as possibilidades de interpretação, não há mais nenhuma racionalidade – segundo Kelsen – na escolha do sentido que se torna direito, ou seja, na escolha da norma a aplicar. Será que esta teoria da interpretação condiz com a busca de uma justiça que não se confunda com a mera caridade e que

tenha contornos racionais? A discricionariedade hermenêutica19 do intérprete e aplicador da lei, posta desta maneira, é tendente à eqüidade que buscamos?

4. A contribuição de Dworkin

Ronald Dworkin ataca o conceito de discricionariedade que o positivismo forjou. Discricionariedade não é sinônimo de livre-arbítrio total, de um voluntarismo desregrado. “Sempre faz sentido perguntar: ‘Discricionariedade sob quais parâmetros?’”�0

O jusfilósofo lista três sentidos de discricionariedade�1. O primeiro se mostra quando os parâmetros fornecidos para

julgamento não são tão claros, ensejando uma certa arbitrariedade do executor do ato. Por exemplo, quando o diretor de um clube esportivo pede ao técnico de voleibol que selecione os seis melho-res jogadores de todas as equipes; de pronto, o técnico descarta os jogadores péssimos e medianos, mas terá que aplicar seus próprios critérios para escolher os melhores dentre os que são bons. A liberdade de escolha ocorre sob o parâmetro “melhores”.

O segundo sentido é o de discricionariedade como impossibi-lidade de revisão de um ato por uma instância superior, embora haja parâmetros claros para decidir. Por exemplo, o juiz de futebol deve apitar pênalti quando o atacante é derrubado pelo adversário na grande área. Mas caso ocorra o pênalti e o juiz não apite, seu ato não pode ser revisado por outro juiz, posteriormente.

O terceiro sentido caracteriza-se pela ausência de parâmetros em uma decisão. Isto ocorre quando o dire-tor de um clube pede ao técnico de voleibol que escolha quaisquer seis jogadores, dentre todos. O técnico, no caso, só tem a atribui-ção de cumprir a ordem, trazendo os seis atletas; mas ele não recebeu critério algum para a escolha.

Em que sentido, dentre estes três, o ato de vontade descrito por Kelsen é discri-cionário? Poderíamos, talvez, escolher o primeiro sentido, já que Kelsen afirmou ex-pressamente que a interpretação cognosciti-va sempre confere uma moldura, para que o ato de vontade a preencha como aprouver ao intérprete.�� Há parâmetros, que são dados exatamente pelas diversas interpretações possíveis do texto normativo.

Mas não podemos nos esquecer de que esta moldura, para o jurista austríaco, não era necessariamente de conteúdo do ato inferior. Ela poderia até ser, mas não é da essência da norma de-limitar, ainda que minimamente, o conteúdo dos atos inferiores; sua essência é apenas determinar a forma pela qual estes atos acontecerão validamente. E, como Kelsen pretendia fazer uma teoria meramente analítica do fenômeno jurídico, pode-se dizer que a moldura que ele descreve é a ideal, posto que determinada pela norma ideal. A moldura (norma superior) não delimitaria a conteúdo dos atos (norma inferior), mas apenas os procedimentos (determinação de autoridade e forma) que os validam.

“A teoria de interpretação proposta por Dworkin, ao incluir os princípios como elementos a serem

considerados pelo jurista, intenta conferir maior

racionalidade ao Direito e, assim, estabelecer pré-

condições formais/estruturais para a busca da justiça nos

casos concretos.”

Page 12: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 781� Janeiro / �008

Teoria da interpretação e aplicação justa da lei: um cotejo entre Kelsen e Dworkin

Sob este ponto de vista, seria mais coerente dizer que Kelsen entendia a discricionariedade do juiz no terceiro sentido descrito por Dworkin.

Todavia, Dworkin observa que os juizes, a despeito desta discricionariedade ampla, não decidem os casos difíceis de forma totalmente arbitrária. Há linhas mestras que fundamentam seus raciocínios e fornecem a moldura que o direito – pela visão kel-seniana – não é obrigado a dar.

Um exemplo concreto disto é a disciplina constitucional da União Estável, no Brasil, precedida de uma farta atividade jurisprudencial. Nos juízos de 1o grau, havia casos em que se contrapunham dois vetores muito claros: o reconhecimento da relação estável entre o homem e a mulher para conferir-lhes prerrogativas de um casal, de um lado, e a necessidade do vínculo jurídico oficial, o matrimônio, sem o qual não poderia haver os direitos respectivos. Estes valores atuavam nas mentes dos jui-zes, para que eles decidissem pelo reconhecimento dos direitos similares aos de um casal com situação jurídica regulamentada ou pela negativa a este reconhecimento. E que instituição lhes conferiu estes parâmetros, que protegem interesses juridicamente relevantes? Com certeza não foi a lei, porque mesmo a idéia de que apenas as pessoas casadas podem ter os direitos atinentes ao matrimônio é uma crença extra-legal; no fundo, uma crença em que a lei é completa para tutelar todos os conflitos que venham a surgir. Mas parece não haver dúvida de que se trata de uma instituição jurídica, pois os parâmetros são tão relevantes para o Direito que foram sopesados no dispositivo constitucional que veio a regular a situação.��

Estes parâmetros, Dworkin os chama de princípios. O jusfi-lósofo define princípio como “parâmetro que deve ser observado (...) porque é uma exigência de justiça, eqüidade ou de outra dimensão moral.”�4 São eles que atuam na discricionariedade do julgador, tornando-a menos arbitrária e mais pautada por uma contraposição racional de argumentos. São eles que ajudam a formar novas regras�5. São eles que propiciam uma decisão entre duas regras excludentes entre si.

Os princípios diferenciam-se das regras porque, segundo Fábio Comparato:

“Enquanto nas regras jurídicas o campo de aplicação é sempre delimitado, nos princípios ele nunca se define com precisão. O princípio representa, por conseguinte, o protótipo da norma jurídica aberta, aplicável a situações que não podem ser precisadas de antemão. E essa indeterminação de contornos dos princípios repercute, necessariamente, sobre o seu conteúdo normativo, que é sempre mais abstrato que o das regras jurídicas, cuja função precípua consiste, aliás, em concretizá-los.”�6

Para Dworkin, os princípios estão presentes de tal forma na vida dos juristas, que seria difícil não considerá-los Direito. Apesar disto, a doutrina positivista insiste em não considerá-los inseridos no mundo jurídico, fundamentalmente por três razões�7: a) porque eles não são obrigatórios e, assim, não têm a caracte-rística essencial das normas, que é a cogência; b) porque eles não causam necessariamente um resultado e; c) porque eles são controversos entre si. Todas estas objeções podem ser reduzidas

a uma só: os princípios, na visão positivista, não podem estar no mundo jurídico porque eles não são regras.

Hoje, entretanto, é inaceitável considerá-los meras exortações. Sua característica principal é a normatividade�8, a cogência sobre todos. Exatamente por serem exigências de justiça, não podem ser relegados a segundo plano na teoria do direito, cabendo-lhes, ao revés, papel principal�9.

Se aceitarmos que os princípios exercem uma função impor-tante para inclinar uma sentença para uma decisão favorável a uma parte ou a outra, restringiremos um pouco a liberdade exacerbada do julgador no ato de vontade, de maneira a atender à segurança exigida pela regra de justiça. “Parece mais democrático pedir que os juízes tornem uma lei em evolução mais consentânea – ao menos em sua opinião pessoal – com o senso de justiça da comunidade do que lhes pedir que exerçam seu critério individual para elaborar a lei que preferirem.”�0 A interpretação deve visar a melhor solução.�1

Também teremos um tipo de racionalidade para esboçar definições mais precisas do que seja a justiça: a racionalidade material, já que a aplicação dos princípios provém de um “senso de adequação”�� deles às situações concretas. É mais fácil avaliar a justiça de um ato se ele resultar da ponderação de parâmetros objetivos (princípios), do que se ele for apenas fruto da vontade do executor. Isto porque é possível fazer objeções ao peso (ou valor) dado a um princípio, em detrimento de outro, em uma decisão; mas não é possível argumentar contra uma vontade, porquanto ela tem em si a própria justificação. Em outros termos: se a razão “pensa”, a vontade “quer”; e não é possível contestar um querer, embora o seja contestar um pensar.

5. Conclusões

A teoria de interpretação proposta por Dworkin, ao incluir os princípios como elementos a serem considerados pelo jurista, intenta conferir maior racionalidade ao Direito e, assim, estabele-cer pré-condições formais/estruturais para a busca da justiça nos casos concretos. Se um juiz não considerar princípios fundantes do ordenamento jurídico em sua decisão (como o da liberdade de expressão ou o da função social da propriedade, por exemplo), ainda que seja para negar-lhes o maior peso no caso concreto, pode-se afirmar que se trata de uma decisão injusta.�� Este juízo só é possível quando se adota uma teoria da interpretação que não considera os atos jurisdicionais arbitrários, em grande parte; se, ao modo de Kelsen, qualquer decisão fosse possível – respeitada a moldura legal – como poderíamos julgar uma vontade? Por conseguinte, como poderíamos falar de justiça ou injustiça?

A adoção de uma teoria da interpretação similar à de Dworkin é especialmente possível em nosso ordenamento. Nossa Cons-tituição é tão rica em princípios que seria um desperdício não aproveitá-los e negar-lhes normatividade: se os juristas pátrios incorrermos neste erro, deixaremos de aproveitar uma grande chance de buscar a justiça por um modo construtivo e racional.

Por fim, considerar a incidência dos princípios na atividade jurisdicional – que é necessária para se buscar a justiça, aliada à

Page 13: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

1�Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

Teoria da interpretação e aplicação justa da lei: um cotejo entre Kelsen e Dworkin

decisão dos conflitos – implica romper com o Positivismo Jurídi-co, pois ele “é um modelo de e para um sistema de regras, e sua característica fulcral de um simples teste para se aferir o que é Direito faz com que não compreendamos o papel importante dos parâmetros que não são regras.”�4 Se o mundo jurídico não exigir que o Direito seja mais que as regras, não conseguirá adotar esta teoria de interpretação mais afeita à busca da justiça. E buscá-la é ínsito à atividade do jurista, “pois a natureza do juiz” – e de todo jurista, podemos completar – “é ser um tipo de justiça viva.”�5

Notas1 Chaim Perelman, Ética e Direito, p. 157. Desenvolvendo este raciocínio, Perel-man acrescenta: “A caridade é a virtude mais diretamente oposta à justiça. Pode exercer-se espontaneamente, sem nenhum cálculo, nenhuma reflexão prévia (...) [E]la não necessita de fórmulas para exprimir-se, é alheia não só a todo espírito sistemático, mas mesmo a todo raciocínio: ela dispensa qualquer elemento dis-cursivo. A justiça, ao contrário, não é concebida sem regras. Ela é fiel à regra, obediente ao sistema. Pode dispensar emoção, ímpeto. (...) A aplicação da justiça supõe reflexão, discernimento, um juízo, um raciocínio.” Cit., pp. 46-7.� Norberto Bobbio, Igualdade e Liberdade, p. �8. � Perelman, cit. , p. 160. V. também o que Herbert Hart, The Concept of Law, pp. �05-7, chama de “justiça mínima”.4 Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 19�. Cris-tiane Derani, Direito Ambiental Econômico, p. 47.5 Esta idéia encontrou concreção na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu art. 4o: “A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique a outrem: em conseqüência, o exercício dos direitos naturais de cada homem só tem por limites os que assegurem aos demais membros da sociedade a fruição destes mesmos direitos. Tais limites só podem ser determi-nados pela lei.”6 Bobbio, Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna, p. �1.7 Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. �88. 8 Kelsen, cit., p. 258, afirma isto expressamente, quanto à Lei Maior: “A Con-stituição (no sentido material da palavra) em regra apenas determina os órgãos e o procedimento da atividade legislativa e deixa a determinação do conteúdo das leis ao órgão legislativo. Só excepcionalmente – e, de modo eficaz, apenas por via negativa – determina o conteúdo das leis a editar, excluindo certos con-teúdos.” 9 Kelsen, cit., p. �7�.10 Kelsen, cit., p. �90.11 Kelsen, cit., p. �91.1� Kelsen, cit., p. �90.1� Kelsen, cit., p. �94.14 “A indeterminação do ato jurídico a pôr pode finalmente ser também a conse-qüência do fato de duas normas, que pretendem valer simultaneamente – porque, v.g., estão contidas numa e mesma lei –, contradizerem total ou parcialmente.” Kelsen, cit., p. �90.15 Kelsen, cit., p. �96.16 John Rawls, Political Liberalism, pp. 116-8.17 Aristóteles, The Nichomachean Ethics, I.�., p. �.18 Perelman, cit., p. 160.19 A expressão é de Joaquim Arruda Falcão, “Direito da Mulher: Igualdade For-mal e Igualdade Material”, in O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, pp. �9�-�.�0 Dworkin, Taking Rights Seriously, p. �1.�1 Dworkin, cit., p. ��. �� Kelsen, cit., p. �90: “O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível.”

�� No caso, o art. ��6, parágrafo �o. da Constituição Federal: “Para efeito da pro-teção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”�4 Dworkin, cit., p. ��.�5 Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. �46, aponta como uma das características dos princípios a sua “fecundidade”, isto é, sua capacidade de gerar outras normas.�6 Fábio Konder Comparato, “O Papel do Juiz na Efetivação dos Direitos Huma-nos”, in Direitos Humanos – Visões Contemporâneas, p. �9.�7 Dworkin, cit., pp. �5-6.�8 Bonavides, cit., p. ��0.�9 Bonavides, cit., p. �61.�0 Dworkin, “Visão de Integridade”, in “O Estado de São Paulo”, �9.0�.97.�1 V. Dworkin, Law´s Empire, pp. 5� e 77..�� Dworkin, Taking Rights Seriously, p. 40.�� Analisei a ponderação de princípios em conflitos possessórios rurais em “Ocu-pações de Terras Rurais e o Conceito de Propriedade no Direito Brasileiro”, in Revista Trimestral de Direito Público, n. 44, pp. ��5-7.�4 Dworkin, cit., p. ��.�5 Aristóteles, cit., V.4., p. 115.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. The Nicomachean Ethics. Trad. de David Ross. London, Oxford, 1998.BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo, Ediouro, �00�, 5a. ed.BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna. São Paulo, Brasiliense, s/d.BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, �000, 9a ed.COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo, Saraiva, 1999. ________________. “O Papel do Juiz na Efetivação dos Direitos Humanos”, in Direitos Humanos – Visões Contemporâneas. São Paulo, Associação dos Juízes para a Democracia, �001.DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo, Max Limonad, �001, �a ed.DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge, Harvard University Press, 1999, 17a ed._______________. “Visão de integridade”, in “O Estado de São Paulo”, �9/0�/97.FALCÃO, Joaquim Arruda. “Direito da Mulher: Igualdade Formal e Igualdade Material”, in O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Alberto do Amaral Jr. e Cláudia Perrone-Moisés (orgs.). São Paulo, Edusp, 1999.GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 7ª ed. São Paulo, Malheiros, �00�.HART, Herbert. The Concept of Law, �ª ed. Oxford, Oxford University, 1994.

Page 14: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 7814 Janeiro / �008

Selvageria ou estado de direito?

JESUS, Carlos Frederico Ramos de. “Ocupações de Terras Rurais e o Conceito de Propriedade no Direito Brasileiro”. In: Revista Trimestral de Direito Público, n. 44, São Paulo, Malheiros, pp. 197-���, out/dez �00�. Também in: Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 1�, n. 5�, São Paulo, RT, out/dez �005.KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo, Martins Fontes, 1999,

6a ed.LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História. São Paulo, Max Limonad, �000.PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo, Martins Fontes, �000. RAWLS, John. Political Liberalism. New York, Columbia, 1995.

Selvageria ou Estado de Direito?

Régis Richael Primo da SilvaProcurador da República em Belém-PA

O filme Tropa de Elite tem despertado reações antitéticas entre os que assistiram às sessões de tortura e assassinato perpetradas pelo capitão Nascimento e seus comandados. Não são poucos os que vêem no filme uma descrição fiel das sombras que se erguem por trás do Estado de Direito brasileiro: um Estado normativo forjado sob os amargos ensinamentos de vinte anos de ditadura, e inspirado pelas declarações de direitos que se seguiram ao pesadelo de duas guerras mundiais, mas que, na prática, ainda não conseguiu sequer mudar as perversas bases teóricas com que uma de suas principais instituições repressoras costuma atuar. Para esses – e entre eles eu me incluo –, a violência empregada pela polícia no filme é real, sem exageros, embora injustificada e lamentável. Não se tem dúvida de que existem muitos capitães Nascimento pelo país afora, de quem gostaríamos, no entanto, estivesse o Estado brasileiro liberto.

Há, porém, muitos outros espectadores que, não obstante tenham compreendido o realismo daquelas ações de selvageria policial retratadas na obra, ao invés de censurá-las, as aplaudem como solução para o problema da criminalidade. Quantos não têm alçado o intrépido agente público ao posto de herói nacional, enaltecendo-lhe a brutalidade com que exerce o ofício? É o caso das adolescentes que, entrevistadas pela revista Carta Capital, não hesitaram em dizer: “se não tem jeito prendendo, tem de matar”.

Reações como essas não são apenas insensatas. Se traduzirem a defesa pública e explícita da truculência policial, ultrapassam to-

dos os limites da liberdade de expressão, e podem, até mesmo, sob certas condições, constituir o delito previsto no art. �87 do Código Penal brasileiro (fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime), já que, felizmente, torturas e execuções sumárias são crimes repudiados por todas as nações civilizadas, inclusive pelo Brasil, signatário das mais diversas convenções internacionais voltadas à proteção de direitos humanos.

Tais reações elogiosas à selvageria são, porém, sobretudo, ingênuas. Não me refiro, naturalmente, aos que não dão a mínima para a vida de quem não seja parente, amigo ou de seu círculo de relações sociais. Para esses, pouco importa que a violência policial gratuita dirija-se contra inocentes ou criminosos. Pouco lhes interessa que a lei dos povos civilizados proíba semelhantes atos. Afinal, palavras como misericórdia e Estado de Direito só lhes integra o vocabulário quando instrumentadas ao próprio in-teresse. Importa-lhes, isto sim, tão-somente retirar de circulação quem lhes ameaça a segurança e a daqueles que lhes são caros. E se, para tanto, for necessário torturá-los ou matá-los, não há motivo para lamentos, senão para comemoração.

Quero crer que quem assim pense é minoria. E contra eles não é preciso argumentos. Basta-lhes a lei. A ingenuidade a que aludo é a daqueles que defendem as ações do capitão Nascimento sem ter em vista o próprio interesse, mas o bem comum, e que tendem a ver a violência policial apenas como efeito colateral de ações que, em si mesmas, são boas (o combate à criminalidade). Esses ignoram as duras lições da história que levaram os países

Page 15: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

15Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

Selvageria ou estado de direito?

democráticos a adotar rígidos controles ao exercício do poder, em especial do poder que atua armado – capaz de ferir e de matar. Desconhecem que, em nome do bem comum, as maiores atroci-dades foram cometidas: povos foram escravizados e tiveram suas riquezas roubadas, pessoas foram jogadas à fogueira, inssurreitos esquartejados e expostos à praça pública, guerras declaradas, re-voluções sanguinolentas deflagradas, e muitos... muitos inocentes condenados.

Essa ingenuidade é perdoável em quem está tão próximo do poder (econômico ou político) que dificilmente sujeitar-se-á às ações violentas da polícia. Nessa situação, pode-se, irrefletida-mente, agir com base em normas que não se desejaria que se tornassem leis universais, isto é, aptas a recair mesmo sobre os entes mais queridos. Quem, porém, permanece longe desses círculos, deve preocupar-se, pois, cedo ou tarde, sofrerá, em nome do bem comum, a mesma violência que tende a exaltar nas ações do Bope: tal qual Jean Charles, o brasileiro, morto pela polícia inglesa, em nome da “guerra contra o terror”. Às potenciais vítimas da violência policial não é permitida tanta ingenuidade. Devem carregar sempre consigo, como amuleto, a sentença de Oscar Wilde proferida em seu De Profundis, segundo a qual “tudo aquilo que acontece aos outros acontece a nós”.

Mas, mais do que tudo, o que não deve deixar de ser dito é que um Estado que educa seus súditos para a violência torna-os insensíveis à dor alheia, e contribui para soterrar virtudes tão nobres quanto necessárias como a misericórdia, a solida-riedade e a compaixão, sem as quais não conseguiríamos nos relacionar nem mesmo com a própria família.

Somos conscientes de que a criminalidade não tem suas raízes apenas na questão social. O crime, como, de resto, os demais fenômenos sociais, possui causas múltiplas – biológicas, psicoló-gicas, sociológicas e culturais. A desigualdade social seguramente inclui-se entre essas causas, conquanto seja óbvio que a resolução dos problemas ligados à pobreza não baste para pôr fim ao flagelo da criminalidade.

Contudo, é também hora de perceber que a violência sempre chama mais violência. Se tal afirmação não corresponde a uma regra da natureza, ou a um princípio da razão, trata-se, sem dúvida, de uma lei da história: à revolução francesa seguiu-se um Estado de terror; à revolução russa, verdadeiro massacre de milhões de pessoas; às justificáveis ações dos países aliados para conter Hitler sobreveio a barbárie de Hishoshima e Nagazaki; à guerra contra o terrorismo sucedeu Abu Ghraib, Guantánamo e o morticínio que ainda acontece no Iraque.

Nunca a polícia brasileira matou tanto; nunca se encarcerou tanta gente no Brasil; e nunca a criminalidade violenta esteve tão presente como hoje. À violência da polícia e ao inferno das peni-

tenciárias, que acontecem sob o olhar indiferente dos “cidadãos de bem”, segue-se a violência dos criminosos; a que, por sua vez, segue-se uma resposta mais violenta ainda da polícia; e outra resposta ainda pior dos criminosos.

Não se pretende aqui levar a idéia da não-violência ao ex-tremo, atribuindo valor absoluto à vida humana: a violência co-metida em legítima defesa, e da qual venha a resultar a morte de alguém, ainda continua a ser, com razão, prática legitimada pela consciência jurídica e moral universal. Todavia, entre a reação moderada para impedir que uma agressão iminente se consume, e o assassinato de quem já não oferece resistência alguma, há uma distância muito grande.

Impõe-se uma observação final. Alguns veículos da grande imprensa têm demons-trado, nos últimos tempos, uma completa aversão a discursos que enunciem, entre as causas da criminalidade, a desigualdade social. No entanto, ao identificá-los como meras expressões do que chamam de es-querdismo, experientes jornalistas incorrem no mesmo erro que condenam: simplificam, muito além do necessário, uma questão complexa, polarizando-a: como se tivésse-mos que escolher entre “a brutalidade dos bandidos” e a “brutalidade da polícia”. Essa atitude fica clara na reportagem de capa da revista Veja veiculada esta semana, em que aborda o filme Tropa de Elite: de um lado, temos a repulsa veemente à criminalidade de rua (o que é correto); de outro, uma velada condescendência aos métodos igualmente criminosos da polícia, a começar pela tese de que a obra alcançou o sucesso porque “trata bandido como bandido” (esta é a ex-pressão com que a matéria é anunciada).

Desgraçadamente, nunca nos ensinaram (e, pelo visto, não será a grande imprensa a fazê-lo) o postulado fundamental do liberalismo político, que consiste na abolição do supremo mal da tirania e de todas as formas de crueldade, em especial daquela exercida por quem atua sob as vestes do Estado. Em compensação, temos apreendido, com particular êxito, o dis-curso da guerra. Nesse tipo de discurso, o assassinato, de crime perverso, passa a ser racionalizado e justificado por um sistema de pensamento: “ele, que era solitário como o grito, ei-lo universal como a ciência” – diria Camus.

Para nosso próprio bem, devemos abandonar esse discurso. Se não podemos pedir aos criminosos que deponham as armas, podemos exigir de nossos governantes que parem essa guerra, e instaurem o Estado Democrático de Direito. Nada de remédios amargos – desculpa histórica para toda sorte de opressão e auto-ritarismo. Dê-se o remédio previsto pela Constituição: educação, saúde, moradia e segurança pública preventiva, de um lado; investigação, processo e pena justa e digna, de outro, inclusive para os que promovem atos de torturas e execuções, os autorizam, ou os incentivam.

“Nunca a polícia brasileira matou tanto; nunca se encarcerou tanta gente

no Brasil; e nunca a criminalidade violenta esteve

tão presente como hoje. À violência da polícia e ao

inferno das penitenciárias, que acontecem sob o olhar

indiferente dos ‘cidadãos de bem’, segue-se a violência dos criminosos; a que, por sua vez,

segue-se uma resposta mais violenta ainda da polícia; e

outra resposta ainda pior dos criminosos.”

Page 16: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 7816 Janeiro / �008

A liberdade de imprensa como limite ao poder do estado

A Liberdade de Imprensa como Limite ao Poder do Estado

Fernando CorrêaAnalista Judiciário do STJ

“Desde que eu não fale em meus escritos nem da autoridade, nem do culto, nem da política, nem da moral, nem das pessoas no poder, nem dos donos dos créditos, nem da Ópera, nem dos outros espetáculos, nem de quem quer que defenda alguma coisa, eu posso imprimir tudo livremente, sob a inspeção de dois ou três censores.” Beaumarchais, in “As Bodas de Fígaro”.

Recentemente, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra o jornalista Diogo Mainardi e suas empregadoras com pedido de indenização por dano moral coletivo1, sob o fun-damento de que publicações de artigos de opinião do jornalista revelaram preconceito contra nordestinos e cuiabanos, conforme as citações abaixo:

“Ele não é pragmático. Ele é oportunista. O episódio do Pará agora é muito claro. Quer dizer, uma semana ele concede a exploração de madeira, na semana seguinte ele cria uma reserva florestal grande como Alagoas, Sergipe, sei lá eu... por essas bandas de onde eles vêm. Isso é oportunismo...” (Manhattam Connection, 09/0�/�005, sobre o Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva).

“Dutra não tem passado empresarial. Fez carreira como sin-dicalista da CUT e senador do PT pelo Estado de Sergipe. Não sei o que é pior (...)” (VEJA, 19/01/�005, sobre o Presidente da Petrobrás, José Eduardo Dutra).

“Minha maior ambição, hoje em dia, é jamais, em hipótese alguma, colocar os pés em Cuiabá (...) Seu principal artista é o comediante Liu Arruda. Além de protagonizar a memorável cam-panha publicitária do Supermercado Trento, Liu Arruda também se tornou conhecido por ter interpretado personagens como Cre-onice e Comadre Nhara. (...) Não gosto de me vangloriar. Creio, porém, que fui a notícia mais excitante da história de Cuiabá nos últimos vinte anos” (VEJA, 18/05/�005 e �5/05/�005, sobre a cidade de Cuiabá).

O procurador, a partir dos excertos citados, entendeu que a finalidade do jornalista seria “discriminar os cidadãos em razão de sua origem regional e de menoscabar as culturas das regiões menos favorecidas do país”. Afirmou que o deslinde da referida ação trata de colisão de direitos fundamentais, especificamente na questão dos limites da liberdade de expressão frente ao princípio da isonomia e à vedação dos preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Citou o professor português José Carlos Vieira de Andrade, ressaltando os seguintes exemplos de limites imanentes em matéria de direitos

fundamentais�: “Por exemplo, poder-se-á invocar a liberdade religiosa para efectuar sacrifícios humanos ou para casar mais de uma vez? Ou invocar a liberdade artística para le-gitimar a morte de um actor no palco, para pintar no meio da rua, ou para furtar o material necessário à execução de uma obra de arte? (...) Nestes, como em outros casos, não se deve falar propriamente de um conflito entre o direito invocado e outros direitos ou valores, por vezes expressos através de deveres fundamentais.(...) É o próprio preceito constitucional que não protege essas formas de exercício do direito fundamental, é a própria Constituição que, ao enunciar os direitos, exclui da respectiva esfera normativa esse tipo de situação.” Após concluir que “nas três situações apontadas, o jornalista requerido ultrapassa os limites da liberdade de expressão e fomenta o preconceito e a discriminação contra nordestinos, sergipanos e cuiabanos”, pede ao juiz a procedência do pedido de condenação ao pagamento de indenização por danos morais coletivos.

Mesmo que se parta da conclusão da ação civil pública, de que as manifestações do jornalista são preconceituosas e dis-criminatórias, ainda assim, há que se decidir se o ordenamento jurídico possibilita a produção da conseqüência jurídica pretendida na ação. O autor da ação civil pública entende que o completo aniquilamento do direito de livre expressão é a resposta. Advogo, neste texto, que não podemos ignorar a norma de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais pela qual há que se adotar as medidas menos gravosas possíveis ao limitar o exercício de direitos, bem como a necessidade de não se esvaziar o núcleo fundamental do direito ponderado.

A questão que se revela é a definição de limites, tanto para o exercício do direito de expressão e pensamento quanto do poder do Estado em reprimir tal liberdade. Afinal, na sábia voz de Celso de Mello: “se é certo que não há direitos absolutos, também é inquestionável que não existem poderes ilimitados em qualquer ordem institucional fundada em bases democráticas�”. Portanto, a questão aqui colocada não é apenas se o jornalista abusou do direito de falar, mas se o Estado não corre o risco de abusar do poder de calá-lo.

Antes de tentar definir estes contornos, há que entender a função social da liberdade de expressão. Se o sistema político é moldado pela forma como pensamos (cultura) e pela forma como produzimos bens escassos (economia), ao mesmo tempo em que os influencia, é óbvio que a livre circulação de idéias é elemento

Page 17: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

17Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

A liberdade de imprensa como limite ao poder do estado

estruturante na composição de um sistema político democrático. Trata-se da única forma de não engessarmos a nossa visão de mundo, de garantir que teremos o direito de mudar de opinião e dar vazão às nossas insatisfações.

Ocupa especial posição, quando falamos de liberdade de ex-pressão, o papel da imprensa. Desde os primórdios do Estado de Direito, essa instituição vem desempenhando um papel essencial na formulação de reivindicações, na defesa de ideologias e na fiscalização de governos. Rui Barbosa, no início do século XX, já se ocupava da defesa da imprensa livre: “Qual é o jornalista que se poderá gabar de não ter cometido injustiças? Qual o jornal que poderá fazer praça de não ter magoado a verdade?”, para logo após lembrar a lição de Camillo Benso, Conde de Cavour, que considerava não ser possível represar os abusos da imprensa com leis repressivas, senão com mais imprensa livre. Assim, há que se ter cuidado ao restringir o exercício da liberdade de opinião. O contra-revolucionário francês Louis Gabriel Ambroise De Bonald, citado por Rui, expressou perfeitamente a idéia aqui defendida ao escrever: “Em cada processo, com o escritor, comparece a juízo a própria liberdade, cuja sorte pende da sentença pendente, que, parecendo infligir apenas leve penalidade ao escritor, proferirá contra a liberdade a pena capital”5.

A importância política das liberdades de expressão, opinião e imprensa não podem ser obsidiadas por eventuais abusos. Nem todo abuso da liberdade de expressão im-plica em um ilícito que deva ser perseguido pelo sistema de justiça. Aqui, devemos antes considerar a importância do princípio da tolerância. É relativamente recente. Os primeiros a formular seus limites foram Locke e Voltaire, no bojo da discussão sobre a liberdade religiosa. Tanto na fundamenta-ção da necessidade da tolerância, quanto em sua justificação filosófica, Locke enfatiza a igualdade, a paridade entre pessoas com entendimentos e vivências divergentes. Ensina que não há qualquer superioridade, antes igualdade, quando se defende que ninguém pode se arvorar com mais autori-dade que o seu semelhante em matéria de convicção filosófica. Locke, sabiamente, lembra que tolerar não significa concordar. Ao contrário, pois não necessitamos tolerar pessoas com quem concordamos. Discordância com tolerância se funda na noção de que podemos defender convicções sem que isto implique em qualquer noção de superioridade5. Sobretudo na luta ideológica, típica de uma democracia jovem como a brasileira, devemos dar espaço para algum nível de transgressão, sob pena de criminalizarmos até mesmo divergências de botequim. Portanto, a tolerância é elemento essencial para convivermos com os maus-modos e a vulgaridade que, infelizmente, se tornaram comuns no convívio social e, por conseqüência, nos meios de comunicação social. Neste sentido, deve-se interpretar a seguinte lição de Robert Alexy, quando analisa os problemas de compatibilização entre os

direitos fundamentais e a democracia: “Direitos fundamentais são democráticos porque eles, com a garantia dos direitos de liber-dade e de igualdade, asseguram o desenvolvimento e existência de pessoas que, no fundo, são capazes de manter o processo de-mocrático com vida e porque eles, com a garantia da liberdade de opinião, imprensa, radiodifusão, reunião e associação, assim como com o direito eleitoral e as outras liberdades políticas asseguram as condições funcionais do processo democrático6”. Ou seja, seria o caso de perguntar se o âmbito de proteção do direito fundamental de liberdade de expressão realmente contém apenas faculdades individuais ou se o ordenamento jurídico prevê, nesta mesma esfera de atuação do direito, a proteção de interesses coletivos.

Ao lado da questão da tolerância, devemos lembrar que a conquista destas liberdades se deu em circunstâncias históricas específicas. Defender o direito de se expressar publicamente, portanto, politicamente, foi considerado subversivo por muito tempo. Ainda o é em muitos rincões. No Ocidente, a liberdade de expressão andou de mãos dadas com a luta pela participação política e liberdade religiosa. Alimentou revoluções e custou vidas. Devemos lembrar que idéias como a possibilidade de não professar a religião oficial em tempos idos configurou crime. A idéia de que o

rei era mandatário de Deus e que, portanto, deveria ser obedecido cegamente fazia parte do senso comum e contrariá-lo também im-plicava em transgressão. A razão da palavra é porque, eventualmente, certas expressões culturais são exatamente isto: transgressão. E o que foi transgressão no passado, muitas vezes deixa de sê-lo, passando a pertencer ao senso comum. Engessar a livre expressão de idéias significa querer controlar esta di-nâmica histórica7. Censurar manifestações da imprensa marcadas pelo mau-gosto ou até mesmo preconceito significa impor à sociedade um ônus maior do que a proteção alcançada contra as limitações intelectu-ais e emocionais da pessoa por detrás do texto. Isto porque a finalidade deste direito fundamental não é proteger a pessoa que manifesta sua opinião publicamente, mas a própria sociedade, assim como as garantias

da magistratura não têm como destino a pessoa do magistrado, mas o bom funcionamento da justiça.

Há que se notar que os limites são claros. Nosso ordenamento veda discursos de ódio. Veda a discriminação, isto é, dar tratamen-to diferenciado ou injusto a um indivíduo ou grupo de indivíduos em razão de cor da pele, classe social, convicções políticas, origem nacional, etnia ou religião. Mas não veda a possibilidade, até porque impossível, das pessoas formularem pensamentos a partir de indícios reais ou imaginários. É o que denominamos precon-ceito. Todos o temos, em maior ou menor grau. Trata-se de uma forma de nossa mente produzir decisões a partir da simplificação radical de uma realidade muitíssimo complexa. Não tem relação de identidade com discriminação ou injúria racial8. Discriminar,

“...podemos visualizar facilmente o papel da

liberdade de expressão, com suas larguíssimas

fronteiras, na acomodação do sistema político em

crises constitucionais, na participação política como

elemento integrante da idéia de cidadania, na evolução da ideologia e da cultura, e (...) como componente da

dignidade humana.”

Page 18: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 7818 Janeiro / �008

A liberdade de imprensa como limite ao poder do estado

como já vimos, significa dar tratamento diferenciado a partir de determinados critérios, que podem ser preconceituosos ou não. Se tais critérios forem a cor da pele, a religião ou etnia estaremos falando de conduta proibida pelo nosso ordenamento jurídico, de crime. Já o crime de injúria racial diz respeito a toda atribuição de fato injurioso à pessoa ou grupo social identificado a partir de critérios biológicos.

Assim, podemos visualizar facilmente o papel da liberdade de expressão, com suas larguíssimas fronteiras, na acomodação do sistema político em crises constitucionais, na participação política como elemento integrante da idéia de cidadania, na evolução da ideologia e da cultura, e, como veremos adiante, como componente da dignidade humana. O esforço pragmático da jurisprudência constitucional norte-americana gerou, com o passar do tempo e de uma sucessão de conflitos políticos, um corpo de precedentes que confere extraordinária proteção à liberdade de expressão. A moderna face desta jurisprudência se inicia com as celebradas opiniões dos justices Holmes e Brandeis na década de 19�0. Suas idéias têm dominado, desde então, a formulação do direito aplicado a estas questões, por meio da observância de quatro enunciados: (1) o Estado jamais deve censurar manifestações de pensamento por discordância do ponto de vista apresentado. A verdade ou falsidade de uma idéia é matéria restrita ao julgamento individual de homens e mulheres livres, não do Estado; (�) a liber-dade de expressão ocupa lugar de honra na hierarquia de valores. Por isso, o Estado deve demonstrar um interesse que transcenda as preocupações do dia-a-dia antes de se tornar censor; (�) deve existir um nexo causal extremamente evi-dente entre a manifestação de pensamento e o dano que alegadamente seria causado antes do Estado poder censurar. Mera especulação, ou mesmo medo plausível, não podem justificar censura. O discurso deve criar um claro e presente perigo de dano antes de poder ser suprimido; e, (4) o Estado deve adotar a alternativa menos restritiva possível, não podendo censurar se existirem formas alternativas de regulação que protejam adequadamente o interesse público9.

Robert Alexy ensina que uma das linhas de desenvolvimento do sistema de direitos fundamentais na Alemanha durante o século XX foi o fortalecimento de todos aqueles di-reitos fundamentais que são imediatamente importantes para o processo democrático10. Enfatiza a aplicação deste entendimento à liberdade de expressão lembrando, ao analisar a constituição brasileira quanto às possíveis colisões entre liberdade de opinião e direitos de personalidade, que não podem ser proibidas manifesta-ções de opinião, que de alguma maneira molestem um concidadão ou membro de uma determinada raça, se o resultado for a atrofia da liberdade de manifestação de opinião11. Na Alemanha, destaca a decisão “soldados são assassinos”1�, pela qual o Tribunal Cons-titucional considerou inconstitucional a condenação de pacifistas

que qualificaram soldados de assassinos.A aplicação sem parcimônia de cláusulas abertas, como, por

exemplo, do princípio da dignidade humana, que permitam ao Judiciário manter a imprensa sob controle, sobretudo em mo-mentos de crise constitucional, pode gerar danos irreparáveis ao debate público. Kelsen demarcou o problema no congresso de 19�8 da Associação Alemã dos Professores de Direito do Estado, ao condicionar a defesa de um tribunal constitucional à exigência de que a constituição deva determinar “tão precisamente quanto possível os preceitos, linhas diretas e barreiras” materiais a serem controladas pelo tribunal constitucional. Lembrou o “papel ex-tremamente perigoso” que valores e princípios, como liberdade e igualdade, podem desempenhar, “por falta de uma determinação mais circunstanciada”, justamente no âmbito da jurisdição cons-titucional, levando à concessão de uma plenitude de poderes que “absolutamente deve ser sentida como insuportável”. Portanto, força de validez formal extrema é, segundo Kelsen, somente su-portável, sob a condição de densidade de normalização material suficientemente limitada e determinável1�. Daí a necessidade de a doutrina fornecer critérios de balizamento que possibilitem o controle da atividade do juiz ao restringir o exercício de direitos fundamentais. A doutrina, sobretudo a alemã, vem trabalhando neste campo. Canaris cita, como parte do esforço no desenvolvi-mento de critérios mais precisos, a Fórmula de Schumann14. Esta técnica prescreve que se analise o ato particular objeto de exame, que contém uma conseqüência jurídica possivelmente violadora de direito fundamental, como sendo lei hipoteticamente promul-

gada. Se esta lei hipotética resistir ao juízo de constitucionalidade, então, não se deve restringir a prática do ato15.

Se os direitos fundamentais são princí-pios, portanto, mandamentos de otimização, então, devem sofrer ponderação; enquanto as regras, mandamentos definitivos, têm por forma de aplicação a subsunção. En-quanto a subsunção de regras só conhece duas alternativas: adequação ou inadequa-ção da regra ao silogismo da qual participa o fato jurídico, a ponderação de princípios possibilita um caminho intermediário entre vinculação e flexibilidade16.

Vários caminhos foram desenvolvidos. Dentre eles, dois refletem posições abso-lutamente antagônicas na doutrina: (a) o indicado por Robert Alexy17, que se baseia em sentenças racionais sobre intensidades de intervenção e graus de importância, nos

moldes do sistema inaugurado com a sentença Lüth, de 1958, e, (b) o indicado por Habermas, que afirma faltar critérios racionais para a ponderação, devendo esta se realizar arbitrariamente, segundo modelos hierárquicos, pois no exame de proporcionalidade em sentido estrito somente a subjetividade do examinador faz valer-se. Habermas alega, ainda, que, na ponderação de valores, o direito é retirado do âmbito do correto e do falso e transferido para um espaço definido pela conveniência e discricionariedade18.

“Seria interessante lembrar que a Suprema Corte

americana tem entendimento pacífico de que a crítica

ao governo e aos agentes públicos é o propósito central da Primeira Emenda. A Corte lembra que, quando cidadãos são refreados em vociferar seu

descontentamento por medo de retaliação do Estado, este fica menos propenso a prestar

contas dos seus atos.”

Page 19: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

19Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

Devo esclarecer que não tenho dúvida quanto às vantagens do primeiro caminho. Isto porque é o único que garante o con-trole sobre os fundamentos da decisão judicial exigido por um Estado de Direito. Se há técnica jurídica que escalone a decisão em pontos discerníveis e compreensíveis para os cidadãos, pro-porcionando, assim, o controle sobre a legitimidade da decisão, seria um contra-senso não exigir a sua utilização por parte do aplicador do direito.

A aplicação do princípio da proporcionalidade, na jurisprudên-cia constitucional alemã, se inaugura com a decisão no caso Lüth. Em 1958, um cidadão chamado Erich Lüth convocou o público alemão, além dos proprietários de cinema e distribuidores, a boi-cotarem os filmes de Veit Harlan, importante diretor de filmes de propaganda do regime nazista. O tribunal de segunda instância de Hamburgo condenou Lüth, que recorreu ao Tribunal Constitucio-nal Federal. Este tribunal considerou insuficiente a subsunção da regra contida no § 8�6 do Código Civil ao caso concreto, como fizera o tribunal de Hamburgo, pois sempre que a aplicação de uma norma leva à limitação de um direito fundamental deve-se efetuar a ponderação dos princípios constitucionais colidentes. Assim, o boicote convocado por Lüth estava protegido pela liberdade de manifestação de opinião. Esta decisão paradigmática deixou três marcas importantes: (a) os direitos fundamentais têm caráter dúpli-ce: são simultaneamente regras e princípios, (b) os direitos fundamentais se irradiam por todo sistema jurídico e (c) a única forma de solucionar uma colisão de princípios é por meio da ponderação de valores.

Logo, a primeira pergunta a ser feita em casos como o analisado no presente texto é se há colisão de princípios. Os exemplos citados pelo signatário da ação civil pública (liberdade religiosa X sacrifícios humanos, et cetera) não são casos de colisão de di-reitos fundamentais, pois para que estes aconteçam um direito individual deve afetar diretamente o âmbito de proteção de outro direito individual. Gilmar Mendes explica que, “embora se cogite, não raras vezes, de uma suposta colisão de direitos, é certo que a conduta questionada já se encontra, nesses casos, fora do âmbito de proteção do direito fundamental”19. Ou seja, devemos ressaltar que a fundamentação da ação civil pública usou exemplos em que o ordenamento ju-rídico sequer protege a esfera jurídica pretensamente objeto de limitação (por exemplo, a possibilidade de sacrificar uma vida humana em nome da liberdade religiosa).

Voltando à questão da técnica da ponderação de valores, há que aplicar o princípio da proporcionalidade e seus subprincípios. Se aceitarmos a idéia de que princípios exigem uma realização tão ampla quanto possível, tanto em relação às possibilidades fáticas quanto jurídicas, então podemos concluir que: (a) os subprincípios da adequação e da necessidade expressam mandatos (mandados) de otimização relativamente às possibilidades fáticas�0, e, (b) o subprincípio da proporcionalidade estrita trata da otimização

relativamente às possibilidades jurídicas, por meio da ponde-ração de valores que se concretiza a partir da seguinte máxima: “quanto mais alto é o grau de não cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto maior deve ser a importância do cumprimento do outro”. O reconhecimento desta regra se dá da seguinte forma: (a) o primeiro passo é a comprovação do não cumprimento ou pre-juízo de um princípio�1, (b) o segundo passo é a comprovação de importância do cumprimento do princípio em sentido contrário,e, por fim, (c) o terceiro e último passo é comprovar se a importân-cia do cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o prejuízo ou o não cumprimento do outro.

Alexy oferece como exemplo da aplicação desta técnica o caso dos produtores de tabaco, que são obrigados a colocar mensagens de advertência sobre o risco do fumo em seus produtos. Trata-se de uma intervenção relativamente leve na livre iniciativa dos produtores de tabaco, enquanto que uma intervenção grave seria a completa proibição de todos os produtos de tabaco. Entre tais pontos classificamos os casos como de intervenção média, como por exemplo, a proibição de venda de tabaco para menores de idade. Alexy continua, mostrando que a partir de uma escala com os graus leve, médio e grave é possível fazer associações válidas entre os valores ponderados e seus fundamentos. No exemplo citado, o fundamento para o dever de advertir sobre os riscos do

tabaco é a proteção à saúde da população e a correspondente onerosidade aos cofres públicos. O peso de tais fundamentos é alto. Sendo a intervenção analisada leve, fácil constatar que o fundamento de intervenção grave justifica uma intervenção leve, não violando, assim, a liberdade de profissão e iniciativa econômica dos produtores de tabaco.

Oportuno, ainda, estudar a aplicação dos mesmos critérios no exemplo de colisão entre liberdade de expressão e o direito de personalidade. O autor cita o exemplo de revista humorística que designou um mili-tar, oficial da reserva hemiplégico, como “nascido assassino” e “aleijado”. O Tribu-nal Constitucional Federal da Alemanha efetuou ponderação entre a liberdade de expressão dos participantes da revista e o

direito de personalidade do oficial da reserva. Para esta finalidade, foi determinada a intensidade do prejuízo desses direitos e posta em relação. A condenação, em juízo de 1º grau, ao pagamento de indenização por dano moral foi considerada de “efeito forte e duradouro”, portanto, intervenção grave na liberdade de opinião, ainda mais quando ela não se realizou por meio de decisão judi-cial penal, mas civil. Isto foi fundamentado, sobretudo, pelo fato de uma indenização poder ter o efeito de diminuir a disposição futura dos afetados de fazer a sua revista como a fizeram até o momento, afetando claramente a liberdade de expressão. O tri-bunal considerou que o veículo de comunicação, pelo seu caráter humorístico, se refere às pessoas de um modo “reconhecidamente não sério”, por meio de “jogos de palavras até a parvoíce”. Este

A liberdade de imprensa como limite ao poder do estado

“...se a manifestação da imprensa se insere no debate

público, visando ao controle do governo, o direito de resposta

parece ser a melhor saída, pois configura intervenção leve que amplia o direito de informação,

reconstitui os direitos de personalidade lesionados e não afeta a disposição da imprensa em continuar exercendo a sua

atividade sem medo.”

Page 20: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 78�0 Janeiro / �008

contexto impossibilitou enxergar em “nascido assassino” uma violação grave, proibida e antijurídica do direito de personalidade, já que foi atribuído prejuízo de intensidade mediana ao direito de personalidade, talvez mínimo. Daí a constatação de que o paga-mento de indenização por dano moral foi desproporcional, o que significa que a designação do reclamante de “nascido assassino” não deveria ser ter sido sancionada do modo como foi no juízo de 1º grau.

De outro modo, todavia, deve ser tratado o termo ”aleijado”, usado pela revista para designar o mesmo reclamante. Segundo o tribunal, esta expressão violou o hemiplégico gravemente em seu direito de personalidade. Isto porque a designação de pessoa que sofreu grande mutilação como aleijado foi entendida como humilhante e geradora de desprezo. O fundamento da grave intervenção na liberdade de expressão residiu justamente na gra-vidade da violação ao direito de personalidade. Nesta situação, o Tribunal Constitucional Federal reconheceu o termo “aleijado” como uma violação ao direito de personalidade grave, proibida e antijurídica��.

Ao mesmo tempo, como já afirmado acima, a experiência da Suprema Corte norte-americana oferece alguns parâmetros de aplicação interessantes quanto ao tema da liberdade de expres-são. Parte do princípio de que a Primeira Emenda não permite ao Estado decidir quem pode ter a palavra no debate público, sequer moderá-lo. Afinal, preservar a civilidade é uma coisa, insistir que o debate público seja realizado segundo os ideais de debate ordenado é outra bem diferente. Diante de possíveis abusos da liberdade de expressão, devemos lembrar que freqüentemente a audiência pode antecipar o tom polêmico do autor. Foi a conclusão da Suprema Corte no caso em que um “pantera negra��” foi acu-sado de linguagem ofensiva em uma reunião política a que havia sido convidado. Notem que, aqui, temos um ponto de inflexão. O modelo de sociedade com um debate público formado por uma assembléia de cidadãos que calmamente discutem as matérias do dia confrontando suas idéias logicamente é certamente inadequado para entender a realidade�4. Logo, se a ofensividade da linguagem usada em um protesto político freqüentemente molda a reação do Estado, a proteção ao uso de linguagem ofensiva torna-se não um luxo, mas uma necessidade em uma sociedade democrática. No caso analisado, evidentemente, o que se espera do citado jornalista é o tom polêmico, típico de quem pretende apimentar o debate político�5.

Ainda no âmbito do direito norte-americano, não podemos esquecer que a liberdade de expressão deve ser protegida não apenas para garantir o bom funcionamento do Estado, mas por-que a possibilidade de se exprimir livremente é um componente essencial da dignidade humana, conforme ensina Thomas Emer-son, autor de um marco nos estudos sobre a Primeira Emenda daquele país�6.

No Brasil, recentemente, o Supremo Tribunal Federal analisou o caso Ellwanger�7, no qual lhe foi oportunizado formar enten-dimento acerca dos conceitos de raça e suas implicações quanto à liberdade de opinião. O Supremo Tribunal Federal considerou que a existência ou não de raça não é essencial para valorar a conduta, pois o dolo subjetivo do crime de racismo é atribuir a

alguém uma raça e, por este motivo, impingir uma situação de inferioridade à vítima. A partir daí, colocou-se o princípio da li-berdade de opinião e seus limites. O Supremo acolheu a idéia de que, neste caso, ao se ponderar os valores pertinentes ao princípio da dignidade da pessoa humana e à liberdade de opinião, há que se preservar a dignidade humana, visto que “o preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o direito à incitação ao racismo”. Ou seja, nosso ordenamento jurídico, ao consagrar a liberdade de opinião e expressão, não avaliza manifestações de ódio. Há uma limitação representada pela incidência do princípio da dignidade humana, justificada pelo tamanho do risco imposto à sociedade pelas manifestações anti-semitas do réu. Não se trata de censura prévia, mas do primado da responsabilidade pessoal, tão cara aos liberais. Portanto, se, com base na ponderação de valores, permite-se a avaliação, passo a passo, de quais princí-pios constitucionais devem prevalecer no caso concreto, devemos afirmar, contundentemente, que não é qualquer manifestação de opinião que eventualmente atinja a dignidade de pessoas que será limitada na via judicial. O juiz deverá, no caso concreto, ao exercer o juízo de ponderação, fundamentar a restrição com a demonstração de que a limitação à atividade da imprensa é um mal que não pode ser evitado, tamanho o gravame imposto pela manifestação de opinião. Assim, podemos concluir que o juiz, em respeito ao princípio pelo qual o Estado deve utilizar-se da menor força possível, fixará medidas que sejam compatíveis com a gravidade da violação do direito de personalidade causada pela manifestação de opinião. A imposição de medida menos gravosa poderá ser alcançada, na maioria dos casos, com um simples di-reito de resposta. Afinal, sanções que maximizem a troca de idéias podem oferecer o desagravo buscado pela vítima cujo direito de personalidade foi atingido, ao mesmo tempo em que resguardam a liberdade de expressão, evitando-se o esvaziamento completo do núcleo essencial do direito de manifestação de opinião.

Assim, ao ponderar os valores no caso em questão, o juiz não pode deixar de considerar que, pelo menos em duas situações, as manifestações do jornalista se deram no âmbito do debate político. Seria interessante lembrar que a Suprema Corte ame-ricana tem entendimento pacífico de que a crítica ao governo e aos agentes públicos é o propósito central da Primeira Emenda�8. A Corte lembra que quando cidadãos são refreados em vociferar seu descontentamento por medo de retaliação do Estado, este fica menos propenso a prestar contas dos seus atos. Para muitos, este é o motivo por que alguns governos caem na tentação de suprimir a liberdade de expressão.

Evidentemente, os precedentes da Suprema Corte americana não devem ser simplesmente adotados em nossos tribunais. To-davia, devemos reconhecer que oferecem critérios interessantes de razoabilidade no caso de colisão entre a liberdade expressão e outros direitos fundamentais, afinal, esta corte tem sido chamada a resolver os grandes debates políticos nos Estados Unidos e continua atualizando o significado da doutrina a partir dos novos problemas apresentados�9.

Por fim, se consideramos que a liberdade de expressão, ao lado de outras liberdades políticas, é capaz de assegurar as condições funcionais do processo democrático, podemos concluir que a im-

A liberdade de imprensa como limite ao poder do estado

Page 21: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

�1Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

posição de constrangimentos sérios às manifestações da imprensa, por meio da condenação ao pagamento de indenização por dano moral em casos não alcançados pela Lei de Imprensa, com o pos-sível efeito de “diminuir a disposição futura dos afetados de fazer a sua revista como a fizeram até o momento, afetando claramente a liberdade de expressão”, consubstancia gravíssima intervenção, apta a proporcionar prejuízos importantes ao debate público.

Ora, se aceitamos que a verdade ou falsidade de uma idéia é matéria restrita ao julgamento individual dos cidadãos, que a liberdade de expressão ocupa lugar de honra na hierarquia de va-lores e que o Estado não pode impor restrições graves se existirem formas alternativas de regulação que protejam adequadamente o interesse público, há que buscar uma resposta do ordenamento jurídico que seja proporcional à violação decorrente da manifes-tação da imprensa. Logo, se a manifestação da imprensa se insere no debate público, visando ao controle do governo, o direito de resposta parece ser a melhor saída, pois configura intervenção leve que amplia o direito de informação, reconstitui os direitos de personalidade lesionados e não afeta a disposição da imprensa em continuar exercendo a sua atividade sem medo.

Notas

1 Resp 598.�81. Ementa. Processual civil. Ação civil pública. Dano ambiental. Dano moral coletivo. Necessária vinculação do dano moral à noção de dor, de sofrimento psíquico, de caráter individual. Incompatibilidade com a noção de transindividualidade (indeterminabilidade do sujeito passivo e indivisibilidade da ofensa e da reparação). Recurso Especial improvido.� Estes exemplos foram originalmente desenvolvidos por Wolfgang Rüfner, em Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, v. II, 1976, p. 45�, conforme in-formação de Gilmar Ferreira Mendes em “Colisão de Direitos Fundamentais”, Repertório de Jurisprudência IOB, 1ª quinzena de março de �00�, p. 185.� STF, MS ��576/DF.4 BARBOSA, Ruy. República: teoria e prática. Petrópolis: Vozes, 1978.5 LOCKE, John. Letter Concerning Toleration. Indianápolis:Hackett Publishing, 1983. Vale lembrar que, se Locke foi a referência filosófica da liberdade de opin-ião, sua doutrina jurídica foi formulada por William Blackstone (17��-1780), autor de “Commentaries on the Laws of England”.6 ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático. RDA, v. �17, pg. 55-66, jul/set 1999.7 Referência sem qualquer conotação de determinismo histórico.

8 O crime de discriminação está previsto na Lei 7.716/89 e a injúria racial na Lei 9.459/97.9 Schenck vs. U.S., �49 U.S. 47 (1919), Abrams vs. U.S., �50 U.S. 616, 6�7 (1919), Whitney vs. Califórnia, �74 U.S. �57, �7�-8 (19�7).10 BverfGE 7, 198 (�1�); 81, 1; 9�, �66.11 ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democráti-co. RDA, v. �17, pg. 55-66, jul/set 1999.1� BVerfGE 7, 198 (�1�).1� KELSEN, Hans. Wesen der Staatsgerichtsbarkeit. VVDStRL 5 (19�9), 5� ff. apud ALEXY, Robert. Direito Constitucional e Direito Ordinário. RT, vol. 799, pg. ��-51, maio �00�.14 O autor enfatiza que o Tribunal Constitucional alemão utiliza tal fórmula na resolução de quatro quintos dos casos em que são apresentadas queixas constitu-cionais contra decisões judiciais sobre direitos fundamentais.15 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coim-bra: Almedina, p. 4�.16 ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democráti-co. RDA, v. �17, pg. 55-66, jul/set 1999.17 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.18 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 19 MENDES, Gilmar Ferreira. Colisão de Direitos Fundamentais. São Paulo: Repertório de Jurisprudência IOB, 1ª quinzena de março de �00�, p. 185.�0 Na verdade, não se trata de ponderação, mas de evitação de intervenções in-devidas em direitos fundamentais.�1 MENDES,Gilmar. Colisões de Direitos Fundamentais na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Repertório de Jurisprudência IOB, 1ª quinzena de março de �00�, p. 185. Neste trabalho o autor cita decisões do Tri-bunal Constitucional alemão [BVerfGE �0, 17� (195) e 67, �1� (��8)], onde demonstra que “uma tentativa de sistematização da jurisprudência mostra que ela se orienta pelo estabelecimento de uma ponderação de bens tendo em vista o caso concreto, isto é, de uma ponderação que leve em conta todas as circunstâncias do caso em apreço”.�� BVerfGE 86,1.�� O Black Panther Party foi uma organização de afro-americanos fundada para promover os direitos civis e a auto-defesa. Foi extinta em meados dos anos 70.�4 RUTZICK, M.C., Offensive Language & the Evolution of First Amendment Protection, 9 Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review 1 (1974) apud TRIBE, Lawrence. American Constitutional Law, The Foudation Press, 1988, p. 8�6.�5 TRIBE, Lawrence. American Constitutional Law. The Foudation Press, 1988, p. 8�5-8�7.�6 EMERSON, Thomas. The System of Freedom of Expression. New York: Ran-dom House, 1970.�7 STF, HC 8�.4�4/RS.�8 New York Times vs. Sullivan (1964), �76 US �54-�70.�9 Street vs. New York (1969), Cohen vs. California (1971), R.A.V. vs. City of St. Paul (199�).

A liberdade de imprensa como limite ao poder do estado

Colabore com o Boletim dos Procuradores da República

Artigos terão preferência sobre peças processuais

Envie o seu artigo para publicação no Boletim,observando o seguinte: Os textos devem ser enviados aos endereços eletrônicos:

Os textos que excedam o tamanho máximo somente poderão serpublicados caso não haja textos dentro do padrão para completar a edição

[email protected], [email protected] e [email protected] máximo de 20.000 (vinte mil) caracteres,com espaços, contando com eventuais notas de fimde texto e referências bibliográficas

1

ausência de conteúdo ofensivo.2

tel. (61) 3313-5110

Page 22: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 78�� Janeiro / �008

Da estabilidade e do estágio probatório perante a avaliação periódica de desempenho

Da Estabilidade e do Estágio Probatório perante a Avaliação Periódica de Desempenho

Carlos Augusto Valenza DinizMestre em Direito Público pela UFPE / Procurador Federal / Professor dos Cursos

de Pós-graduação do Instituto dos Magistrados do DF – IMAG – e do Instituto de Cooperação e Assistência Técnica – Icat/UDF

Introdução

Muito se discute acerca da revogação do art. �0 da Lei 8.11�/90, que estabelece o prazo de �4 meses do estágio proba-tório, em face do advento da Emenda à Constituição nº 19/98, a qual, ao alterar o art. 41, majorou o prazo da estabilidade dos servidores públicos para três anos.

De fato, a Advocacia-Geral da União, após longo debate sobre o tema no âmbito da administração pública federal, no Parecer AC 17, de 22 de abril de 2004, fixou o entendimento de que o prazo do estágio probatório foi alterado para três anos. Esse entendimento foi posteriormente reafirmado no Parecer AGU/MC-01/2004, publicado no Diário Oficial de 16 de julho de 2004, o qual acabou por fundamentar a emissão do Ofício-Circular nº 16/SRH/MP, para toda a administração pública federal.

O fundamento central desse entendimento reside no fato de que os referidos institutos, embora distintos, teriam, ao final, o mesmo objetivo, e que, por força da determinação constitucional em majorar o prazo de estabilidade, teria, de acordo com uma interpretação sistemática, majorado o estágio probatório para três anos.

Esse entendimento tem o apoio da maioria da doutrina, como (MEIRELLES, �00�, p. 4�1), Edmir Netto de Araújo (Netto de Araújo, �005, pp. �17-�18), (DINIZ, �006, pp. 1�5-1�6), (DI PIETRO, �007, pp. 55�-55�), (GASPARINI, �00�, p. 190), (CARVALHO FILHO, �005, p. 5��), (MATTOS, �006, p. �0), (MODESTO, �00�), os quais entendem que o estágio probatório é uma fase para se atingir a estabilidade, tendo o prazo em tela sido majorado para três anos.

O Superior Tribunal de Justiça, por meio do acórdão relata-do pela Min. Laurita Vaz, entendeu, por sua vez, que o referido prazo continuaria a ser de �4 meses, na forma do art. �0 da Lei 8.11�/90, pois seriam o estágio probatório e a estabilidade institu-tos distintos.1 Entendimento esse compartilhado inicialmente pelo Ministério do Planejamento no Parecer/MP/Conjur/IC/nº 868, de � de julho de �001� e por pequena parte da doutrina�.

Esse entendimento do Superior Tribunal de Justiça vem sendo aplicado em diversos órgãos federais, contrariando o Parecer da AGU, que foi aprovado pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República, tendo, por força do art. art. 41 da Lei Complementar nº 73/93, eficácia vinculante para toda a administração pública

federal, direta e indireta, o que incluiria os órgãos da administra-ção pública direta dos poderes judiciário, legislativo e ainda do Ministério Público e do Tribunal de Contas.

Colocada a questão nestes termos, torna-se necessário discutir dois pontos. Primeiramente, qual a importância dessa discussão na atualidade, e o impacto que esses institutos terão em face da regulamentação da EC 19/98, principalmente em face da avaliação periódica de desempenho.

O instituto da avaliação periódica de desempenho, quando regulamentado, vai diminuir a importância do estágio probatório e da estabilidade, pois a avaliação deverá ser constante, ao longo da vida funcional do servidor e fundada em critérios que irão abranger os critérios hoje utilizados por esses institutos.

O presente artigo tem por finalidade discorrer acerca dessa avaliação e sobre essa relação com os institutos do estágio pro-batório e da estabilidade, procurando salientar as diferenças entre eles e os respectivos campos de atuação.

Por fim, busca-se apresentar alguns aspectos reputados im-prescindíveis para a correta regulamentação da avaliação especial de desempenho.

Do estágio probatório

Para Di Pietro, o estágio probatório é definido como “o período compreendido entre o início do exercício e a aquisição da estabi-lidade”, tendo por finalidade “apurar se o funcionário apresenta condições para o exercício do cargo, referentes à moralidade, assiduidade, disciplina e eficiência.” (DI PIETRO, 2007)

Para José dos Santos Carvalho Filho, estágio probatório “é o período dentro do qual o servidor é aferido quanto aos requisitos necessários para o desempenho do cargo, relativos ao interesse no serviço, adequação, disciplina, assiduidade e outros do mesmo gênero.” Argúi que o prazo do estágio probatório foi alterado pela Emenda à Constituição nº �0/98, pois “Primeiramente, não há como desatrelar o prazo de estabilidade do prazo do estágio probatório (nem nunca houve, aliás): se a estabilidade pressupõe a prova de aptidão do servidor, é lógico que essa prova deverá ser produzida no mesmo prazo de três anos. Em segundo lugar, o art. 41, § 4º, inovou apenas na parte em que prevê a opera-cionalização do sistema de prova, para tanto concebendo seja instituída comissão com o fim de proceder à avaliação especial

Page 23: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

��Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

Da estabilidade e do estágio probatório perante a avaliação periódica de desempenho

de desempenho do servidor. (...) Por último, deve notar-se que as normas estatutárias que ainda registram o prazo de dois anos de estágio (o que foi feito sob a égide do mandamento constitucional anterior) estão descompassadas com a regra vigente do art. 41, da CF.” (CARVALHO FILHO, �005).

No ROMS 1�49/RS, Relator Min. Jorge Scartezzini, o STJ afirmou que: “o estágio probatório é o lapso temporal que deve transpor o servidor público efetivo para alcançar a estabilidade no serviço público.”4

Com a devida vênia, para se estabelecer a correta distinção e definição dos institutos em tela, necessário se faz perquirir acerca do regime jurídico atribuído pelo direito positivo a cada um deles.

É a partir do direito positivo que se encontra a razão de ser desses institutos. E com base nessa análise não se pode chegar a outra conclusão senão a de que os institutos do estágio probatório e da estabilidade não se confundem.

O estagio probatório não é uma etapa da estabilidade

A primeira afirmação que se deve refutar é de que o estágio probatório é uma fase ou etapa para se atingir a estabilidade.

Ao contrário, enquanto o estágio probatório visa aferir as qualidades do servidor para o exercício de um cargo público para o qual o mesmo foi aprovado via concurso público, a estabilidade visa conferir ao servidor algumas prerrogativas, as quais foram listadas de forma exemplificativa no art. 41 da Constituição Fe-deral de 1988.

Assim, é possível que um servidor seja estável sem ter sido submetido a estágio probatório, conforme se pode verificar na redação do art. 19 do ADCT, não poden-do ser o estágio uma fase para aquisição da estabilidade. É bem verdade que a só existência dessa norma transitória, fundada muito mais em casuísmo típico da república brasileira, não poderia, por si só, justificar essa afirmativa.

Mas há outro argumento mais relevante. Os servidores estáveis podem vir a se sub-meter a novo estágio probatório, bastando, por exemplo, que sejam aprovados em novo concurso público. Nesse caso, o servidor já estável estaria sendo submetido a um novo estágio.

Nesse caso, o prazo do novo estágio probatório não seria o prazo estabelecido para fins de estabilidade, ou seja, de três anos, já que não haveria qualquer relação com a hipótese prevista no art. 41, da CF/88. Não haveria sentido em se exigir do servidor três anos de estágio probatório nessa hipótese, pois já haveria a estabilidade.

A afirmação em tela só teria validade quando se tratasse do primeiro cargo público a ser ocupado pelo servidor, quando então, após aprovação em concurso público e do respectivo estágio, have-ria a aquisição da estabilidade. Daí a justificativa de que os prazos sejam coincidentes. Mas essa regra, repita-se, só se aplicaria nessa

hipótese, não podendo a exceção ser colocada como regra. Quando o servidor já é estável e se submete a um novo concur-

so, o prazo do estágio probatório se justificará não mais como uma etapa da estabilidade, pois esse servidor pode ser estável, mas sim como uma forma de aferição da sua capacidade para o exercício do cargo, o que aliás é o conceito do estágio probatório.

Desta forma, o estágio probatório visa basicamente aferir as qualidades do servidor em razão do cargo para o qual o mesmo foi aprovado em concurso público. Esse deve ser o parâmetro.

Dos critérios de aferição

Para a aprovação no estágio probatório, o art. �0 da Lei 8.11�/90 estabelece os seguintes critérios de aferição: assiduidade, disciplina, capacidade de iniciativa, produtividade e responsabi-lidade.

No entanto, para aferir a estabilidade não há qualquer critério estabelecido em lei. Isto se dá porque a avaliação por comissão para fins de estabilidade somente surgiu com o advento da EC 19/98, a qual ainda não foi regulamentada nesse particular.

Daí a utilização, como se fosse possível fazê-lo, dos critérios utilizados para fins de estágio probatório.

No entanto, repita-se, os objetivos de um e de outro são com-pletamente distintos. O estágio probatório visa aferir as qualidades do servidor em face do cargo ocupado, ao passo que a estabilidade visa aferir as qualidades do servidor para o serviço público.

Há que se atentar ainda, para a regra do art. �47 da CF/88, a qual estabelece critérios diferenciados para aferição dos critérios

da estabilidade dos servidores que ocupam cargos típicos de estado.

Portanto, os critérios não podem ser os mesmos daqueles previstos no art. �0 da Lei 8.11�/90, pois esses, devido a sua ge-neralização, em nada contribuem para uma concretização da vontade constitucional de uma administração pautada pelos princípios da eficiência, da economicidade, da atuação conforme não apenas à lei, mas ao direito, da boa-fé, da probidade, da moralidade, do aprimoramento intelectual em face da

participação e aprovação em cursos etc. Veja-se que são conceitos trazidos pela constituição e que

devem ser utilizados para aferição da estabilidade. A constituição ao exigir um processo de avaliação para fins de estabilidade não busca apenas um servidor que tenha sido aprovado num concurso público, até mesmo com notas excepcionais, mais sim uma pessoa que, mediante um processo de avaliação objetiva e eficaz, possa demonstrar comprometimento com o serviço público.

Da competência

Para fins de estagio probatório, a lei exige uma regulamentação prevista na lei ou no regulamento do sistema de carreira, ao passo

“O estágio probatório visa aferir as qualidades do

servidor em face do cargo ocupado, ao passo que a estabilidade visa aferir as

qualidades do servidor para o serviço público.”

Page 24: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 78�4 Janeiro / �008

Da estabilidade e do estágio probatório perante a avaliação periódica de desempenho

que, para se atingir a estabilidade, a Constituição Federal exige a avaliação especial de desempenho por comissão constituída para essa finalidade.

Portanto, o estágio probatório não necessita ser, salvo se im-posto por lei ou no regulamento, promovido por uma comissão, podendo sê-lo por um servidor. O laudo relativo ao estágio deve ser submetido à posterior homologação da autoridade competente, quatro meses antes do prazo final, com vistas a, se for o caso, exonerar o servidor ou promover a sua aprovação no estágio.

O estágio fica muito restrito, portanto, à repartição do servidor, ao chefe. Veja-se que quem decide pela aprovação ou não do servidor no estágio probatório, salvo lei específica dispondo em contrário, seria a própria autoridade competente.

Já no que se refere à estabilidade, o § 4º do art. 41 da Constituição Federal apenas se referiu, como condição para aquisição da estabilidade, a avaliação especial de desem-penho, a ser promovida por uma comissão instituída para essa finalidade. Nesse caso, será a própria comissão que irá decidir pela estabilidade ou não.

Essa comissão não é, necessariamente, do órgão ou da entidade a que o servidor faz parte. Deve ser uma comissão especial, como diz a constituição, composta por pessoas que possam avaliar, de forma objetiva, o comportamento do servidor no período de três anos e concluir se o mesmo será ou não atingido pela estabilidade.

Das limitações durante o estágio probatório

A Lei 8.11�/90 não estabeleceu o rito para o processo de estabi-lidade, pois na sua redação originária essa se adquiria apenas pelo fator tempo, com o prazo de dois anos. O processo de estabilidade ainda depende de regulamentação por meio de lei ordinária.

A ausência de regulamentação do rito da estabilidade e dos critérios necessários ao seu atingimento não podem servir de impedimento para a sua aquisição. O § 4º do art. 41 da CF/88 deve ser considerado como sendo uma norma constitucional de eficácia limitada, não auto-aplicável, pois somente após a sua regulamentação é que se poderá concretizar essa vontade consti-tucional. Se assim não for, os servidores ficarão indefinidamente sem atingir a estabilidade, não sendo essa, definitivamente, a vontade constitucional.

A aprovação no estágio probatório apenas irá atestar que o servidor preenche os requisitos para o exercício daquele cargo. Após o prazo do estágio, o servidor não poderá mais ser recon-duzido ao cargo de origem, sendo ele estável, pois esse direito só pode ocorrer no prazo do estágio probatório5. Se reprovado, o servidor será exonerado6. Se aprovado, o servidor não será mais exonerado, mas poderá ser demitido, desde que lhe proporcione o direito à ampla defesa e do contraditório, por meio de processo administrativo disciplinar.

Importa salientar que a redação do art. 41 da Constituição Federal de 1988 preceitua que o servidor estável só perderá o cargo por meio de processo administrativo disciplinar. Parece que restou autorizado ao legislador infraconstitucional estabelecer que o ser-vidor, ainda não estável, venha a ser demitido sem essa exigência.7 De fato, nada impediria que o legislador assim estabelecesse, pois a constituição não vedou essa possibilidade.

No entanto, para os servidores públicos federais, que são regidos pela Lei 8.11�/90, o processo administrativo de sindicân-

cia não pode fundamentar uma demissão. Nos termos do art. 145 da Lei 8.11�/90, da sindicância somente poderá resultar o arquivamento do processo; a aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até �0 (trinta) dias ou a instauração de processo disciplinar. Portanto, não há pos-sibilidade do uso desse rito para demissão de servidores não estáveis.8

Esse debate é importante, pois a sindi-cância punitiva tem algumas singularidades em relação ao processo administrativo disciplinar do rito ordinário. Primeiro, por-que não exige que sejam três os membros da comissão. Segundo, porque o prazo de conclusão da sindicância é de �0 dias,

prorrogáveis por igual período, conforme parágrafo único do art. 145, da Lei 8.11�/90.

Além disso, o servidor ainda não aprovado em estágio proba-tório tem algumas restrições de direitos que não são aplicadas ao servidor já aprovado, como por exemplo, a proibição de cessão para outro órgão ou entidade, a não ser se o cargo de destino for de natureza especial, de provimento em comissão do Grupo-Di-reção e Assessoramento Superior –DAS, de níveis 6, 5 e 4, ou equivalentes.

Por fim, preceitua o § 4º do art. 20 da Lei 8.112/90 que os servidores não aprovados no estágio probatório somente farão jus às seguintes licenças: a) por motivo de doença em pessoa da família; b) por motivo de afastamento do cônjuge ou companheiro; c) para o serviço militar; d) para atividade política.

Não podem, portanto, gozar da licença para capacitação, pre-vista no art. 87. Essa exclusão é obvia, já que o período aquisitivo desse benéfico é de cinco anos, tempo esse que ultrapassaria o prazo do estágio.

Não podem igualmente gozar da licença para tratar de assun-tos particulares e para desempenho de mandato classista, pois em regra há um interesse da administração no imediato ingresso de servidores concursados nos seus cargos diante da previsível carência de pessoal, o que seria incompatível com a natureza dessas licenças.

O servidor em estágio probatório pode gozar dos seguintes afastamentos: a) para exercício de mandato eletivo; b) para exercício para Estudo ou Missão no Exterior; b) para participar de curso de formação decorrente de aprovação em concurso para outro cargo na Administração Pública Federal.

Já o servidor estável terá a prerrogativa de somente perder o

“Tendo em vista que os objetivos são distintos, nada

impede que os prazos também o sejam. Assim, até que seja alterado expressamente, o

prazo do estágio probatório é de 24 meses, para os

servidores públicos federais, ao passo que o prazo da

estabilidade é de 3 anos.“

Page 25: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

�5Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

Da estabilidade e do estágio probatório perante a avaliação periódica de desempenho

cargo em face sentença judicial transitada em julgado, mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa; ou ainda para cumprimento dos limites estabelecidos com despesa de pessoal, após a redução em pelo menos vinte por cento das despesas com cargo em comissão e da exoneração dos servidores não estáveis, na forma do § 4º do art. 169 da CF/88.

Além disso, a constituição ainda prevê como direitos do servidor estável a possi-bilidade de sua reintegração ao cargo an-teriormente ocupado, em face invalidação judicial da sua demissão. A recondução, aproveitamento ou disponibilidade do servidor estável ao cargo anteriormente ocupado, em caso de reintegração de outro servidor ao cargo atual. O direito a ser colocado em disponibilidade nos casos de extinção de cargo público, com a remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo.

Além desses direitos previstos na cons-tituição, a Lei 8.112/90 trouxe outros, também específicos para os servidores estáveis, quais sejam: a) a recondução do servidor estável ao cargo anteriormente ocupado, quando não aprovado em estágio probatório; b) a reversão do servidor estável, no interesse da administração, nos termos do inciso II, do art. �5; c) A rein-tegração do servidor estável também na hipótese de invalidação administrativa.

O direito a licença para tratamento de interesse particular, que somente poderia ser gozada por servidor estável, foi alterada pela Medida Provisória �.��5-45, de 4 de setembro de �001, a qual passou a exigir apenas que o servidor ocupe cargo efetivo e que não esteja em estágio probatório.

Por tudo isso, verifica-se de maneira muita clara, que o estágio probatório não se confunde com a estabilidade. São efetivamente institutos diversos, com finalidades diversas e com regime jurídico diversos.

Da avaliação periódica de desempenho

A avaliação periódica de desempenho, a deve ser regulamenta-da por lei complementar, é uma exigência constitucional que visa concretizar o princípio da eficiência na administração pública.

Os institutos do estágio probatório e da estabilidade não de-monstraram condições de bem avaliar os servidores públicos ao longo de suas vidas funcionais.

O aspecto temporal desses institutos acabou por restringir as possibilidade de avaliação, já reduzida a um único momento ou quando o servidor ingressa num novo cargo público (estágio), ou quando ingressa no serviço público (estabilidade). Fora daí,

apenas nas hipoteses previstas na Lei 8.11�/90 é que o servidor poderia perder o seu cargo, ou seja, somente quando se comete uma falta grave.

Assim, a perda do cargo público de provimento efetivo deixou de ser um instrumento do estado para a concretização dos direitos

fundamentais, para se transformar num fim em si mesmo. Conquistada a estabilidade, a demissão apenas seria possível acaso cometido uma falta disciplinar de natureza grave.

Com base no princípio da eficiência, e diante da necessidade institucional de contínua avaliação dos recursos humanos de qualquer instituição, a Emenda �0/98 andou muito bem em determinar a sujeição dos servidores públicos a uma avaliação periódica, inclusive com possibilidade de demissão de servidor quando houver essa insuficiência de desempenho.

A regulamentação dessa metéria exige lei complementar, devendo ser editada por cada um dos níveis federativos, ou seja, a União, Estados, Distrito Federal, e Muni-cípios.

Essa lei complementar deve não apenas arrolar os critérios objetivos aos quais estarão sujeitos os servi-dores públicos, mas também o rito processual, que lhes assegure o contraditório e ampla defesa.

Além disso, essa lei complementar deverá estabelecer critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor público estável que exerça atividades típicas de estado, na forma do art. �47 da CF/88.

Por fim, a avaliação deve ser periódica, ou seja, pelo menos uma por ano.

Conclusão

Conforme anotado, pode-se concluir que o ponto de partida para a análise dos institutos da estabilidade e do estágio probatório é o direito positivo, o qual não estabeleceu o estágio como uma fase para o atingimento da estabilidade.

A estabilidade é uma garantia direta do servidor, e indireta-mente da sociedade, de que esse possa exercer as suas atividades, quaisquer que sejam elas, sem qualquer espécie de pressão políti-ca, econômica ou temor social, de forma a concretizar os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade.

Essa garantia só se justifica, do ponto de vista teórico, para os cargos efetivos cujas atribuições sejam objetivamente reconhe-cidas como típicas de Estado, pois são os servidores que ocupam esses cargos que sofrem as citadas pressões.

Aos servidores públicos que exercem atividades meios, não típicas de estado, o regime adequado deve ser o celetista, o qual não confere o direito à estabilidade.

O servidor estável só pode perder o cargo nas hipóteses

“Com a EC 19/98, os institutos do estágio probatório e

da estabilidade perderam prestígio, já que a avaliação periódica de desempenho, a

qual possibilita a demissão do servidor, será contínua, com critérios diferenciados, que deverão exigir do servidor

muito mais do que uma simples aprovação no estágio probatório, ou a conquista da

estabilidade.“

Page 26: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 78�6 Janeiro / �008

Da estabilidade e do estágio probatório perante a avaliação periódica de desempenho

previstas na constituição, ou seja, por meio de decisão judicial transitada em julgada, por meio de processo administrativo disciplinar ou por meio de processo de avaliação periódica de desempenho.

O art. 169 da Constituição Federal de 1988 também arrolava como hipotese de perda do cargo pelo servidor público estável a sua extinção jusitificada pela diminuição de despesas.

O estágio probatório é um período de prova, no qual o servidor aprovado em concurso público e detentor de cargo efetivo, será avaliado acerca de critérios previamente estabelecidos em lei para exercício no cargo.

O estágio probatório não é uma fase para se atingir a estabilidade. O seu foco é o cargo público específico e não o ser-viço público. Daí porque a cada cargo público efetivo que venha a ocupar, o servidor público estável ou não, será submetido a um novo estágio probatório.

Tendo em vista que os objetivos são distintos, nada im-pede que os prazos também o sejam. Assim, até que seja alterado expressamente, o prazo do estágio probatório é de �4 meses, para os servidores públicos federais, ao passo que o prazo da estabili-dade é de � anos.

Os critérios a serem estabelecidos pela lei complementar devem ser objetivos e devem variar de acordo com a natureza do cargo ocupado pelo servidor. Não devem ser afastar muito da-queles já previstos no ordenamento jurídico, como pontualidade, assiduidade, participação, eficiência, resultados, economicidade, efetividade, moralidade, boa-fé etc, mas a preponderância desses critérios não devem ser iguais para todos os cargos.

Com a EC 19/98, os institutos do estágio probatório e da estabilidade perderam prestígio, já que a avaliação periódica de desempenho, a qual possibilita a demissão do servidor, será con-tínua, com critérios diferenciados, que deverão exigir do servidor muito mais do que uma simples aprovação no estágio probatório, ou a conqusita da estabilidade.

Notas1 (MS 9.�7�/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em �5.08.�004, DJ �0.09.�004 p. 18�) � Posteriormente alterado pelo Parecer/MP/CONJUR/RA/Nº 107�-�.6/�004.

� (ALEXANDRINO, Marcelo, �006, pp. �66-�67). 4 RMS 13649/RS, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUINTA TURMA, julgado em �1.11.�00�, DJ 17.0�.�00� p. �07.5 O direito de o servidor, aprovado em concurso público, estável, que presta novo concurso e, aprovado, é nomeado para cargo outro, retornar ao cargo anterior ocorre enquanto estiver sendo submetido ao estágio probatório no novo cargo: Lei 8.11�/90, art. �0, § �º. É que, enquanto não confirmado no estágio do novo cargo, não estará extinta a situação anterior.” (MS 24.543, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em �1-8-0�, DJ de 1�-9-0�). No mesmo sentido: MS 23.577, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 15-5-0�, DJ de 14-6-0�.6 AgRg no RMS 13.984/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em �6.06.�007, DJ 06.08.�007 p. 5�6.7 (MS 24.543, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em �1-8-0�, DJ de 1�-9-0�). No mesmo sentido: MS 23.577, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 15-5-0�, DJ de 14-6-0�.8 RE 217.579-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 16-1�-04, DJ de 4-�-05.

Referências bibliográficas

ALEXANDRINO, Marcelo. (�006). Direito Administrativo, 10ª edição. Niteroi: Impetus. CARVALHO FILHO, J. d. (�005). Manual de Direito Administrtivo, 14ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Iuris. DI PIETRO, M. S. (�007). Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. DINIZ, P. D. (�006). Lei 8.11�/90 Comentada, Regime jurídico dos servidores públicos civis da União e legislação complementar, 9ª edição. Brasília: Brasília Jurídica. GASPARINI, D. (�00�). Direito Administrativo, 8ª edição,. São Paulo: Saraiva. MATTOS, M. R. (�006). Lei 8.11�/90 interpretada e comentada: regime jurídico dos servidores públicos da União, �ª edição. Rio de Janeiro: América Jurídica. MEIRELLES, H. L. (�00�). Direito Administrativo Brasileiro, �8ª edição. São Paulo: Malheiros. MODESTO, P. (mar. �00�). Estágio probatório: questões controversas. Revista Diálogo Jurídico, CAJ, nº 1� , 5/6. Netto de Araújo, E. (�005). Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva.

Colabore com o Boletim dos Procuradores da República

Artigos terão preferência sobre peças processuais

Envie o seu artigo para publicação no Boletim,observando o seguinte: Os textos devem ser enviados aos endereços eletrônicos:

Os textos que excedam o tamanho máximo somente poderão serpublicados caso não haja textos dentro do padrão para completar a edição

[email protected], [email protected] e [email protected]. (61) 3313-5110

tamanho máximo de 20.000 (vinte mil) caracteres,com espaços, contando com eventuais notas de fimde texto e referências bibliográficas

1

ausência de conteúdo ofensivo.2

Page 27: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

�7Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

A inconstitucionalidade da “taxa de diploma”

A Inconstitucionalidade da “Taxa de Diploma”

Anselmo Henrique Cordeiro LopesProcurador da República em Rio Branco-AC

1. Introdução

O propósito do presente artigo é demonstrar a inconstitucio-nalidade da chamada “taxa de diploma”.

A referida “taxa” tem sido impugnada em diversos Estados do Brasil, pelo Ministério Público Federal, com êxito. A tese que vem prevalecendo é a de que a despesa com o diploma é uma despesa ordinária da instituição de ensino, sendo já coberta pelo pagamento das mensalidades, não podendo dar ensejo ao pagamento de “taxa”, que somente se legitimaria para arcar com despesas extraordinárias, que fogem do âmbito comum da relação de ensino.

Propomos, porém, que a quaestio iuris seja analisada não somente a partir das normas administrativas, ou mesmo das nor-mas legais, mas sim, e principalmente, pelo exame de preceitos constitucionais. Fomos levados a essa direção pela percepção de que diversos direitos fundamentais têm seu gozo embaraçado em razão da ausência de expedição do diploma de bacharel, direitos como os de exercício profissional e o de acesso a cargos públicos, por meio de concurso público.

O primeiro alicerce de nossa visão constitucional está na constatação de que o ensino superior é serviço público federal e de que as instituições privadas, quando exploram essa atividade, são delegadas desse serviço público federal e, como tais, devem ser responsabilizadas, mormente quando estorvam direitos funda-mentais do cidadão, atraindo, nesse caso, com muito mais razão, a indeclinável atuação do Ministério Público Federal.

2. O ensino superior como serviço público federal

Serviço público é noção que pode assumir definição subjetiva, formal ou material1, definições estas que tomam como parâmetro, respectivamente, a pessoa que presta o serviço, o regime em que este é prestado e o conteúdo que é explorado. Exemplificativa-mente, sem necessariamente segui-lo, expomos o conceito adotado por C. A. Bandeira de Mello, em definição predominantemente formal: “Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da cole-tividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito

Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais –, instituído em favor dos interessados definidos como públicos no sistema normativo”�.

Em conceito que consideramos subjetivo-formal, H. lopes Meirelles define serviço público como ”todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado”�.

Como conceito misto (subjetivo-formal-material), podemos citar o adotado por M. S. Z. di pietro, que considera como serviço público “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob o regime jurídico total ou parcialmente público”4.

Em qualquer acepção da expressão – subjetiva, formal, ma-terial –, o ensino superior deve ser compreendido como serviço público.

Satisfazendo o conceito subjetivo, devemos observar que o ensino é sempre prestado pelo Estado, seja diretamente, seja por seus delegados (que gozam de autorização do Poder Público). É o que está expresso no art. �09, II, do Diploma Constitucional, que impõe a autorização às instituições privadas para que possam exercer a atividade de ensino.

Logo, o serviço de ensino, quando praticado pela iniciativa privada, é ainda assim prestado indiretamente (por meio de ente delegado) pelo Poder Público, o que satisfaz o conceito subjetivo de serviço público.

A acepção formal também é satisfeita pela percepção de que o serviço de ensino é prestado sob a autorização do Poder Público, o que atrai, inequivocamente, o regime de direito público.

Já caracterização material de serviço público decorre da rea-lidade positivada no art. �05 da Constituição de nossa República, que enuncia a educação como condição para o “pleno desenvol-vimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Uma vez reconhecido o ensino superior, ainda quando prestado por instituições privadas, como serviço público, sua caracterização como serviço público “federal” decorre do art. �11, §1º, da Cons-tituição em conjugação com o art. 16, II, da Lei 9.�94/96.

Conclui-se, nessas bases, que o ensino superior, mesmo que prestado pela iniciativa privada, é serviço público federal, essen-cial5, constatação esta que nos conduz a uma série doutras ilações que apresentaremos a seguir.

Page 28: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 78�8 Janeiro / �008

3. A natureza do diploma

A prestação do serviço de ensino superior tem como fim es-perado a conclusão do curso; é dizer, o fim ordinário da relação pública que se estabelece entre a instituição de ensino e o aluno é a conclusão do curso superior e a conseqüente expedição de diploma em favor daquele. Não se pode conceber esse evento como acidental à relação de ensino.

Nesse quadro, o diploma surge como documento que comprova o término bem-sucedido do curso superior pelo aluno e seu nas-cimento como bacharel. Sua função é exatamente esta: declarar o status da relação do cidadão com o serviço público de ensino superior, atestando sua condição de bacharel.

O diploma, dessa forma, deve ser encarado como uma certidão da emancipação cultural do cidadão, emancipação esta que, ao lado da igualdade de oportunidades, da participação e da indivi-dualização, “são componentes do direito à educação e à cultura, e dimensões concretas implícitas no princípio da democracia cultural”, na lição de J. J. GoMes Canotilho6.

Em síntese: o diploma é documento que certifica a situação final do estudante perante o serviço público federal de ensino superior, atestando sua condição de bacharel e de emancipado cultural.

4. A imunidade constitucional – tributária e administrativa

Como bem anota P. de Barros Carvalho7, há no rol do art. 5º

da Constituição da República imunidade objetiva que pouco é per-cebida por grande parte dos estudiosos. Trata-se da norma contida no inciso XXXIV, b, segundo o qual “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas (...) a obtenção de certidões em repartições públicas, para a defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal”.

Há aqui três noções que precisam ser trabalhadas: “certidões”, “repartições pú-blicas” e “esclarecimento de situações de interesse pessoal”.

Por “certidões” deve-se entender todo o tipo de documento que serve para atestar uma situação ou um status específico. Já por “repartições públicas” deve-se entender, em verdade, o serviço público em sentido institucional. Assim, quando se menciona “certidões em repartições públicas”, quer-se, verdadeiramente, fazer referência a qualquer declaração – atestado – prestada pelo Poder Público, ou seus delegados, aos cidadãos, que tenha por objeto a situação destes com dado serviço público em espe-cial. Na mesma linha de raciocínio, “esclarecimento de situações de interesse pessoal” deve ser compreendido como certificação

da relação do cidadão com o serviço público ou apresentação de qualquer dado que resulte dessa relação.

A orientação que aqui propomos deve prevalecer pela prima-zia que nossa ordem constitucional confere ao critério objetivo do serviço público em relação ao critério subjetivo da pessoa que exerce a atividade. Essa eleição é apreendida ao longo do texto constitucional. Assim, por exemplo, no art. �7, § 6º, da Lei Primeira, é do fato de prestar serviços públicos que decorre a res-ponsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito privado. Na mesma linha, nos arts. 17� a 175 do Diploma Magno, percebe-se claramente a eleição do critério de exploração de serviço público ou de atividade econômica em sentido estrito como definidor do regime jurídico a que estão sujeitas as pessoas jurídicas da Administração Indireta e as demais colaboradoras com o Poder Público. O mesmo raciocínio é válido para o art. 150, § �º, da Carta Máxima, que trata de imunidade tributária.

Enfim, a natureza do serviço prestado – critério objetivo – deve prevalecer sobre a identidade da pessoa que presta – critério subjetivo –, devendo a expressão “repartição pública”, assim, ser compreendida como “ente prestador de serviço público”.

Há porém um dado que passou despercebido pelo tributarista antes citado. É que a Constituição não só proíbe a remuneração da certificação de sua situação pessoal em face do serviço público quando prevista em lei – em sentido material –, vale dizer, não só proíbe a instituição de “taxa” em sentido tributário próprio, como também impede a cobrança de “tarifa”, “preço público”8, isto é, de contraprestação pelo serviço público que tenha fonte em negócio jurídico – em vez de lei. Ou seja: a imunidade prevista no art. 5º, XXXIV, b, da Lei Maior é não só tributária (pois impede a cria-ção de tributo: taxa), como também é imunidade administrativa, negocial (pois impede a criação de preço público).

O signo “taxa” aí colhido não pode ser interpretado de modo estritamente literal, devendo ceder o método literal para o tele-ológico, que prestigia a ratio legis. Assim, se o Constituinte proibiu que lei estabeleça contraprestação pelo atestado de situação pessoal perante o serviço público, a fortiori, também proibiu que a mesma prestação pecuniária seja criada por negócio jurídi-co, que deve se curvar à própria lei. Tal raciocínio poderia não valer absolutamente se estivéssemos diante de relação jurídica inserida em regime de direito privado, pois que, nesse caso, a autonomia privada tem importância similar à supremacia da lei. Contudo, tratando-se de relação de direito público, incidente necessariamente em razão da presença de serviço público, a lei é fonte de legitimidade e validade extrema-mente superior à vontade negocial, que se recolhe a segundo plano. É o que impõe a soberania da lei no plano administrativo,

de direito público.Portanto, o art. 5º, XXXIV, b, da Constituição alcança não

A inconstitucionalidade da “taxa de diploma”

“...a conclusão do curso superior, com o conseqüente

alcance da condição de bacharel, proporciona a emancipação cultural da pessoa, significando, nas palavras de J. J GOMES CANOTILHO, ‘progresso

social e participação democrática’. O diploma, nesse

contexto, deve ser expedido como reconhecimento dessa

emancipação, dotando o cidadão de maior participação

cívica.”

Page 29: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

�9Janeiro / �008 Boletim dos Procuradores da República n° 78

só as taxas em sentido estrito como também os preços públicos – tarifas.

Considerando que o diploma é documento – “certidão” – que atesta a situação do estudante-cidadão diante do ensino superior (serviço público) deve-se reconhecer a impossibilidade de se exigir taxa ou tarifa do bacharel para que receba tal certificação de sua situação pessoal. Vale dizer, a chamada “taxa de diploma” não alcança validade nem quando é instituída em lei (caso em que seria taxa tributária) e muito menos quando tem supedâneo em negócio jurídico (caso em que seria preço público).

Só esse fundamento já é suficiente para determinar a incons-titucionalidade da chamada “taxa para expedição de diploma”, seja qual for sua fonte normativa. Ao lado desse fundamento, não obstante, há ainda outros que também apontam a invalidade de tal exação.

5. O diploma como condição para o exercício de direitos constitucionais

O diploma, ao certificar a situação do graduado perante o serviço público federal de ensino superior, atestando sua condição de bacharel, acaba por ser requisito para o exercício de diversos direitos do cidadão.

A necessidade do diploma é correlata à importância da educação. Portanto, faz-se mister compreender que a educação, além de ser serviço público, em sua faceta obje-tiva, é também direito fundamental e direito humano9, em sua faceta subjetiva. O direito fundamental à educação, por sua vez, ata-se a diversos outros direitos fundamentais (além doutros não-fundamentais). Dentro do âmbito desses direitos fundamentais é que deve ser compreendido o valor do diploma de bacharel.

Como primeiro direito fundamental relacionado ao diploma de curso superior, a liberdade pública de exercício profissional, prevista no art. 5º, XIII, da Constituição da República, requer que sejam “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabe-lecer”. Entre essas condições previstas em lei, nas mais diversas profissões, está a conclusão do bacharelado, a qual deverá ser atestada pelo diploma. Dessarte, quando este não é tempestivamente expedido, o gozo do direito ao exercício profissional – direito este fundamental – resta comprometido.

Demais disso, ainda quando o ofício almejado pela pessoa não demanda, juridicamente, a conclusão de curso superior, a condição de bacharel alavanca as possibilidades de emprego do trabalhador. Nessa ótica, a situação de bacharel serve de meio material para a efetivação do direito constitucional ao trabalho, previsto no art. 6º, caput, do Texto Maior. Esse fato, que pode ser colhido da realidade social, não passou despercebido pelo Poder Constituinte, que positivou, como finalidade fundamental da educação, a qualificação para o trabalho (art. 205, CRFB).

Deve-se ainda observar que a educação também é meio de preparo para o exercício da cidadania, como está reconhecido no caput do art. �05 da Lei das Leis. Nesse sentido, a conclusão do bacharelado é relevante não somente para possibilitar o exercício profissional e a obtenção de trabalho lícito, como também para possibilitar maior participação do cidadão nos assuntos da nação, dando-lhe voz e garantindo-lhe audiência. Noutro dizer, a conclu-são do curso superior, com o conseqüente alcance da condição de bacharel, proporciona a emancipação cultural da pessoa, signifi-cando, nas palavras de J. J GoMes Canotilho, “progresso social e participação democrática”10. O diploma, nesse contexto, deve ser expedido como reconhecimento dessa emancipação, dotando o cidadão de maior participação cívica.

O direito de participação do cidadão no Estado, perante o ingresso em cargos públicos (art. �7, I, CRFB), também pode ser obstruído pela ausência de expedição de diploma, em concursos públicos que exigem dos candidatos o grau de bacharel. Nesses casos, a ausência de pagamento de “taxa” acaba impedindo o bacharel de participar de certames quando, em essência, preenche todos os requisitos previstos em lei.

O direito à prisão especial também é estorvado em razão da ausência da expedição do diploma. De fato, a legislação reconhece ao “diplomado” o direito a condições especiais de cárcere (art. �95 do CPP).

Como se pode perceber, diversos direi-tos constitucionais e legais do cidadão têm seu gozo impedido quando deixa de ser expedido o diploma de bacharel. Diante de tal constatação, não se pode admitir que o delegado de serviço público, que é a instituição de ensino superior, possa se recusar a fornecer o diploma em razão da mera ausência do pagamento de taxa ou tarifa. Deveras, considerando a grandeza dos direitos e dos interesses envolvidos, não se pode reconhecer validade à prática de exigir do cidadão o pagamento de contra-prestação para a declaração daquilo que lhe é de direito: a certificação de sua condição de bacharel.

A constatação da presença desses direi-tos fundamentais como vinculados à detenção do diploma também serve para prestigiar a interpretação que demanda a incidência, ao caso, da imunidade contida no art. 5º, XXXIV, b, da Constituição da República.

6. Conclusão

A partir da observação da realidade que envolve a prestação do serviço de ensino superior e o diploma, constatamos nesse estudo que: (i) o ensino superior, ainda quando prestado por instituições privadas, por autorização do Poder Público federal, é serviço pú-blico federal; (ii) o diploma tem a função de certificar a situação

A inconstitucionalidade da “taxa de diploma”

“...a não-expedição do diploma, impedindo o bacharel

de provar sua condição, impede o exercício de diversos

direitos constitucionais e legais, como, diretamente,

o direito de exercício profissional, o direito ao

trabalho, o direito de acesso a vários cargos públicos, por meio de concurso, e o

direito à prisão especial, e, indiretamente, diversos outros

direitos sociais.”

Page 30: A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO LIMITE AO PODER ... - …anpr.org.br/novo/files/boletim_78.pdf · Boletim dos Procuradores da República n° 78 Janeiro / 008 expediente Fundação Procurador

Boletim dos Procuradores da República n° 78�0 Janeiro / �008

A inconstitucionalidade da “taxa de diploma”

do cidadão perante o serviço público federal de ensino superior, declarando sua condição de bacharel; (iii) o cidadão deve estar imune de qualquer taxa ou tarifa (preço público) pela certificação de sua posição perante o serviço público; (iv) a não-expedição do diploma, impedindo o bacharel de provar sua condição, impede o exercício de diversos direitos constitucionais e legais, como, diretamente, o direito de exercício profissional, o direito ao tra-balho, o direito de acesso a vários cargos públicos, por meio de concurso, e o direito à prisão especial, e, indiretamente, diversos outros direitos sociais.

A partir dessas constatações, podemos concluir que a chamada “taxa de diploma” (a qual, em essência, é preço público, pois não tem previsão legal) é definitivamente inconstitucional, devendo ser absolutamente expurgada da realidade acadêmica do Brasil. Concluímos, ainda, que o condicionamento da expedição do diploma ao pagamento desse preço espúrio afronta, diretamente, diversos preceitos fundamentais de nossa Carta Republicana, legitimando, inclusive, o ajuizamento de argüição de descum-primento de preceito fundamental, com forte em art. 10�, § �º, e na Lei 9.88�/99.

Por fim, provocamos o leitor a perceber que o problema das “taxas de diplomas” não se resume à aplicação de regras de defesa do consumidor (apesar de não as excluir) ou à análise das normas gerais expedidas pela Administração Pública (que também não precisam ser desdenhadas). As normas legais e administrativas po-dem até ser alteradas, mas devem permanecer íntegros os direitos constitucionais do cidadão, os quais compõem, inegavelmente, o núcleo irreformável da Constituição.

Notas1 Cf. C. A. Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, �1ª ed., São Paulo, Saraiva, �006, p. 64�, nota 4.� Ibidem.� Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 1996, p. �96.4 Direito Administrativo, 16 ª ed., São Paulo, Atlas, �00�, p. 99.5 J. afonso da silva reconhece o serviço de ensino como “serviço público es-sencial”, vale dizer, como serviço público de importância excepcional em nosso sistema constitucional, que, ainda quando prestado por instituições privadas, permanece sob a titularidade do Estado. Cf. Curso de Direito Constitucional Brasileiro, ��ª ed., São Paulo, Malheiros, �004, p. 818. 6 Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Ed., Coimbra, Almedina,

�00�, p. �49.7 Curso de Direito Tributário, 1�ª ed., São Paulo, Saraiva, �000, p. 189.8 Sobre a distinção entre “taxa”, enquanto espécie tributária, e “tarifa” ou “preço público”, como contraprestações decorrentes de negócio jurídico, conferir: Ri-cardo Lobo Torres, Curso de Direito Financeiro e Tributário, 11ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, �004, pp. 186-8.9 A concepção do direito à educação como direito humano (ou “direito do homem”) pode ser conferida pela presença dos cinco adjetivos essenciais enun-ciados por Robert alexy: universal, moral, fundamental, preferencial e abstrato. Cf. Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático, RDA, v. �17, jul/set-1999, pp. 58-6�. Ainda sobre a caracterização do direito humano, cf. A. H. Cordeiro lopes, A Força Normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e a Emenda Constitucional nº 45/2004, disponível em <http://jus�.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6157>, data de acesso: �9.10.�007.10 Ibidem.

Referências bibliográficas

afonso da silva, José, Curso de Direito Constitucional Brasileiro, ��ª ed., São Paulo, Malheiros, �004.alexy, Robert, Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático, RDA, v. �17, jul/set-1999, pp. 55-66.Bandeira de Mello, Celso Antônio, Curso de Direito Administrativo, �1ª ed., São Paulo, Saraiva, �006.Barros Carvalho, Paulo de, Curso de Direito Tributário, 1�ª ed., São Paulo, Saraiva, �000.Cordeiro lopes, Anselmo Henrique, A Força Normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e a Emenda Constitucional nº 45/2004, disponível em <http://jus�.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6157>, data de acesso: �9.10.�007.di pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 16 ª ed., São Paulo, Atlas, �00�.GoMes Canotilho, José Joaquim, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Ed., Coimbra, Almedina, �00�.loBo torres, Ricardo, Curso de Direito Financeiro e Tributário, 11ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, �004.lopes Meirelles, Hely, Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 1996.

Colabore com o Boletim dos Procuradores da República

Artigos terão preferência sobre peças processuais

Envie o seu artigo para publicação no Boletim,observando o seguinte: Os textos devem ser enviados aos endereços eletrônicos:

Os textos que excedam o tamanho máximo somente poderão serpublicados caso não haja textos dentro do padrão para completar a edição

[email protected], [email protected] e [email protected]. (61) 3313-5110

tamanho máximo de 20.000 (vinte mil) caracteres,com espaços, contando com eventuais notas de fimde texto e referências bibliográficas

1

ausência de conteúdo ofensivo.2