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A Liga Progressista e a Construção do
Estado Imperial, 1860-1868
Lucas Roahny
CURITIBA AGOSTO DE 2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS (DECISO)
LUCAS ROAHNY
A LIGA PROGRESSISTA E A CONSTRUÇÃO DO
ESTADO IMPERIAL, 1860-1868
Monografia apresentada ao Curso de Graduação
em Ciências Sociais, Setor de Ciências
Humanas, Universidade Federal do Paraná,
como requisito parcial à obtenção do título de
Bacharel em Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Alexandro Dantas Trindade
CURITIBA
2013
Para meus pais
Agradecimentos
Muitos foram aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização
deste trabalho. Deixo aqui a minha mais sincera gratidão aos amigos e amigas do curso de
Ciências Sociais com os quais convivi durante o decorrer dessa caminhada, especialmente aos
colegas do Programa de Educação Tutorial, grupo no qual tive meu primeiro contato com o
universo da pesquisa acadêmica. Não poderia deixar de mencionar os companheiros(as) que
comigo compartilham o mesmo GRR (2009), sem cuja companhia, amizade e ponderações ao
longo desses quatro anos e meio nada disso seria concebível.
Àqueles de fora da área cultural reitoriana, agradeço especialmente a F. M. e H. L. R.
que, ao suportarem muitas vezes meu “sociologuês” grosseiro, auxiliaram-me na difícil tarefa
de aprender a traduzir o conhecimento especializado numa linguagem mais acessível – e de
encontrar aí o verdadeiro valor de todo o saber possível.
Por fim, mas não menos importante: agradeço aos professores(as) sem cujo auxílio,
atenção e, principalmente, paciência, meu crescimento intelectual teria sido nulo – Luís
Claudio Symanski, por ter me introduzido na pesquisa arqueológica (pois se hoje dela me
distancio, não o faço sem carregar para sempre os seus vestígios); Simone Meucci, pelos anos
compartilhados no Programa de Educação Tutorial; Alexandro Trindade, cuja orientação
dedicada possibilitou a realização desta pesquisa; Carlos Lima, por ser quem primeiramente
me incentivou – sem sabê-lo – a transpor as fronteiras disciplinares entre a história e a
sociologia.
Resumo
Este trabalho tem como objetivo empreender uma análise da trajetória da Liga (e depois
Partido) Progressista do Império, articulada entre os anos de 1860 e 1868 por indivíduos
provenientes dos dois partidos tradicionais (Conservador e Liberal) do sistema político
monárquico. Busca-se delinear as condições que permitiram a emergência de uma coligação
tecida na contramão do dualismo partidário do Império, bem como o sentido dessa nova
agremiação no contexto político da década de 1860. A trajetória da Liga é aqui iluminada
através da diferenciação entre seus objetivos e aqueles expressos na atuação dos estadistas
“saquaremas” (i.e., conservadores) que estiveram à frente da direção do Estado imperial a
partir de 1837, num movimento que ficou conhecido como a política do “regresso”. Por meio
deste contraponto, foi possível identificar que a especificidade da alternativa progressista não
residia na defesa de um projeto nacional que rompesse com o status quo monárquico
consolidado pelos saquaremas; ao contrário, ela visava contribuir para o seu aperfeiçoamento
mediante um reformismo de natureza jurídica capaz de neutralizar os “excessos” da obra
regressista e garantir a continuidade da tarefa de construção do Estado nacional brasileiro,
adequando o exercício da autoridade local com as exigências do poder central que emanava
da Corte. O objetivo de avançar o processo de integração das elites provinciais aos quadros
institucionais do Estado foi, todavia, limitado pela incapacidade crônica da Liga em
operacionalizar a maioria parlamentar que deteve a partir de 1864, sendo definitivamente
enterrado quando a própria tarefa de aperfeiçoamento do consenso político entre a classe
proprietária tornou-se inócua diante do enfraquecimento de um dos principais laços que
atavam os interesses senhoriais ao status quo monárquico: a perpetuação do regime de
trabalho escravo.
Palavras-chave
Brasil monárquico; história política do Império; Liga Progressista.
Abstract
This work pursues a historical analysis of the Progressista League (or Party) of the
Empire, which was articulated between the years of 1860 and 1868 by politicians of both
traditional parties (Liberal and Conservative) from the Brazilian monarchy. Here it is sketched
out the conditions that made it possible the emergence of a coalition contrary to the bipartisan
structure of the imperial political system, as well as the significance of this new party to the
political context of the 1860’s. The League’s history is glimpsed through the difference
outlined between its objectives and those particular to the saquaremas (i.e., conservatives)
statesmen that were in head of the imperial government since 1837, associating themselves
with a political movement known as “regresso”. By this contrast it was possible to verify that
the specificity of the progressista alternative did not lie in the formulation of a national
project contrary to the imperial establishment consolidated by the saquaremas; in actual fact,
the progressistas aimed to contribute for the improvement of that establishment through a
legal reformism capable of neutralize the “excesses” associated with the regressista politics,
in order to assure the continuity of the state building task in which the exercise of local
authority should be made compatible with the demands of the central power emanating from
the imperial court. Nonetheless, the objective of advancing the process of provincial elite’s
integration inside the state’s framework was limited by the League’s inability to manipulate
its parliamentary majority emerged in 1864; moreover, this objective was definitely
annihilated when the task itself of improving the political consensus between the imperial
elite became meaningless as one of the strongest ties linking the ruling classes’ interests to the
imperial establishment started to get loose: the slave work system maintenance.
Key-words
Brazilian monarchy; Empire of Brazil (political history); Progressista League.
Sumário
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 08
1. DA CONCILIAÇÃO AO PROGRESSO ................................................................ 12
1.1 A CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO NACIONAL E SEUS
DIVIDENDOS ............................................................................................................ 13
1.2 A POLÍTICA DA CONCILIAÇÃO: PRÉ-HISTÓRIA DA LIGA
PROGRESSISTA ........................................................................................................ 21
2. A FORMAÇÃO DA LIGA PROGRESSISTA ....................................................... 32
2.1 O MINISTÉRIO FERRAZ E AS ELEIÇÕES DE 1860 ............................................. 33
2.2 DE CAXIAS A ZACARIAS: A TRANSFORMAÇÃO DA LIGA
EM PARTIDO ............................................................................................................ 56
3. O ESCOPO DO PROGRESSO ................................................................................ 70
3.1 OLINDA E O INÍCIO DO PREDOMÍNIO PROGRESSISTA .................................. 70
3.2 O PARTIDO PROGRESSISTA E SEU PROGRAMA .............................................. 75
4. OS LIMITES DO PROGRESSO ............................................................................. 89
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 101
ANEXO .......................................................................................................................... 106
8
Introdução
Na trajetória política do Brasil monárquico, a década de 1860 aparece como uma
espécie de ponte que liga duas extremidades muito distintas: de um lado, a experiência de
estabilidade sociopolítica construída nos anos 1840 e desfrutada nos anos que se seguem; de
outro, o declínio da legitimidade do próprio regime que, de 1870 em diante, se vê contestado
por uma miríade de posições críticas ao status quo monárquico, cujas demandas o sistema
político do Império não é capaz de absorver. Neste sentido, a dinâmica política na década de
1860 pode ser reveladora dos destinos do Império.
Em termos mais precisos, a emergência e os desdobramentos desta “nova” agremiação
partidária – a “Liga” (e depois Partido) Progressista do Império –, composta por uma
coligação entre indivíduos provenientes do Partido Liberal e a dissidência formada no seio do
Partido Conservador, entre 1862 e 1868, fazem a conexão entre o apogeu político do Segundo
Reinado e o princípio de seu declínio. O horizonte de atuação dos progressistas, as
transformações pensadas para o aperfeiçoamento do arranjo institucional da monarquia
brasileira, e também o malogro de seu projeto, constituem o objeto desta pesquisa.
Assim é que, num primeiro momento, procuro esboçar as condições gerais que tornaram
possível a emergência da Liga Progressista. No Capítulo 1 debruço-me sobre o processo de
consolidação do Estado nacional brasileiro, com especial atenção aos eventos que permitiram
a cristalização da primeira condição necessária ao surgimento da Liga: a quebra do
antagonismo partidário entre liberais (conhecidos como “luzias”) e conservadores (também
chamados de “saquaremas”), elemento fundamental para que uma aliança entre indivíduos
provenientes de ambos os grupos fosse selada. A abordagem de “sobrevoo” que faço a
respeito dos eventos relacionados a esse processo que tiveram lugar entre 1830 e 1840 é
contrabalanceada pelo olhar mais detido sobre a década seguinte, na qual os antecedentes
imediatos da situação progressista são localizados. Com efeito, a tendência política de
condução do Estado imperial na contramão do dualismo partidário (saquaremas x luzias),
característica perseguida pelos progressistas, é identificada como uma herança recebida de um
movimento político anterior: a chamada “conciliação” partidária da década de 1850, iniciada
pelo marquês de Paraná em 1853 e continuada por seus “discípulos” políticos após sua morte
prematura três anos mais tarde.
Posteriormente a isso, procuro investigar o processo de formação da Liga Progressista.
Nesse ponto distancio-me ligeiramente do marco historiográfico tradicional que vê no
intervalo entre as sessões legislativas de 1861 e 1862 os primeiros passos da Liga (e.g.,
9
HOLANDA, 2010). Procuro demonstrar no Capítulo 2 que a possibilidade de uma articulação
entre liberais e conservadores dissidentes (possibilidade que se mostrou viável através da
experiência da conciliação), apareceu antes disso, mais precisamente na sessão legislativa de
1860 e, de modo especial, durante as disputas eleitorais (para a vereança e a deputação)
ocorridas naquele ano. Para elucidar esses pontos, apoio-me na análise da cobertura feita pela
imprensa sobre os pleitos de 1860, enfatizando o papel das folhas liberais no processo de
rearticulação das posições políticas fora da órbita de polarização ente saquaremas e luzias,
após o fim do projeto conciliador que também havia buscado tal objetivo. Em seguida,
concentro-me sobre os conflitos políticos que se desenrolam na Câmara após a renovação
sofrida por ocasião das eleições, conflitos que acabam por precipitar a transformação da liga
oposicionista em partido político e conduzem-na à (efêmera) experiência de poder sob a
liderança de Zacarias de Góis e Vasconcelos no ano de 1862.
A situação de conflito constante entre saquaremas e progressistas no parlamento do
Império, depois que a Liga ultrapassa a condição de coligação de oposição para disputar o
papel de protagonista na direção do Estado, tem seu fim no ano de 1864, quando as eleições
do ano anterior conduzem à Câmara uma ampla maioria favorável aos novos atores
partidários de então. Os anos de 1863 e 1864 consolidam, pois, a preeminência da Liga no
parlamento, ratificando a sua transformação num partido de fato – o Partido Progressista. Esse
processo é acompanhado pelo primeiro exercício de explicitação de ideias políticas associadas
a um dos partidos do Império: em 1864 vem a público o programa do Partido Progressista, o
qual foi concebido um ano antes, por ocasião do pleito de 1863. Documento privilegiado para
que se compreendam as intenções básicas que moviam os progressistas a se contrapor à
hegemonia política saquarema1, dedico o terceiro capítulo deste trabalho a uma análise a
respeito das implicações daquele programa no que tange às possibilidades de ação que se
apresentavam à classe política imperial nos anos iniciais da década de 1860.
O objetivo de clarificar a natureza da alternativa progressista em relação à atuação dos
estadistas saquaremas levou-me a adotar uma abordagem comparativa, cujo foco é menos os
pontos específicos do programa em questão do que a contraposição das ideias ali contidas
com o horizonte de atuação dos dois partidos tradicionais do Império. Assim, a reflexão sobre
os objetivos concretos da política progressista visa também contribuir para a discussão a
respeito das diferenças existentes entre liberais e conservadores no Império do Brasil –
1 Pela importância desse texto resolvi reproduzi-lo na íntegra, conforme ele aparece na obra de Américo
Brasiliense (1878). O programa encontra-se na seção “Anexo”.
10
partindo do pressuposto de que as divergências existiam e eram significativas para os rumos
futuros da tarefa de construção do Estado imperial.
No quarto e último capítulo procuro delinear os obstáculos que se colocaram frente à
concretização da opção progressista. Interessa-me aqui entender como as lideranças do novo
partido, a despeito do predomínio parlamentar que detiveram entre 1864 e 1868, foram
incapazes de avançar o processo de aperfeiçoamento das instituições estatais para além dos
marcos consolidados pelos conservadores no período que antecede a emergência da
conciliação (1837-1850). Essa ineficácia associada aos ministérios organizados durante a
maioria progressista na Câmara fez com que nenhuma das bandeiras encampadas por ambos
os grupos coligados (liberais e conservadores “moderados”) fosse levada adiante. A
incapacidade dos progressistas em operacionalizar sua própria base de apoio é trabalhada no
Capítulo 4 sob a perspectiva de duas hipóteses que contribuem para iluminar o próprio
esfacelamento do Partido Progressista no ano de 1868: 1) o caráter incompleto da
transformação da liga oposicionista em partido efetivo, expresso na ausência de lideranças
provenientes de ambos os grupos que compunham a situação progressista e que poderiam
impelir as facções a uma maior unidade de ação – fato que precipitou o rompimento entre
liberais e conservadores dissidentes, e 2) o avanço progressivo da Coroa sobre o terreno
reservado à disputa partidária, desestabilizando as bases sobre as quais se assentava a política
monárquica – ameaça que passa a ser sentida com a insistência de d. Pedro II em dar
encaminhamento ao problema da escravidão no Brasil. A introdução deste tema na Fala do
Trono de 1867 (reiterada na Fala do ano seguinte), juntamente com as discussões no Conselho
de Estado sobre a emancipação gradual da escravidão e a iniciativa de libertação dos escravos
da nação para servirem na Guerra do Paraguai, rompia o consenso escravista tecido entre a
classe proprietária, do qual a instituição monárquica era, afinal, a grande fiadora. Nesse
contexto, o projeto progressista de aperfeiçoamento do Estado imperial perdia seu sentido: a
ideia de avançar o processo de integração das elites regionais aos quadros do Estado tinha
como fundamento reforçar o controle da classe proprietária sobre os rumos da política – o que
passou a ser ameaçado diretamente na medida em que o imperador encaminhava o tema da
escravidão à margem da instituição parlamentar na qual os interesses senhoriais detinham
maior representatividade.
Portanto, a ideia aventada anteriormente de que a trajetória da Liga Progressista serve
de ponte entre dois períodos muito distintos do Segundo Reinado, baseia-se na hipótese de
que a queda do último ministério progressista em 1868 não representou apenas o fim de um
partido que mal havia se organizado, mas também deu início ao ocaso do Império. O
11
reformismo “dentro da ordem” associado aos progressistas ancorava-se num consenso que
perpassava as fileiras dos Partidos Conservador e Liberal, dos “conciliados” dos anos 1850 e
dos “ligueiros” da década seguinte; fica claro, pois, que as divergências entre os diversos
atores políticos não se davam no plano da formulação de projetos nacionais distintos, uma vez
que todos eles estavam envolvidos numa mesma tarefa: a construção de um Estado liberal de
matriz federalista, isto é, que visava adequar a dominação política ao nível local com a
absorção das elites regionais ao poder que emanava da Corte (DOLHNIKOFF, 2005, p. 27).
Nesse sentido, as diferenças programáticas se faziam sentir menos quanto aos objetivos do
que quanto aos meios que cada um desses grupos encarava como mais adequados à
consecução de um projeto nacional que detinha a anuência de todos. No entanto, ao abalar o
consenso socioeconômico do status quo monárquico tocando em um de seus pilares
fundamentais (a instituição escravista), a Coroa desestabilizava a continuidade da tarefa de
aperfeiçoamento do consenso político entre a classe proprietária, a qual estava assentada sobre
aquela dimensão. Assim, o fim da alternativa progressista de direção do Estado imperial
assinala também o início das divergências entre os interesses senhoriais e a razão de Estado,
encerrando uma fase marcada pelo consenso ideológico e inaugurando outra, na qual o
discurso político crítico não incidirá somente contra a “oligarquia” saquarema, mas
questionará a própria legitimidade do regime monárquico.
12
Capítulo 1
Da Conciliação ao Progresso
Se a chamada Liga Progressista ganha uma forma concreta no intervalo entre as sessões
legislativas de 1861 e 1862, mediante uma articulação entre políticos – tanto liberais quanto
conservadores – insatisfeitos com o gabinete liderado pelo então marquês (e depois duque) de
Caxias, um olhar mais detido revela, contudo, que sua concepção e seu formato apresentam
traços curiosamente anacrônicos. Com efeito, aquela característica tão peculiar, pelo menos
em teoria, aos gabinetes progressistas que se formaram entre os anos de 1862 e 1868 – a
saber, o objetivo de constituir uma nova agremiação política que, na dicção de um de seus
principais articuladores, José Tomás Nabuco de Araújo, pudesse reunir “os homens políticos
de todas as origens” (apud NABUCO, 1949 [1897], p. 238) –, essa característica a política
imperial já tinha presenciado na década de 1850, quando Honório Hermeto Carneiro Leão,
futuro marquês de Paraná e líder do ministério formado em 1853 dissera à época que “não há
mais Saquaremas nem Luzias” (apud HOLANDA, 2010, p. 57). Aqui, contudo, a indistinção
entre “saquaremas” (conservadores) e “luzias” (liberais) está longe de significar aquela
imprecisão ideológica satirizada no provérbio imperial “nada tão parecido com um saquarema
como um luzia no poder” (MATTOS, 1990 [1987], p. 103); pois a ideia por trás da frase
enunciada por Paraná – a ideia da “conciliação”, do esquecimento das antigas divisões
partidárias e de seus exclusivismos – aponta menos para uma falha no sistema partidário do
que para um objetivo a ser perseguido: a unificação política da classe proprietária após duas
décadas de dissensões e conflitos. Foi este o impulso básico por trás da política idealizada por
Paraná na década de 1850, e são suas reverberações que, a partir de 1862, ecoam novamente
na dinâmica política do Império – agora não mais sob a bandeira da “conciliação”, mas sim
sob a do “progresso”.
Compreender, portanto, os temas e tendências presentes na política da “conciliação”
fornece um caminho preliminar para a abordagem da política do “progresso”, articulada
alguns anos após aquela. Para isso, pretendo realizar neste primeiro capítulo dois movimentos
distintos, porém complementares: 1) definir as condições que tornaram possível a condução
da política nacional na contramão do dualismo partidário (conservadores x liberais) do
Império brasileiro e 2) descrever a cena da “conciliação” a fim de reconstituir a trama da qual
a Liga Progressista emerge como uma solução desejável para setores importantes da classe
política imperial.
13
1.1. A consolidação do Estado nacional e seus dividendos
O mero fato de que um político ligado ao núcleo duro do Partido Conservador – a
poderosa aristocracia cafeeira fluminense –, como o foi Paraná, tenha dito que a divisão entre
conservadores e liberais é assunto passado já merece, por si só, uma análise mais detalhada
quanto às condições políticas que tornaram esta enunciação possível. No que diz respeito aos
objetivos desta pesquisa, tal análise mostra-se imprescindível uma vez que, conforme
assinalado acima, toma-se aqui como pressuposto básico a respeito da política progressista a
sua dívida para com a “conciliação” orquestrada por Paraná em 1853. Nesse sentido, a
resolução do aparente paradoxo presente na frase de Paraná – um político rechaçando os
próprios termos pelos quais se construía a identidade política nas décadas iniciais do Segundo
Reinado – é conditio sine qua non para a elucidação dos motivos e intenções básicas que
orientaram a busca progressista por uma política separada das antigas lutas partidárias.
A estranheza causada pelas palavras de Paraná emerge quando voltamos nosso olhar
para um dado histórico assaz conhecido: há menos de cinco anos de distância daquela data
(1853), conservadores e liberais não só existiam como ainda se digladiavam ferozmente nos
mais diversos cantos do território nacional. De fato, tanto o período regencial dos anos 1830
quanto o primeiro decênio do reinado de Pedro II, após a antecipação de sua maioridade
(1840), foram marcados por intensas convulsões sociais nas províncias, associadas quase
sempre à força centrífuga das oligarquias locais que buscavam maior autonomia frente ao
poder que emanava do Rio de Janeiro2. Os esforços na contramão da centralização concebida
a partir da Corte emergem logo após a abdicação de Pedro I em favor de seu filho, no ano de
1831 (DOLHNIKOFF, 2005, p. 26); na esteira desse acontecimento as elites provinciais,
encabeçando um projeto nacional de caráter federativo3, avesso à política centralizadora que
marcara o reinado de Pedro I, aprovaram um conjunto de medidas legais que fortaleceram o
exercício do poder ao nível local: dentre tais medidas destacam-se a submissão da escolha dos
juízes municipais ao poder da Câmara Municipal e a eleição para o cargo de juiz de paz que, a
partir de então, passa a exercer funções policiais juntamente às judiciais (GRAHAM, 1997
[1990], p. 73). Todavia, a fragmentação do poder político ao nível municipal não dura muito
tempo. A proliferação de disputas entre os oligarcas locais – não raro violentas e que
frequentemente fugiam ao controle – em torno de cargos agora eletivos, geraram um clima de
2 A mais notória exceção a tais revoltas cujo impulso inicial provinha “de cima” talvez seja a chamada Revolta
dos Malês deflagrada em Salvador no ano de 1835, a qual fora arquitetada por escravos e africanos libertos. 3 “Federalismo entendido como conjugação entre autonomia provincial e participação das elites provinciais no
governo central, a fim de ampliar o papel político das elites tanto nas suas províncias como na Corte”
(DOLHNIKOFF, 2005, p. 27).
14
instabilidade perene que, somadas às desconfianças dos liberais no poder em relação às
demandas “localistas” dos municípios, teve sua resposta numa emenda à constituição do
Império: o chamado Ato Adicional de 1834 (GRAHAM, 1997 [1990], p. 74; DOLHNIKOFF,
2005, p. 86). Sem dúvida ainda profundamente comprometido com o desejo por autonomia
que irradiava das províncias, o Ato Adicional, contudo, opera uma transformação
fundamental na dinâmica de poder durante as Regências: ao instituir o sufrágio para as
Assembleias Provinciais e submeter as decisões das Câmaras Municipais ao seu escrutínio,
esta legislação acaba por retirar dos municípios seu protagonismo enquanto arena política
legítima e transferir este papel às instituições provinciais (GRAHAM, 1997 [1990], p. 74).
Trata-se, pois, de um primeiro passo, embora sutil, daquilo que posteriormente seria chamado
de “regresso” à centralização política do Império4.
Sob a égide do Ato Adicional, contudo, o desequilíbrio sociopolítico não foi debelado,
mas antes se metamorfoseou, mostrando-se inclusive mais intenso e perigoso, pois passou a
incendiar a vida política das províncias. Tais revoltas ligadas ao período das Regências
tinham como impulso básico a disputa pelo poder ao nível regional, mas todas elas visavam
em alguma medida “uma maior liberdade do Rio de Janeiro (seja através de uma monarquia
federal ou de uma república)” (GRAHAM, 2001b, p. 26). O modus operandi visto nessas
sublevações seguiu um padrão que tendeu a se repetir, seja na Cabanagem irrompida na
Belém de 1835, na Balaiada maranhense de 1838 a 1841 ou no movimento Praieiro que
eclodiu em 1848: uma articulação inicial de proprietários insatisfeitos é seguida pela adesão,
geralmente estimulada, de segmentos populares cuja participação acaba por fugir ao controle
daqueles que buscavam instrumentalizá-la para a consecução de seus objetivos particulares.
Tal enredo, reencenado inúmeras vezes no embate político centrado nas províncias, acabou
por gerar aquilo que Richard Graham (2001b, p. 26) chamou de “espectro da desordem
social”, cujo efeito prático foi a moderação do desejo de autonomia local pelo reconhecimento
de que a fragmentação do poder, enquanto estímulo ao conflito, enfraquecia a autoridade da
classe proprietária. Assim, o fracasso das elites regionais em conduzir os impulsos
4 A ideia de uma adesão progressiva ao centralismo por parte das classes proprietárias durante o processo de
constituição do Estado imperial – visão defendida neste trabalho – é amplamente desenvolvida por Richard
Graham em seu Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX, texto ao qual devo boa parte da síntese histórica
empreendida nesta seção. Mais recentemente, Miriam Dolhnikoff (2005), embora rejeitando a própria dualidade
entre centralização/descentralização na política imperial (cf. Idem, pp. 82-83; p. 127), sistematizou uma visão
próxima à de Graham sobre a formação do Estado nacional brasileiro ao sustentar a tese de que as elites
regionais foram parte ativa na construção das instituições políticas do Império, e não meras espectadoras de um
processo que teria sido monopolizado desde a Corte. Tal semelhança com as teses que Graham vem esboçando
desde pelo menos a década de 1980 (cf. GRAHAM, 2001a [1985]), porém, parece não ter sido reconhecida pela
própria autora; as ideias do historiador norte-americano não são discutidas por Dolhnikoff em seu livro O Pacto
Imperial, e seus textos nem sequer constam da bibliografia consultada.
15
revolucionários sob o pulso firme de sua própria direção5 ensejou sua unificação, por via do
horror ao desequilíbrio social, em torno da bandeira da “ordem” (GRAHAM, 1997 [1990], p.
77; MATTOS, 1990 [1987], p. 141). Dava-se, com isso, mais um passo decisivo em direção à
centralização política.
O golpe que feriu de morte o projeto político descentralizador, tal como fora consagrado
no Ato Adicional de 1834, deu-se no último biênio da década de 1840. A supressão do
movimento Praieiro em Pernambuco, em 1848 – a última revolta liberal, de tendências
separatistas e antimonárquicas, que o sistema político do Segundo Reinado experimentou –,
significou a virtual pacificação interna do Império e coroou a obra do “Regresso”
(MARTINS, 2007, p. 80). Obra esta que vinha sendo orquestrada desde pelo menos 1840
quando, ainda sob o governo regencial de Pedro de Araújo Lima (mais tarde marquês de
Olinda), Paulino José Soares de Sousa, o futuro visconde de Uruguai, concebeu a primeira de
suas grandes manobras jurídico-políticas: a interpretação do Ato Adicional; juntamente com a
reforma do Código de Processo Criminal em 1841 (GRAHAM, 1997 [1990], pp. 78-79), este
reformismo às avessas (porquanto ligado a um projeto de revisão das reformas orquestradas
na década de 1830) permitiu converter os “excessos” da liberdade em dividendos da ordem,
consolidando o poder imperial ao mesmo tempo em que fortalecia a preeminência social e
política da classe proprietária. Por fim, em 1849 as eleições chefiadas pelo gabinete Olinda6 –
o mesmo que, ainda na função de regente em 1837, dava início à obra regressista – confirmam
a vitória dos arquitetos da centralização também no campo da representação política; a
Câmara que dali emerge não contará senão com um único membro do Partido Liberal,
Bernardo de Sousa Franco, isolado em meio a 110 conservadores (CARVALHO, 2003
[1980/1988], p. 256; HOLANDA, 2010, p. 57). Esta esmagadora maioria parlamentar fornece
a energia extra necessária ao gabinete de 1848 para, no limiar da década seguinte, promover
um conjunto de medidas que de certa forma dão o toque final aos esforços de consolidação
das instituições políticas do Império brasileiro (GRAHAM, 2001a [1985], pp.809-810). Não
por coincidência talvez, os atores que a finalizam foram também os principais responsáveis
por seu início: não apenas o líder que organiza o gabinete é o mesmo (Olinda), mas também
dois outros protagonistas do Regresso de 1837 voltam ao centro da cena política no gabinete
de 1848 – Paulino (visconde de Uruguai) e Joaquim José Rodrigues Torres (visconde de
5 A exceção que confirma a regra aqui é o caso da Farroupilha na província do Rio Grande do Sul. Por dez anos
(1835-1845) os estancieiros gaúchos conseguiram imprimir sua marca própria ao movimento insurgente, sem
que o mesmo sofresse a transmutação para uma revolta de caráter popular (GRAHAM, 2001b, p. 29). 6 Note-se, porém, que a 8 de outubro de 1849 Olinda é substituído na presidência do conselho de ministros por
José da Costa Carvalho, o visconde de Monte Alegre, chefe da pasta do Império (BARÃO DE JAVARI, 1979
[1889], p. 104).
16
Itaboraí). Somados a Eusébio de Queirós neste novo gabinete, estes três homens compõem o
fulcro do Partido Conservador – a chamada “trindade saquarema”; operando desde a pujante
província cafeeira do Rio de Janeiro, este grupo deteve imensa relevância no movimento
regressista, exercendo uma sólida liderança que fez da “trindade” um dos grandes
protagonistas no processo de consolidação do Estado imperial brasileiro (MATTOS, 1990
[1987], p. 108)7.
Contudo, a dimensão do chamado “regressismo” dos anos 1840 deve ser analisada com
cuidado, uma vez que a centralização encetada por este movimento pouco tinha a ver com a
política centralizadora de dom Pedro I, e sequer significou uma ruptura completa com os
termos do Ato Adicional (DOLHNIKOFF, 2005, p. 77; p. 130). De acordo com Miriam
Dolhnikoff (Idem, p. 150), a centralização que caracterizou o movimento do Regresso
limitou-se à esfera do aparato judiciário, “para permitir ao governo central um controle
efetivo sobre ele”, não avançando por completo sobre os princípios federalistas que dotavam
as províncias de certa autonomia frente à Corte – princípios esses consagrados no Ato
Adicional de 1834. Nesse sentido, a “revisão conservadora” (Idem, p. 125) que emerge em
1837, intimamente ligada ao próprio surgimento do Partido Conservador na cena política do
Império, não é tanto um verdadeiro regresso às instituições anteriores ao período regencial
quanto uma tentativa de aperfeiçoamento do sistema federativo impulsionada pela
“constatação de que as reformas liberais haviam falhado no que dizia respeito à organização
judiciária” (Idem, p. 130). Não há dúvida de que o argumento de Dolhnikoff sobre a
centralidade da reforma judiciária não pode ser dissociado da ameaça de desordem social
aventada acima, a qual teve sua origem nas revoltas provinciais durante as Regências. Esta
relação, contudo, é praticamente ignorada pela própria autora: ao discutir a “revisão
conservadora” dos anos 1840, Dolhnikoff (2005, p. 126) limita-se a uma escassa referência de
um parágrafo sobre as revoltas provinciais – e isso com o intuito de negar-lhes, com a exceção
7 Embora aceitando a tese geral formulada por Ilmar Rohloff de Mattos (1990 [1987]) de que a consolidação do
Estado imperial e da unidade da classe proprietária constituem um único e mesmo processo, rejeito, todavia, o
corolário que daí extrai o autor (1990 [1987], p. 108) quando afirma que estes fenômenos foram arquitetados
exclusivamente pelo núcleo fluminense do Partido Conservador, representado pela “trindade saquarema”. Antes,
acredito que a atuação desse grupo – cuja importância não nego – no processo de centralização estatal precisa ser
relacionada ao crescimento gradual da percepção entre as elites regionais de que o poder central não era
contrário ao exercício da autoridade local, mas antes fornecia as bases que o tornavam possível. Ora, se esta
relação entre poder central e autoridade local é enfatizada, tal como venho fazendo nesta seção, torna-se claro
que, para além de uma elite regional privilegiada (os cafeicultores fluminenses) refletida no sistema político do
Império através da direção saquarema do Partido Conservador, havia também um conjunto mais amplo de atores
políticos sem os quais o processo de centralização dificilmente teria obtido o mesmo sucesso: os proprietários
rurais dispersos pelo território brasileiro (GRAHAM, 2001b, p. 35). Nesse sentido, não encaro aqui a “trindade
saquarema” como o ator político por excelência na obra “regressista”; antes, vejo-a como uma dentre as várias
forças centrípetas que, da metade dos anos 1830 até o final da década de 1840, exerceram pressão consistente
com vistas a uma maior concentração de capital político na corte do Império.
17
da Farroupilha, o estatuto de insurgências compromissadas com os interesses das elites
provinciais. Contrariamente a essa posição, acredito que a perda de controle dos rumos das
sublevações dos anos 1830-1840 por parte das classes abastadas acarretou efeitos profundos
em suas concepções a respeito da “correta” condução dos conflitos políticos entre os setores
antagônicos da elite imperial (GRAHAM, 1997 [1990], p. 77); foi essa transformação na
percepção senhorial que, em última instância, deu ensejo à centralização judiciária de que fala
Dolhnikoff, visto que uma reforma nesse plano parece apontar para o projeto de constituição
do Estado imperial como o detentor do monopólio legítimo da força – projeto pouco
compreensível fora do quadro de instabilidade social criado pelas revoltas nas províncias.
De qualquer modo, cabe reter aqui a ideia de que o “arcabouço institucional” construído
pelos liberais entre 1832 e 1837 não é desfeito pela interpretação de 1840 ou pela reforma do
Código de Processo Criminal um ano mais tarde: “a revisão conservadora, apesar de seu nome
e sua fama, não alteraria fundamentalmente esse arcabouço” (DOLHNIKOFF, 2005, p. 134).
Tratava-se, isso sim, de revisá-lo, de aperfeiçoá-lo no interesse da própria preservação das
classes proprietárias regionais como detentoras exclusivas do poder político, delimitando de
modo mais claro as efetivas atribuições e o campo de atuação dos governos provinciais frente
ao governo central (Idem, p. 150).
Note-se que é sob a liderança dos homens do regresso, responsáveis por esse
aperfeiçoamento institucional frisado por Dolhnikoff, que, já em 1850, o Brasil passará por
transformações significativas em seu ordenamento jurídico por meio da aprovação de medidas
que não eram consensuais entre a classe proprietária. Com efeito, tais medidas só puderam ser
levadas adiante devido àquela peculiar confluência de fatores politicamente positivos para os
regressistas, cujo resultado foi a concentração de volumoso capital político nas mãos do
gabinete conservador de 1848. Assim é que finalmente tornou-se possível dar um fim à
crescente pressão inglesa em relação ao comércio escravista no Brasil, o que se efetivou
através da supressão do tráfico atlântico pela Lei Eusébio de Queirós; concomitante a isso, foi
também aprovado um código comercial para o Império brasileiro, regulando a atividade
empresarial no país e possibilitando o fluxo de capitais – agora abundantes em razão da
abolição do tráfico –, ainda que com restrições à atuação das sociedades de responsabilidade
limitada (GRAHAM, 1968, p. 222); outra questão espinhosa à qual o gabinete de 1848 pôde
dar um ponto final foi a da legislação fundiária, aprovando uma lei que dispunha sobre a
posse de terras públicas e visava difundir a prática de agrimensura dos lotes; por fim, a
reversão do caráter eletivo do oficialato da Guarda Nacional – obra do Código de Processo
Criminal de 1832 – ratifica a preeminência da autoridade “sóbria” do centro sobre os
18
“particularismos” das oligarquias locais: a nomeação para os cargos de oficial da Guarda
passa a ser prerrogativa do ministério no poder, e a própria corporação passa a ser
cuidadosamente controlada pela pasta da Justiça. De fato, não é exagerada a afirmação de
José Murilo de Carvalho (2003 [1980/1988], p. 257) ao dizer que “o ano de 1850 pode ser
considerado marco entre duas fases de implantação do Estado Nacional”, uma vez que as
políticas promovidas pela “trindade saquarema” no poder parecem ter efetivamente concluído
“a tarefa de estabelecer as instituições de um poder central firme, que se conservaram
inalteradas até o fim do Império em 1889” (GRAHAM, 1997 [1990], p. 81).
O sentido das transformações orquestradas pelos conservadores no ano em que d. Pedro
II comemorou a primeira década de seu longo reinado adquire maior inteligibilidade se visto
também a partir de suas implicações no plano econômico. Com efeito, a suspeita de que o
ressurgimento ministerial de figuras como Uruguai e Itaboraí significa mais que uma feliz
coincidência aos partidários da “ordem” confirma-se quando a cotejamos com a trajetória
ascendente daquele fruto ao qual, seja pelo matrimônio ou pelo sangue, tanto as carreiras
políticas de Paulino, de Rodrigues Torres e de Eusébio estavam inextricavelmente ligadas: o
café. Já na década de 1830 a produção cafeeira superara o açúcar como principal produto na
pauta nacional de exportação8; a meteórica ascensão do café na economia brasileira, com sua
produção centrada no Vale do Paraíba fluminense9, atinge afinal o ponto simbólico de ser
responsável “por quase a metade de todas as receitas brasileiras de exportação” (GRAHAM,
2001a [1985], p. 774) no ano de 1850, aquele mesmo ano que, também no plano político,
indicava a inflexão pela qual passava o Império do Brasil. Se por um lado, contudo, as
repercussões de natureza estritamente econômica resultantes da promulgação do Código
Comercial ou da liberação de capitais antes empregados no tráfico negreiro já indicam o
compromisso do reformismo saquarema com a expansão da atividade agroexportadora (cf.
GRAHAM, 1968, p. 25), por outro é preciso abdicar do raciocínio econômico stricto sensu
para melhor compreender este reformismo, à maneira do que já foi feito com a explicação
puramente social ou política. O Regresso não é produto exclusivo seja da expansão cafeeira,
seja do pavor à instabilidade social, mas antes emerge no interstício de ambos. A acumulação
de capital político possibilitada pela pacificação interna do Império e a acumulação de capital
econômico ligada ao desenvolvimento da lavoura cafeeira são como o anverso e o reverso de
8 Graham (1997 [1990], p. 77) afirma que “as exportações de café triplicaram entre 1822 e 1831, e até 1840
aumentaram outras duas vezes e meia”. 9 A hegemonia valparaibana, a despeito do desenvolvimento da plantação cafeeira no oeste paulista a partir da
metade do século, só é de fato quebrada já na década de 1870, após a consolidação das estradas de ferro que
permitiram uma conexão mais rápida e segura do oeste com o litoral para o escoamento da produção agrícola
(GRAHAM, 2001a [1985], p.775).
19
um mesmo fenômeno, a saber: o processo de consolidação do Estado imperial, orquestrado –
mas, conforme argumentei aqui, certamente não imposto – desde o centro político do Império
brasileiro. Nesse sentido, é possível concluir, seguindo Graham (1997 [1990], pp.100-101),
que:
A centralização, ao invés de ser imposta da capital, consolidou-se pela participação
ativa dos proprietários em todos os níveis da política, mesmo os mais altos. Os
homens de posses sabiam que as lutas em favor da autonomia regional ameaçavam
muitas vezes desestabilizar sua posição de superioridade sobre outros. Em
consequência, resolveram esse dilema jogando sua força nas instituições da
autoridade central, enquanto mantinham cuidadosamente seu controle sobre elas.
Para manter a ordem, estabeleceram sólidos vínculos para além das fronteiras
regionais, apesar das lealdades locais. [...] Essa aliança entre o governo central e os
que detinham o poder local explica a longevidade do sistema. Após 1840 ou 1850,
deve-se duvidar que tenha ocorrido qualquer divisão entre Estado e a elite
econômica nas diferentes províncias; naquela época, a maioria dos potentados rurais
em todo o Brasil passou a reconhecer o valor da autoridade central, até porque esta
reforçava a deles.
Na metade do século XIX, portanto, o Estado brasileiro adentrava sua fase áurea de
estabilidade, fundamentado num arranjo institucional e em dispositivos legais cuja arquitetura
esboçou-se nos anos iniciais de 1830, sendo posteriormente aperfeiçoada no período que vai
de 1837 a 1850. O arcabouço institucional-legal que daí emergiu gozou de um consenso
virtualmente unânime entre a classe proprietária até pelo menos o final da década de 1860,
quando a súbita queda do último gabinete progressista em 1868 “encerra o período do
esplendor [da monarquia] e abre o das crises que levarão à sua ruína” (IGLÉSIAS, 2004
[1967], p. 139). É, enfim, no embalo deste clima de vitória sobre as “paixões” locais, fruto da
“sobriedade” característica da boa administração da coisa pública, que a vida política imperial
adentra a década de 1850. Três anos após o programa de reformas levado a efeito pelos
conservadores de 1848, contudo, um peculiar rearranjo partidário, chamado por seus
contemporâneos de “conciliação”, tomará conta da cena parlamentar, impedindo que o
“partido da Ordem” colha sozinho os dividendos políticos da obra na qual seus adeptos, desde
1837, empenharam-se com tanto afinco. O fato é que a consolidação do Estado nacional
permitia finalmente que se empreendessem esforços deliberados com vistas ao fortalecimento
do sistema de representação política do Império, de modo a trazer para o interior do
parlamento disputas que antes se desdobravam nas ruas, não raro por meio das armas. O mote
clássico do liberalismo político – a garantia de representação das minorias como defesa contra
a “tirania da maioria” – próprio aos regimes de governo que se consolidaram no bojo das
20
“revoluções burguesas”10
euro-americanas ecoou também no Brasil de meados do século
XIX, quando um grupo expressivo de atores políticos da época, do campo conservador ao
liberal, voltou-se à tarefa de replicar o recém-consolidado consenso em torno das “regras do
jogo” ao nível da articulação governamental explícita; buscava-se, enfim, fazer da política
uma prática eficaz para “dirimir os conflitos internos das elites” (MARTINS, 2007, p. 81).
O gabinete da “trindade saquarema”, responsável pelo conjunto de reformas legais
orquestradas no ano de 1850, mantém-se firme por quase quatro anos, tornando-se assim o
mais longo que o sistema político do Segundo Reinado experimentara até então (IGLÉSIAS,
2004 [1967], p. 30), o que dá a medida de seu poder e da centralidade assumida por ele no
processo de consolidação do Estado imperial. Em maio de 1852 a incumbência de organizar
um novo ministério é assumida pelo então ex-titular da pasta da Fazenda e futuro visconde de
Itaboraí, Joaquim José Rodrigues Torres. O indício de que este gabinete seria tão “ordeiro”
como o seu antecessor não é fornecido apenas pela permanência de Itaboraí: dos três nomes
fortes do núcleo saquarema que figuraram na composição de 1848 – Eusébio, Itaboraí e
Uruguai – apenas o primeiro está ausente do novo ministério; o gabinete Itaboraí é, para todos
os efeitos, um prolongamento da situação de predomínio conservador que se instaurara quatro
anos antes. Todavia, o clima parlamentar já é inteiramente diverso e, se o ministério é
solidamente conservador, não parece sê-lo a Câmara: a maioria parlamentar que o sustenta
não possui a mesma coesão de outrora, e a votação da resposta à Fala do Trono, ainda no
início da sessão parlamentar de 1852, sinaliza que a situação é de fato outra. Os 22 votos
contrários provêm mais da própria bancada conservadora do que da ínfima representação
liberal então existente (IGLÉSIAS, 2004 [1967], p. 37). Ao longo da sessão a divisão entre os
conservadores se aprofunda; cabe notar que este cisma é peculiar não só por advir das bases
do próprio partido no poder, mas também (e talvez ainda mais) pela natureza da reivindicação
básica por trás desta dissidência que, em poucos meses, acabará por inviabilizar a própria
manutenção do gabinete: não se trata de garantir uma hegemonia ainda mais sólida para seu
próprio partido – antes, exige-se o contrário. Nas tribunas do Senado ou da Câmara, políticos
egressos das fileiras conservadoras, como os baianos José Tomás Nabuco de Araújo e José
Antônio Saraiva, ventilam a ideia de que o Brasil necessita de um governo que lute pelo fim
10
Este termo, sujeito a muitas interpretações conflitantes, é aqui empregado no sentido que lhe dá Barrington
Moore Jr. (1975 [1967]) ao mobilizá-lo para compreender as vias de transição democrática para o mundo
moderno, a saber: as revoluções inglesa, francesa e a guerra civil norte-americana. Na dicção deste autor (1975
[1967], p. 491), o caráter “burguês” destes movimentos reside menos em seu papel na implantação de uma lógica
econômica mercantil/capitalista do que em sua importância à consolidação das instituições políticas
democrático-liberais, próprias ao mundo burguês moderno. Assim, para Moore o conceito de “revolução
burguesa” não é diferente do de “revolução liberal”, sendo mesmo sinônimo deste.
21
dos exclusivismos de partido, pelo esquecimento das lutas do passado (IGLÉSIAS, 2004
[1967], pp. 37-40) – expressam, enfim, o desejo de “conciliação” e congraçamento entre a
classe política. Neste ambiente contemporizador, em que não só as ameaças internas à coesão
do Império haviam sido debeladas, mas também parte substancial dos atritos externos –
especialmente o fim da pressão inglesa sobre o comércio escravista no Brasil e o
arrefecimento dos conflitos platinos com a queda do mandatário argentino Juan Manuel de
Rosas (COSTA, 1996, p. 105; HOLANDA, 2010, p. 45) –, parece não mais haver espaço ao
férreo domínio saquarema, agora sob a direção de Itaboraí. O ministério perdura ainda por um
bom tempo, mas cai afinal, um ano e quatro meses após sua formação:
É nesse clima em que os conservadores estão no poder, com maioria esmagadora na
Câmara, em que há uma oposição parlamentar, formada sobretudo por
conservadores, que não apoia o gabinete; em que os liberais se agitam, mas estão
dispostos a uma composição conciliadora, por certo esgotamento nas lutas em que se
empenharam e pela ausência prolongada do poder, que o Gabinete de 11 de maio de
1852, presidido por Joaquim José Rodrigues Torres, chega ao fim, em 6 de setembro
de 1853. Vai ter início nova situação, marcada pelo ideal conciliador, há muito
acalentado como fórmula para os problemas nacionais. Inaugura-se a fase da
chamada Conciliação. (IGLÉSIAS, 2004 [1967], p. 41-42)
1.2. A política da conciliação: pré-história da liga progressista
O projeto político conciliador que emerge em 1853 gozava de longa maturação por
parte dos setores moderados tanto do Partido Liberal quanto do Conservador. Desde pelo
menos a proclamação da maioridade de Pedro II (1840), disseminava-se entre os articuladores
políticos o ideário de que “na origem de todos os vícios de nosso sistema político se achavam
as contendas entre as facções e a acirrada disputa pelas posições” (HOLANDA, 2010, p. 39);
já em 1841, a formação de um ministério composto por liberais que lutaram pela antecipação
da maioridade e por conservadores que a ela se opuseram demonstrou o desejo pela
conciliação política – desejo este que, no gabinete de 1844, emerge pela primeira vez como
programa de governo ao se conceder anistia aos artífices das revoltas liberais de Minas Gerais
e de São Paulo ocorridas dois anos antes (BARÃO DE JAVARI, 1979 [1889], p. 92;
IGLÉSIAS, 2004 [1967], p. 53). No entanto, se desde os anos iniciais do Segundo Reinado é
possível perceber um progressivo aglutinamento das facções políticas em torno da construção
da estabilidade sociopolítica após o turbulento período regencial (MARTINS, 2007, p. 77),
cabe notar que, fora algumas iniciativas isoladas como a da concessão de anistia aos rebeldes
de 1842, pouco foi realmente feito – menos pela suposta má vontade da classe política do que
pelas condições objetivas que, na década de 1840, não favoreciam o esquecimento das velhas
22
contendas de partido. Como procurei demonstrar na seção anterior, foi apenas no limiar dos
anos 1850 que a solidez do sistema político imperial tornou-se uma realidade palpável; esse
fator, aliado a outros não menos importantes, como a expansão da economia agroexportadora
e a diminuição dos conflitos externos, permitiu que a pacificação concreta entre as facções
partidárias se tornasse enfim um projeto político plausível – uma vez que desejável ele já o
era há muito tempo, especialmente por parte do próprio monarca (NEEDELL, 2006, p. 172)11
.
A percepção contemporânea de que a condução da política na contramão das contendas
partidárias era uma necessidade premente foi sistematizada na pena do jornalista conservador
Justiniano José da Rocha (2009 [1956], p. 160), cujo célebre panfleto Ação; Reação;
Transação, publicado em 1855, afirmava que, após décadas de luta entre os elementos
“monárquico” e “democrático” (leia-se: conservadores contra liberais), “chegamos à fase da
transação; muitos espíritos refletidos o haviam compreendido; compreenderam os estadistas
chamados pela coroa à direção dos públicos negócios”. Não obstante as reservas que Rocha
possuía em relação à política conciliadora iniciada dois anos antes12
, não há dúvida de que ele
reconhecia no gabinete montado pelo então visconde – e mais tarde marquês – de Paraná a
expressão viva da “fase da transação” que o Império do Brasil atravessava. Afinal, também os
políticos presentes neste ministério compreendiam bem que o momento devia ser marcado por
concessões aos setores alijados do poder durante o predomínio saquarema dos anos
precedentes.
Com efeito, essa foi a marca principal da política da conciliação iniciada pelo gabinete
Paraná em 1853. O ideal contemporizador e o desejo de abrandar os ânimos partidários já
eram perceptíveis no próprio processo de formação do ministério: parte substancial dos
políticos que o compõem são jovens e/ou figuras de pouco compromisso com as tradições
luzia ou saquarema (IGLÉSIAS, 2004 [1967], p. 55; NEEDELL, 2006, p. 175). A aversão ao
partidarismo e às posições intransigentes mostra-se como verdadeiro princípio a guiar o
ministério; a busca por um ponto de equilíbrio entre os princípios da “ordem” (conservação) e
11
Assim, não ignoro a confluência entre os rumos tomados pela política da conciliação e o fortalecimento da
atuação de d. Pedro II, enfatizada por Jeffrey Needell no trabalho citado acima e largamente desenvolvida por
Sérgio Buarque de Holanda (cf. 2005 [1972], pp. 71-93; 2010, pp. 39-69). Todavia, acredito que para além da
preferência pessoal do imperador por uma política afastada das contendas partidárias, interessa compreender
como esta tendência à contemporização materializou-se num momento preciso da política imperial (a década de
1850), mostrando-se inviável antes disso. A meu ver, essa questão não pode ser explicada apelando-se às
intenções mais ou menos “ocultas” da política monárquica, mas antes exige um enfoque – que procurei efetuar
nas páginas anteriores – capaz de demonstrar quais foram as condições sociopolíticas objetivas que permitiram
que a política contemporizadora enfim emergisse como um projeto viável. 12
Para Rocha (2009 [1956], pp. 160-161) a política inaugurada pelo gabinete formado em 1853 pecava por não
avançar o suficiente no congraçamento entre os partidos, reduzindo a conciliação de ideias e projetos a um mero
arranjo entre indivíduos: “os dias da transação vão passando e não têm sido utilizados; [...] ainda é tempo,
todavia; os anos de 1855 e de 1856 ainda podem ser aproveitados; aproveitemo-los”.
23
da “liberdade” (progresso), de modo a escapar tanto do imobilismo social quanto da anarquia,
é de suma importância não somente à retórica dos “conciliados” de 1853; pois, conforme
argumentarei adiante, também para os progressistas da década seguinte tratava-se de efetuar
uma mediação entre esses dois extremos. No que tange aos homens da conciliação, o projeto
de equilíbrio entre os polos da ordem e da liberdade é explicitamente enunciado por Paraná
(apud IGLÉSIAS, 2004 [1967], p. 56) em seu primeiro discurso na tribuna do Senado como
líder ministerial:
[...] pelo que toca à política interna pertencemos à opinião que se tem apelidado
conservadora; porém essa opinião, tal qual eu e os meus nobres colegas [de
gabinete] a professamos, não exclui o progresso; pelo contrário, entendemos que não
há boa conservação sem que haja também progresso. Entendemos, pois, que
devemos procurar melhoramentos, não só materiais, mas também intelectuais e
morais.
Também o então deputado Nabuco de Araújo (apud IGLÉSIAS, 2004 [1967], p. 65),
responsável pela pasta da Justiça durante o gabinete Paraná e figura central na emergência da
Liga Progressista anos mais tarde, afirma em 1854 perante seus colegas na Câmara que a
conciliação:
[...] é a combinação do princípio conservador com o progresso refletido e justificado
pela experiência; o princípio conservador como base, o progresso como acessório;
certamente, o progresso não é incompatível com o princípio conservador, porque o
princípio conservador não é a inércia, o abandono; não conserva quem não melhora.
Mas não só no domínio discursivo se orquestrava a conciliação entre os diferentes
segmentos e princípios que organizavam a vida política do Império. O ano de 1855 presenciou
um avanço significativo no debate sobre a legislação eleitoral, e o empenho pessoal de Paraná
em dar prosseguimento a uma matéria emperrada no parlamento há anos parece responder
positivamente ao panfleto de Justiniano José da Rocha, quando este apela para que os “dias da
transação” sejam enfim aproveitados com sabedoria (cf. nota 12). Afinal, o projeto de lei (que
ficou conhecido, após sua aprovação, como a Lei dos Círculos) encaminhado pelo gabinete
representou uma tentativa concreta – e bem-sucedida – de induzir a renovação política do
parlamento e de transformá-lo num espaço efetivo de representação das minorias
(DOLHNIKOFF, 2009, pp. 48-49). Ao instaurar um regime de incompatibilidade na
apresentação de candidaturas para magistrados e funcionários públicos e instituir o voto
distrital no qual cada distrito elege um único candidato (IGLÉSIAS, 2004 [1967], pp. 67-70),
a Lei dos Círculos foi eficaz na quebra do controle quase absoluto do governo sobre as
24
eleições por ele presididas; fragmentando o processo eleitoral por diversas regiões das
províncias, essa nova lei diminuiu a capacidade do partido no poder em criar Câmaras
compostas unanimemente por políticos de seus próprios quadros, assegurando assim que o
parlamento também fosse capaz de representar os interesses de setores que de outra forma
estariam alijados da esfera institucional da luta política (GRAHAM, 2001a [1985], pp. 805-
806). Aqui é possível recorrer uma vez mais àquele panfleto que tão bem condensa o
momento de conciliação da política imperial; pois também Rocha (2009 [1956], p. 204)
intuíra, no mesmo ano em que a legislação eleitoral é recolocada no centro do debate político,
que apenas o fortalecimento da legitimidade do regime parlamentar enquanto esfera de
representação autêntica dos diversos setores das classes abastadas seria capaz de garantir a
recém-conquistada estabilidade sociopolítica do Império:
[...] não receamos errar profetizando que a era lamentável de convulsões pela qual
têm necessariamente de passar as nações novas que tratam de organizar-se, estará
concluída, para nunca mais ser renovada: então entregues as questões de política, de
governo, de alta administração ao jogo legítimo de um regime representativo com
prudência equilibrado, poderá a nação brasileira caminhar segura para os grandes
destinos que a esperam.
Todavia, o desfecho dos debates, a esperada aprovação da Lei dos Círculos, tão central
ao programa dos conciliados de 1853, Paraná não pôde acompanhar em vida. Honório
Hermeto Carneiro Leão – o temido marquês de Paraná de cujo imenso poder os panfletos e
periódicos contemporâneos satirizavam ao nomeá-lo “el-rei Honório” (NEEDELL, 2006, p.
194; HOLANDA, 2010, p. 44) –, falece subitamente no ano de 1856, em pleno auge de sua
trajetória política. O gabinete por ele organizado mantém-se ainda por um tempo, agora sob a
presidência de Luís Alves de Lima e Silva (futuro duque de Caxias), até então Ministro da
Guerra. Trata-se de uma sobrevida justificada pela necessidade de finalização da reforma
eleitoral e pela organização das primeiras eleições sob sua égide, no início de 1857. Com
efeito, esse pleito seria responsável pela coroação do projeto conciliador orquestrado por
Paraná desde 1853, uma vez que seu resultado prático foi exatamente aquele esperado pelos
artífices da nova legislação eleitoral agora em vigor: a quebra da hegemonia de um único
partido na Câmara, com um aumento expressivo no número de deputados liberais eleitos sob
o regime dos círculos13
(IGLÉSIAS, 2004 [1967], pp. 74-75).
13
Três anos mais tarde, porém, a Lei dos Círculos sofreria alterações: dentro de cada distrito não mais seria
eleito apenas um único candidato, mas sim três. A despeito de tal mudança, a representatividade do Partido
Liberal não diminui nas eleições de 1860: pelo contrário, o número de liberais eleitos foi ainda maior que o do
pleito de 1857, com ampla vitória destes nos centros urbanos do Império (NEEDELL, 2006, p. 213; HOLANDA,
2010, pp. 68-69).
25
Realizada a eleição e iniciado o ano legislativo de 1857, o gabinete chefiado
interinamente por Caxias se retira para dar lugar a outro. No mês de maio organiza-se o novo
ministério sob a responsabilidade de um conhecido expoente do Partido Conservador: Pedro
de Araújo Lima, o marquês de Olinda. Apesar de ter sido um dos principais opositores na
tribuna do Senado à conciliação de Paraná, ao ser encarregado da organização do novo
gabinete pelo imperador, Olinda mostra-se mais do que disposto a pôr em prática o ideal
conciliador do esquecimento das rixas de outrora; de fato, ele mesmo procura fazer tabula
rasa de suas (nem tão) antigas críticas quando, ao anunciar o programa do gabinete por ele
presidido perante a Câmara (apud BARÃO DE JAVARI, 1979 [1889], p. 117), afirma que o
ministério atual continuará a política “proclamada do alto do trono” que pautara as ações do
ministério precedente:
Encarregado de tão árdua como honrosa tarefa da organização ministerial, eu
entendi que o Gabinete devia ser a expressão da primeira das nossas atuais
necessidades públicas. Aquela necessidade é a expressão franca e leal dessa política,
que proclamada do alto do trono e levada à execução, tem conseguido fazer tender
os espíritos para a concórdia e moderação.
A conciliação, portanto, mantém-se viva como política de governo sob a direção de
Olinda, seu antigo opositor e agora prosélito. O elíptico discurso proferido a 6 de maio, se
deixa dúvidas quanto à sinceridade desta conversão, é confirmado, porém, pela composição
ministerial levada a efeito dois dias antes da apresentação do programa do ministério: nela
figurava aquela estrela solitária do Partido Liberal na Câmara unanimemente conservadora de
1850, Bernardo de Sousa Franco, bem como José Antônio Saraiva, conservador desde há
muito conciliado (BARÃO DE JAVARI, 1979 [1889], p. 118). O empenho de Olinda em
mobilizar políticos com trajetórias e alianças tão distintas fez com que Sérgio Buarque de
Holanda (2010, p. 57) não hesitasse em afirmar que “o chefe do 4 de maio [de 1857] ainda foi
mais longe do que seu antecessor na ação conciliatória”. Não há dúvida, pois, de que a busca
pela contemporização entre as facções rivais manteve-se firme ainda durante o gabinete
Olinda de 1857.
Um ano mais tarde, porém, cai este gabinete para dar lugar a outro, organizado por
Antônio Paulino Limpo de Abreu, o visconde de Abaeté. Por trás da dissolução do ministério
liderado por Olinda estava a política financeira conduzida por Sousa Franco, responsável pela
pasta da Fazenda (HOLANDA, 2010, pp. 62-63). Ao instaurar a pluralidade bancária,
retirando das mãos do Banco do Brasil o monopólio da emissão, a atuação de Sousa Franco
permitiu que se criasse uma verdadeira bolha de crédito, com emissões muito acima do
26
volume de capital real dos bancos; essa política francamente contrária à ortodoxia financeira
do Império gerou uma oposição contundente ao gabinete Olinda durante a sessão legislativa
de 185814
, impossibilitando assim sua continuidade (IGLÉSIAS, 2004 [1967], pp. 84-85).
A formação de um novo ministério sob a chefia do visconde de Abaeté demonstra mais
uma vez aquela peculiar característica que, afinal, perpassa a totalidade dos ministérios
conciliados da década de 1850: a convocação de políticos com trajetórias muito diversas.
Abaeté era um luzia de longa data que participou das sublevações do ano de 1842, mas que
agora flertava com o credo saquarema; sob a incumbência de organizar o gabinete, mostra-se
de todo disposto a avançar a conciliação na mesma linha de seu antecessor, porém em sentido
inverso: se Olinda, saquarema de origem, serviu-se no gabinete de 1857 de grande número de
figuras associadas ao Partido Liberal, o antigo luzia Abaeté organiza um ministério
majoritariamente conservador (HOLANDA, 2010, p. 63). Também aqui a já citada frase do
marquês de Paraná, artífice da conciliação, parece encontrar acolhida – assim como as
situações de 1853 e de 1857, a composição ministerial empreendida por Abaeté não destoa da
práxis conciliadora de indistinção entre os elementos advindos do Partido Conservador e do
Liberal15
; Paraná (1853), Olinda (1857) e Abaeté (1858) são igualmente eficazes, quando no
poder, em concretizar as palavras do primeiro quando este afirmara que agora “não há mais
Saquaremas nem Luzias” (apud HOLANDA, 2010, p. 57).
A substituição de Olinda por Abaeté significou também a mudança nos rumos da
política econômica do governo: no lugar do liberal Sousa Franco a pasta da Fazenda passa a
ser ocupada por um dos principais críticos às medidas heterodoxas que caracterizaram a
condução das finanças no gabinete Olinda – Francisco de Sales Torres Homem (futuramente
visconde de Inhomirim), antigo liberal notório pelo panfleto O Libelo do Povo e agora
integrado aos saquaremas. Desnecessário dizer que no ministério Abaeté, portanto, a política
econômica vai na contramão das tendências liberalizantes do gabinete precedente; as medidas
14
Já no projeto de resposta à Fala do Trono que abrira os trabalhos da Câmara neste mesmo ano, era perceptível
a preocupação reinante a respeito do encaminhamento da política econômica dada pelo gabinete:
Esta situação econômica, ainda lisonjeira pela abundância e facilidade das receitas, será
mantida se na direção dos negócios predominar, como é de esperar, a prudência que premune
a fortuna pública contra as contingências de inovações sem apoio na experiência [...]
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1872, p. 499; grifos meus). 15
Por isso rejeito aqui a periodização elaborada por Francisco Iglésias (2004 [1967], pp. 88-89) a respeito do
término da conciliação iniciada em 1853: segundo este autor, o domínio conservador no gabinete Abaeté
sinalizaria o fim da política da conciliação e o retorno do predomínio saquarema. A meu ver, o problema com
esta visão é sua gritante parcialidade: pois se Olinda, antigo conservador, pôde organizar um gabinete conciliado
com maioria liberal, por que Abaeté, antigo liberal, não poderia formar um ministério no espírito da conciliação
composto por expressivo número de políticos egressos das fileiras conservadoras? Considero, pois, que o
gabinete montado por Abaeté expressa ainda o impulso de transcender os cismas de partido que caracterizou a
política conciliadora dos anos 1850.
27
que Torres Homem propõe para pôr um fim à “farra” do crédito instaurada por Sousa Franco
geram intensos debates na Câmara – o projeto de sua autoria é por fim aprovado, mas com a
diferença de apenas 11 votos a favor, indicando a clara fragilidade do gabinete e os possíveis
impasses que ainda o esperavam (HOLANDA, 2005 [1972], p.30). Tal como o ministério de
Olinda, este, liderado por Abaeté, também vai ao encontro do imperador em São Cristóvão
devido à dificuldade em lidar com a questão financeira; ao se defrontar com o resultado
vitorioso mas pouco animador da votação, Abaeté pede a exoneração do gabinete à d. Pedro
II, antes que o ministério dos conservadores conciliados sob a liderança de um luzia complete
seus 8 meses de existência (IGLÉSIAS, 2004 [1967], pp. 94-95).
O fim do gabinete Abaeté organizado a 12 de dezembro de 1858 coincide com a morte
da política conciliadora, idealizada por Paraná em 1853, sob os auspícios da Coroa. Com
efeito, durante os dois ministérios seguintes liderados por figuras provenientes do Partido
Conservador – Ângelo Muniz da Silva Ferraz (1859), futuro barão de Uruguaiana,
responsável pela formação de novo ministério após a queda de Abaeté, e Luís Alves de Lima
e Silva (1861), então marquês de Caxias –, os esforços no sentido do enfraquecimento da
solidariedade partidária em prol da solidariedade governamental foram freados, dando lugar a
tentativas de rearticulação das posições de partido. Sob Ferraz, o encaminhamento da questão
econômica de acordo com a política ortodoxa elaborada por Torres Homem e a discussão a
respeito da alteração da Lei dos Círculos – magnum opus do primeiro gabinete conciliado –,
ocorridas no ano de 1860, novamente polarizaram as posições de conservadores e de liberais
(NEEDELL, 2006, p. 207; HOLANDA, 2010, p. 67). Por sua vez, durante o gabinete Caxias
foi a própria composição ministerial que, absorvendo políticos das diversas tendências
reunidas sob o partido da “Ordem”, visou reagrupar os elementos dispersos do Partido
Conservador após a sangria que este sofrera com as conciliações de outrora (HOLANDA,
2010, p. 75).
Está claro, pois, que o reavivamento das tensões partidárias ressurge com força no início
da nova década, ameaçando assim a obra da conciliação; como que em resposta,
simultaneamente a esse processo despontará no parlamento nova articulação política entre os
homens “moderados” de ambos os partidos: entra em cena a chamada “Liga Progressista”.
Trata-se uma vez mais, a exemplo da situação observada no tempo de Paraná, de extirpar as
posições extremadas, trilhando uma espécie de “caminho do meio” capaz de assegurar a
representatividade das posições minoritárias no espaço institucional da política (o parlamento
do Império) e, ao mesmo tempo, utilizar esse espaço como instrumento efetivo de unificação
da classe proprietária, detentora exclusiva dos direitos políticos. Ambicionando ver
28
concretizada a possibilidade do congraçamento que parecera tão real durante a conciliação,
Nabuco de Araújo (SENADO DO IMPÉRIO, 1862, sessão de 20 de maio) afirmava da
tribuna do Senado, pouco antes do advento do primeiro gabinete “ligueiro”, a necessidade de
união da classe política:
O desideratum seria que os homens liberais e os homens moderados, os homens
conservadores que não estão contentes com esse estado de coisas, com esses
partidos pessoais, se reunissem para formar um grande partido. Eu vejo, senhores,
que não há na sociedade brasileira, como eu tenho dito, elementos para um
antagonismo profundo e duradouro; mas porventura não há ideias que sirvam de
campo comum? O sistema representativo porventura está tão regular que a sua
regularidade não seja um belo empenho para os esforços comuns?
Ainda naquele ano de 1862 o parlamento responderia positivamente à pergunta de
Nabuco de Araújo, instilando novo vigor à política contemporizadora que na década de 1850
chamou-se “conciliação” e, agora, é rebatizada de “progresso”. O legado de Paraná sobrevive,
pois, menos como reprodução inerte do que já fora feito antes do que como inspiração a guiar
a conduta de conservadores e liberais, unidos por um ideal comum de moderação política e
pelo projeto de buscar novo equilíbrio entre os polos da ordem (conservação) e da liberdade
(progresso).
A importância da política da conciliação (1853-1859) na vida parlamentar da década
que sucede ao seu fim pode ser observada em dois fenômenos que são no fundo
complementares: 1) parte substancial dos atores que abraçaram a causa progressista a partir de
1862 estivera envolvida com a conciliação – tal é o caso de um dos maiores expoentes da Liga
Progressista, o já citado Nabuco de Araújo, e de seu conterrâneo José Antônio Saraiva; 2)
ideologicamente, a organização da Liga não é senão um desdobramento tardio de tendências
políticas que estiveram por trás do surgimento da conciliação em 1853 – essas tendências
mantiveram-se relativamente firmes ao longo da década de 1850 e sobreviveram à
desarticulação do projeto conciliador sob Ferraz e Caxias. Refiro-me aqui às novas
possibilidades de negociação política que a consolidação do Estado nacional engendrou, já
abordadas acima: a conciliação, expressão viva do novo momento de estabilidade
sociopolítica do Império, ao obliterar as antigas divisões de partido e os radicalismos de
saquaremas “empedernidos” ou de luzias “rebeldes”, operou profunda transformação na vida
política dos anos 1850 e permitiu que pela primeira vez o parlamento do Império surgisse
como espaço de arbítrio legítimo dos conflitos intraelite. Foi este impulso de unificação da
classe proprietária sob a égide de um reformismo contemporizador, aderente ao status quo
monárquico, o legado da conciliação à política do progresso. Esta, tal como aquela, organiza-
29
se segundo o mote de Paraná quanto ao fim das divisões entre saquaremas e luzias, ideia que
foi esmerilada alguns anos mais tarde por Torres Homem, quando ele afirmou (CÂMARA
DOS DEPUTADOS, 1857, sessão de 12 de junho; grifos meus) que a conciliação não era
senão a consequência natural de uma situação política na qual conservadores e liberais não
mais se opunham como nos idos de 1830 e 1840, mas antes uns realizavam a obra almejada
pelos outros – o que fazia da conciliação “a única [política] possível, a única sensata, a única
que exprime e satisfaz as necessidades da situação”; segundo Torres Homem, os tempos são
realmente novos, uma vez que:
Os grandes princípios que nos dividiam, o princípio de ordem e o princípio de
liberdade, cessaram suas lutas e descansam em mole paz; e o país rir-se-ia de ver
armar-se paladinos para defender instituições livres que ninguém ameaça, ou para no
meio de uma tranquilidade profunda, como a que existe, sustentar a ordem que
ninguém ataca e todos defendem. [...] O partido liberal governou cinco anos16
; e nos
conselhos da Coroa, na tribuna do corpo legislativo iniciou trabalhos, organizou
projetos em que transluz o espírito de sua política [...]. Ora, senhores, o que é que aí
encontramos? Encontra-se o voto bem pronunciado pela reforma da lei de 3 de
dezembro de 1841 [reforma do Código de Processo Criminal]; pela reforma
parlamentar e eleitoral; encontram-se ainda algumas tendências incertas de
descentralização nos graus ínfimos da escala administrativa. Há alguma coisa mais?
Não; a isto se limitaram seus projetos de melhoramento das instituições. [...] qual foi
a fortuna dessas reformas moderadas? Foram aceitas pela maioria conservadora que
as tinha precedentemente combatido. Desde o momento que uma Câmara dos
Deputados conservadora alterou em seus pontos fundamentais o sistema da lei de 3
de dezembro e operou a reforma eleitoral e parlamentar, desde esse momento
apagaram-se as cores exclusivas e rivais das bandeiras dos partidos! As condições
morais de sua existência como partidos desapareceram; o progressista ficou sem
programa, e o conservador, que realizara essas reformas em nome do progresso,
perdeu não só o seu programa, como até o seu nome, sem harmonia com o caráter da
missão que acabava de desempenhar.
O fato de as antigas contendas entre os princípios da liberdade e da ordem terem
cessado abre espaço para que a prática política seja agora construída com base nas posições
consensuais que sobreviveram àqueles embates. Esse distanciamento frente às paixões
partidárias e aos posicionamentos políticos combativos é uma marca que a conciliação
imprime no seu sucedâneo da década de 1860: em ambos os casos ambiciona-se afastar a arte
de governo do terreno político, eivada de parcialidades e antagonismos, e aproximá-la da
esfera administrativa, espaço “neutro” que permite a boa condução da coisa pública longe dos
exclusivismos de partido capazes de obstruir o progresso nacional. De acordo com Ilmar
Rohloff de Mattos (1990 [1987], pp. 189-190) essa oposição entre política e administração foi
constitutiva da mentalidade dos homens de Estado no Brasil oitocentista, servindo como uma
16
O orador refere-se aqui ao chamado “quinquênio liberal” que abrange os anos de 1844 a 1848, período no qual
os gabinetes foram compostos por gente egressa majoritariamente das fileiras do Partido Liberal.
30
espécie de princípio binário através do qual a arte de governo poderia ser avaliada pelo
desdobramento de suas ações ao longo de um continuum que vai do extremamente político
(visto negativamente) ao puramente administrativo (encarado positivamente). Nas palavras de
Mattos (1990 [1987], p. 189; grifos no original):
Teríamos, então, num dos extremos os deputados gerais; seguir-se-iam os
presidentes de Província, os ministros de Estado, os senadores e os conselheiros de
Estado; no outro extremo, o imperador. No primeiro dos extremos, o máximo de
política, entendida como “paixões partidárias”, incontroláveis porque ligadas aos
interesses locais [...]; no outro extremo, a ausência de política, o predomínio da
razão, dos interesses gerais que se confundem com os interesses da Pátria. [...] À
medida que seguimos pelo continuum, os cargos, as instituições e as próprias
pessoas parecem sofrer um aperfeiçoamento.
Importa reter aqui que esse binarismo que funcionava implicitamente como princípio
hierarquizante da prática política foi articulado de modo explícito durante os anos da
conciliação, sendo herdado pelos articuladores do progresso; ao excluir do campo
governamental as posições extremadas e as rusgas partidárias, a contemporização política que
na transição dos anos 1850-1860 abandona a forma conciliadora para assumir a do progresso
chama para si a tarefa de fazer da arte de governo um exercício de sóbria administração da
coisa pública, afastando-a da dependência de partidos incapazes de encarar as necessidades da
nação sem que a elas seja anteposta a consideração das lutas políticas passadas ou presentes.
Assim, como procurei demonstrar ao longo deste capítulo, o ideal de congraçamento
entre os partidos só pôde ser articulado pelos setores moderados dos Partidos Conservador e
Liberal quando a estabilidade sociopolítica do Império mostrou-se como fenômeno real e
tangível, capaz de, para usar uma vez mais as palavras de Sérgio Buarque de Holanda (2010,
p. 45), remover possíveis “barreiras a uma ação política intrépida e consequente”. O projeto
de constituição do parlamento como esfera legítima de arbítrio dos conflitos intrínsecos à
classe proprietária – o projeto de contemporização – emerge como possibilidade política
plausível a partir do momento em que o arranjo institucional-legal sobre o qual se assenta o
status quo monárquico recebe seus “retoques finais”, com o programa de reformas de 1850; a
partir daí, nessa data que sinaliza um ponto de inflexão no processo de construção do Estado
nacional, a tarefa de tecer um consenso entre a classe proprietária, apagando os vestígios das
antigas lutas entre saquaremas e luzias, é levada a cabo por um conjunto de atores políticos
que, apelando ao abandono das “mesquinharias” de partido em nome da boa administração
dos negócios de Estado, faz da contemporização entre os antigos antagonistas o meio de
construção deste consenso; um consenso que fora perseguido durante os anos da conciliação,
31
arrefecido entre 1859 e 1861 e reavivado a partir do ano de 1862, com a consolidação de uma
nova “liga” entre liberais e conservadores dissidentes.
32
Capítulo 2
A Formação da Liga Progressista
O ano de 1859, conforme apontado anteriormente, assistiu ao fim da política
conciliadora em razão da queda do ministério presidido pelo visconde de Abaeté e de sua
substituição, no dia 10 de agosto, pelo gabinete organizado por Ângelo Muniz da Silva
Ferraz. A morte do projeto conciliador, contudo, é sinalizada não tanto pelo homem que passa
a presidir o conselho de ministros, mas antes pelo reavivamento das posições partidárias que
os gabinetes da conciliação souberam, com maior ou menor sucesso, coibir. De fato, já vimos
que foi durante o gabinete Ferraz, mais precisamente no ano de 1860, que os sensíveis temas
da condução da política econômica imperial e da reforma do sistema eleitoral instaurado pela
Lei dos Círculos foram novamente trazidos ao centro da cena política; as opções binárias que
então apareciam como as únicas soluções possíveis a ambas as questões não poderiam senão
produzir um racha no seio do parlamento do Império, desfazendo assim a calmaria política
orquestrada pela conciliação. No que tange à questão econômica, a polarização se deu no
sentido da liberdade ou da restrição bancária e do crédito; por sua vez, a discussão da reforma
na legislação eleitoral consagrada nas eleições de 1857 opunha os defensores do modelo
vigente àqueles que enxergavam a necessidade de alterações na definição dos distritos
eleitorais (também chamados de “círculos”), isso quando não sustentavam a abolição mesma
do sistema. O antagonismo que perpassava esses temas tendeu a seguir as antigas divisões
partidárias que todos já davam como mortas: de um lado, luzias contrários às medidas
restritivas em economia e a favor da manutenção integral da Lei dos Círculos tal como fora
concebida originalmente; de outro, políticos saquaremas favoráveis ao “choque ortodoxo”
promovido por Ferraz e entusiastas de uma reforma no sistema eleitoral.
Ao fim da sessão legislativa de 1860, porém, ficava claro para os atores políticos coevos
que o realinhamento partidário em operação não mais seguia as velhas divisões entre os
sectários da ordem e os da liberdade. A polêmica em torno das questões econômica e eleitoral
trazidas à tona pelo gabinete Ferraz produziu, em realidade, dois movimentos distintos entre
os parlamentares do Império: se o problema da liberdade/restrição bancária pôde efetivamente
reaglutinar os conservadores – salvo a exceção de uma pequena parcela “heterodoxa” em
matéria econômica – em torno de uma bandeira comum, oposta àquela de seus antigos
antagonistas, o mesmo não ocorreu em relação à reforma eleitoral, ou seja, ao problema
político propriamente dito. Não há dúvida de que a polarização ressurgia após o longo exílio
ao qual a conciliação a condenara, mas entre os batalhões saquarema e luzia infiltrava-se
33
agora um novo e estranho elemento, desconhecido das antigas lutas que precederam a subida
do marquês de Paraná ao poder – trata-se da dissidência conservadora, fiel ao legado da
política da conciliação e, por isso mesmo, avessa a alterações na Lei dos Círculos
(HOLANDA, 2010, p. 68). Já foi aventado alhures que a articulação entre os elementos
dissidentes do Partido Conservador e os políticos liberais está na base da criação da Liga
Progressista em 1862, ano em que Zacarias de Góis e Vasconcelos organizará o primeiro
gabinete sob o auspício desta nova agremiação política. Assim, depois de termos explorado
seus antecedentes mais remotos, expressos na política da conciliação, cabe agora investigar as
condições concretas que, após o fim desta, permitiram que o realinhamento partidário
posterior à “trégua” da década de 1850 se desse à margem da oposição entre saquaremas e
luzias que caracterizara o período regencial e os anos do regresso.
2.1. O ministério Ferraz e as eleições de 1860
A importância do ministério de 10 de agosto de 1859 na transformação da atmosfera
política do Império tem no tratamento das questões econômica e eleitoral sua causa principal,
mas não a única. A sagacidade política de seu presidente também teve aí um importante papel,
inclusive na produção daquela causa. À época de sua escolha para a presidência do ministério,
Ferraz era um notório (e controverso) político baiano que, a despeito de sua forte oposição ao
programa da conciliação, era identificado com a ala “moderada” do Partido Conservador, uma
vez que não mantinha relações próximas com os saquaremas fluminenses (NEEDELL, 2006,
p. 207). Os antecedentes de Ferraz indicavam bem de onde se esperava que surgisse o apoio
ao gabinete: a retirada de Abaeté e de sua política econômica restritiva, encabeçada pelo
ministro Torres Homem, gerou a expectativa, nutrida pela bancada liberal e por uma minoria
conservadora que flertava com a liberdade bancária, de que o encaminhamento da questão
econômica sofreria agora nova inversão de sentido; dentro desse quadro, tanto a atuação de
Ferraz quanto o apoio de tais setores do parlamento eram fenômenos dados como certos. Nada
mais ilusório, porém, do que supor tamanha previsibilidade de ação em um político
sabidamente imprevisível, ao qual seus contemporâneos lhe atribuíam uma “falta de senso
comum” (HOLANDA, 2010, p. 78) tão notória quanto a inteligência que nele reconheciam.
De fato, já nos primeiros meses de sua administração, Ferraz realiza um movimento de
aproximação com um grupo político que pouco ou nada dele esperava, ao nomear para a pasta
do Império – a qual ele estava comandando interinamente – o conservador João de Almeida
Pereira Filho, deputado fluminense pelo distrito de Campos. A nomeação de Almeida Pereira
34
inaugura uma aliança do gabinete com o Partido Conservador – aliança que, no ano de 1860,
revelaria sua centralidade no processo de rearticulação do antagonismo político. O aceno para
o grupo saquarema era muito claro: Almeida Pereira não era apenas “mais um” dentre a vasta
maioria conservadora na Câmara do quatriênio 1857-1860; tratava-se de um político com
relações privilegiadas com aquele que era tido como o chefe por excelência do partido da
“Ordem”: Eusébio de Queirós. Relações essas que transcendiam a esfera exclusivamente
política, uma vez que tais homens estavam também ligados por laços familiares – Almeida
Pereira era tio da esposa de um dos filhos de Eusébio (NEEDELL, 2006, p. 207).
A entrada do deputado campista para o ministério significou, pois, a adesão dos
saquaremas à política do gabinete de 10 de agosto. Ferraz, por sua vez, não decepcionou aos
seus recém-aliados no que tange ao tema mais sensível daqueles anos: a condução da política
econômica. Contrariando as expectativas de inversão do plano ortodoxo que o gabinete
Abaeté aventou, mas que não pôde implementar de fato, Ferraz acabou por levar adiante a
política ortodoxa de seu antecessor (Torres Homem) na pasta da Fazenda17
: após refletir sobre
a questão financeira no intervalo das sessões legislativas de 1859 e 1860 (NEEDELL, 2006, p.
207), ele apresenta à Câmara um conjunto de medidas de alto teor restritivo, limitando, por
exemplo, a atividade das sociedades anônimas ao atrelar o seu funcionamento à anuência
prévia do Conselho de Estado (GRAHAM, 1968, p. 224; HOLANDA, 2010, pp. 65-66). Os
debates acalorados que o projeto suscita e a respectiva polarização das posições em jogo,
seguindo as divisões partidárias, representam o primeiro dos dois duros golpes que o clima
“contemporizador”, o qual reinara no parlamento da época da conciliação, sofre naquele ano
de 1860; a ampla maioria dos conservadores na Câmara garante, todavia, fácil aprovação à
nova legislação que, não por acaso, passa a ser conhecida como a “Lei Ferraz”. O outro golpe
que fere de morte a obra da conciliação refere-se à reforma da legislação eleitoral, à qual fiz
referência no início deste capítulo. Trata-se de tema que, pelas consequências diretas na
reorganização do campo político do Segundo Reinado, exige que dediquemos mais tempo em
sua apreciação.
Conforme ressaltado anteriormente, a grande aquisição concreta da política conciliatória
levada a efeito por Paraná foi a aprovação de um novo marco legal em matéria eleitoral: a
chamada Lei dos Círculos. Vimos que o sistema do voto distrital inaugurado por essa lei teve
seu primeiro teste no ano de 1857, e o resultado foi extremamente positivo para aqueles que
advogavam pela causa da contemporização entre saquaremas e luzias: pela primeira vez desde
17
Além do cargo de presidente do conselho de ministros, Ferraz também exerceu durante todo o seu ministério a
chefia da pasta da Fazenda.
35
o fim do “quinquênio liberal” (1844-1848), após a queda do ministério de Francisco de Paula
Sousa e Melo, o Partido Liberal conseguia eleger uma bancada minimamente expressiva em
termos numéricos. O ideal de representação das minorias como condição da estabilidade
parlamentar almejada por setores da classe política parecia garantido pelo sistema eleitoral
que então se consagrava, o qual tinha sua contraparte na formação de ministérios cuja
organização passava à margem das antigas lideranças políticas dos tempos de combate entre
os partidos.
Contudo, a nova legislação eleitoral também produziu seus descontentes. O grupo que
mais sofreu seus efeitos negativos foi o saquarema, a fração majoritária do Partido
Conservador que tinha nas figuras de Itaboraí, Uruguai e Eusébio seus principais chefes. A
fragmentação do processo eleitoral em múltiplos distritos no interior das províncias quebrou a
férrea unidade de comando dos homens do partido “ordeiro”, visto que seus líderes agora não
mais poderiam acompanhar com igual dedicação as eleições em todos os pontos do Império.
Na verdade a aprovação da Lei dos Círculos só vinha agravar a situação de desmantelamento
da hegemonia saquarema que começara com a formação mesma do gabinete Paraná em 1853,
pois sua composição, ao não contemplar os homens fortes do Partido Conservador,
privilegiando figuras desligadas das velhas lutas partidárias, já orquestrava a desagregação do
principal mecanismo por trás das avassaladoras maiorias que haviam sustentado o predomínio
saquarema durante os anos do regresso: a ampla e irrestrita intervenção governamental nas
eleições (GRAHAM, 2001a [1985], p. 806). Não que ela tenha cessado, é claro: apenas não
estava mais a serviço da reprodução do partido no poder, servindo antes à manutenção de uma
política ministerial que se pretendia estar acima dos partidos políticos. Daí a importância do
primeiro pleito realizado após a promulgação da Lei dos Círculos no esfacelamento da
liderança saquarema durante os anos da conciliação: competindo por sua própria conta e tendo
como adversários candidatos revestidos da proteção moral – e, principalmente, material – do
ministério, nem sequer em seu tradicional reduto eleitoral, a província do Rio de Janeiro, foi
possível obter um resultado animador; dos doze deputados eleitos no pleito de 1857, apenas
cinco possuíam ligações estreitas com a fração não ministerial (i.e., avessa à conciliação) do
Partido Conservador (NEEDELL, 2006, p. 198).
Não há dúvida, portanto, de que a situação política consubstanciada na nova legislação
eleitoral exerceu um papel crucial na criação de um racha entre, de um lado, os conservadores
“conciliados” e, de outro, aqueles que não transigiram com a política inaugurada por Paraná.
No ano de 1860, o encaminhamento da questão financeira por parte do gabinete Ferraz
parecia capaz de fornecer as condições de superação dessa cisão insólita no seio de um partido
36
que sempre fora reconhecido por sua coesão interna e unidade de ação; no entanto, não foi
preciso esperar muito tempo para perceber que o aglutinamento entre as duas facções não
aconteceria no transcorrer daquela sessão legislativa – a discussão da reforma da Lei dos
Círculos efetuada nesse mesmo ano acirrou uma vez mais o conflito nas fileiras do Partido
Conservador. Com efeito, a proposta de alteração dos distritos eleitorais fora de iniciativa da
fração “não conciliada” dos conservadores; na defesa do projeto argumentava-se com a
mesma crítica pela qual esse grupo havia se oposto à lei na ocasião de sua apresentação por
parte do gabinete Paraná: a criação de distritos dispersos pelo interior das províncias
facilitaria a eleição das “notabilidades de aldeia”, figuras de pouca ou nenhuma expressão
política fora do âmbito local ao qual deviam sua eleição (DOLHNIKOFF, 2009, pp. 48-49). A
proposta de que cada distrito passasse a eleger três e não apenas um deputado, encampada por
Ferraz no decorrer do debate, ocasionou uma fissura entre os parlamentares: de um lado,
unânime oposição por parte da deputação liberal que, afinal, devia sua própria existência à lei
que se pretendia agora alterar; de outro, apoio da maioria conservadora, a qual a Lei dos
Círculos diminui certamente, mas que não foi capaz de desagregar. Todavia, a linha divisória
que separou opositores e defensores da reforma estava longe de seguir à risca o velho
dualismo entre saquaremas e luzias: no espaço intersticial que separava os dois antagonistas a
conciliação conseguira introduzir um novo elemento, inteiramente ausente dos confrontos
políticos anteriores a 1853. Falo aqui de um grupo de políticos pouco expressivo
numericamente, mas cuja autoridade pessoal sem dúvida suplantava a falta numérica: a fração
do Partido Conservador formada ou “convertida” pela experiência da conciliação. De fato, aos
liberais que se opuseram – sem sucesso, pois o projeto acabaria sendo aprovado – à reforma
da Lei dos Círculos somou-se um conjunto de políticos egresso das fileiras conservadoras, tal
como Nabuco de Araújo ou o próprio marquês de Olinda “que, fiéis muitas vezes à memória
de Paraná, preferiam manter incólume sua obra” (HOLANDA, 2010, p. 68).
A despeito dessa dissidência crescentemente antiministerial no seio do Partido
Conservador, a coloração saquarema da administração Ferraz foi amplamente reconhecida
pelos atores políticos coevos. Ao se acompanhar o balanço produzido pelos periódicos da
Corte sobre a sessão legislativa de 1860, finalizada no mês de setembro, fica claro que a
aproximação de Ferraz com os conservadores refratários ao legado da conciliação não passou
despercebida a ninguém. Nesse sentido, é possível encarar o retorno do antagonismo político
no ano de 1860 como uma resposta à reaproximação, sob Ferraz, entre os políticos
saquaremas e a máquina governamental – movimento visto como perigoso aos olhos dos
liberais e dos conservadores “conciliados”, uma vez que a cumplicidade dos saquaremas
37
frente ao aparato estatal estivera na base da hegemonia política conservadora pré-1853. A
centralidade do apoio saquarema na sustentação da política ministerial de Ferraz foi ressaltada
pela folha política conservadora O Regenerador, fundada e dirigida pelo jornalista Justiniano
José da Rocha, com o qual já topamos no capítulo anterior. Em artigo intitulado “O governo e
os conservadores” publicado pouco depois da finalização do trabalho das câmaras naquele
acalorado ano de 1860, o Regenerador (02/10/1860, edição nº 86; grifos meus) afirmava que:
O ministério não pode deixar de estar identificado com o partido conservador: com
quem achou-se ele no parlamento? Com os conservadores: não lhe deram esses
somente um apoio ineficaz, que lhe servisse para arrastar uma inglória existência;
ajudaram-no a erguer um padrão de glória de eterna duração nos anais brasileiros.
[...] Hoje o Snr. Ferraz não é simplesmente um dos nossos primeiros estadistas, é um
vulto histórico da altura dos mais elevados: associa seu nome a um complexo de
medidas que hão de exercer na política, nas finanças, na moralidade pública,
duradoura, mais do que secular influência. E a quem deve o gabinete essa imensa
glória? Não fosse a exemplaríssima devoção que lhe prestaram os homens
conservadores, essa constância dos seus esforços pela causa ministerial, essa
identificação completa em que viveram, feliz deveria reputar-se o ministério se
houvesse conseguido a adoção da quarta parte das suas propostas. Mas os
conservadores, apoiando o ministério, dando-lhe o triunfo, serviam as suas ideias.
Sim, mas o que se segue daí? É que o gabinete Ferraz foi a mais genuína
identificação das ideias conservadoras da atualidade.
A relação entre a política ministerial de Ferraz e os anseios atuais da bancada
conservadora era, pois, visível. Diagnóstico um pouco mais distorcido, porém igualmente
significativo do clima de crescente antagonismo político, é fornecido pela folha liberal
“moderada” simpática à administração de Ferraz: o Correio da Tarde. No dia 9 de outubro
(edição nº 228) o Correio publica uma colaboração anônima na qual a polarização das
posições parlamentares durante a sessão legislativa daquele ano é creditada menos ao
posicionamento do ministério frente aos temas em discussão do que à má vontade de uma
parcela da bancada liberal que, já no início dos trabalhos da Câmara em 1860, travou renhido
combate ao gabinete, destoando da atuação que pautara o Partido Liberal durante os
ministérios da conciliação:
O rompimento de alguns liberais novos, contra o ministério, na câmara dos
deputados, foi um grande erro, uma precipitação, talvez um simples capricho, em
que não funcionou a razão política. [...] O ministério Paraná, que declarou-se
firmemente conservador, o ministério Olinda, que aventurou-se a dizer: que não só
era conservador, como havia de sê-lo sempre, mereceram o apoio do partido liberal;
entretanto o ministério Ferraz, declarando solenemente não pertencer a partido
algum, sofre, nos primeiros reencontros, de alguns deputados liberais novos, a
guerra crua, e injuriosa. A irritação dos conservadores foi-se adoçando, e as suas
suspeitas contra o gabinete se modificando, à proporção que esse pequeno grupo de
liberais novos agredia em crescente calor e excesso o ministério. [...] O grupo liberal
da oposição era em muito pequeno número. Três ou quatro, quando mais de 16
38
prestaram o seu apoio ao gabinete! [...] A oposição do grupo liberal novo, na
câmara, foi tão violenta, tão imprevista, que acanhou grande número de liberais, e
fez o governo pender mais para o lado oposto.
De fato, intensa foi a oposição ministerial por parte de um grupo de “liberais novos”
que, em razão da Lei dos Círculos, pela primeira vez ascendia à deputação nacional18
. Mas
esta oposição que se formou no ano de 1860 não pode ser encara como fruto do capricho de
poucos; afinal, foi o encaminhamento dado por Ferraz às polêmicas questões da política
financeira e da reforma do sistema eleitoral o verdadeiro propulsor da reorganização das
posições políticas no parlamento do Império, a qual envolveu muito mais do que uns poucos
luzias fervorosamente antiministeriais.
Em resumo, o balanço feito até agora da situação política durante o ano de 1860 permite
afirmar que três são as razões pelas quais o gabinete Ferraz deve ser visto como o principal
ator por trás da rearticulação do antagonismo partidário, posto que sob novos matizes, após a
experiência conciliatória: em primeiro lugar, temos o seu aceno aos políticos saquaremas logo
na formação do ministério, com a nomeação de Almeida Pereira para a pasta do Império; a
oposição “saquaremas x luzias” é reforçada no encaminhamento dado à questão econômica,
com a aprovação da política restritiva que ficou conhecida pelo epíteto de “Lei Ferraz”;
simultaneamente a este fator, e operando em sentido contrário a ele, o apoio de Ferraz ao
projeto de reforma da Lei dos Círculos proposto pelos conservadores teve o efeito de diluir a
solidariedade intrapartidária em formação, criando uma situação de confronto político que
confundiu a conhecida divisão entre saquaremas e luzias em razão da existência de uma
facção conservadora “dissidente” que atuou ao lado dos representantes liberais. Meses mais
tarde, com os preparativos para as primeiras eleições sob o regime dos círculos de três
deputados, essa coligação entre liberais e conservadores dissidentes seria encarada como a
fórmula capaz de impedir a perpetuação de um predomínio político que, no dizer da imprensa
liberal de época, era o predomínio de uma “oligarquia”.
Antes, porém, das eleições para a deputação que aconteceriam entre 30 de dezembro e
30 de janeiro de 1861, ocorrera um outro evento político importante no processo de
18
Dentre os “três ou quatro” deputados liberais aos quais o Correio faz referência, destacou-se a atuação
oposicionista do novato Martinho Álvares da Silva Campos, eleito pelo distrito de Vassouras para a legislatura
de 1857-1860. Com a reforma da Lei dos Círculos, contudo, a ampliação do 3º distrito da província do Rio de
Janeiro para além do município de Vassouras impediu sua reeleição: das cinco localidades que passaram a
integrar o distrito, apenas em Paraíba e Vassouras Martinho Campos ficou entre os três candidatos mais votados
(CORREIO MERCANTIL, 01/02/1861, edição nº 32). Não obstante a isso, ele toma assento na Câmara em
junho de 1861, substituindo a Teófilo Ottoni como um dos três representantes pelo 1º distrito do Rio de Janeiro,
uma vez que este optara por representar o 2º distrito da província de Minas Gerais pelo qual também havia sido
eleito (BARÃO DE JAVARI, 1979 [1889], p. 331).
39
reavivamento das posições partidárias depois da trégua conciliatória: as eleições de
vereadores nos municípios do Império. Com efeito, o pleito municipal que se deu no mês de
setembro funcionou como um primeiro teste em relação às eleições de dezembro, e isso tanto
para o governo quanto para os partidos: seria de se esperar, em relação ao ministério, que sua
propalada (e insólita) política de não intervenção nas eleições para a Câmara naquele ano
fosse confirmada ou desmascarada através da atitude que as autoridades públicas tomariam
durante o pleito municipal; no que tange aos partidos, o anúncio de abstenção do gabinete
Ferraz frente ao processo eleitoral impelia-os à reorganização de sua própria base de apoio –
tratava-se de um momento no qual o voto, deixado à “opinião pública”, poderia dar a medida
da força dos partidos nos mais diversos pontos do Império (NEEDELL, 2006, p. 210). Nesse
contexto, é emblemático que os resultados das eleições municipais tenham sido
significativamente favoráveis ao Partido Liberal, não tanto por ele ter suplantando aos
saquaremas no território nacional como um todo, mas antes por ter levado vantagem sobre
eles em localidades importantes do Império, como foi o caso do próprio município neutro do
Rio de Janeiro. Ora, a vitória oposicionista no centro político da nação demonstrava a efetiva
disposição do governo em se abster do processo eleitoral que lhe cabia conduzir. Mais do que
isso, o fato de que o sucesso das chapas oposicionistas tenha ocorrido em um ambiente no
qual a intervenção direta das autoridades fora rechaçada pelo próprio gabinete instilava novo
ânimo nas fileiras do Partido Liberal, recrudescendo a competição partidária pouco antes do
importante pleito de dezembro. Isso porque a inesperada vitória dos liberais foi por eles
interpretada como uma demonstração de que atualmente a “opinião nacional”, quando não
coagida pelo poder das autoridades, pendia para os homens do progresso e não para os da
conservação. Depois de conhecido o resultado das eleições na Corte, uma das “publicações a
pedido”19
do Correio da Tarde (18/09/1860, edição nº 210; grifos no original) expressou essa
ideia ao afirmar o seguinte:
Os homens que sustentam a necessidade da intervenção do governo nas eleições,
conhecem perfeitamente que sem essa intervenção eles perdem sempre; porque o
país detesta o seu domínio exclusivo nos negócios públicos. Deixem ao povo o livre
exercício de seus direitos, e verão como triunfam em grande maioria os candidatos
do grande partido nacional, que tomou por divisa [a expressão] – Progresso
moderado.
19
Grande parte dos periódicos de época dedicava uma seção especial para a publicação de textos cuja autoria não
era da redação, mas sim de seus leitores. Tais publicações a pedido, quando versavam sobre política, eram
normalmente feitas sob anonimato, indicando-se no máximo um pseudônimo qualquer (e.g., “o liberal”, “o
verdadeiro conservador”, “um votante”, etc.).
40
Muito mais incisiva seria a folha liberal A Atualidade, dirigida por Lafayette Rodrigues
Pereira e Flavio Farnese, luzias que no início da década de 1870 passarão a integrar a
dissidência republicana. Na sua leitura (22/09/1860, edição nº 100), o pleito municipal
indicava o renascimento glorioso do Partido Liberal, proscrito da vida pública desde o fim
traumático do ministério Paula Sousa em 1848:
O resultado até aqui conhecido das eleições municipais em diversas localidades do
império, vai denunciando um acontecimento da mais súbita importância. O partido
liberal, que de 1849 para cá tem vivido ora adormecido na modorra do desânimo,
ora acalentado nos braços soporíficos da conciliação, e sempre comprimido pela
pesada e ciosa mão do poder central, renasce cheio de vigor e esperança, desenrola
seu estandarte em todos os ângulos do império, e cônscio de sua força arroja-se na
liça com denodo e resolução. [...] A experiência vai mostrando de um modo
irrecusável que são baldadas todas as tentativas que se fazem para que as ideias
liberais não prosperem e frutifiquem entre nós. Nem a violência e a compressão,
nem os afagos da corrupção, poderão impedir que as doutrinas liberais germinem e
se infundam pelo vasto império de Santa Cruz.
A centralidade dos resultados obtidos em setembro na preparação de saquaremas e
luzias para as eleições de deputados que então se aproximava foi percebida com clareza pelos
redatores do Atualidade. O pleito municipal indicava que os partidos estavam vivos
novamente20
; além disso, a vitória liberal evidenciava um fato francamente favorável àqueles
que dela se beneficiaram: o discurso da conservação parecia perder o seu apelo de outrora,
com parte do “povo” (leia-se: da elite socioeconômica do Império) passando a flertar com os
partidários do progresso. Esse parecia ser o caso dos setores urbanos emergentes que, desde a
década de 1850, cresciam em tamanho e importância; tal espécie de “aburguesamento” de
parte da classe proprietária, impulsionado pelo processo de modernização socioeconômica
gerado pela expansão da atividade agroexportadora (cf. GRAHAM, 1968), teria sido
responsável pela formação de uma base de apoio para liberais e conservadores “moderados”
entre os anos de 1850-1860, a qual teve sua contrapartida num reformismo característico dos
anseios políticos dessas duas décadas: proposição de reformas no plano jurídico (supressão
dos dispositivos legais que restringiam a liberdade individual, consolidados durante a política
“regressista”) e, principalmente, no campo econômico (expansão da livre iniciativa e defesa
da liberdade bancária) (NEEDELL, 2006, p. 203). De fato, apenas uma readequação do
equilíbrio de forças entre as bases políticas dos partidos imperiais explicaria a derrota
saquarema no Rio durante o exercício de um ministério que, nas palavras do Regenerador,
20
“O resultado dessa eleição provou aos mais incrédulos que a conciliação havia tocado a seu derradeiro
momento de existência, e que os partidos, como que por encanto, levantavam a pesada lousa que sobre eles
colocara a mão poderosa do finado marquês de Paraná. Cheios de seiva nova, mais forte e mais fecunda, ei-los
prontos a disputar a direção dos negócios públicos” (A ACTUALIDADE, 17/10/1860, edição nº 103).
41
“foi a mais genuína identificação das ideias conservadoras da atualidade” (cf. p. 37). O
gancho entre as eleições que se finalizaram e as que estavam por vir é feito pelo Atualidade
em artigo do dia 17 de outubro (17/10/1860, edição nº 103; grifos meus):
[Durante as eleições municipais] Muitos que outrora pertenceram à falange
conservadora, convencidos que esse partido tinha já feito todas as possíveis
conquistas, que sua existência não tinha um objeto real, e que todos os brasileiros
aceitavam a ordem como uma condição de progresso e de liberdade, foram-se alistar
nas falanges do partido liberal, na qual hoje descansam as esperanças do país. Esta
crença geral é o que explica razoavelmente o triunfo das ideias liberais por toda a
parte. O povo não confia mais no partido que se denomina ordeiro, porque está
convencido que todos os brasileiros, antigos liberais e antigos conservadores,
querem a ordem. O que o povo vê muito claramente é que os chefes do partido da
ordem, de certo tempo para cá exploram suas posições políticas em seu particular
benefício. O que a ninguém tem escapado é que hoje a ordem está consolidada e a
liberdade em perigo. Se os cidadãos conservarem-se na indiferença em que têm
estado, nossas instituições livres continuarão a sofrer os repetidos golpes que lhe
desfecha a grei oligárquica, e afinal serão completamente sacrificadas.
É nesse clima, pois, de reavivamento das posições de partido que se procederá às
eleições para a deputação nos meses de dezembro de 1860 e janeiro de 1861. Os resultados
favoráveis ao Partido Liberal no pleito de setembro e a confirmação de que o gabinete Ferraz
manteria sua promessa de não intervenção acirram a disputa entre os velhos antagonistas;
simultaneamente a isso, contudo, tem-se a estranha impressão de haver um elemento que se
interpõe entre os partidos de outrora, impedindo que a polarização atual assuma a forma do
conhecido binarismo “saquaremas x luzias”: trata-se da experiência da conciliação. Assim é
que, após o fim do pleito municipal, os primeiros movimentos no sentido da rearticulação
partidária com vistas às eleições de dezembro são encarados pela imprensa de maneira
ambígua: o retorno dos partidos é saudado com entusiasmo, embora se reconheça que seus
chefes, suas ideias e seus objetivos concretos, após mais de cinco anos de contemporização,
não podem e nem devem ser os mesmos de antes. Não é por outro motivo que a notícia dada
pelo Jornal do Commercio a 27 de setembro sobre o encontro de lideranças saquaremas na
casa do deputado Sergio Teixeira de Macedo no dia anterior repercutirá intensamente nos
órgãos liberais da Corte. Nessa mesma data o Correio da Tarde (27/09/1860, edição nº 218),
referindo-se à informação dada por aquele periódico e complementando-a com a notícia de
que também as lideranças oposicionistas haviam se reunido anteriormente, aplaude o retorno
das posições partidárias, tributando-a à “política da não intervenção da autoridade nas
eleições”. Dois dias mais tarde, o editorial do Correio Mercantil (29/09/1860, edição nº 270;
grifos no original) – folha sob a direção de Francisco Otaviano de Almeida Rosa, liberal que
assumirá importante papel no pleito de dezembro e na Câmara que dele emergirá – traz à tona
42
a questão do desconhecimento, para além do círculo restrito dos chefes saquaremas, das ideias
“em nome das quais se pretende restaurar um partido”. A referência aos anos da conciliação,
embora indireta, é visível; mencionando uma fala de Eusébio de Queirós no Senado daqueles
tempos, o Mercantil questiona, não sem alguma ironia:
Qual é o símbolo dos apóstolos que se reuniram no templo do Sr. Sergio [Teixeira]
de Macedo? É pergunta que fazem todos os conservadores com quem temos
conversado. Lembrando-se do que disse no senado há pouco tempo o Sr. Eusébio de
Queirós, quando declarou que ele estava hoje mais próximo das ideias de seus
antigos adversários do que de seus aliados de outrora; lembrando-se de que S. Ex.
confessou que a necessidade sentida hoje pelos partidos de boa fé era de mais
liberdade prática – os conservadores de boa fé desejam saber se a reunião eleitoral
tem por fim mandar ao parlamento propugnadores dessa liberdade prática que se
aproximem dos antigos adversários do Sr. Eusébio.
Para este como para outros observadores coevos, o problema que se colocava era o da
reconstrução das posições partidárias após um longo período no qual as diferenças entre
saquaremas e luzias haviam sido elididas em nome de uma condução política que se fez à
margem dos partidos. Todavia, a quebra do consenso conciliatório e o retorno do antagonismo
político pressupunham condições que pareciam não se efetivar naquele momento: a existência
de lideranças autorizadas para falar em nome das agremiações e, principalmente, princípios e
propostas que pudessem servir de bandeira exclusiva deste ou daquele partido. Com efeito, a
conciliação havia empanado a ambos, de forma que o momento político atual exigia esforços
no sentido tanto da recomposição dos homens quanto das ideias – não era crível supor que as
linhas divisórias entre liberais e conservadores ainda fossem as mesmas de antes, uma vez que
até mesmo o “papa”21
do credo saquarema – Eusébio de Queirós – passava a advogar “mais
liberdade prática”. É nesse sentido que se pronunciará o Mercantil do dia seguinte
(30/09/1860, edição nº 271; grifos no original), questionando a própria existência de uma
liderança conservadora capaz de tomar a palavra em nome do partido como um todo. A
referência à política da conciliação é agora explicitada com clareza:
Onde estavam os chefes quando o Sr. marquês de Paraná, compreendendo bem a
situação dos espíritos, quis acabar com a divisa de liberais e conservadores, e fazer
um só partido? Estavam acalentando a prole que já começava a reclamar fubá. Os
tais chefes calaram-se, correram atrás do carro do marquês, e só depois do carro ter
ido parar ao cemitério é que voltaram de cabeça erguida e com presunção de
21
O termo foi cunhado por Francisco Otaviano no Correio Mercantil. No ano de 1860, com o acirramento das
tensões partidárias, esta folha passa a se referir aos antigos chefes do Partido Conservador (Itaboraí, Uruguai,
Eusébio) como os integrantes do “consistório” saquarema. Rememorando sua estreia no jornalismo político
naquele mesmo ano, Machado de Assis (2009 [1898], p. 141; grifos no original), então redator do Diário do Rio
de Janeiro, afirma sobre essas expressões que: “[Eusébio era] o papa; Itaboraí, Uruguai, Sayão Lobato e outros
eram cardeais, e todos formavam o consistório, segundo a célebre definição de Otaviano no Correio Mercantil”.
43
valentes! [...] Chefes! De quê? Se não há luta, se não há divergências, se não há
partidos – de que é que os tais senhores se aclamaram chefes?
Também preocupado com a necessidade de esclarecimento público a respeito dos
objetivos atuais dos partidos que ora vão se reorganizando, o Correio da Tarde de 1º de
outubro – um dia após o texto do Mercantil, portanto – dedica extensa reflexão ao problema.
No artigo intitulado “Reuniões eleitorais”, publicado na coluna Espelho (01/10/1860, edição
nº 221; grifos meus), tem-se nova referência ao papel da experiência conciliatória na
construção do momento político atual, em tudo diferente aos anos em que a oposição
“saquaremas x luzias” estruturava o campo da luta política; aqui, contudo, a exigência da
clarificação dos princípios que atualmente estariam guiando os partidos é ampliada para além
das fileiras conservadoras – também o Partido Liberal necessita dizer em que consiste a sua
plataforma, e como ela difere daquela de seus antagonistas:
O país, que deve dar breve sua sentença no grande pleito em discussão, tem
indisputável direito de ouvir a um e a outro partido, de saber de onde vem, e para
onde vão os seus diretores. O passado dos dois partidos não precisa de explicação,
porque o país inteiro o conhece. [...] Mas é certo que, depois da renhida luta e de
dolorosos conflitos, os partidos como que fizeram tréguas; sujeitaram-se, posto que
murmurando, à política conciliadora, que os foi obrigando a transigir; e por fim
sofreram os efeitos da lei da decomposição. [...] Dos antigos chefes uns foram
ceifados pela inexorável Parca; outros retiraram-se, e guardaram pertinaz silêncio,
esperando os acontecimentos, e alguns receberam posições oficiais da política
conciliadora, dando assim uma prova de modificação em suas ideias, e de
disposições para a fusão dessas mesmas ideias em um sistema mais moderado, e
menos exigente. Neste estado de coisas não basta, para satisfazer ao país, para
ilustrá-lo e conduzi-lo no voto que tem de proferir, que o liberal ou conservador se
erga e diga: “eu sou quem sou”. Se tomou parte nas passadas lutas, se as
acompanhou, ou dirigiu, urge que nos venha dizer o que pretende e como quer
superar as dificuldades presentes e solver as questões que se ventilam. Se pugnar
pelo passado, diga-nos isto mesmo com franqueza. Se modificou essas ideias, pelas
quais marchava com fanatismo ao combate, diga quais são essas modificações. [...]
Se da política conciliadora surgiram homens novos para constituírem os partidos, e
dirigi-los neste ou naquele sentido, por maior força da razão cumpre que se
expliquem perante o país, que ainda os não conhece.
A exigência feita pelo Correio no dia 1º de outubro representa um ponto de inflexão no
processo de reorganização das forças políticas no ano de 1860. Passadas as primeiras
impressões quanto aos resultados do pleito municipal e às chamadas “reuniões eleitorais” de
ambos os partidos – eventos ocorridos no mês anterior –, as lideranças liberais reunidas na
Corte passam a se dedicar intensamente aos preparativos para as eleições que então se
aproximavam; nesse processo, contam com um elemento novo na dinâmica da luta partidária:
a dissidência conservadora que, com o fim da experiência conciliatória, torna-se uma
importante força política naquele ano de recrudescimento do antagonismo partidário. Já foi
44
apontado que a discussão da reforma da Lei dos Círculos durante a sessão legislativa de 1860
ocasionou uma polarização que não seguira a divisão entre saquaremas e luzias, visto que, ao
lado destes e contra aqueles, estivera uma fração do Partido Conservador que não aceitava a
alteração da maior conquista legal realizada pelo falecido marquês de Paraná. Ora, o fato de
que a oposição conjunta naquele momento não tenha reunido forças suficientes para impedir a
alteração dos círculos de deputados não ocasionou o fracasso da aliança em seu momento
mesmo de nascença – pelo contrário, a experiência comum da derrota parece antes ter
fortalecido a união entre liberais e conservadores dissidentes. A evidente identificação do
ministério Ferraz com as bandeiras conservadoras daquele momento – restrição bancária e
alteração da legislação eleitoral – fazia com que a oposição tivesse todos os motivos possíveis
para duvidar de que o programa de não intervenção nas eleições de dezembro fosse de fato se
concretizar. O procedimento das autoridades no pleito municipal e a vitória liberal em
diversos pontos do Império não alteravam fundamentalmente essa suspeita; ao contrário,
esperava-se que a derrota dos conservadores os jogasse ainda mais nos braços do governo,
uma vez que o apoio deste poderia impedir que o fato se repetisse em um contexto muito mais
nocivo ao poder e influência desse grupo: as eleições para a Câmara. Foi precisamente por
esse prisma que a reforma eleitoral aprovada passou a ser encarada: a alteração da legislação
em pleno ano eleitoral, proposta pelos saquaremas e com a chancela do gabinete, não poderia
ser senão “um recurso pelo qual a oligarquia saquarema buscava fortalecer-se”
(BEIGUELMAN, 1967, p. 101). Assim, o racha no seio das fileiras conservadoras, que já se
formara à época da discussão do projeto de reforma da Lei dos Círculos, torna-se ainda mais
intenso na medida em que se aproximam as eleições de dezembro.
O resultado desse processo na reorganização do campo político em operação é de suma
importância para a elucidação das razões que levaram à formação de uma “liga” entre liberais
e conservadores nos anos iniciais da década de 1860. O quadro que venho desenhando até
aqui demonstra que o recrudescimento da disputa política em 1860 não pôde ser canalizado
pelas vias já consagradas da prática política no Brasil imperial, ou seja, pelos dois partidos
políticos então existentes. O legado da conciliação permitiu que se formasse um grupo de
atores que operava à margem da semântica partidária através da qual a história política do
período regencial e da primeira década do reinado de d. Pedro II adquirira inteligibilidade.
Nesse sentido, a crescente polarização que estava em curso durante os meses que precederam
às eleições para a Câmara naquele ano foi capaz de forjar um arranjo político novo que,
embora remontando à experiência da conciliação, não se reduzia a ela; afinal, se a política de
Paraná foi um programa concebido “de cima” (i.e., nascida como plataforma ministerial), a
45
aliança tecida entre liberais e conservadores dissidentes em 1860 se faz na condição de
aliança de oposição: trata-se de combater um inimigo comum a ambos os grupos, qual seja, a
“oligarquia” saquarema encastelada no aparelho estatal, ciosa de suas próprias posições e
vantagens, não disposta a transigir em nome da realização efetiva dos ideais parlamentarista e
representativo que pressupunham, respectivamente, a alternância do poder entre as diferentes
agremiações e a garantia da representação das minorias no espaço institucional da política.
Ao se iniciar o mês de outubro, portanto, já estava claro aos setores oposicionistas a
disposição dos políticos conservadores em sustentar – se não ampliar – a maioria que
detinham no parlamento; a reforma da legislação eleitoral por um governo claramente
identificado com o Partido Conservador, aliada às precoces movimentações por parte das
lideranças saquaremas no sentido de organizar a base partidária para as eleições de dezembro,
eram fatores que reiteravam a necessidade de que a aliança entre liberais e conservadores
dissidentes, formada durante os trabalhos da Câmara naquele ano, fosse estendida à campanha
eleitoral que então principiava22
. Não por acaso, o discurso da imprensa liberal sofre rápida
mudança de tom nesse mês: a exigência de clarificação dos princípios que atualmente
norteariam os partidos dá lugar ao apelo para que a rearticulação saquarema seja respondida
com a união entre os grupos que ora se encontram em oposição ao ministério e aos seus
aliados no parlamento. Respondendo a um artigo publicado no Jornal do Commercio do dia
anterior, no qual seu autor buscava definir os princípios do atual Partido Conservador, o
editorial do Correio Mercantil de 2 de outubro (02/10/1860, edição nº 273) argumenta que a
questão de princípios torna-se secundária na ausência da luta partidária constante; pois o
combate que agora se trava parece ser menos de partidos e ideias abstratas do que de homens:
Em política quem diz partido diz luta de princípios. A luta existe por acaso? Existe,
sim, a luta, mas é entre os homens sinceros e os tartufos; os primeiros não se
importam com as designações de liberal ou conservador, contanto que o governo do
país seja um objeto sério e não um negócio de meia dúzia de Coburgos, Gothas; eles
querem, todos, o governo representativo, a monarquia constitucional, e a verdadeira
liberdade prática [...].
22
A importância do mês de outubro na reorganização das posições políticas naquele ano é ressaltada por um
outro evento, este proveniente do campo liberal: a divulgação da famosa Circular aos eleitores mineiros,
redigida por Teófilo Ottoni. Expoente do Partido Liberal, figura central na revolta mineira de 1842, Ottoni havia
se retirado da política desde 1851, ano em que passara a se dedicar à exploração e colonização do rio Mucuri em
Minas Gerais. Retornando à atividade política em 1860, sua Circular – denso panfleto que mescla a biografia do
autor à história política do Império –, concebida no mês de setembro, só é tornada pública em outubro, gerando
acalorados debates sobre seu conteúdo nos periódicos da Corte (ARAUJO, 1999, pp. 174-175). O impacto da
Circular entre os entusiastas do Partido Liberal foi grande, transformando-se em verdadeiro “alcorão para os
liberais nos primeiros anos da década de 1860” (Idem, p. 179); nesse sentido, ela também contribuiu para o
retorno do antagonismo partidário de então, fazendo de Ottoni “um aglutinador de forças entre os liberais”
daquele período (Idem, p. 178).
46
A linha argumentativa que passa a ser adotada pelo Mercantil não é exclusividade desta
folha. De fato, na medida em que se aproximam as eleições também cresce a percepção, da
parte dos setores oposicionistas, de que apenas uma ampla coligação “antissaquarema” seria
capaz de impedir que a aproximação entre os conservadores e o ministério Ferraz se
traduzisse numa expressiva vitória eleitoral para os primeiros. Alguns dias após o texto do
Mercantil, o Diário do Rio de Janeiro – agora sob a direção de Joaquim Saldanha Marinho,
depois de ter passado dois anos (1858-1859) sem ser editado – também se pronuncia
(08/10/1860, edição nº 195; grifos meus) a favor de uma união entre todos os homens
insatisfeitos com o atual predomínio “oligárquico” dos chefes saquaremas:
A comissão central dos grandes senhores, incansável e desabusada, não cessa de
preparar o terreno eleitoral para seu triunfo. E o que faz a oposição? A oposição que
é geral, que é sincera e forte nos seus recursos constitucionais? [...] A união é a
força. Se os oligarcas se unem para a satisfação de seus interesses de família, porque
não reunir-se a oposição a cuidar por sua vez do sagrado interesse comum, da causa
que pertence a todos? [...] Una-se a oposição e, dentro da esfera de seus recursos,
tenha coragem para poder crer que ainda não está perdida a derradeira esperança.
Mais do que um direito, essa manifestação constitui na atualidade um sagrado dever.
Cumpra a oposição a sua patriótica incumbência. Não esmoreça ante o arrojo da
oligarquia. [...] Reúna-se, pois, a oposição. Salve o interesse de todos ainda com
sacrifício do seu. No desinteresse e na dedicação aos princípios, é que residem a
força e a virtude dos partidos. Nós precisamos e nós queremos os partidos. [...] O
grande partido de que o país carece, é o partido dos homens de bem contra os
aventureiros políticos; o partido da probidade contra o escândalo. Coliguem-se
pois todos os elementos da oposição nacional.
Importa ressaltar aqui a relevância deste discurso de união dos elementos contrários à
hegemonia saquarema para a reorganização do campo político nos anos 1860. O
ressurgimento das tensões partidárias no início desta década, na medida em que se produziu
em um ambiente no qual sua absorção pelo bipartidarismo de então não era mais possível
(devido à existência de um grupo interposto entre saquaremas e luzias), exigia novo arranjo de
forças entre os atores políticos ali envolvidos; a homologia de interesses entre o Partido
Liberal de então e a dissidência conservadora, consubstanciada na defesa das “liberdades
práticas” consagradas pela Constituição, mas neutralizadas pelo arcabouço jurídico dos anos
do regresso (e.g., a reforma do Código de Processo Criminal efetuada em 1841), fornecia as
bases para que tal arranjo pudesse ser efetivado; além disso, a experiência da conciliação já
demonstrara a viabilidade de um projeto político que precisasse ser costurado à margem dos
partidos, funcionando assim como uma espécie de quadro ideal a partir do qual nova aliança
entre a classe política poderia ser forjada. Nesse contexto, torna-se compreensível que a
reorganização da disputa partidária, iniciada no parlamento e transposta para o terreno da
47
campanha eleitoral, não tenha sido capaz de reavivar os ânimos dos antigos entusiastas dos
partidos da “Ordem” e da “Liberdade” segundo os moldes pelos quais se dava a disputa antes
da ascensão de Paraná, em 1853; a defesa por parte dos órgãos liberais de uma ampla
coligação oposicionista é sintomática deste novo momento político no qual as linhas
divisórias entre saquaremas e luzias não podiam mais ser traçadas com a clareza de outrora.
Mais do que isso, a própria existência de uma dissidência no seio do Partido Conservador
demonstraria a impossibilidade de uma rearticulação completa de suas bases sob a antiga
liderança saquarema:
Conservadores e conservadores, na atualidade não se conhecem mais ou se
guerreiam desabridamente. Entre a facção desse partido que se denomina moderada
e a outra que é conhecida pela [designação de] vermelha, a distância é longa e a
distinção profunda. Uns combatem por um princípio, e outros apenas lutam por se
constituírem os senhores absolutos de todas as posições oficiais, para reparti-las por
si e pelos seus. [...] Como é pois que querem tomar para si, os oligarcas e seus
sequazes, toda a responsabilidade, todas as dores pelo grande partido conservador,
ora dividido e militante sob duas bandeiras distintas? Quem são os chefes desse
partido imaginário? Os vermelhos ou os moderados, os que se conciliaram ou os que
renegam da conciliação, mais por lhes haver quebrantado a influência que por ter
sido um sistema corruptor? (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 11/10/1860, edição nº
198; grifos no original)
O argumento de que a dissidência conservadora demonstraria a exaustão da velha lógica
bipartidária, barrando assim a reorganização dos partidos, é levado adiante pelo periódico A
Atualidade no mês seguinte (24/11/1860, edição nº 107). A “morte” atual dos partidos a
despeito da tendência de reavivamento do antagonismo político é encarada pelos redatores
desta folha como o indício de que uma nova agremiação partidária forçosamente deverá
emergir, articulada por todos os homens descontentes com o longo predomínio do Partido
Conservador:
O antigo partido conservador assim como o liberal foram dissolvidos. Existem
atualmente na população, tendências muito pronunciadas para a reorganização dos
partidos, mas por ora essa reorganização ainda não se operou. [...] Na confusão em
que se acham homens e ideias, os cardeais [referência aos chefes do Partido
Conservador] não podem apelar para os seus correligionários, porque ninguém sabe
quem eles são. Grande número, a maior parte do pessoal do antigo partido
conservador mostra-se descontente com a direção que tem tomado as coisas
públicas. Todos esses, com grande parte do antigo partido liberal, terão
provavelmente de fazer parte de um novo partido que naturalmente ter-se-á de
organizar.
E, com efeito, àquela altura já se haviam iniciado os esforços necessários à
concretização desse objetivo. Na realidade, a organização conjunta dos grupos oposicionistas
48
começara nas “reuniões eleitorais” que se seguiram ao fim do pleito municipal em setembro.
Como que em resposta aos movimentos de rearticulação das bases do Partido Conservador
por parte das lideranças saquaremas, liberais e conservadores dissidentes passam a articular
uma chapa conjunta a ser apresentada ao 1º distrito do Rio de Janeiro (a Corte do Império).
Essa aliança ficou conhecida como a Liga Constitucional e, naquele momento, tinha nos
liberais Teófilo Benedito Ottoni e Bernardo de Sousa Franco e no conservador d. Manuel de
Assis Mascarenhas seus principais articuladores (CORREIO DA TARDE, 15/01/1861, edição
nº 10). O confronto político que então se aproximava não mais oporia, portanto, liberais e
conservadores, saquaremas e luzias; de modo muito significativo, uma das maiores vozes
liberais daquele período – O Diário de Saldanha Marinho – recusa aos próprios significantes
“liberal” e “conservador” a capacidade de darem conta da luta que ora se trava, uma vez que
tais termos não possuem “a mesma significação política de há 20 anos” – o que atualmente
existe transcende o antigo binarismo; está em formação “um novo partido inimigo do
regresso, da inépcia, do abuso, da corrupção, do absolutismo, da oligarquia enfim” (DIÁRIO
DO RIO DE JANEIRO, 11/01/1861, edição nº 11).
A primeira fase do processo eleitoral se inicia no dia 30 de dezembro, ao se proceder à
eleição dos eleitores que, um mês depois, deveriam eleger seus representantes na Câmara
temporária. A força da recém-criada “liga” entre liberais e conservadores dissidentes no
município neutro tinha aí o seu primeiro desafio concreto: derrotar as listas de eleitores
alinhadas ao gabinete e ao Partido Conservador “puro”. Durante o processo de apuração dos
votos nas diversas freguesias do Rio, a adesão dos votantes ao programa da Liga
Constitucional de barrar a perpetuação do predomínio “oligárquico” saquarema vai se
delineando com clareza: a vitória das listas de eleitores da Liga é saudada pelos órgãos
liberais ao longo do mês de janeiro – uma vitória que é revestida de grande simbolismo em
razão das proporções que acaba assumindo. Isso porque, nessa primeira fase das eleições, a
articulação oposicionista consegue derrotar seus dois antagonistas: o ministério e os chefes
saquaremas. A vitória sobre aquele é anunciada pelo Correio Mercantil do dia 13 de janeiro
(13/01/1861, edição nº 13): pela primeira vez nenhum dos ministros logram figurar na lista de
eleitores das freguesias nas quais concorreram. Até o próprio Ferraz, líder do ministério, fica
de fora da lista na sua freguesia (Sacramento), conseguindo apenas a reles posição de
penúltimo suplente; a exclusão de Ferraz no Sacramento representou, para usar expressão do
próprio Mercantil, o “último esquife” na longa série que compôs a derrota ministerial naquela
eleição. No que toca os adversários conservadores, a vantagem da oposição na Corte foi
igualmente significativa: os principais nomes do Partido “ordeiro” fluminense ficaram de fora
49
das listas de eleitores, como foi o caso dos viscondes de Uruguai e de Itaboraí, de Eusébio de
Queirós, além do próprio presidente da província do Rio de Janeiro, Inácio Francisco Silveira
da Motta. A dimensão da vitória oposicionista não poderia ser maior; a Liga provava, assim,
sua capacidade de articular os setores descontentes com a hegemonia saquarema em torno de
um objetivo comum, a saber, a garantia da representatividade das opiniões dissonantes no
parlamento – opiniões essas que, atualmente, não mais provinham apenas das fileiras do
Partido Liberal. O sucesso da oposição, pouco concebível meses atrás, quando a relação entre
o gabinete e os conservadores parecia estreita o suficiente para impedir qualquer brecha a sua
atuação, não podia deixar de causar espanto até mesmo entre seus beneficiários diretos. Assim
se pronunciou um liberal mineiro em carta ao Diário do Rio (25/01/1861, edição nº 25), após
saber da surpreendente vitória da Liga na composição do colégio eleitoral da Corte:
O Sr. Eusébio derrotado na sua freguesia, e figurando como suplente!!! Santíssimo
nome de Jesus! O Sr. Ferraz derrotado no Sacramento, e como penúltimo suplente!!!
Meu Deus! Santos fortes, santos imortais! E ainda derrotados os Srs. [visconde] de
Uruguai e [barão] de Muritiba! E ainda derrotado o Sr. presidente [da província do
Rio de Janeiro] Silveira da Motta! Que revolução foi essa nas altas regiões? Será isto
um sonho?
A relevância dos resultados obtidos pela aliança entre liberais e conservadores
dissidentes no Rio em seu primeiro desafio concreto, as eleições de 1860, não deve ser
subestimada. Por mais concentrada que a vitória fosse – e demonstrarei na sequência que não
foi esse o caso –, é preciso ter em mente que a capital imperial não era um ponto qualquer do
Império: tratava-se não só de um espaço de concentração de capital econômico e social no
Brasil oitocentista, mas do centro mesmo a partir do qual novas realidades políticas poderiam
ser forjadas. A costura dos partidos imperiais até então existentes fora feita a partir dali
(NEEDELL, 2006, p. 218); o sucesso da Liga Constitucional do Rio de Janeiro demonstrava,
pois, a emergência de uma nova via de ação política na qual, à maneira da conciliação,
estadistas de todos os matizes (antigos saquaremas ou luzias, assim como os homens mais
novos, formados no bojo da experiência conciliatória) poderiam atuar conjuntamente, fora do
quadro de antagonismo político que caracterizara a direção do Estado imperial prévia ao ano
de 1853. A previsão de que a vitória da oposição coligada na Corte indicava,
simultaneamente, o ocaso da hegemonia saquarema e o esgotamento da estrutura bipartidária
de então, foi feita pelo Atualidade no mês de janeiro, antes mesmo da confirmação da chapa
50
“ligueira”23
pelo colégio eleitoral no dia 30. Segundo esta folha (22/01/1861, edição nº 114;
grifos meus), a vitória prenunciaria a formação de um novo partido que transcendia as antigas
divisas entre saquaremas e luzias, uma vez que o sucesso oposicionista não se associava aos
esforços exclusivos dos conservadores “moderados” ou dos liberais:
Em regra, o governo vence sempre as eleições nesta cidade: mas as oposições
também conquistam bom número de votos. Agora o governo e a oligarquia são
derrotados por uma maioria extraordinária. Muitos poucos votos puderam obter em
todo o distrito eleitoral. [...] Nunca se viu, nunca se esperou uma derrota tão
completa, tão estrondosa. As freguesias mais populosas, mais ricas, mais ilustradas
da cidade do Rio de Janeiro repeliram unanimemente o governo e os oligarcas seus
protetores. Um triunfo tão esplêndido [...] não pode ser atribuído unicamente ao
prestígio dos chefes, e aos recursos dos cabalistas. Não; aí há a manifestação franca
e estrondosa da opinião pública, há a intervenção direta do povo, que por fim
compreendeu que já é tempo de entrarmos em um regime regular. A vitória que
tanto aplaudimos não é devida unicamente aos homens que outrora militaram nas
fileiras liberais; é a obra da união de todos os brasileiros patrióticos que se ligaram
com o fim de repelir as pretensões absurdas de dominação da oligarquia, e de
conduzir o Brasil ao progresso por meio da prática sincera do regime liberal da
nossa constituição. É pois o triunfo que acabamos de obter a manifestação de novas
ideias, de um novo partido do progresso, que se apresenta cheio de vida a disputar
o governo da sociedade brasileira.
Se a derrota ministerial e saquarema mostrava-se plena de consequências em razão de
sua amplitude no âmbito da Corte, tornou-se ainda mais emblemática ao se confirmarem os
resultados do pleito para a deputação nas províncias do Império. Com efeito, importantes
localidades pareciam repetir o feito conseguido pela oposição no Rio de Janeiro, rechaçando
as chapas do Partido Conservador e/ou aquelas alinhadas ao gabinete. Na medida em que se
torna mais claro o caráter nacional do sucesso oposicionista, vai tomando forma nos órgãos da
Corte a ideia de que a vitória, em razão de seu caráter suprapartidário, é fruto do nascimento
de uma nova agremiação que se gestava no processo mesmo da campanha eleitoral: o “partido
do progresso”, capaz de unificar indivíduos antes separados pelas divisas de “liberal” e
“conservador”. De fato, para além da Corte, ao norte do Império cidades como Belém, São
Luís, Maceió e Recife presenciaram a vitória de candidatos liberais – Salvador, outro
importante centro urbano, teve a votação repartida entre “liberais e conservadores, porém
conservadores progressistas, adversos à oligarquia da corte” (CORREIO MERCANTIL,
04/02/1861, edição nº 35); ao sul, as capitais das províncias do Rio de Janeiro, São Paulo,
Minas Gerais e Rio Grande do Sul também depositaram a maioria de seus votos nas chapas
23
No dia 17 de janeiro, os articuladores da Liga se reuniram na residência de d. Manuel de Mascarenhas para a
definição de uma chapa unificada, composta de apenas três nomes (equivalente ao número de vagas estipulado
pela reforma da Lei dos Círculos): Teófilo Ottoni, Saldanha Marinho e Francisco Otaviano (CORREIO DA
TARDE, 18/01/1861, edição nº 14). Os três foram eleitos à deputação no dia 30.
51
oposicionistas. Dessa constatação o Correio Mercantil (04/02/1861, edição nº 35) extrai o
seguinte corolário: o voto aos liberais nas cidades mais “ilustradas” do Império indicava que,
onde foi possível escapar à influência das autoridades no pleito, a opinião publica manifestou-
se favorável aos princípios liberais e contrária ao predomínio saquarema – se a política de não
intervenção propalada pelo gabinete Ferraz tivesse sido respeitada em todas as localidades, a
vitória oposicionista seria mesmo completa:
Tudo denuncia que nos lugares onde a compressão policial é neutralizada pela
ilustração e riqueza a política do filhotismo não pôde encontrar apoio. Querem-no
mais claro? Se hoje, por exemplo, variassem as circunstâncias; se o Sr. Eusébio e
seus amigos, em vez de estarem no governo, estivessem na oposição, perderiam a
eleição em todo o resto do império, visto que aí a eleição quer dizer polícia; seriam
derrotados ainda vergonhosamente, como o foram nas cidades independentes e
ilustradas. Nós, em oposição, podemos ter a quarta parte da representação nacional;
o Sr. Eusébio e seus amigos não poderiam ter um só representante.
É preciso, todavia, cautela quanto a esse ponto. Apesar da indubitável vitória da
oposição em diversas capitais provinciais que, somadas ao sucesso da Liga Constitucional na
Corte, apontava para o princípio de um novo momento da política imperial, não é factível
supor que a sólida base de apoio do Partido Conservador, constituída ao longo de décadas,
tivesse simplesmente esvanecido ou fosse agora sustentada apenas pelo domínio dos
aparelhos de repressão do Estado. Em realidade, o sucesso oposicionista louvado pelos órgãos
da Corte deve ser encarado com reticência: a vitória das listas liberais na província do Rio de
Janeiro – por exemplo, nos municípios de Campos e de Niterói (capital da província) – não foi
suficiente para impedir que em todos os distritos da província, à exceção do 1º (município
neutro do Rio de Janeiro), os candidatos saquaremas obtivessem as vagas que estavam em
disputa (NEEDELL, 2006, p. 213)24
. Por outro lado, é necessário observar que a vitória de
liberais e conservadores “moderados” nos emergentes centros urbanos do Império nada tem
de fortuito; ao contrário do que supõe o Mercantil, ela sequer deriva da maior capacidade
desses locais em neutralizar a influência das autoridades por sua “ilustração e riqueza”, mas
antes remonta a razões sociológicas profundas que alteravam o tecido social e a realidade
política do Império desde o início da década anterior, não podendo, portanto, ser subsumida à
pontualidade das lutas políticas travadas no ano de 1860. Falo aqui do processo de
modernização socioeconômica cuja importância já foi assinalada quando discuti as
implicações do pleito municipal para a reorganização do cenário político; a confirmação, nas
24
Segundo Jeffrey Needell, fora os nomes de Ottoni, Saldanha Marinho e Otaviano, dentre os 12 representantes
fluminenses eleitos em 1860 apenas Luís Pedreira do Couto Ferraz (futuro visconde de Bom Retiro) não possuía
vínculos estreitos com as lideranças saquaremas.
52
eleições de dezembro, daquele padrão de dispersão dos votos que também fora observado no
mês de setembro (i.e., apoio às candidaturas liberais nas grandes cidades e vitória dos
conservadores no interior das províncias) aponta para o fato de que as transformações
estruturais pelas quais passava o Império do Brasil – seja na esfera econômica (ampliação da
atividade agroexportadora), no plano jurídico (aprovação de um código comercial) ou no
âmbito social (expansão do modo de vida urbano) – não poderiam deixar de marcar a vida
política imperial. Os atores sociais mais diretamente ligados e beneficiados pela
modernização que se principia com as reformas legais orquestradas em 1850 estavam sem
dúvida concentrados nos espaços urbanos que, a partir daquele ano, crescem em tamanho e
importância, de modo que o sucesso das chapas liberais nessas localidades parece estar
relacionado à emergência e expansão dos grupos urbanos e de um modus vivendi que lhes é
próprio.
Já possuímos condições de discutir algumas hipóteses a respeito dessa homologia entre
o espaço social urbano e o fenômeno da ampliação da base de apoio de um liberalismo
“moderado”, igualmente disseminado entre luzias e conservadores dissidentes. Explorarei
aqui duas variáveis que, antes de serem antagônicas, se complementam: as transformações na
esfera econômica e o alargamento do horizonte ideológico da camada senhorial. Em relação
ao primeiro ponto, o apelo de uma plataforma liberal entre as camadas urbanas pode ser
compreendido pelo viés da política econômica que caracterizaria os grupos conservador e
liberal, gerando interesses distintos e conflitantes entre os agentes de mercado: de um lado, a
política de restrição bancária e de crédito e, de outro, a liberdade quanto a ambos os pontos.
De fato, as duas maiores autoridades em matéria econômica durante o Segundo Reinado, o
visconde de Itaboraí e Bernardo de Sousa Franco (o primeiro conservador e o segundo
liberal), opunham-se nessas matérias: Itaboraí professava uma concepção ortodoxa que
atrelava o crédito às reservas de capital, e estas às reservas em ouro; por outro lado, Sousa
Franco desconfiava das vantagens econômicas do padrão lastro-ouro como parâmetro à oferta
de crédito (NEEDELL, 2006, pp. 202-203). Ora, se a manutenção do crédito em taxas
relativamente fixas, seguindo a lógica do lastro-ouro, era vantajosa aos setores diretamente
vinculados à agroexportação (i.e., aos grandes plantadores que tinham em Itaboraí um de seus
principais porta-vozes), ela não o era para os grupos mais dinâmicos envolvidos no processo
de modernização – por exemplo, àqueles que investiam na expansão das estradas de ferro,
atividade dependente de uma oferta de crédito mais generosa (Idem, pp. 203-204). Também a
melhoria da infraestrutura urbana estava enormemente vinculada à liberalização do crédito de
modo a viabilizar empreendimentos de maior vulto: é plausível supor, portanto, que os setores
53
urbanos encontrassem nas ideias de Sousa Franco um maior apelo do que naquelas
encampadas por Itaboraí, aproximando-os assim do Partido Liberal. Contudo, mais do que
uma opção teórica ou uma preferência abstrata pela “escola” da liberdade do crédito, é preciso
lembrar que o período que se estende de 1857 a 1860 – ou seja, que vai da chefia da pasta da
Fazenda por Sousa Franco à aprovação da política restritiva de Ferraz – foi particularmente
propício à reavaliação das opções partidárias por intermédio do raciocínio econômico, devido
aos debates concretos suscitados pelo dilema da liberdade ou restrição bancária e creditícia.
Que tais questões provocaram uma troca de posições nas bases dos partidos nos dá prova o
Correio Mercantil quando afirma que foi a classe comercial carioca “quem deu o primeiro
rebate na oligarquia”, engrossando as fileiras oposicionistas no ano de 186025
. Por fim, quanto
ao segundo ponto, ao falar de um “alargamento ideológico” tenho em mente a abertura de
novos horizontes do pensar e do agir políticos que estaria se desdobrando durante as décadas
de 1850 e 1860 e que teria favorecido o projeto encampado por liberais e conservadores
dissidentes; nesse sentido, já esclareço um possível mal-entendido de princípio: não se trata
aqui de uma suposta “conversão” de parte da classe proprietária a um discurso liberal pré-
fabricado, cujas “verdades” se revelariam no bojo do processo de modernização; o que está
em jogo, antes de tudo, são os próprios limites e possibilidades futuras de um projeto liberal
de Estado-nação no qual a classe proprietária esteve imersa desde que foi necessário lançar as
bases institucionais do Brasil independente.
Para esclarecer esse ponto, será preciso retomar alguns argumentos pelos quais já
passamos. No primeiro capítulo, vimos que o esgotamento do projeto regressista no início da
década de 1850 e a emergência da política conciliatória de Paraná são, sociologicamente
falando, o anverso e o reverso de um mesmo fenômeno: afinal, foi a consolidação do Estado
imperial no ano-chave de 1850 que permitiu a construção de uma política consensual e
contemporizadora, que tivesse em seu horizonte o apaziguamento dos conflitos intraelite e
que fosse capaz de enterrar as antigas lutas entre saquaremas e luzias; nesse ponto, o ideal da
representatividade das minorias como um primeiro passo à efetiva realização do regime
parlamentar e à consequente unificação política da classe proprietária aparecera como o
objetivo concreto a ser perseguido. Ora, o reavivamento do antagonismo partidário no limiar
25
“Para o revés de que se julgam [os conservadores] ameaçados, todo o pretexto lhes serve. Depois de se
elevarem ao papel de vítimas de sociedades secretas, expõem-se ao ridículo dando-se como vencidos pelos
agiotas da praça! Esses agiotas eram antigamente condecorados com o título de honesto e digno corpo comercial
do Rio de Janeiro; mas cometeram a imprudência de depositar confiança no Sr. Ottoni e seus amigos, e portanto
não passam de miseráveis agiotas. Tem razão o Sr. Eusébio: foi o comércio quem deu o primeiro rebate contra a
oligarquia; foi o comércio quem nos ensinou a rejeitar imposições caprichosas; foi o comércio quem nos animou
na oposição aos economistas visionários [...]” (CORREIO MERCANTIL, 06/01/1861, edição nº 06; grifos no
original).
54
da nova década se mostrava como uma ameaça de retrocesso aos atores direta (saquaremas
“conciliadores”) ou indiretamente (luzias “conciliados”)26
afetados. Tal ameaça provinha do
fato de que o aperfeiçoamento do consenso intraelite não era ele mesmo um projeto
consensual: ao longo dos anos nos quais a política conciliatória predominou, um setor
expressivo do Partido Conservador que tinha na “trindade saquarema” seus principais chefes
perdera grande parte de sua influência e poder (CARVALHO, 2002, p. 26). Quando, sob
Ferraz, a conciliação dá seus últimos sinais de vida, consolida-se então uma encruzilhada na
trajetória política do Império: de um lado, os saquaremas descontentes com a desestruturação
de seu próprio partido tendem a impulsionar o processo de polarização das posições
partidárias; de outro, os conservadores formados ou convertidos à causa da conciliação
rejeitam a interrupção da pax instaurada pela política de Paraná e, no contexto da luta
legislativa – e, posteriormente, eleitoral – que então se travava, aliam-se aos liberais para
conter a rearticulação do partido “ordeiro”. O contraste entre essas duas vias não deve ser
subestimado, pois do ponto de vista da construção do Estado imperial, colocavam-se ali duas
opções muito distintas: desmantelar, através do reavivamento da diferença entre saquaremas e
luzias, a obra da conciliação que confundira os homens e os princípios, de modo a resguardar
o arranjo institucional consolidado pela política do regresso (opção saquarema); ou então
impedir a rearticulação do Partido Conservador por meio de uma “liga” entre os setores que
atualmente se encontravam em oposição ao gabinete, com vistas a avançar a agenda de
construção da unidade política da classe proprietária (opção progressista).
O conflito entre duas concepções distintas sobre a natureza, os limites e as
possibilidades futuras de aperfeiçoamento do Estado imperial marcou a primeira década do
Segundo Reinado através da diferença entre os partidários da ordem e os da liberdade; após se
consolidar a preeminência daqueles sobre estes, a emergência da conciliação aparecia então
como um desafio de avançar o projeto de aperfeiçoamento do Estado liberal no Brasil
integrando ao sistema político os conflitos internos à classe proprietária: tornava-se
necessário, pois, que saquaremas e luzias deixassem de existir para que fosse tecido um
consenso intraelite. No entanto, aos atores políticos que estiveram diretamente envolvidos na
obra de consolidação do Estado nacional – as lideranças saquaremas e as elites rurais
regionais –, o avanço na agenda proposto pela conciliação não só se mostrava como um
desafio a sua própria preeminência política, mas também parecia ameaçar, ao retirar a
26
A preeminência do elemento conservador na política da conciliação não deve ser ignorada. Seus principais
nomes saíram das fileiras saquaremas, como era o caso de Paraná, Nabuco de Araújo e do então marquês de
Caxias. Era, pois, da iniciativa desse grupo que provinha o impulso inicial para a produção de um novo
equilíbrio entre as forças da “conservação” e as do “progresso”.
55
condução do governo das mãos dos homens fortes do partido da “Ordem”, a grande obra dos
anos do regresso: a estabilidade sociopolítica do Império. De outro lado, foi precisamente em
nome dessa estabilidade que o projeto conciliatório buscou trilhar um “caminho do meio”
capaz de promover um equilíbrio entre os princípios da ordem (conservação) e da liberdade
(progresso).
No ano de 1860, o desmantelamento da conciliação explicitava novamente a existência
de duas vias que refletiam concepções muito distintas a respeito dos rumos que a política
imperial deveria seguir: a “opção saquarema”, gestada durante o mal-estar produzido pela
experiência conciliatória nas bases do Partido Conservador, apontava para os limites atuais do
Estado liberal brasileiro ao enfatizar a necessidade de se resguardar os ganhos institucionais
operados pela política do regresso; tal projeto tinha como fundamento social a grande
propriedade agrária e sua expressão política se dava na ação dos estadistas saquaremas
(alijados do poder pela conciliação). Por sua vez, a “opção progressista”, filha da experiência
conciliatória que foi acolhida pelos setores moderados do Partido Conservador e pelos luzias,
apostava na possibilidade de avançar o processo de construção do Estado imperial através de
um reformismo que, ao neutralizar os “excessos” de autoridade da política regressista, seria
capaz de efetivar os princípios liberais consagrado na Constituição de 1824 e aprimorados
com o Ato Adicional dez anos depois27
; à diferença da “opção saquarema”, o projeto de
aliança entre os setores que rechaçavam o retorno dos homens do regresso tinha grande apelo
entre os grupos urbanos que crescem em número e importância conforme o processo de
modernização socioeconômica avança. De acordo com os resultados das eleições gerais de
1860, percebe-se que esses grupos encontram sua expressão política concreta na aliança entre
liberais e conservadores dissidentes forjada naquele ano, na qual os órgãos liberais da Corte
entreveem a formação de uma nova agremiação política: o “partido do progresso”.
2.2. De Caxias a Zacarias: a transformação da Liga em partido
27
Que os dispositivos jurídico-políticos do Ato Adicional tenham sido encarados como o suprassumo do
liberalismo no Brasil oitocentista nos dá prova a Circular de Teófilo Ottoni, talvez uns dos mais influentes
políticos liberais do Brasil monárquico. Ainda em 1860, Ottoni via no Ato Adicional o modelo institucional ideal
para o Império brasileiro; recordando a época de sua aprovação, afirma (2002 [1972], p. 272) que:
O ato adicional era no meu entender uma vitória memorável da democracia pacífica. Se fosse
lealmente executado, eu pensava que o sistema representativo se tornaria entre nós uma realidade,
que devia por largos anos satisfazer as aspirações dos amigos da liberdade. E que, acastelados em
tão belo reduto, mais deviam os liberais confiar no progresso da razão pública do que nas lutas
revolucionárias.
56
As eleições de 1860 sob a nova lei dos círculos de três deputados não foi capaz de
recuperar aos saquaremas o terreno perdido durante a conciliação, especialmente após o pleito
de 1857. A oposição coligada, em muitas das grandes cidades do Império, conseguiu impedir
que o impulso de reorganização das bases do Partido Conservador por parte das lideranças
saquaremas se traduzisse numa maioria absoluta na Câmara que se reuniria em 1861. A
alteração da legislação eleitoral não produziu os resultados esperados por seus entusiastas: ao
contrário de diminuir, a representação liberal no parlamento aumentou significativamente em
relação à legislatura de 1857-1860 (HOLANDA, 2010, p. 68). O resultado foi que a
manutenção do gabinete Ferraz já não se mostrava mais possível; antevendo a cerrada
oposição que enfrentaria no retorno dos trabalhos legislativos em 1861, Ferraz pede a
exoneração de seu ministério antes mesmo da nova Câmara se reunir. Em seu lugar d. Pedro
II nomeia Luís Alves de Lima e Silva, então marquês (e depois duque) de Caxias.
A nomeação de Caxias para a formação de novo ministério será de crucial importância
nos rumos da “liga” entre liberais e conservadores dissidentes, a qual saía fortalecida das
eleições a despeito de ainda constituir uma minoria dentro do parlamento. Recordemos que
Caxias, apesar de firmemente conservador, esteve associado à experiência da conciliação,
assumindo inclusive a presidência do conselho de ministros após a morte de Paraná em 1856.
O novo chefe de governo não era execrado por nenhum dos lados (saquaremas e
oposicionistas coligados) que haviam se oposto durante o ano de 1860: a própria escolha de
Caxias pelo monarca parecia indicar que Pedro II não queria fomentar uma maior polarização
política que aquela já experimentada no ano anterior (NEEDELL, 2006, p. 214). De fato, ao
se passar em revista alguns dos nomes que compõem o novo gabinete, percebe-se aí a marca
da moderação, ou seja, a tentativa de contemplar os grupos em conflito como forma de
amenizar o antagonismo crescente; o ministério que se forma a 3 de março de 1861 contempla
em seus quadros, por exemplo: Francisco de Paula de Negreiros Sayão Lobato (futuro
visconde de Niterói), saquarema fluminense que assume a pasta da Justiça; José Antônio
Saraiva, antigo “conciliado” que figurara no ministério do marquês de Olinda em 1857,
responsável pela pasta do Império; José Maria da Silva Paranhos (posteriormente visconde de
Rio Branco), parceiro de Paraná no gabinete de 1853, passa a gerir a Fazenda (BARÃO DE
JAVARI, 1979 [1889], pp. 125-126).
Assim, a composição ministerial orquestrada por Caxias antecipava-se à oposição que o
gabinete poderia sofrer tanto do lado saquarema quanto do “moderado”. Não se trata, todavia,
de “nova” conciliação: o aceno dado pelo marquês por ocasião da nomeação dos ministros
tinha como destinatário as duas alas em que se dividira o Partido Conservador durante os
57
debates legislativos e as eleições do ano de 1860, não contemplando os representantes liberais
no parlamento. Com efeito, antes de transigir, Caxias parecia buscar a reconstrução do Partido
Conservador através de uma “unificação dos vários matizes do partido oriundo do ‘regresso’”
(HOLANDA, 2010, p. 81). Ao absorver nomes que possuíam ligações seja com os
conservadores “conciliados”, seja com os saquaremas adversos à política do marquês de
Paraná, Caxias iniciava, após o fracasso de seu antecessor, nova tentativa de reorganização do
partido “ordeiro” por intermédio do governo. Agora, porém, ao invés de buscá-la com a ajuda
de apenas um dos lados, era a ambas as facções de seu partido que Caxias apelava.
O objetivo de unificação das tendências atuais do Partido Conservador sob a direção do
gabinete de 3 de março pode ser entrevisto em seu programa, genérico o suficiente para não
desagradar a nenhum dos grupos em conflito; ele é anunciado por Caxias (apud BARÃO DE
JAVARI, 1979 [1889], p. 125) na tribuna do Senado:
Os princípios do Gabinete estão bem indicados pelos precedentes das pessoas que
dele fazem parte. Os meus colegas e eu somos conhecidos; por isso penso que me
posso dispensar de dizer qual o sentido em que dirigimos os negócios da
governança. Entendo que presentemente o País quer, sobretudo, a rigorosa
observância da Constituição e das leis e a mais severa e discreta economia dos
dinheiros públicos, atentas as circunstâncias do nosso atual estado financeiro. Os
atos, senhores, devem valer mais do que as palavras, e peço a todos que nos julguem
por nossos atos.
No entanto, o caráter lacônico deste programa, que apelava à autoridade pessoal dos
integrantes do ministério, dava margem a uma crítica talvez ainda mais nociva do que a
discussão baseada em proposições específicas: a rejeição in totum de seu conteúdo. Com
efeito, se ela não veio da parte dos atores políticos que se viam contemplados pelo governo, a
totalidade da representação liberal na Câmara – alijada da composição ministerial – estava
mais do que disposta em combater o gabinete. Já na discussão da Fala do Trono que abrira a
sessão legislativa em 1861, a oposição liberal questionou o escopo de um governo que traça
como seus principais objetivos a “rigorosa observância da Constituição” e a “discreta
economia dos dinheiros públicos”. Tomando a palavra por parte da deputação liberal, Teófilo
Ottoni (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1861, sessão de 27 de junho), que acabava de
retornar da política depois de dez anos dedicados à empresa de colonização no rio Mucuri em
Minas Gerais, apontaria a fraqueza das palavras de Caxias enunciadas perante o Senado:
O que disse o nobre presidente do conselho no senado? Que estava na intenção de
não violar a constituição e de não defraudar o tesouro nacional, ou por outra, fazer
economias e respeitar a constituição! Pois isto é programa? O nobre presidente do
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conselho e seus colegas julgaram por ventura que lhes era necessário dar arras do
seu respeito para com a constituição, e para com os dinheiros do Estado?
A acerba oposição liberal ao gabinete recém-formado, expressa já nos primeiros
momentos de sua existência, não suscita, porém, qualquer problema ao ministério para que o
voto de graças à Fala do Trono fosse aprovado na Câmara (HOLANDA, 2010, p. 79). A razão
para isso é muito simples: a bancada do Partido Liberal estava isolada novamente. De fato, a
composição ministerial orquestrada por Caxias fora um recurso capaz de unificar, ao menos
naquele momento, os dois setores do Partido Conservador que haviam se hostilizado no ano
anterior. A coesão da “liga” entre liberais e conservadores dissidentes, passada a ameaça de
ressurgimento do poder “oligárquico” durante o período eleitoral, esvanecia diante da
absorção de nomes importantes do grupo “moderado” do Partido Conservador pelo gabinete
de 3 de março. A unidade na oposição, pois, não se consolidara para além dos momentos de
perigo experimentados pelos dois grupos minoritários, como parece ter sido o caso nos
debates sobre as questões eleitoral e financeira promovidos por Ferraz, e principalmente
durante as eleições de 1860.
A suspensão da hostilidade intrapartidária após a formação de um novo gabinete pode
ser entrevista nos discursos proferidos no parlamento do Império por dois importantes nomes
da facção dissidente do Partido Conservador: os baianos José Tomás Nabuco de Araújo e
Zacarias de Góis e Vasconcelos, peças-chave na consolidação da Liga Progressista um ano
mais tarde. Durante a discussão de um projeto chegado ao Senado após a organização do
gabinete Caxias que versava sobre o aumento dos vencimentos dos magistrados, Nabuco de
Araújo (SENADO DO IMPÉRIO, 1861, sessão de 15 de junho; grifos meus) aproveita o
ensejo para esclarecer a sua posição frente ao novo governo:
Em relação ao presente, que é a questão que nos ocupa ou deve ocupar, isto é, o
ministério ou a oposição, tendes o direito de perguntar-me: o que é que sou? Sr.
presidente, parece-me que a política está em perfeita calmaria, porquanto o
ministério atual não apresentou senão um programa que é comum a todos os
ministérios e apelou para os seus atos futuros, e ainda não apareceu oposição. Ora,
nestas circunstâncias eu sou ministerial, ministerial si et in quantum. Alguns nobres
senadores têm dito na casa que esperam os atos para serem ministeriais; mas eu,
pela confiança que tenho nos ilustres membros do ministério, sou desde já
ministerial.
Entre o discurso de Nabuco de Araújo e o de Ottoni a diferença é visivelmente grande.
Para este, o programa anunciado por Caxias no Senado não se sustenta em razão de seu
caráter genérico e pouco preciso; para aquele, todavia, essa característica é antes algo a ser
louvado: o programa, por ser “comum a todos os ministérios”, expressaria a “perfeita
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calmaria” em que descansa a política atual. Mais do que a apreciação das palavras proferidas
por Caxias, porém, o que realmente estava na base dessa diferença que não era só entre dois
indivíduos, mas sim entre dois grupos (liberais e conservadores “moderados”) que estiveram
coligados durante o último ministério, era a percepção de se estar ou não contemplado pela
atual composição do governo: ao que tudo indica, não havia razão alguma para a bancada
liberal prestar seu apoio a Caxias; a dissidência do Partido Conservador, porém, via-se
representada pela absorção de alguns de seus nomes pelo novo ministério. A questão era, pois,
de homens, como deixa entrever Nabuco de Araújo ao derivar seu “ministerialismo” da
confiança que então depositava “nos ilustres membros do ministério”. No mês seguinte, ao
prorromper a oposição liberal durante a discussão da Fala do Trono na Câmara temporária, é
Zacarias quem nos dá a oportunidade de compreender um pouco mais as razões da quebra da
unidade oposicionista entre liberais e conservadores dissidentes. Ao falar sobre o problema
dos partidos na atualidade, Zacarias (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1861, sessão de 5 de
julho) entende que tanto o Partido Conservador quanto o Liberal ainda detêm aquela grande
prerrogativa que marcou suas histórias durante a trajetória política do Império: zelar,
respectivamente, pelos princípios da “ordem” e do “progresso”, de cujo equilíbrio depende a
boa condução dos negócios públicos. Nesse sentido, a ideia de “liga” é um contrassenso –
pode valer momentaneamente, mas nunca como um recurso durável, capaz de sustentar os
governos:
É necessário, pois, que estejam estes dois partidos sempre presentes e mutuamente
se fiscalizem. Mas como se conseguirá isso? Será por meio do que chamam [de]
liga? Será por meio da fusão dos dois partidos? Não, senhores. A liga, se conta na
alta administração do Estado número igual de homens de um e outro partido, nada
produz que seja de préstimo; [...] Se na liga entram mais homens de Estado de uma
crença que de outra, a minoria é levada a reboque pela maioria, e sacrifica-se. Eu só
compreendo liga, Sr. presidente, como uma combinação transitória e de
circunstância, e nada mais: pode havê-la entre nós, como tem havido em todos os
países; mas não é combinação própria do estado normal das sociedades.
O momento legítimo da liga havia ficado para trás. Após a realização do fim comum de
neutralização da hegemonia saquarema que unificara liberais e conservadores dissidentes no
ano anterior, cada qual deveria, agora, tratar de se reorganizar de acordo com os princípios
que professavam. O retorno da comunhão entre os partidários da “ordem” obedecia, pois, à
marcha “natural” das sociedades, e caberia também aos sequazes da “liberdade” se rearticular
em torno das bandeiras que lhes são exclusivas. Feito isso, as divisas da conservação e do
progresso poderiam, enfim, disputar o apoio da opinião nacional, alternando-se os grupos no
poder conforme esta pendesse para um ou para o outro polo.
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Entretanto, não demoraria muito para que o projeto de transformar a disputa entre
conservadores e liberais num sucedâneo tropical da prática política inglesa (Whigs x Tories)
mostrasse os seus limites concretos. A própria discussão em torno da resposta à Fala do
Trono, se não conseguiu impedir que sua aprovação fosse tranquila, trouxe para o debate, por
iniciativa da oposição liberal, o problema do equilíbrio ministerial entre dois grupos que, no
fundo, não teriam deixado de se antagonizar. Apesar de a insinuação ter sido rechaçada pela
agora unida bancada conservadora, dias mais tarde a questão retornaria com força por ocasião
de um evento pleno de consequências ao futuro do gabinete Caxias: a renúncia dos ministros
José Antônio Saraiva (Império) e Antônio Coelho de Sá e Albuquerque (Estrangeiros) em 9
de julho, um dia após a aprovação do voto de graças na Câmara (HOLANDA, 2010, p. 79).
Tanto Saraiva quanto Sá e Albuquerque, deputados nortistas sem maiores vínculos com os
saquaremas fluminenses, eram nomes identificados com a chamada ala “moderada” do
Partido Conservador; a renúncia de ambos significava que, do grupo menos cioso das antigas
tradições do partido “ordeiro”, não restava mais ninguém, uma vez que Paranhos – antigo
“conciliado” – já dava sinais de se bandear para o lado saquarema (NABUCO, 1949 [1897],
p. 81). Se a renúncia por si só talvez não constituísse motivo suficiente para interromper o
processo de unificação nas fileiras do Partido Conservador, a explicação exigida pela
oposição liberal na Câmara acaba por expor de vez a incipiência do movimento articulado por
Caxias: a suspeita de que por trás da retirada de Saraiva e Sá e Albuquerque estivessem
divergências com o ministro Sayão Lobato, principal representante do grupo saquarema no
gabinete, foram confirmadas quando Saraiva subiu à tribuna da Câmara explicar que “em sua
opinião, tinha o direito, até o dever, de abandonar um ministério onde não se sentia bem”
(HOLANDA, 2010, p. 80). O mal-estar, compartilhado por Sá e Albuquerque, não poderia
também deixar de produzir desconforto semelhante na ala moderada do Partido Conservador,
que através destes homens depositara a sua confiança no atual ministério. Para Caxias, a
situação tornou-se particularmente crítica quando da nomeação dos novos ministros para as
pastas do Império e de Estrangeiros: José Ildefonso de Sousa Ramos (futuro visconde de
Jaguari) e Benevenuto Augusto de Magalhães Taques, respectivamente; com efeito, as
escolhas não fortaleciam nenhum dos laços que até então sustentavam o governo, pois nem
Sousa Ramos nem Taques associavam-se aos saquaremas, além de não terem grande apelo
entre a dissidência do partido “ordeiro” (Idem, p. 82).
O afastamento de Saraiva e Sá e Albuquerque revela a fragilidade em que repousava os
esforços de rearticulação do Partido Conservador sob a liderança do marquês de Caxias. O
antagonismo entre os dois grupos, o saquarema e o dissidente, não havia cessado em absoluto:
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a trégua nos primeiros meses de 1861 após os conflitos do ano anterior tinha como causa e
razão única a composição “eclética” do ministério de 3 de março. Ao primeiro sinal de
desequilíbrio no jogo de forças entre as facções do partido no poder, o grupo que se sentiu
prejudicado não hesita em se afastar de um governo que aparentava não mais representá-lo.
Nesse movimento, a reminiscência das lutas comuns que a dissidência conservadora travara
junto com os liberais para debelar o fortalecimento da hegemonia saquarema não poderia
deixar de prestar aí o seu papel; de fato, na medida em que a facção dissidente passa a gravitar
fora da órbita do governo, ela inevitavelmente encontra apoio entre aqueles que, desde que
Ferraz havia cedido lugar a Caxias, já se achavam em oposição ao gabinete: os representantes
liberais no parlamento. Trata-se, uma vez mais, de aproximação feita na tentativa de impedir
que o processo de identificação do governo com a ala saquarema se traduzisse em maiores
ganhos políticos para esta, à custa tanto de liberais quanto de conservadores da facção
contrária. A ideia da “liga” entre os dois grupos de oposição ressurgia num momento no qual
era novamente preciso unir forças para derrotar a “oligarquia” saquarema.
A situação parlamentar, contudo, era muito distinta daquela de 1860, durante a qual a
coligação entre liberais e conservadores dissidentes foi primeiramente articulada. Naquele
momento, quando, sob o gabinete Ferraz, foi necessário unir forças para se opor à reforma da
Lei dos Círculos, os dois grupos oposicionistas constituíam não mais que uma minoria,
conquanto fosse uma minoria numerosa; não por acaso, a reforma foi aprovada sem grandes
dificuldades. Agora, porém, o pleito de 1860 havia trazido à Câmara não só um maior número
de liberais, mas também um grande contingente de deputados identificados com a fração
“moderada” do Partido Conservador. O fato de que, após a renúncia de Saraiva e Sá e
Albuquerque, esses grupos passem a atuar conjuntamente em sentido contrário ao do
gabinete, apresentava riscos efetivos à manutenção de Caxias no poder. A maioria
parlamentar do ministério se tornava frágil, ainda mais quando até mesmo os saquaremas não
se mostravam extremamente entusiasmados com o gabinete desde que Caxias decidira nomear
Sousa Ramos e Taques no lugar dos ministros demissionários. É neste clima de grande
incerteza quanto aos rumos futuros do ministério de 3 de março que a sessão legislativa de
1861 termina.
Todavia, o ano de 1862 não se mostraria mais fácil para Caxias e seus apoiadores. Pelo
contrário, já no reinício dos trabalhos legislativos foi possível comprovar que o intervalo entre
as sessões de 1861 e 1862 só servira para fermentar ainda mais o descontentamento
oposicionista. A primeira prova de que o gabinete agora se sustentava com uma maioria
parlamentar exígua foi dada por ocasião da eleição da mesa da Câmara no dia 5 de maio, na
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primeira sessão após as reuniões preparatórias. Como era de praxe, esperava-se que o
candidato ministerial – neste caso, Pedro Francisco de Paula Cavalcanti e Albuquerque, o
visconde de Camaragibe – derrotasse o nome da oposição “ligueira”: Zacarias de Góis e
Vasconcelos. Foi o que aconteceu, de fato. Contudo, a pequena vantagem obtida por
Camaragibe sobre Zacarias apontava as dificuldades futuras do ministério: a diferença de
votos entre um e outro candidato foi de apenas quatro (34 votos contra 30). Entre os órgãos
oposicionistas não faltou quem lesse o resultado agourento obtido pelo gabinete como o
presságio de sua queda iminente: “o ministério está morto”, diria o A Atualidade (08/05/1862,
edição nº 215) três dias após a votação que dera a vitória a Camaragibe, “a eleição da mesa foi
o golpe de honra no moribundo que andava por aí se arrastando, rindo, chorando e tirando o
chapéu até abaixo”.
Mas a “morte” do ministério teria de aguardar mais alguns dias. A ocasião propícia ao
evento se dará no dia 19 de maio, durante a discussão do voto de graças à Fala do Trono
proferida no início da sessão legislativa daquele ano. Os deputados da liga oposicionista não
aceitam o projeto de resposta à Fala elaborado pela comissão da Câmara; Zacarias, que
naquele momento já despontava como o líder dos conservadores “moderados” coligados à
bancada liberal, apresenta uma emenda ao projeto original – emenda essa que é concebida
como uma “censura” ao gabinete. Estava instaurada, pois, uma questão de desconfiança
parlamentar frente ao ministério liderado por Caxias. Assim entendem a emenda não só a
oposição que a apresentou, mas também o próprio ministério; na continuação dos debates no
dia seguinte, o ministro da Justiça Sayão Lobato (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1862,
sessão de 20 de maio) afirma perante a Câmara que o ministério aceita tomar a emenda de
Zacarias como uma moção de desconfiança:
Sr. presidente, em qualquer outra circunstância seria muito indiferente a aceitação da
emenda; considero-a, encarando por um lado, somente como mera redação, e
portanto não duvidaria aceitá-la; porém na intenção e circunstâncias com que ela foi
formulada, é um verdadeiro voto de censura e condenação, e como tal o ministério a
aceita; e a aceita requerendo a cada um dos dignos membros desta câmara que muito
conforme à sua consciência se exprima a tal respeito (Muito bem, muito bem!).
O rompimento da coesão partidária, cara aos saquaremas, foi tema levantado logo em
seguida ao discurso de Zacarias no qual se apresentou à Câmara a emenda oposicionista. Um
dos responsáveis pela elaboração do projeto original, Antônio Gonçalves Barbosa da Cunha,
deputado conservador pela província de São Paulo, tomou a palavra após Zacarias para
expressar seu desconforto com a quebra da unidade conservadora, agora que parte de seus
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correligionários encontravam-se ao lado dos “antigos e naturais adversários”, ou seja, ao lado
da bancada liberal (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1862, sessão de 19 de maio). A questão
reaparece nos dois dias seguintes nos quais a resposta à Fala do Trono ainda tomou conta da
pauta da Câmara; no dia 21, outro dos redatores do projeto original, o deputado João
Capistrano Bandeira de Mello (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1862, sessão de 20 de maio;
grifos meus), dirige-se a Zacarias para censurar-lhe a participação numa aliança cujas
consequências futuras são imprevisíveis:
O Sr. Bandeira de Mello: [...] Lamento, senhores, sinceramente esta divergência.
Estava acostumado a trabalhar com os nobres deputados...
O Sr. Zacarias: Em 1852 V. Ex. esteve separado, quando os destinos do país
estavam confiados a conservadores. Nessa ocasião ouvi muitas coisas que ainda
tenho na memória.
O Sr. Bandeira de Mello: Eu darei a respeito uma explicação ao nobre deputado; no
entretanto direi ao nobre deputado que muito grave, muito séria é a responsabilidade
que os nobres deputados assumem por esta divergência nas circunstâncias em que
nos achamos.
O Sr. Zacarias: Não é preciso lembrar: temos a mesma liberdade que V. Ex. teve em
1852.
[...]
O Sr. Bandeira de Mello: Sr. presidente, os nobres deputados fizeram uma liga com
antigos adversários; mas as consequências de uma liga são demasiado graves,
sacrificam-se à necessidade de um dia ideias que representam a necessidade de
todos os dias, isto é, os princípios que sustentam uma certa ordem que temos
consagrado como indispensável.
O fato é que a unidade intrapartidária que parecia possível na sessão legislativa do ano
anterior já não mais se mostrava como uma realidade concreta em 1862. Com efeito, as
censuras dirigidas à dissidência conservadora da parte da bancada saquarema que, nas
palavras de Barbosa da Cunha (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1862, sessão de 19 de maio),
mantinha-se “sob a bandeira de nossos chefes naturais”, demonstra o desconforto sentido pelo
setor hegemônico do Partido Conservador frente ao fracasso da política de reunificação
orquestrada por Caxias. Por trás desse insucesso, porém, não estava a má vontade de um
grupo minoritário de descontentes, mas a própria impossibilidade atual de recomposição da
sólida unidade que caracterizara o partido da “Ordem” antes do advento da conciliação. A
articulação de uma “liga” entre os grupos descontentes com a longa hegemonia saquarema
expressava a quebra da comunidade de interesses que havia caracterizado o Partido
Conservador, a qual se fundava em um consenso quanto às necessidades presentes do
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Império; o avanço do processo de modernização que se dava concomitantemente à
experiência conciliatória embaralhou as antigas posições políticas fundadas na oposição
“saquaremas x luzias” – nesse processo, a emergência da liga nos anos iniciais da década de
1860 não expressava uma articulação política ad hoc ou momentânea, mas sim uma
alternativa que se contrapunha à atuação dos saquaremas fundada na preservação da obra
regressista como condição básica para a garantia da estabilidade sociopolítica do Império.
Além de expor uma vez mais o racha no interior das fileiras conservadoras, a discussão
da Fala do Trono ratifica por fim a impossibilidade de manutenção do gabinete, já sentida na
sessão legislativa anterior e confirmada durante a eleição da mesa da Câmara. Ainda no
terceiro dia de discussão da emenda oposicionista, após Francisco Otaviano abdicar da
palavra e o representante do gabinete, o ministro Paranhos, aceitar o fim da discussão,
procede-se à votação do texto de Zacarias, o qual é aprovado pela diferença de um voto: 43
contra 42. A matéria, que foi tratada como questão de gabinete pelo próprio ministério, não
podia senão produzir a queda de Caxias: naquele mesmo dia os ministros dirigem-se a São
Cristóvão e pedem sua exoneração ao imperador. Antes, porém, Caxias lançou mão de um
último recurso: a dissolução da Câmara e a realização de nova eleição, visto que a divisão
atual do parlamento gerava uma situação de ingovernabilidade. Todavia, o “apelo ao país
real”, como colocou eufemisticamente a questão o ex-ministro Paranhos dias mais tarde
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1862, sessão de 27 de maio), não foi aceito por d. Pedro; o
responsável pela emenda que derrubou o gabinete, o deputado Zacarias, é chamado, assim, a
compor um novo ministério – pela primeira vez a coligação entre a dissidência conservadora e
os liberais chegava ao poder. O simbolismo dessa transição da condição de liga oposicionista
à de coligação governamental é enunciado com entusiasmo por Saraiva – o ministro
demissionário do gabinete Caxias – no dia em que Zacarias apresenta o programa do novo
ministério à Câmara. O triunfo da liga representaria a vitória de um grupo que deseja “que as
reformas úteis sejam realizadas por todos os seus sacerdotes, quer se chamem eles liberais ou
conservadores” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1862, sessão de 27 de maio); mais do que
isso, a vitória comprovaria também que a divisão entre liberais e conservadores já não possui
mais sentido; agora já é possível falar em um novo partido composto de homens provenientes
de ambos os grupos – o “Partido Progressista do Império”:
“Senhores, nós, conservadores moderados e liberais, ou antes nós que formamos
hoje o partido progressista do Império... (Murmúrio).
(O Sr. Paranhos e outros riem-se.)
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O Sr. Saraiva: Podem rir-se os nobres deputados. Acostumados nestes últimos anos
a outros sucessos, devem seguramente rir-se em presença do espetáculo mais sério e
mais grandioso que o país tem presenciado. Não quero continuar [o discurso]
(Apoiados; muito bem. O orador é cumprimentado por grande número de Srs.
deputados).
As risadas da parte do grupo saquarema evidenciavam, porém, que a transformação da
liga em partido ainda haveria de enfrentar desafios para que fosse levada a sério. Naquele
mesmo dia, antes até do emblemático discurso proferido por Saraiva, Francisco de Sales
Torres Homem (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1862, sessão de 27 de maio) indicou a frágil
estrutura sobre a qual se sustentava o primeiro ministério “ligueiro”. Fragilidade essa que,
aliás, já havia solapado a manutenção do ministério anterior:
Há três dias, senhores, que um gabinete abandonou a direção dos negócios públicos
pelo fundamento muito racional e legítimo de que nenhum gabinete deve manter-se
sem possuir no parlamento uma maioria suficientemente numerosa que o habilite ao
desempenho de suas árduas funções. [...] Dissolvido porém o gabinete, o que
sucedeu? O poder passou para as mãos da oposição, que, por um laço armado à
fortuna, se havia achado em maioria de um voto (Apoiados; reclamações). Maioria
de um dia, maioria de algumas horas talvez, maioria contestada como filha da
surpresa (Apoiados). A superioridade numérica de um voto, eis o título de seu
triunfo; eis a fonte única da sua pretensão de mudar a face política do país
(Apoiados).
De fato, a situação do recém-formado ministério Zacarias não era mais vantajosa do que
aquela de Caxias em seus piores momentos. Pois se a queda do gabinete Caxias se deu em
razão da inexistência de uma maioria parlamentar sólida, a votação que fornecera a
oportunidade de formação do novo ministério também anunciava que ele padeceria da mesma
doença. A composição do gabinete havia absorvido cinco deputados da Liga, contando o
próprio Zacarias (cf. BARÃO DE JAVARI, 1979 [1889], p. 129) – estava claro que a estreita
maioria que havia dado ensejo à formação ministerial talvez já nem existisse. Não por acaso,
na primeira ocasião em que a Câmara teve a oportunidade de analisar um projeto de lei (a
saber, no dia seguinte à apresentação do ministério), a bancada saquarema propôs o adiamento
da discussão até que ficasse comprovada a confiança da Câmara no atual gabinete. Instaura-se
uma questão de confiança que é rejeitada pelo ministro Zacarias, uma vez que o projeto em
questão, o qual regulava as promoções na Armada, não teria a importância que lhe queria dar
a oposição (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1862, sessão de 28 de maio). Todavia, a questão
foi aceita por parte dos deputados da Liga e, com o encerramento da discussão requerido e
aprovado naquele mesmo dia, a votação comprovou a inviabilidade do ministério que mal
havia se organizado: o adiamento do projeto foi aprovado por 49 votos contra 43.
66
Qual era, porém, o desenlace lógico de tal evento? O fato é que a Câmara se mostrava
cindida em duas metades praticamente iguais, das quais nenhuma delas possuía uma maioria
capaz de formar um governo. No mesmo dia da queda do ministério Zacarias, o A Atualidade
(28/05/1862, edição nº 219) resume a situação de “crise” em que se encontra o parlamento; a
dissolução despontava como a única saída possível:
A moção motivada pelo Sr. Sales [Torres Homem] e sustentada pelo Sr. Paranhos e
Pedreira [do Couto Ferraz] passou por 49 votos contra 43. Não estavam presentes os
Srs. Mello Franco e Nunes Gonçalves, ambos ministeriais, e o Sr. Ferreira Lage que
provavelmente daria o seu voto ao gabinete. Ficavam pois 46 votos contra o
ministério dos Srs. Sayão [Lobato], Taques e Paranhos contra 46 do lado de SS.
EExs. [...]. Que significação tem pois a surpresa de hoje? Nenhuma a não ser que
com a câmara atual não podem governar nem uns nem outros dos partidos
organizados, e que a não haver alquimista tão hábil que manipule composição
diferente, a dissolução é indeclinável.
No entanto, tal como acontecera dias antes, d. Pedro não consentirá com o novo pedido
de dissolução, dessa vez da parte de Zacarias. O primeiro ministério “ligueiro” cai, pois,
apenas quatro dias após sua formação e um dia após a transformação da Liga em partido.
Tratava-se nada menos do que “o governo de mais breve existência na história do Segundo
Reinado” (HOLANDA, 2010, p. 89), o qual, pela morte “prematura” que teve, ficará
conhecido como o ministério de “anjinhos” (IGLÉSIAS, 2004 [1967], p. 110). A organização
do novo gabinete ficará sob a responsabilidade do marquês de Olinda – esse decano da
política imperial que figurou como chefe ministerial nos anos do regresso e da conciliação,
além de ter sido regente durante a menoridade de Pedro II.
A apreciação do momento formativo da Liga Progressista durante a sessão legislativa
de 1862 – momento no qual, ao passar da condição de liga oposicionista à de coalizão
governamental, ela se torna um novo partido – permite que se faça alguns reparos nas
hipóteses formuladas até aqui. Já foi frisado que, no processo de esfacelamento da obra
conciliatória durante o gabinete Ferraz, as eleições de 1860 representaram um movimento de
rearticulação das posições políticas impulsionado pelo avanço da modernização
socioeconômica do Império: a vitória de liberais e conservadores moderados nas principais
cidades de então expressaria uma homologia entre os anseios dos grupos urbanos e um
reformismo encampado pelos agentes políticos que se contrapunham à hegemonia saquarema
consolidada durante o regresso. Contudo, agora que conhecemos os principais nomes
responsáveis por canalizar essa insatisfação com aquilo que Nabuco de Araújo (SENADO DO
IMPÉRIO, 1862, sessão de 20 de maio) chamou, dias antes da queda de Caxias, de “uti
possidetis do Partido Conservador” em relação às altas posições do Estado, não é possível
67
ignorar que grande parte deles não despontam na política como representantes de um genérico
“mundo urbano” emergente, mas sim de um espaço concreto e específico: a região norte do
Império. Com efeito, parte substancial das figuras com as quais trabalhei até aqui tinha, por
exemplo, sua base ou formação política na província da Bahia: é o caso de Nabuco de Araújo,
de Saraiva e também de Zacarias. É significativo notar, aliás, que dos sete ministros do
gabinete Zacarias de 1862 apenas três deles (José Pedro Dias de Carvalho, José Bonifácio de
Andrada e Silva, “o moço”, e Manuel Marques de Sousa, barão de Porto Alegre) não
provinham das províncias setentrionais (cf. BARÃO DE JAVARI, 1979 [1889], p. 129); e, no
entanto, mesmo aí é possível encontrar um padrão pleno de sentido para que se compreenda
melhor a emergência da Liga Progressista: nenhum dos três políticos em questão era
fluminense.
Por diversas vezes afirmei que a coligação entre os grupos liberal e conservador
“moderado” se deu em contextos nos quais a união de forças mostrava-se como a única
maneira possível de se contrapor à hegemonia saquarema: a Liga foi produto dessa
necessidade que se fez presente no ano de 1860, arrefeceu em 1861 e voltou com força no ano
seguinte, quando a coligação é então alçada ao poder. A existência de uma base de apoio
urbana foi uma das condições que permitiram que a Liga se expressasse com força ao nível do
parlamento, engrossando a bancada oposicionista mediante nomes como os dos três deputados
liberais pelo município neutro do Rio de Janeiro: Teófilo Ottoni, Francisco Otaviano e
Joaquim Saldanha Marinho; entretanto, para além desse componente urbano, receptivo ao
reformismo liberal, é preciso igualmente ressaltar uma outra dimensão que parece ter
impulsionado a articulação da Liga Progressista: a marcha da economia imperial. Desde o
segundo quartel do século XIX as atividades agroexportadoras e o ganho material dela
proveniente ensejaram vantagens diferenciadas para as diversas regiões do Império, as quais
podem ser inferidas a partir da participação de dois produtos na economia de exportação
brasileira: o açúcar e o café. Durante a década de 1830 a participação do açúcar nas receitas
de exportação declina com a mesma rapidez com que aumenta a do café; como já frisado
alhures, no início de 1850 o café responderá por quase 50% das receitas auferidas com a
exportação no país (GRAHAM, 2001a [1985], p. 774; HOLANDA, 2010, p. 51). Ora, a
localização dessas culturas em regiões específicas – a saber, o norte do Império e o Vale do
Paraíba fluminense, respectivamente – indica-nos um processo de diferenciação crescente
entre elas no qual, no caso da província do Rio de Janeiro, a concentração de capital
econômico esteve conjugada à de capital político, dada as estreitas relações entre os homens
de Estado e os homens de negócio, enquanto a antiga pujança econômica do norte declinava
68
gradativamente. O processo de expansão e modernização da economia agroexportadora
criava, assim, um descompasso entre as duas regiões, impossibilitando a manutenção de um
consenso político que se fundava num compartilhamento não só de interesses, mas,
especialmente, de vantagens e lucros que deixam de se distribuir de maneira equilibrada na
medida em que a indústria açucareira nortista perde espaço no mercado mundial do produto
(GRAHAM, 2001a [1985], p. 772) e é suplantada internamente pela crescente riqueza gerada
pelo café valparaibano fluminense.
A diferenciação econômica não pode e nem deve explicar a cisão política, mas decerto a
ilumina. Com efeito, o predomínio do partido da “Ordem” não foi constituído apenas pela
ação de políticos fluminenses, mas, ao contrário, a consolidação do Estado nacional pelas
mãos saquaremas teve o importante e indispensável concurso das elites proprietárias dispersas
pelas províncias do Império. Dentre elas, a base do Partido Conservador concentrava-se
naquelas que se associavam mais estreitamente à economia de exportação, ou seja, além do
Rio de Janeiro, as províncias de Pernambuco e da Bahia (CARVALHO, 2003 [1980/1988], p.
213). Parece claro, pois, que a coesão partidária, elemento central do predomínio político
saquarema, possuía um inegável fundamento econômico. O surgimento de uma liga
antissaquarema nos anos 1860 na qual parte substancial de seus articuladores provinha não
apenas da região norte, mas especialmente da província da Bahia, é um indício de que a troca
de posições políticas operadas durante a conciliação não pôde se cristalizar em nova
polarização partidária em razão da crescente diferenciação de interesses, cuja homogeneidade
de outrora ligava os saquaremas entre si e os opunha aos luzias. A expansão da economia
agroexportadora e o processo de modernização à que ela dava impulso criavam cisões no
tecido social do Império que concorriam para inviabilizar a retomada de um projeto que fora
hegemônico anteriormente, mas que não parecia mais se adequar às demandas atuais dos
setores provinciais que lhe deram sustento, tampouco às aspirações dos grupos urbanos
emergentes. Nesse sentido, a construção política de um consenso intraelite, intenção que
perpassou a experiência da conciliação, retorna nos anos 1860 sob roupagem um tanto
distinta: tecer a unidade da classe proprietária exigirá então um pouco mais que a mera
redução do poder concentrado nas mãos dos saquaremas (o que podia ser obtido pela absorção
parlamentar e governamental do grupo liberal afastado da direção do Estado desde 1848);
agora, a insatisfação de setores provinciais que antes gravitavam ao redor do núcleo
saquarema do Partido Conservador vai se somar às novas demandas dos setores urbanos e
desembocar no projeto de reforma do arranjo institucional associado à obra do regresso. A
“opção progressista”, ou seja, o ideal de avanço no processo de construção do Estado imperial
69
para além dos limites dados pela política do regresso é, pois, o novo caminho a ser trilhado
pelos detentores do poder a partir de 1862; o aperfeiçoamento da unidade política da classe
proprietária será buscado por meio da proposição de reformas capazes de efetivar o programa
liberal consagrado na carta constitucional de 1824, cuja dimensão, aos olhos de liberais e
conservadores dissidentes, tinha sido estreitada durante o longo predomínio político
saquarema.
70
Capítulo 3
O Escopo do Progresso
A efêmera experiência de governo que os partidários da Liga desfrutaram entre os dias
24 e 28 de maio de 1862 acabou produzindo um impasse: a atual Câmara eleita em 1860, após
a breve experiência de reunificação saquarema nos primeiros meses do ministério Caxias,
havia se cindido em duas metades que não eram capazes de sustentar um governo. Essa
realidade foi primeiramente observada na queda de Caxias em razão de uma moção de
desconfiança do parlamento, fato inédito na política imperial (HOLANDA, 2010, p. 86); a
incapacidade da Liga que derrubou o ministério Caxias em garantir a manutenção de Zacarias
no poder explicitava ainda mais esse problema, até porque d. Pedro novamente não anuiu à
proposição de dissolução da Câmara por parte do governo. Sem esse instrumento, como,
porém, contornar a atual divisão parlamentar em duas facções antagônicas que possuíam
forças semelhantes e que, por isso mesmo, se anulavam mutuamente?
De fato, a situação de divisão entre os deputados em razão da emergência de uma liga
entre liberais e conservadores dissidentes assumia feições mais estáveis (e por isso mesmo
mais críticas) com a ascensão e queda de Zacarias ao poder. Assim, tudo indicava que a
articulação entre esses grupos se afastava cada vez mais do modelo de coligação momentânea
que pautara suas primeiras manifestações, ainda no ano de 1860. Apesar do riso entre a
bancada saquarema provocado pela fala de Saraiva ao anunciar o nascimento de um novo
partido – o Partido Progressista –, parecia haver alguma razão em suas palavras, por mais que
tenham sido enunciadas um dia antes do naufrágio da primeira experiência dos homens da
Liga no governo; afinal, tanto o processo de formação do gabinete Zacarias quanto a trágica
experiência de vê-lo sucumbir tão cedo foram eventos que fortaleceram a união entre os
grupos liberal e conservador dissidente (NABUCO, 1949 [1987], p. 96; HOLANDA, 2010, p.
94), de forma que o impasse não parecia poder ser resolvido por nova tentativa de
reaglutinamento da bancada conservadora. Se o imperador não aceitava a dissolução e se os
dois grupos em que se dividia a Câmara não estavam dispostos a dar seu apoio a um governo
que não surgisse de suas próprias fileiras, seria preciso então encontrar uma “terceira via”
para solucionar esse dilema.
3.1. Olinda e o início do predomínio progressista
71
A escolha do marquês de Olinda para suceder a Zacarias representava essa opção
momentânea por abrandar a disputa entre ambos os grupos, os conservadores e os homens da
Liga. Olinda, apesar de ter defendido a obra de Paraná se opondo à reforma da Lei dos
Círculos, estava desde há muito afastado das disputas partidárias, figurando assim como um
personagem alheio à recente divisão política que teve lugar na Câmara. A formação de novo
ministério por ele liderado seguirá essa tendência sobranceira frente aos partidos cuja
personificação era o próprio Olinda: os homens convocados para compô-lo são quase todos
políticos nortistas da ala moderada do Partido Conservador, igualmente alheios às querelas de
partido, aos quais se somam um antigo liberal pernambucano, Antônio Francisco de Paula de
Holanda Cavalcanti de Albuquerque, o visconde de Albuquerque, além de um nome
simpático à Liga, João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu (NEEDELL, 2006, p. 217). Trata-
se, pois, de uma tentativa de abafar o atual estado de divisão da Câmara apelando para
estadistas cujo valor não era negado por nenhum dos grupos de então – não por acaso, o
governo ficará conhecido como o “Gabinete dos Velhos” (IGLÉSIAS, 2004 [1967], p. 110) e
contará com apenas um deputado (Joaquim Raimundo de Lamare) em seus quadros (BARÃO
DE JAVARI, 1979 [1889], pp. 130-131). No dia de apresentação do programa ministerial à
Câmara, Saraiva (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1862, sessão de 31 de maio) resume bem a
significação do novo ministério ao fazer a seguinte pergunta:
O que temos, senhores? Um ministério, no qual a liga progressista tem garantias,
porque tem amigos que ainda há pouco defendiam seus princípios, acoroçoavam
suas aspirações (Muitos apoiados). É certo que os ilustres cavalheiros a que me
refiro estavam fora da luta e hoje ocupam um terreno neutro. Mas não será isso um
triunfo? E não será ainda um triunfo do parlamento? Creio sinceramente que o é
(Numerosos apoiados da liga). Em lugar de termos um ministério parcial, um
ministério votado aos interesses de um partido, temos a fortuna de encontrar um
ministério neutro, que de certo defenderá nossos legítimos interesses (Apoiados;
muito bem); que saberá manter a liberdade do voto em toda a sua pureza, porque se
acha numa posição sobranceira a todas as paixões (Apoiados; muito bem).
Todavia, os “numerosos apoiados” que provinham de uma parcela específica dos
ouvintes de Saraiva indicavam que o “triunfo do parlamento” não era igualmente saudado por
todos os seus integrantes. Em realidade, entre os próprios “ligueiros” havia dúvidas quanto à
legitimidade do gabinete recém-formado: antes do discurso de Saraiva indicando o apoio dos
progressistas a Olinda, o liberal Martinho Álvares da Silva Campos havia subido à tribuna
para expressar seu descontentamento com um ministério que falseava o verdadeiro “governo
representativo”, uma vez que nele “a câmara dos deputados é absoluta e inteiramente alheia!”
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1862, sessão de 31 de maio). Porém, mais do que o
72
descontentamento residual que medrava no interior dos grupos coligados, a reação dos
conservadores “puritanos” ao gabinete de então parecia ser mais de tolerância que de apoio:
ao discursar naquele mesmo dia, Torres Homem – deputado responsável pela moção que
derrubou o primeiro gabinete da Liga – afirmou (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1862,
sessão de 31 de maio) que o novo ministério certamente merecia a confiança dos deputados
pelos nomes que o compõem, apesar de não poder “ser considerado como expressão genuína
da maioria dessa casa”; vendo-se, pois, ainda na posição de “maioria”, os conservadores não
podiam senão prestar um fraco apoio a Olinda – o qual decerto não representava tal maioria.
Com efeito, o afastamento frente ao partido “ordeiro” por parte do marquês que havia
comandado o poderoso gabinete de 1848 já vinha se manifestando há tempo: consolidara-se
nos anos da conciliação, quando Olinda formou o ministério de 1857, comprovando-se mais
recentemente na discussão a respeito da reforma da Lei dos Círculos, momento em que Olinda
posicionou-se contrário à alteração proposta pelos saquaremas. Ora, se num primeiro
momento os conservadores apoiaram, posto que sem entusiasmo, ao ministério organizado
por um de seus “trânsfugas”, a razão disso está no raciocínio de que a “solução Olinda” talvez
fosse o melhor arranjo no momento capaz de impedir a formação de um novo governo sob os
auspícios da Liga (HOLANDA, 2010, p. 101).
Como se vê, o gabinete Olinda se sustentava pelo apoio de ambos os grupos da Câmara,
embora não detivesse a adesão irrestrita de nenhum deles. Este equilíbrio difícil, ainda mais
depois das lutas renhidas entre a Liga e os conservadores durante os eventos que levaram ao
fim do ministério Caxias e à ascensão e queda de Zacarias, demonstrava a fragilidade do
governo atual; a perda do apoio de um dos lados poderia a qualquer momento inviabilizar a
manutenção da “terceira via” representada por Olinda. Mas o velho marquês não esperaria
muito tempo para buscar fortalecer a sua própria posição nesse imbróglio: ao final do
primeiro mês de governo, Olinda realiza uma substituição ministerial plena de repercussões à
disputa política que então se travava na Câmara: Sinimbu, o homem da Liga no ministério, é
realocado da politicamente insignificante pasta da Agricultura, Comércio e Obras Públicas
para a da Justiça, principal mecanismo governamental de intervenção no processo eleitoral
(BARÃO DE JAVARI, 1979 [1889], pp. 130-131; NEEDELL, 2006, p. 218). A partir daí,
Sinimbu passa a agir claramente a favor da Liga, substituindo em postos judiciários e policiais
(peças-chave no sucesso eleitoral de um grupo) os conservadores por homens próximos da
Liga Progressista. Apesar de a substituição promovida por Olinda e, principalmente, a atuação
73
de Sinimbu terem enfurecido as lideranças conservadoras28
, a bancada saquarema na Câmara
não passa à confrontação direta com o ministério; as transformações na organização do
gabinete não eram apenas um aceno para a Liga, mas também constituíam um claro sinal aos
conservadores: a realocação de Sinimbu para a pasta da Justiça indicava que, se o ministério
não conseguisse mais se sustentar e obtivesse a anuência de d. Pedro II para dissolver a
Câmara, as próximas eleições seriam realizadas sob o controle dos homens da Liga
(NEEDELL, 2006, p. 218).
Assim é que, ao se iniciar a sessão legislativa de 1863, Olinda, apesar de tudo, não sofre
grandes ataques da parte dos conservadores, crescentemente insatisfeitos com o seu governo.
Antes, porém, da discussão do projeto de resposta à Fala do Trono, ocorre um evento que terá
por resultado a transformação daquela calmaria de superfície que tomava conta da Câmara
temporária: a eleição da mesa diretora. A derrota do candidato ministerial é tomada por
Olinda como questão de gabinete, sendo levada perante o imperador; com base nesse fato,
indício da notória polarização entre os deputados, Olinda pede a d. Pedro a dissolução da
Câmara para dar término à situação de ingovernabilidade que se instaurara ali desde pelo
menos 1861 (HOLANDA, 2010, pp. 107-108). Agora, ao contrário do que ocorrera com
Caxias e Zacarias, o monarca aprova a ideia, dando assim carta branca a Olinda (e,
consequentemente, também a Sinimbu) para a reordenação do espaço político polarizado que
havia se consolidado na atual legislatura – reordenação essa que pela primeira vez seria feita
sob clara influência dos progressistas (NEEDELL, 2006, p. 218).
Com o aparelhamento dos cargos policiais e judiciais via pasta da Justiça e a prática da
patronagem agora sob o controle da Liga, as eleições de 1863 não poderiam senão produzir
um resultado altamente favorável à nova agremiação que disputava o poder. De fato, a
Câmara surgida deste pleito iria consagrar a Liga Progressista como força política capaz de
estender sua rede de influência pelas diversas províncias do Império: o resultado das eleições
foi a constituição de uma avassaladora maioria “ligueira”, agora completamente protegida das
possíveis ameaças que poderia sofrer por parte dos conservadores “puros” – esses, na
28
Em 1864, meses após a retirada do gabinete Olinda, a folha conservadora Constitucional (18/06/1864, edição
nº 69; grifos no original) fez um balanço da atuação de Sinimbu no ministério que demonstra bem como os
saquaremas encararam a administração do político alagoano:
Ingrato inconsiderado, audacioso, violento, odiento e prevaricador, o Sr. Sinimbu foi nos seus
dois últimos ministérios da Agricultura e Justiça uma calamidade, um escândalo! Demissões em
massa nos cargos policiais, nomeações vergonhosas ou inconvenientes para a polícia e guarda
nacional, nomeações e remoções desgraçadas e acintosas na magistratura, compromissos
ruinosos e ilegais a companhias de estradas de ferro e aposentadorias forçadas de membros da
alta magistratura do país, com violação flagrante da constituição, formam a coroa cívica desse
ministro fatal [...].
74
legislatura que então se iniciava, não chegavam a constituir sequer uma minoria de dez
indivíduos; mais do que isso, até mesmo em seu reduto eleitoral por excelência, a província
do Rio de Janeiro, a derrota se mostrou completa: nenhum dos doze candidatos fluminenses
eleitos possuía vínculos com os saquaremas (NEEDELL, 2006, p. 219; cf. BARÃO DE
JAVARI, 1979 [1889], p. 338). Iniciava-se, assim, o predomínio progressista na Câmara dos
deputados, que iria persistir até a queda do último ministério da Liga em 1868.
Terminado o processo eleitoral, Olinda entendeu que sua missão também já estava
cumprida e preferiu retirar seu ministério de cena em janeiro de 1864, durante as reuniões
preparatórias da Câmara para o retorno dos trabalhos legislativos. A partir daí, o caminho
estava aberto para a organização de novo gabinete sob a liderança do mais novo partido do
Império, o Partido Progressista – agora com a garantia de que seria possível contar com o
apoio de uma maioria sólida entre a deputação nacional. Assim é que, a 15 de janeiro de 1864,
será organizado o segundo ministério presidido pelo deputado baiano Zacarias de Góis e
Vasconcelos. Tudo se passa como se finalmente fosse possível dar sequência a uma situação
que havia ficado em suspenso desde 1862, quando o primeiro gabinete liderado por Zacarias
foi ejetado do governo com a mesma rapidez com que tinha ascendido a ele:
O Sr. Zacarias (Movimento de atenção. Profundo silêncio): Sr. presidente, há quase
dois anos que, encarregado pela coroa da honrosa tarefa de organizar o gabinete de
24 de Maio [de 1862], coube-me expender aqui um programa que então mereceu, e
que os acontecimentos ulteriores persuadem que continua a merecer o assentimento
do país. Chamado, pois, agora, em consequência do desenlace desses
acontecimentos, a organizar o gabinete que no dia 15 do corrente sucedeu ao de 30
de maio [de 1862], venho com os meus colegas [de gabinete] declarar à câmara,
como nos cumpre, que as normas por que se tem de reger o novo ministério na
gerência dos negócios públicos estão em geral designadas no programa aludido.
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1864, sessão de 18 de janeiro)
À diferença, contudo, de que o momento atual não mais exige que o gabinete peça o
auxílio de “duas opiniões políticas” distintas para que se sustente; a Câmara que atualmente
assiste à recondução dos progressistas aos conselhos da Coroa pouco tem a ver com aquela de
1862, pois agora antigos conservadores e antigos liberais estão reunidos num único e mesmo
partido:
Em 1862 o ministério aludia ao concurso de duas opiniões com que contava para
levar por diante o seu pensamento político. As duas opiniões políticas, porém, que
este salão viu naquela quadra, após debates públicos e solenes, aliaram-se, sem
quebra de princípios, nem da dignidade de ninguém (Muitos apoiados), formam hoje
uma só opinião (Muitos apoiados), um só partido, cujo alvo é promover
sinceramente, sem nada alterar na constituição do Império, a prosperidade do país
(Muitos apoiados). (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1864, sessão de 18 de janeiro)
75
Progredir, pois, “sem nada alterar na constituição do Império”. A construção de uma
robusta maioria parlamentar por parte da Liga permitia enfim que seu ideal de temperamento
da conservação pelo progresso possa ser posto em prática, aperfeiçoando assim o arranjo
institucional do Estado brasileiro consolidado nos anos do regresso. A união entre liberais e
conservadores “moderados”, realizada para desalojar os saquaremas de seu “uti possidetis”
das altas posições oficiais, apresentava agora a oportunidade de precisar o seu real escopo, de
explicitar qual o sentido que se deveria imprimir à direção do Estado imperial para que este
avançasse no processo de aperfeiçoamento do ordenamento institucional-legal da monarquia
brasileira. Portanto, impunha-se agora delinear os retoques necessários à efetiva realização
das diretrizes de matriz liberal já contidas na constituição do Império; este reformismo, ainda
vago e incipiente, constituía o único intuito “positivo” que detinha consenso entre os dois
grupos formadores do Partido Progressista após a realização de seu objetivo “negativo”: a
quebra da hegemonia política saquarema.
A luta comum aos conservadores “emperrados”, termo cunhado por Zacarias para
designar seus antigos correligionários (HOLANDA, 2005 [1972], p. 30), havia absorvido
inteiramente os esforços dos homens da Liga antes do triunfo nas eleições de 1863. Nesse
sentido, pouco ou nenhum caso fizeram os “ligueiros” em explicitar (para si mesmos e para os
outros) quais eram os ideais e os objetivos concretos que os impelia à aliança de então; a visão
conservadora e/ou ministerial sobre a Liga à época dos gabinetes Ferraz e Caxias tinha, assim,
um quê de correta: a oposição coligada parecia de fato combater o governo apenas para
desalojá-lo do poder, “sem acordo para o dia seguinte ao do seu desejado triunfo” (CORREIO
DA TARDE, 20/05/1862, edição nº 103). Todavia, o reordenamento do cenário político a
partir da dissolução da Câmara em 1863 e da organização, um ano mais tarde, de um novo
gabinete sob os auspícios da Liga, fornecia as condições para que os progressistas, agora
organizados sob a forma de um partido político, explicitassem a natureza e amplitude das
reformas pensadas como um modo de dar continuidade à tarefa de construção do Estado
imperial. Quase que totalmente desarticulados programática e ideologicamente durante os
primeiros anos de sua existência (NABUCO, 1949 [1897], pp. 99-100), na esteira da vitória
de 1863 o Partido Progressista clarifica para si mesmo e para seus adversários as intenções
básicas que moviam seus adeptos a se contrapor ao projeto saquarema de preservação das
bases institucionais-legais lançadas pela política do regresso.
3.2. O Partido Progressista e seu programa
76
É durante o segundo gabinete liderado por Zacarias que vem à lume o programa do
Partido Progressista29
, documento que assinala uma inflexão no modo de proceder dos
partidos políticos imperiais. Com efeito, a exposição dos princípios e ideias que guiavam os
progressistas vem a ser o primeiro documento partidário no qual se explicitam as ideias de um
partido do Império, inaugurando uma prática que será adotada por outras agremiações nos
anos finais na década de 1860, após a desarticulação do Partido Progressista (CARVALHO,
2003 [1980/1988], p. 206). Trata-se, nesse sentido, de valioso material no processo de
diferenciação da recém-consolidada coligação entre liberais e conservadores “moderados”
frente ao projeto político saquarema. Assim, para que melhor se compreenda a distinção entre
as duas opções de condução do Estado imperial que se apresentavam durante a década de
1860, buscarei nesta seção elencar algumas das propostas e princípios consagrados no
programa, contrastando-o com a política saquarema característica dos anos do regresso.
Em primeiro lugar, cabe ressaltar que o programa do Partido Progressista é tornado
público pelas mãos de seus adversários, e isso muito depois de ter sido redigido: em sessão do
Senado no dia 06 de junho de 1864, o senador conservador José Inácio Silveira da Motta
serve-se de um exemplar do programa para tecer críticas ao ministério Zacarias durante a
discussão do projeto de resposta à Fala do Trono, assinalando que a não publicação do
documento indicava as divergências internas do Partido Progressista entre os grupos distintos
que o compunham (SENADO DO IMPÉRIO, 1864, sessão de 06 de junho). Os comentários
de Silveira da Motta ao programa e sua hipótese de que o mesmo não gozava do
consentimento de todos os progressistas, levam à tribuna do Senado diversos nomes ligados
ao novo partido, gerando um grande debate que se estende durante toda a discussão do voto
de graças; o desencontro entre as informações fornecidas pelos progressistas Nabuco de
Araújo (principal redator do programa), Zacarias (líder do ministério) e Ottoni (recém-
nomeado senador pela província de Minas Gerais), que não se acertam quanto à aprovação ou
rejeição do programa, só é esclarecido no dia 10 daquele mês, com o discurso do senador
progressista d. Manoel de Assis Mascarenhas. Segundo d. Manoel (Idem, sessão de 10 de
junho), o programa teria sido elaborado ainda durante a campanha eleitoral de 1863 que se
seguiu à dissolução da Câmara temporária; de fato, não houve consenso quanto a diversos
pontos “minoritários” – todavia, em uma das reuniões em que o texto foi discutido, ele acabou
por ser aprovado30
. A falta de um consenso tornava inconveniente sua publicação, por isso
29
O programa do Partido Progressista é aqui reproduzido na íntegra e encontra-se na seção “Anexo”. 30
“Na primeira reunião [de discussão do programa], em casa do nobre presidente do conselho [Zacarias], achou-
se o Sr. Nabuco, que foi até quem nos presidiu; na segunda, em minha casa, creio que presidiu o Sr. Sousa
77
preferiu-se apenas remeter cópias do programa às províncias, para que as ideias do partido
fossem melhor conhecidas por ocasião da campanha eleitoral de então. Assim, apesar de ele
aparecer apenas agora na Corte e ser conhecido pela oposição conservadora, sua concepção e
divulgação nas fileiras progressistas se dera um ano antes, durante as eleições de 1863.
Percebe-se, portanto, que o programa, sendo parte integrante da campanha eleitoral, foi peça
importante na construção do predomínio do Partido Progressista na Câmara que emergiu
daquele pleito.
Para compreender a especificidade do projeto progressista que então se tornava
hegemônico após o sucesso eleitoral de 1863, é imprescindível atentar às ideias consagradas
no programa do partido, as quais, a despeito das ressalvas de alguns correligionários,
constituíam um plano comum de ação aos conservadores dissidentes e aos liberais de então.
Dentre os cinco pontos negativos (o que “o Partido Progressista não quer”) e os quase vinte
pontos positivos (o que “o Partido Progressista quer”) (cf. Anexo) especificados no texto, é
possível identificar um fio condutor em cada uma dessas seções: 1) em relação àquilo que o
Partido Progressista não quer, observa-se uma rejeição às reformas constitucionais e a
alterações bruscas no cenário político do Império (como a introdução do sufrágio universal);
2) já quanto àquilo que o Partido Progressista tenciona fazer, há uma clara ênfase nas
reformas legais como instrumentos capazes de assegurar as liberdades individuais (e.g.,
regulação da prisão preventiva e separação das funções policiais e judiciárias, sobrepostas
pela reforma do Código de Processo Criminal) e também de aperfeiçoar o ordenamento
institucional do Império (revisando-se a lei de interpretação do Ato Adicional para que este
fosse executado fielmente segundo suas disposições originais).
É possível levar esse binarismo (o que o partido quer x o que ele não quer) presente no
programa adiante, utilizando-o para determinar com maior precisão onde residiria a diferença
entre os projetos saquarema e progressista: de um lado, percebe-se que o rechaço a alterações
na Constituição e a transformações mais profundas no sistema sociopolítico aproxima os
grupos – por aqui fica claro que ambas as tendências políticas que então se combatiam
prezavam pela manutenção da ordem monárquico-constitucional; de outro, a proposição de
reformas que garantissem a ampliação das liberdades individuais e uma maior autonomia
administrativa das províncias e municípios frente ao poder central, na medida em que toca em
dois dos principais produtos da política do regresso (i.e., a reforma do Código de Processo
Franco, não me recordo, mas enfim aprovamos o programa. É verdade que algumas pessoas que estavam
presentes e algumas de fora impugnavam algumas ideias do programa; mas uma imensa maioria o aprovou.”
(SENADO DO IMPÉRIO, 1864, sessão de 10 de junho).
78
Criminal e a interpretação do Ato Adicional, respectivamente), demonstra a diferença entre os
conservadores e os progressistas no que tange aos seus respectivos projetos de condução do
Estado imperial naquele momento.
Ora, a apreciação desses pontos aponta para um fato que exige maior esclarecimento: a
proximidade entre as “opções” saquarema e progressista. Até aqui procurei frisar como a
experiência conciliatória e a crescente diferenciação socioeconômica, impulsionada pelo
processo de modernização, constituíram, no limiar da década de 1860, dois projetos políticos
distintos: de um lado, a preservação do arranjo institucional-legal consolidado pelos
saquaremas; de outro, a ampliação das bases sobre as quais repousavam o Estado imperial
para além do marco regressista dos anos 1840. Contudo, ao chegarmos à consideração dos
objetivos concretos associados à opção progressista, não é possível deixar de reconhecer a
ligação entre dois projetos que deveriam ser, afinal, em tudo antagônicos; pois a rejeição
programática às reformas constitucionais e às alterações mais amplas no panorama político do
Império faz com que a opção progressista comungue de princípios que são também
compartilhados pelos saquaremas – como bem percebeu, ironicamente, um periódico
conservador da Corte (CONSTITUCIONAL, 09/06/1864, edição nº 65):
Mas que programa, justo Deus! A constituição sem alterações, isto é, a última
expressão da política conservadora, o mérito, a glória, a conquista dessa política.
Longe de nós exprobrarmos aos nossos adversários o terem aprendido conosco a não
aspirar a mais outras liberdades que as consagradas no nosso pacto fundamental.
Sentimos apenas que o não tivessem feito há mais tempo, que há mais tempo não
houvessem compreendido a verdade e o patriotismo de nossas aspirações.
Mesmo nos pontos de discordância, a saber, na proposição de reformas legais que
ampliassem as liberdades individuais e as liberdades provinciais/municipais, há de se
reconhecer que o ponto de partida é, para ambos os grupos, o mesmo: a adesão ao status quo
monárquico inaugurado pela Carta de 1824. Assim, para os liberais e os conservadores
“moderados” coligados no Partido Progressista, a “radicalização” das posições (i.e., a
proposição de reformas que afetassem as estruturas socioeconômicas em que se assentava o
regime imperial) não constituía uma bandeira plausível; aqui, tal como já acontecera durante
os anos da conciliação, a contraposição à política saquarema não se dá pela quebra do
princípio da ordem, símbolo da atuação do Partido Conservador, mas antes pela defesa de que
este princípio “é conciliável com o progresso e, de fato, mal pode subsistir por longo tempo
sem o progresso” (HOLANDA, 2010, p. 98). É emblemático nesse sentido o que afirmou
Zacarias por ocasião da discussão no Senado do programa progressista – rejeitando a
79
necessidade peremptória de um partido possuir um programa escrito, o então líder ministerial
declarou (SENADO DO IMPÉRIO, 1864, sessão de 8 de junho; grifos meus) que o essencial
nas reuniões em que se debateu o programa foi menos a adesão aos princípios ali consagrados
do que o reconhecimento tácito de que as divergências entre liberais e conservadores são,
afinal, ilusórias:
Dos trabalhos concernentes ao programa, das conferências que houve, o essencial,
no meu sentir, não era um programa escrito para ser exposto à crítica publica,
contendo a solução de todas as medidas que se pretendessem realizar, a norma do
partido em todas as emergências. O essencial em meu conceito era fazer nascer do
contato de liberais e conservadores e de seus debates por assim dizer em família a
convicção de que o conservador era verdadeiro liberal como o liberal era
verdadeiro conservador, e de que para um e outro o respeito à constituição era um
artigo de fé. Conseguido isso, como se conseguiu, o mais era fácil e viria
naturalmente.31
Não haveria, pois, diferenças entre progressistas e saquaremas, entre os liberais e os
conservadores? É preciso cautela quanto a esse ponto. Desde pelo menos as pesquisas de José
Murilo de Carvalho (cf. 2003 [1980/1988], pp. 207-224) a respeito das diferenças partidárias
no Brasil imperial sabe-se que tanto o Partido Conservador quanto o Liberal possuíam não só
bases sociais distintas, como também uma distribuição geográfica diferenciada – a
possibilidade de que essas diferenças se traduzissem ao nível da prática política não deve ser
negada, sob o risco de neutralizarmos as singularidades dos grupos sociais e das realidades
regionais expressas na preferência partidária. Assim, assumindo aqui a ideia de que a
diferença entre os partidos era real e séria, como dar conta tanto do reconhecimento de que o
programa progressista não é essencialmente distinto da política conservadora, quanto das
afirmações coevas que não viam grandes distinções entre saquaremas e luzias, depois que a
experiência da conciliação apagara o antigo antagonismo entre os grupos?
Uma primeira alternativa para dar conta desse dilema é o que chamo de concepção
“abortiva”, a qual consiste no seguinte raciocínio: a distinção programática entre liberais e
conservadores foi uma realidade no Brasil imperial – no entanto, a opção liberal foi capaz de
se constituir apenas “idealmente”, não se concretizando na prática, uma vez que, quando no
poder, os liberais inevitavelmente “retrocediam” às posições políticas características dos
31
A ideia de que na base de ambos os partidos do Império não haveria divergências profundas era também
compartilhada pelos saquaremas. Podia ser reconhecida implicitamente ao vincular-se a defesa da ordem
constitucional à bandeira das liberdades políticas, como o fez Sayão Lobato em 1862 quando (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 1862, sessão de 21 de maio), discutindo na tribuna com Otaviano, afirmou que “as verdadeiras
ideias liberais são dos conservadores, porque o maior liberalismo existe na nossa constituição”; ou então de
modo explícito, ao afirmar-se, por exemplo, que “não há ideia verdadeiramente liberal e prática que não seja
essencialmente conservadora, como não há ideia conservadora que não seja essencialmente liberal” (O
REGENERADOR, 09/10/1860, edição nº 89).
80
conservadores, abortando assim a implementação de um projeto nacional liberal sempre que
detinham a oportunidade concreta de realizá-lo. A concepção “abortiva” do liberalismo
imperial, largamente difundida na literatura sobre o tema, parte de um axioma que muitas
vezes não é reconhecido explicitamente – o de que o ideário liberal, na medida em que se
constitui em oposição ao imaginário político, às estruturas sociais e ao arcabouço institucional
de Antigo Regime, traz em si um projeto político “emancipador” ou “progressista”:
Onde o Estado nacional emergente se converte em fator de preservação da
escravidão, do império da dominação senhorial e da transformação da Monarquia
constitucional em cômoda transação das elites senhoriais, isso se dá acima,
independentemente e contra as “ideias” e os “princípios” liberais. (FERNANDES,
2006 [1975], p. 66)
Haveria, assim, uma profunda cisão entre a teoria e a prática liberal no Brasil, cisão que
se expressaria não só na constatação de que os liberais brasileiros “degeneravam”, quando no
poder, a uma política conservadora e antidemocrática (COSTA, 1999 [1977], p. 165), de
caráter essencialmente “instrumental” (ADORNO, 1988, p. 47), mas que também se
manifestaria na patente incapacidade em dar vazão concreta às tendências “inclusivas” do
pensamento liberal, de modo que “o nosso liberalismo esteve assim apenas à altura do nosso
contexto” (BOSI, 1988, p. 8). Nesse sentido, a concepção “abortiva” compreende a diferença
entre conservadores e liberais como uma realidade meramente teórica que, quando atualizada
ao nível da prática, recai sempre nos quadros do conservadorismo: a persistência de um
ordenamento social tradicional impediria, pois, a vigência do liberalismo político “clássico”,
uma vez que as condições estruturais nacionais e a especificidade da dominação política de
caráter “estamental” (FAORO, 1993, p. 29) tornariam infecundas quaisquer tentativas de
aplicação dos ideais liberais ao contexto brasileiro. Dentro desse esquema, seria possível
encarar a aliança entre liberais e conservadores dissidentes, consubstanciada na cartilha de
princípios do Partido Progressista, como a expressão dessa impossibilidade secular de
realização dos ideais constitutivos do liberalismo político, o qual teve, assim, de se manter no
terreno estrito das liberdades constitucionais e da representatividade monárquica em que se
encerrara o antigo Partido Liberal (ALONSO, 2002, pp. 63-64).
Contrapondo-se, porém, à concepção “abortiva” sobre a diferença entre liberais e
conservadores, há uma outra alternativa que creio mais fecunda porquanto é capaz de escapar
ao anacronismo e ao juízo de valor implícito na narrativa que equaliza o liberalismo com um
projeto nacional de caráter “progressista” ou “inclusivo”: chamemo-la de concepção
“suspensiva”, uma vez que sua principal marca vem a ser a suspensão tanto do anacronismo
81
quanto do juízo de valor característicos da primeira alternativa. Com efeito, este segundo
modo de compreender a distinção entre liberais e conservadores parte de um raciocínio muito
distinto: as diferenças programáticas entre os dois grupos são igualmente encaradas como
uma realidade; todavia, reconhece-se um elemento que a primeira alternativa parece encobrir:
os partidos Liberal e Conservador não se opunham porque um detinha o monopólio do
discurso liberal enquanto o outro encerrava valores políticos do Antigo Regime, mas sim
devido às diferentes formas concretas pelas quais cada um dialogava com o ideário liberal
oitocentista. De fato, os membros de ambos os partidos do Império lançavam mão do
liberalismo – a questão que os diferenciava não era, pois, projetos nacionais radicalmente
distintos, mas antes divergências pontuais no que tange à maneira de realizar um único e
mesmo projeto, a saber: a construção de um Estado liberal que incluísse as diversas elites
provinciais dentro de seus quadros, compatibilizando assim o domínio local/regional com o
fortalecimento da autoridade central (DOLHNIKOFF, 2005, p. 285). A pretensa dimensão
“inclusiva” do liberalismo, avessa à circunscrição de sua esfera ao nível da transação entre os
grupos dominantes, não é senão uma falácia anacrônica que confunde a trajetória posterior (e
contingente) dos Estados liberais novecentistas em direção ao ideal democrático com o seu
ponto de partida; contudo, em seus primórdios o Estado liberal não só não exigia maior
absorção das camadas subalternas ao jogo político (BOBBIO, 1994 [1988], p. 7), como
parecia mesmo demandar o contrário, uma vez que o ideal de representatividade liberal no
século XIX foi antes o exclusivismo seletivo que visava “garantir a qualidade dos
representantes” do que a universalização da cidadania política que passa a ser valorizada tão
somente no final do oitocentos (DOLHNIKOFF, 2009, pp. 42-43). Nesse sentido, a política
liberal deve ser encarada como um atributo próprio aos governos guiados por uma
“aristocracia” dos mais capazes (LOSURDO, 2011 [2006], p. 244); aquela especificidade
identificada por Florestan Fernandes – a saber, o liberalismo brasileiro como um “privilégio
social”, uma ideologia unicamente vigente entre as camadas dominantes – mostra-se, nessa
chave, um pré-requisito geral do liberalismo oitocentista, e não uma característica peculiar de
nossa (má) formação social: o liberalismo do “senhor cidadão” (FERNANDES, 2006 [1975],
p. 61), a celebração da liberdade numa comunidade particularizada e restrita de homens livres
(LOSURDO, 2011 [2006], p. 122) e a circunscrição do governo a uma elite dotada das
condições materiais e intelectuais necessárias ao exercício do poder (HESPANHA, 2012, pp.
82
387-388) perfazem o terreno comum da reflexão liberal em seus três primeiros séculos (sécs.
XVII, XVIII e XIX) de vida32
.
A concepção “suspensiva” permite, pois, que a distinção entre saquaremas e luzias,
entre a política do Partido Conservador e a do Liberal seja buscada em outro domínio que
aquele de uma diferenciação meramente “teórica” ou “ideal”. De fato, partir da ideia de que
ambos os grupos comungam dos pressupostos liberais coevos exige que seja possível
distinguir de algum modo entre formas ou estilos de liberalismo que possam ser identificados
com cada um desses setores – os epítetos dos partidos (“conservador” x “liberal”) não
indicariam, assim, sua filiação a teorias políticas radicalmente distintas, mas antes apontariam
para divergências internas a uma mesma tradição que detinha a hegemonia nas esferas da
reflexão e da prática política no século XIX: a tradição liberal. Esse liberalismo oitocentista
encontra sua especificidade nos efeitos de um evento que o marcara profundamente: os
desdobramentos da Revolução Francesa, vista como filha direta do relacionamento entre as
ideias liberais e os princípios democráticos. Com efeito, os “excessos” revolucionários dos
anos do Terror francês, debitados à linhagem espúria concebida naquela relação, produziram
uma forma específica de (re)pensar a temática das liberdades individuais, dando origem às
correntes conservadoras, críticas do arbítrio do legislador e da absolutização do princípio da
soberania popular que “destrói” as liberdades e direitos constituídos historicamente
(HESPANHA, 2012, pp. 380-381); esse revisionismo conservador afetou profundamente o
liberalismo do século XIX (PEIXOTO, 2001, pp. 24-25) e teve repercussões relevantes no
imaginário político da classe proprietária brasileira, a qual estava engajada na obra de
construção do Estado nacional após o processo de Independência.
Já nos primeiros momentos de vida política do Brasil pós-colonial delineia-se um tipo
particular de práxis liberal, intimamente ligada às demandas de construção do Estado que
então se colocavam. A preocupação em consolidar as bases da nação independente por via das
instituições estatais, de modo a garantir a unidade territorial do Império, forneceu as lentes
pelas quais o ideário liberal deveria ser filtrado: assim, a construção de um Estado nacional se
32
Distingo aqui, pois, o pensamento francês dos philosophes setecentistas da tradição liberal stricto sensu. De
acordo com Domenico Losurdo (2011 [2006], p. 167), o pensamento liberal de um Constant ou de um
Tocqueville nada tem a ver com a filosofia política de autores como Condorcet ou Diderot, os quais seriam antes
“radicais” do que liberais. De fato, a grande diferença entre esses grupos está no horizonte da reflexão sobre a
liberdade: o radicalismo, ao contrário do liberalismo, não celebra apenas a liberdade encerrada na comunidade de
“senhores cidadãos” – não por acaso, somente o radicalismo compreendera a Revolução Haitiana como uma
insurreição libertária, enquanto que para o pensamento liberal ela não passava de uma experiência tenebrosa cuja
repetição era preciso evitar a todo custo (LOSURDO, 2011 [2006], p. 168). O corte entre essas duas tradições
reside, pois, na atribuição de capacidade política positiva aos grupos subalternos e às populações coloniais:
característica peculiar ao radicalismo e inteiramente ausente da reflexão liberal.
83
mostrava como condição mesma da concretização do Estado liberal no Brasil – uma coisa
estava completamente vinculada à outra e dela dependia (SANTOS, 1978, p. 81). Durante os
primeiros anos que se seguiram ao rompimento do pacto colonial, a tarefa de consolidação do
poder estatal forneceu as condições para a cristalização de um liberalismo no qual a liberdade
era encarada como um atributo próprio à ordem social que então tomava forma (NEVES,
2001, p. 90) – a semântica da liberdade se dava por meio da gramática da conservação, uma
vez que defender aquela era colocar-se ao lado da “conservação das liberdades”
intraoligárquicas consagradas pela Independência (BOSI, 1988, p. 8); esse liberalismo
“moderado”, influenciado pelos desdobramentos do movimento revolucionário francês,
culminará na promulgação da Carta constitucional de 1824, concebida sob os princípios de
“uma ampla defesa da propriedade, um sistema representativo restrito e uma monarquia
constitucional apoiada em um poder de caráter arbitral [o Poder Moderador]” (MARTINS,
2007, p. 63).
A abdicação de d. Pedro I em 1831 forneceu a primeira oportunidade, após o marco
constitucional de 1824, de avançar o processo de aperfeiçoamento do Estado imperial em
bases liberais. De fato, o 7 de abril significava a vitória de um projeto liberal-federalista
compromissado com a ampliação da representação política das elites provinciais no aparato
estatal, projeto que tinha na centralização característica do Primeiro Reinado o seu principal
entrave (DOLHNIKOFF, 2005, p. 18). Não por acaso, naquele mesmo ano se iniciaram as
discussões parlamentares que culminariam no Ato Adicional de 1834, o qual, através da
criação das Assembleias Provinciais e da extinção do Conselho de Estado, permitia um maior
controle das decisões de governo por parte das elites regionais (Idem, pp. 93-94). A vitória
liberal durante os anos iniciais das Regências, expressa na aprovação do Ato Adicional,
sofreria uma revisão durante a vigência da política regressista que se inicia em 1837 e se
estende até o início da década de 1850 (cf. capítulo 1) – entretanto, o arranjo institucional de
cunho liberal-federalista não seria alterado profundamente; tratava-se apenas de aperfeiçoá-lo
em razão das demandas presentes por maior estabilidade sociopolítica, a qual parecia então
ser incompatível com o excesso de autonomia regional consagrada no Ato Adicional:
[...] a oposição que se organiza a partir de 1837 tinha seu programa formatado pelas
mesmas preocupações que nortearam os reformadores de 1832, entre os quais
estavam muitos dos que comporiam as forças regressistas. Não se tratava de
implementar uma mudança de fundo e muito menos defender uma maior inclusão
política. Era apenas uma correção de rumos a fim de garantir a viabilidade do
arranjo estabelecido a partir de 1831. (DOLHNIKOFF, 2005, p. 77)
84
Aqui novamente impõe-se a pergunta: onde residiria, afinal, a diferença entre luzias e
saquaremas, uma vez que ambos estariam igualmente compromissados com um projeto
nacional de cunho liberal e federalista? Segundo uma visão corrente na historiografia sobre o
tema, o nascimento da política regressista a partir da atuação de políticos claramente
identificados com a militância liberal durante a Independência e os eventos que levaram à
Abdicação (Bernardo Pereira de Vasconcelos sendo o mais célebre exemplo, e principal peça
nesse processo), indicaria o momento no qual o projeto liberal teria sido “abortado”, dando
lugar a uma política conservadora e antidemocrática (COSTA, 1999 [1977], pp. 147-148;
ADORNO, 1988, p. 47). Nessa chave, a diferença entre liberais e conservadores é encarada
como uma realidade que teria impactado os primeiros anos da vida política do Brasil
independente, atingindo seu auge no início das Regências e finalmente sucumbindo à
tendência conservadora que se torna hegemônica a partir de 1837. Contudo, partindo da
premissa estabelecida acima (a saber, que tanto luzias quanto saquaremas se enquadram
dentro da tradição liberal do oitocentos), é preciso encontrar uma outra alternativa para dar
conta das diferenças presentes nos dois grandes partidos do Império – ao fazer isso, será
possível compreender melhor em que sentido a “opção” política consubstanciada no programa
do Partido Progressista se distanciava da “opção saquarema”.
Para entender o que distinguia os partidos no que tange as suas concepções a respeito da
melhor maneira de assegurar o projeto político liberal-federalista, o qual se assentava sobre
um tenso equilíbrio entre os polos da ordem (conservação) e da liberdade (progresso), é
necessário atentar às nuanças do ideário liberal no século XIX. Uma dessas peculiaridades já
foi frisada acima: a construção do Estado nacional impunha um filtro pelo qual as ideias do
liberalismo político tinham de ser destiladas, uma vez que o projeto de consolidação das
instituições estatais pelo vasto território do Império se mostrava como pré-condição à
emergência de uma ordem política liberal. Outra peculiaridade que deve ser ressaltada aqui
diz respeito ao fato de que, ao longo do processo de independência das nações latino-
americanas, a tarefa de construção do Estado nacional esteve profundamente ligada à vertente
constitucionalista do liberalismo europeu, presente na obra de autores como Jeremy Bentham
e Benjamin Constant; as primeiras décadas de vida política independente na América Latina
teriam presenciado um verdadeiro “entusiasmo pelos esquemas constitucionais”, de cuja
arquitetura racional dependeria a boa ordem social e o progresso moral e material da nação
(HALE, 2002 [1986], p. 337). Atentando especificamente ao caso brasileiro, o impacto do
constitucionalismo pode ser entrevisto não apenas na Carta de 1824, mas também e
principalmente no Ato Adicional dez anos mais tarde – a intenção de obter melhoramentos no
85
ordenamento institucional do Império por meio de um novo artefato jurídico indica o apelo
desse ideário entre a classe política brasileira. É, no entanto, precisamente durante a década de
1830 que, segundo Charles Hale (2002 [1986], p. 337), o “constitucionalismo clássico”
adentra o seu ocaso tanto no continente europeu quanto no americano; o declínio dessa
ideologia política que advogava que a boa condução da coisa pública dependia da existência
de uma ordem legal racionalmente elaborada é contemporâneo da emergência de um
liberalismo descrente dos esquemas universalistas e abstratos, característicos daquilo que
António Manuel Hespanha (2012, pp. 340-341) chamou de imaginário sociopolítico da
modernidade – a intelligentsia liberal de ambos os continentes passa a se importar mais com
as peculiaridades históricas e sociais da nação do que com a aplicação de princípios racionais
capazes de garantir um optimum político (HALE, 2002 [1986], p. 338).
Ora, se os ideais constitucionalistas estiveram por trás da condução da política nacional
durante o período inicial das Regências, é por outro lado inegável que a política regressista
inaugurada em 1837 parece partilhar dessa mesma aversão aos esquemas jurídicos racionais e
abstratos que acompanha o declínio do constitucionalismo na década de 1830. Com efeito, o
regresso não foi senão uma readequação do ordenamento institucional-legal consagrado no
Ato Adicional de 1834, cuja “perfectibilidade” teórica aparentava não mais se conformar a
um contexto no qual a exigência de estabilidade sociopolítica mostrava-se incompatível com
uma autonomia local vista agora como excessiva. Aquele “liberalismo conservador” de que
nos fala Hale (2002 [1986], pp. 335-336) ao se debruçar sobre o imaginário político da
América hispânica após 1870, centralizador e intolerante às insurreições regionais que
ameaçavam o governo nacional, o Brasil parece já ter experimentado décadas antes quando,
na transição dos anos 1830-1840, a política do regresso inaugura um movimento de
diminuição das autonomias regionais e de fortalecimento da autoridade central como
contraposição ao “espectro da desordem social” (GRAHAM, 2001b, p. 26) que grassava no
Império. Todavia, o projeto liberal-federalista não é abortado nesse processo: toma novos
rumos, é certo, porém mantém-se como o horizonte de ação política da classe proprietária
nacional.
Com essas considerações em mente, já é possível repensar o problema da diferenciação
entre os partidos Liberal e Conservador na monarquia brasileira. Se o corte entre eles não
pôde ser feito lançando-se mão da suposta distinção autoevidente trazida por seus epítetos,
então impunha-se perscrutar a própria tradição liberal para localizar em que ponto luzias e
saquaremas se aproximavam e onde eles se distanciavam. Ao fazê-lo, vimos que ambos os
grupos estiveram ligados ao processo de construção de um Estado nacional de matriz liberal e
86
federalista, capaz de assegurar a representatividade das elites regionais em seus quadros; por
outro lado, também verificamos a existência de divergências quanto ao encaminhamento
desse projeto: o Ato Adicional, produzido sob a influência de um modelo liberal
constitucionalista, teve como resposta a revisão de seus pontos alguns anos mais tarde,
revisão essa que buscou readequá-lo às exigências concretas de uma ordem social que parecia
em perigo33
. Ora, é exatamente no bojo deste revisionismo ligado aos dilemas políticos
durante as Regências que surge a distinção entre dois partidos que, posteriormente, passarão a
ser conhecidos como o Partido Liberal e o Partido Conservador (cf. NEEDELL, 2009, pp. 8-
16). Assim, a grande diferença entre liberais e conservadores parece estar localizada numa
compreensão peculiar a cada um desses grupos no que tange às possibilidades futuras de
condução do Estado imperial após a consolidação de seus fundamentos básicos na
Constituição e no Ato Adicional: o avanço do processo de integração das elites regionais às
instituições estatais aparentava, para os saquaremas, chegar a um ponto máximo em que se
tornava necessário fortalecer o poder central para assegurar a própria manutenção do status
quo monárquico; de outro lado, a crítica luzia às tendências regressistas que despontam na
política imperial a partir de 1837 tinha como horizonte assegurar os ganhos obtidos com o
Ato Adicional na compatibilização da dominação regional com o exercício da autoridade
estatal. Todavia, o processo mesmo de adequação do domínio regional com o poder que
emanava do centro do Império não era colocado em xeque por nenhum dos grupos em
33
É nesse sentido, por exemplo, que as célebres palavras de Bernardo Pereira de Vasconcelos (principal
articulador do partido da “Ordem”) na Câmara de 1838, explicando seu “regressismo” após uma longa militância
liberal, devem ser compreendidas. Longe de revelar uma “faceta antidemocrática e conservadora” (COSTA,
1999 [1977], p. 148) outrora encoberta, os rumos que um conjunto expressivo de políticos liberais tomou durante
o turbulento período regencial demonstra aquela bifurcação produzida no ideário liberal oitocentista que
acompanhou o “declínio do constitucionalismo clássico” (HALE, 2002 [1986], p. 338). Além de Vasconcelos,
outro caso emblemático desse processo pode ser encontrado nas ideias de seu “discípulo” político, o visconde de
Uruguai: sua admiração pelo self-government norte-americano (talvez o principal modelo de organização
sociopolítica liberal) era ponderada pela percepção de que o mesmo não se adequava às particularidades da
ordem social monárquica, sendo pois contraproducente empregá-lo como modelo para a organização do Estado
imperial, por mais teoricamente defensável que ele fosse (FERREIRA, 1999, p. 82). O apego à realidade
concreta e às particularidades da nação, culminando na rejeição a pensar reformas de longo prazo (FERREIRA,
1999, p. 165), aponta precisamente àquele matiz de liberalismo que, segundo Hale (2002 [1986], p. 338), forma-
se na esteira da “erosão das doutrinas liberais clássicas” que sustentavam o ideário constitucionalista; esse
liberalismo que repele a reflexão universalista e mostra-se mais preocupado com a “organização concreta da
liberdade” (MACEDO, 1979, p. 216) do que com sua proclamação genérica, parece ter conformado a ideologia
política dominante nas fileiras do partido “ordeiro”. Por mais “conservadora” que tal ideologia seja (e sem
dúvida o era), sua filiação ao conjunto mais amplo da tradição liberal, porém, não deve ser diminuída, sob pena
de se perder de vista o porquê das diferenças entre saquaremas e luzias terem sido tão tênues pelo menos até a
radicalização do repertório político imperial a partir da década de 1870 (cf. ALONSO, 2002). Afinal, como bem
compreendeu Jeffrey Needell (2009, p. 14) ao constatar o fundo liberal que perpassou ambos os grandes partidos
do Império, “o liberalismo como ideologia é espaçoso como uma mansão para abrigar um grande número de
variações legítimas”.
87
questão: a divergência residia na capacidade ou não de dar continuidade e avanço a um
projeto nacional que detinha a anuência tanto de uns quanto de outros.
Feitas essas reflexões, é possível se debruçar novamente sobre a questão mais particular
da diferença existente entre as duas opções políticas que se colocavam no início dos anos
1860: de um lado, a opção saquarema e, de outro, a opção progressista. A compreensão de
que ambos os grupos (conservadores “puros” x liberais/conservadores dissidentes)
partilhavam de uma mesma ideologia política que pautaria sua atuação concreta, desfaz o
enigma da “indiferenciação” partidária em que o programa do Partido Progressista e a fala de
Zacarias haviam nos colocado anteriormente. Com efeito, a plena adesão ao status quo
monárquico e a limitação programática “a uma série de providências, de natureza mais
jurídica que social” (IGLÉSIAS, 2004 [1967], p. 117) demonstra a (meia) verdade de que,
efetivamente, os progressistas não se diferenciavam em absoluto da política consagrada pelos
saquaremas; a outra faceta dessa verdade, porém, encontramo-la na distinção entre duas
formas de se operar com o ideário liberal (constitucionalismo x liberalismo conservador), as
quais implicavam em encaminhamentos diferenciados para uma mesma tarefa: a construção
do Estado imperial no sentido da melhor integração das elites regionais aos seus quadros. O
primeiro desses modelos mantém-se vivo ao longo da trajetória do Partido Liberal,
expressando-se claramente na insistência dos luzias em defender a ideia de que a revisão dos
marcos legais regressistas de acordo com os parâmetros consolidados na legislação pré-1837
garantiria um incremento na organização institucional e na vida política do Império34
: ao
exigir “a sincera e efetiva execução do Ato Adicional” (BRASILIENSE, 1878, p. 17), ao
propor a separação das funções judiciárias e policiais e ao advogar a diminuição do arbítrio da
autoridade (expressa, por exemplo, no uso irrestrito da prisão preventiva), o programa do
Partido Progressista demonstra sua dívida com a tradição luzia que sempre buscou construir
“uma sociedade regida por normas constitucionais que se prestariam a organizar as relações
sociais a partir de instâncias jurídicas dotadas de equilíbrio” (ADORNO, 1988, p. 67),
direcionando seus esforços à liquidação do legado regressista.
Contudo, a retomada desses temas no programa de um partido composto não só de
antigos liberais como Ottoni e Sousa Franco, senão também de indivíduos que antes
34
A totalidade da oposição liberal à política conservadora parece ter ficado inteiramente restrita, pelo menos até
a composição do grupo liberal-radical em 1868 (cf. BRASILIENSE, 1878, pp. 23-32), àqueles princípios
consagrados no Ato Adicional de 1834, especialmente se levarmos em conta as disposições de seu projeto
original que continham demandas como o fim da vitaliciedade do Senado e a extinção do Poder Moderador
(DOLHNIKOFF, 2005, p. 97). Poderia ser dito, pois, que o Partido Liberal nunca avançou suas bandeiras além
daquilo que os liberais do período regencial haviam proposto, restringindo-se à crítica da obra regressista que
aniquilara as aquisições políticas dos primeiros anos da década de 1830.
88
compunham as fileiras do Partido Conservador (Zacarias, Nabuco de Araújo, Saraiva),
demonstra a existência de uma guinada política que não pode ser reduzida à mera vitória
tardia dos velhos ideais luzias. De fato, a desarticulação do partido “ordeiro” indica um
desgaste no modelo saquarema de condução do Estado imperial, desgaste que emergira com a
experiência conciliatória e que fora impulsionado pela diferenciação socioeconômica
decorrente da expansão das atividades agroexportadoras; no limiar da década de 1860, a cisão
entre os conservadores se consolida na forma de uma “liga” entre os elementos descontes com
a hegemonia saquarema; por sua vez, a formação de um plano comum de ação a ambos os
grupos coligados durante a campanha eleitoral do pleito que consagra a transformação da Liga
em partido (1863), assinala a existência de uma intenção conjunta, superior ao simples intuito
de romper o “uti possidetis” conservador. Com efeito, o conteúdo programático do Partido
Progressista demonstra a cristalização de uma outra alternativa de condução da política
imperial, a qual havia apenas se esboçado nos dois primeiros anos da década de 1860 em que
liberais e conservadores moderados estiveram unidos; a opção progressista à política
saquarema, ao circunscrever o seu escopo à revisão da obra do regresso, aparece como um
projeto de produção de novo equilíbrio entre os polos da ordem (conservação) e da liberdade
(progresso), assumindo como princípio a necessidade de atualizar essa relação que ainda se
mantinha nos mesmos marcos em que havia sido posta na década de 1840 – apenas
parcialmente retocada pelos ganhos da conciliação em sua tarefa de integrar os conflitos
intraelite ao sistema político. A criação de uma maioria na Câmara após a dissolução
promovida por Olinda garantia, enfim, as condições concretas para que a opção progressista
tomasse as rédeas do processo de aperfeiçoamento do Estado imperial, levando-o para além
do patamar estabelecido pela política do regresso – nesse processo, porém, os progressistas
haveriam de se defrontar com uma série de dificuldades capazes de obstar a concretização de
tal projeto.
89
Capítulo 4
Os Limites do Progresso
Se a organização do segundo gabinete liderado por Zacarias indicava o início do
predomínio do progresso, ancorado agora numa sólida maioria parlamentar, ainda naquele
mesmo ano de 1864 a Câmara presenciaria os percalços inerentes à tarefa de transformar a
coligação entre liberais e conservadores dissidentes numa nova agremiação orgânica e
unificada. A coligação entre os dois setores adversos à hegemonia saquarema havia se
fortalecido pela experiência comum de ascensão e súbita queda do poder no ano de 1862; a
“trégua” representada pelo gabinete Olinda, formado após o malogro da primeira experiência
progressista de governo, permitiu a perpetuação da aliança no mesmo formato oposicionista
pelo qual ela havia sido gestada – uma oposição, porém, que se fazia menos ao “ministério
dos velhos” que se encontrava no poder do que aos saquaremas que poderiam sucedê-lo. A
inevitável dissolução da Câmara cindida entre duas metades (saquaremas x progressistas) veio
por fim, mas a situação que daí se organizou enfrentaria suas próprias divisões internas, a
despeito do virtual aniquilamento dos conservadores no pleito de 1863; o Partido Progressista
mostrou-se incapaz de produzir um verdadeiro amálgama entre seus elementos formativos,
impedindo assim que o predomínio progressista na Câmara se traduzisse na formação de
governos suficientemente fortes para avançar a agenda de construção do Estado imperial para
além do arranjo consolidado pela política do regresso.
De fato, o gabinete Zacarias organizado a 15 de janeiro de 1864 não demoraria muito
para revelar a precipitação das palavras de seu presidente, quando este afirmara à Câmara que
a fusão entre liberais e conservadores “moderados” estava agora consolidada. A organização
do ministério dera clara preferência àquelas figuras que, como Zacarias, haviam se desligado
do Partido Conservador para compor a nova situação progressista – diferentemente do breve
gabinete de 1862 que abrigara os liberais Carlos Carneiro de Campos, José Bonifácio de
Andrada e Silva (“o moço”) e Francisco José Furtado, o novo governo liderado por Zacarias
parecia só contar com o segundo para contrabalançar a ascendência conservadora de seu novo
gabinete (cf. BARÃO DE JAVARI, 1979 [1889], p. 129; pp. 135-136). Sem dúvida alguma, o
próprio fato de a vida política pregressa dos candidatos ministeriais ser objeto de especulação
quanto às tendências “conservadoras” ou “liberais” do governo já indica o frágil acordo
existente entre as facções que compunham a nova situação política.
Não demoraria muito para que tais especulações resvalassem sobre a união da maioria
progressista na Câmara temporária. O domínio quase que completo do novo partido sobre esta
90
casa mostra-se, nos meses que se seguem, ser uma ficção: apesar do exíguo número de
deputados declaradamente oposicionistas (i.e., pertencentes à bancada saquarema), o gabinete
não consegue levar adiante os projetos que toma como relevantes, os quais são
frequentemente deixados de lado em razão da introdução de outros temas na pauta da Câmara
por iniciativa dos próprios deputados; a virtual inoperância do ministério atinge níveis
máximos no mês de agosto, quando a substituição de uma proposta da parte do executivo para
a autorização de operações de crédito é realizada com a introdução, em seu lugar, de um
projeto que versava sobre a linha de navegação entre o Rio de Janeiro e Nova Iorque, ao qual
o gabinete não reputava urgência alguma. Conforme José Bonifácio, responsável pela pasta
do Império, explicou a situação após a queda do gabinete (CÂMARA DOS DEPUTADOS,
1864, sessão de 1 de setembro), parecia haver aí um claro sinal de desconfiança da Câmara
em relação a sua autoridade, pelo que ele foi imediatamente pedir sua exoneração a Zacarias –
o imperador, todavia, não consente com a reorganização do gabinete, implicando assim na
retirada do segundo ministério progressista, após sete meses de difícil convivência com uma
Câmara quase que inteiramente composta por gente de seu próprio partido (IGLÉSIAS, 2004
[1967], pp. 118-119).
A queda do segundo gabinete Zacarias ratifica o estado de divisão da Câmara, onde os
setores componentes do progresso distanciam-se cada vez mais um do outro. A
impossibilidade de uma rearticulação estável entre liberais e conservadores moderados fica
ainda mais clara na organização do novo gabinete sob a presidência de Francisco José
Furtado, primeiro líder ministerial proveniente do Partido Liberal desde o fim do gabinete
Paula Sousa em 1848 (Idem, p. 119). Com efeito, se o ministério de Zacarias pendia
claramente para o lado conservador, o de Furtado é dominado pelos liberais que haviam sido
alijados da composição ministerial anterior; a tendência liberal do novo gabinete é acentuada
pela exposição do programa feita por Furtado (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1864, sessão
de 1 de setembro), no qual antigas demandas do grupo luzia (e.g., a reforma da Guarda
Nacional) são elevadas ao nível de prioridade pelo gabinete. Percebe-se o fim da unidade de
um partido que mal havia ascendido ao poder na própria autoidentificação dos grupos: no
interior das fileiras do partido do progresso instaura-se uma divisão capaz de ser tão explosiva
quanto o foi aquela existente na Câmara entre 1861 e 1863 – a coligação se fragmenta entre os
parlamentares identificados com o Partido Liberal, chamados de “históricos”, e aqueles
ligados à dissidência conservadora, que passam a ser os únicos detentores do epíteto de
“progressista” (NABUCO, 1949 [1897], p. 128); se já sob Zacarias a divisão era patente, sob
Furtado fica ainda mais claro que a união entre os setores adversos ao predomínio saquarema
91
vai sucumbindo frente às velhas divergências partidárias que a ideia de uma “liga” visava
superar. Na ausência do inimigo comum – o elemento saquarema –, são os próprios
integrantes do progresso que se combatem para impedir que um setor predomine sobre o
outro.
O gabinete Furtado é organizado nos momentos finais da sessão legislativa de 1864,
mais precisamente no dia 31 de agosto. Sua queda durante a retomada dos trabalhos da
Câmara em 1865, no início do mês de maio, faz com que ele não sobreviva sequer um mês
inteiro de atritos com o legislativo – a queda do ministério por um escrutínio secreto no
retorno das câmaras em 1865 (NABUCO, 1949 [1897], p. 231) enterrou prematuramente a
experiência de formação do primeiro gabinete de tendências liberais em mais de quinze anos;
além disso, contribuiu para o aprofundamento do fosso que então começava a distanciar os
“progressistas” dos “históricos”, pois confirmou a falta de interesse desses setores em
contribuir para a manutenção de um gabinete que não tivesse a sua marca própria. Fora o
estado de antagonismo crescente que Furtado herdou de Zacarias e ajudou a aprofundar, sua
queda foi sem dúvida precipitada por dois fatores que passam então a tomar conta das
preocupações políticas de época: o início dos conflitos na região platina, com a invasão
paraguaia à província do Mato Grosso em dezembro de 1864 (COSTA, 1996, p. 134), e a
deterioração da situação econômica do Império após a falência de J. Alves Souto & Cia.,
principal casa bancária do Rio de Janeiro (IGLÉSIAS, 2004 [1967], p. 120).
O crescente antagonismo entre dois grupos que há pouco constituíam uma sólida
maioria capaz de levar adiante as reformas encampadas pelo programa progressista parecia a
reencenação de um conflito já visto antes: a divisão da Câmara entre saquaremas e
progressistas entre 1861 e 1863. Assim como durante aqueles anos a polarização parecia
impedir a permanência de qualquer governo surgido de um dos grupos, também agora o
mesmo parecia suceder; não por acaso, a solução momentânea aventada ao problema é a
mesma: novamente o marquês de Olinda é chamado para organizar um ministério capaz de se
colocar acima da profunda divisão política em que se encontrava a deputação nacional.
Assim, Olinda procura compor o ministério tanto com nomes desligados de ambas as facções
como com representantes de cada um dos grupos, buscando com isso montar um gabinete de
“unidade nacional” para lidar com o grande dilema que então se colocava: a Guerra do
Paraguai, cujo fim é, segundo o próprio Olinda (apud BARÃO DE JAVARI, 1979 [1889], p.
141), “o grande programa do Governo”. Todavia, a trégua esboçada não será completa: a
percepção de terem sido traiçoeiramente destituídos do poder afasta os históricos da
composição deste ministério: Francisco Otaviano, por exemplo, rejeita a indicação para a
92
pasta de Estrangeiros (BARÃO DE JAVARI, 1979 [1889], p. 141); de modo semelhante a
pasta da Fazenda, que seria destinada a algum representante liberal, tem de ser ocupada por
outro nome em razão do rompimento entre progressistas e históricos (NEEDELL, 2006, p.
221). Se Olinda mantém-se no poder por mais de um ano, só retirando-se em agosto de 1866,
isso se deve menos à efetividade de seu projeto de apaziguamento do que a uma manobra
política que lhe garante a estabilidade necessária para a manutenção do ministério durante
todo esse tempo: no mês de julho de 1865 os trabalhos da Câmara são encerrados e seu
retorno é adiado para março do ano seguinte, com a justificativa da viagem de d. Pedro II a
Uruguaiana para acompanhar as operações das forças aliadas contra as tropas do presidente
paraguaio Solano López que haviam sitiado a cidade (IGLÉSIAS, 2004 [1967], p. 123;
COSTA, 1996, pp. 172-173).
O fim do cerco de Uruguaiana e o retorno do imperador à Corte marca a retomada do
ritmo político “normal” – o que significou o recrudescimento do antagonismo político que
ficara momentaneamente apaziguado com o adiamento da sessão legislativa. Com a
percepção de que a guerra não seria finalizada tão cedo, a situação do gabinete Olinda passa a
ficar insustentável, uma vez que seu programa se restringia ao trato da questão platina e, por
isso mesmo, tornava o ministério inteiramente alheio à dinâmica política interna. A
necessidade de organizar um novo gabinete, mais condizente com a coloração política do
parlamento, é confiada uma vez mais a Zacarias de Góis e Vasconcelos: conforme o deputado
expôs à Câmara durante a apresentação do programa ministerial (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 1866, sessão de 6 de agosto), Zacarias relutou em aceitar a responsabilidade
em razão “do fracionamento em que se achava esta augusta Câmara, fracionamento que
colocou do lado oposto à maioria que sustentou o Gabinete de que fiz parte, amigos que
estimei e continuo a estimar”. Diante da insistência de d. Pedro, contudo, Zacarias acaba por
aceitar a tarefa. O fracionamento da Câmara era de fato notório: ainda no dia de apresentação
do programa do ministério recém-formado a oposição liberal propõe uma moção de
desconfiança que assinala a fraca maioria de que dispunha o gabinete: foram 48 votos a favor
e 53 contrários (OPINIÃO LIBERAL, 14/08/1866, edição nº 17). Era essa exígua maioria de
cinco votos que deveria sustentar Zacarias até a realização das próximas eleições previstas
para aquele ano.
A breve exposição feita até aqui a respeito da trajetória política do Partido Progressista
entre o segundo e o terceiro gabinete organizado por Zacarias (1864-1866) revela um dos
principais motivos por trás da incapacidade da coligação “ligueira” em avançar o processo de
construção do Estado imperial além dos marcos da política regressista. A unificação entre
93
liberais e conservadores dissidentes, feita na condição de oposição ao predomínio saquarema,
não possuía uma homogeneidade de interesses ou de coordenação política suficiente para
sustentar a coesão entre os dois grupos quando no poder – conditio sine qua non para
assegurar que a vitória eleitoral de 1863 se traduzisse em ganhos efetivos na reforma do
arranjo institucional-legal da monarquia brasileira. Com efeito, apesar de possuírem um
programa que delineava as bases gerais de atuação e o escopo do novo partido, aquelas
divergências “menores” que afinal impediram a sua publicação pareciam não ser tão
irrelevantes quanto os líderes progressistas buscaram frisar ainda em 1864: se, de um lado,
havia realmente um consenso quanto à dissolução do legado regressista, de outro as
divergências quanto aos meios de atingir tal objetivo impediam que a intenção comum se
traduzisse em ações concretas que assegurassem a transformação dos pontos em que ambos os
grupos entendiam ser necessário efetuar mudanças, como parecia ser o caso das leis de
interpretação do Ato Adicional e da reforma do Código de Processo Criminal. É emblemático
perceber que, entre os anos de 1864 e 1868 (momento em que a situação progressista se
esfacela por completo), os quatro ministérios que estiveram no poder não avançaram em
nenhum desses dois pontos nos quais tanto a dissidência conservadora quanto os liberais
reconheciam a necessidade de transformações. Assim, o desgaste da própria coligação
progressista parece derivar da impossibilidade crônica em traduzir anseios que provinham de
ambos os grupos numa ação política unificada e efetiva, visto que esta foi reiteradamente
sacrificada, ao longo do predomínio do partido na Câmara (1864-1868), ao juízo quanto à
tendência mais “conservadora” ou “liberal” do gabinete no poder. Nesse processo no qual a
situação progressista literalmente se autodestruiu, parece ter pesado o estilo político
eminentemente não partidário e personalista daquele que foi o líder de três dos quatro
gabinetes organizados pela Liga entre os anos de 1862 e 186835
: Zacarias de Góis e
Vasconcelos (NEEDELL, 2006, p. 219).
A forma como Zacarias organizou os três ministérios que presidiu indica que a
instabilidade da situação progressista pode ter suas raízes num processo no qual a fuga às
antigas divisões partidárias não se fez pela costura de uma coesão e lealdade próprias ao novo
partido, mas antes teve como centro a própria figura do deputado baiano – assim é que, nas
três composições ministeriais que levou a efeito, nem uma só vez Zacarias se preocupou em
contemplar aqueles homens que, juntamente com ele, compunham o núcleo da nova situação:
35
Não conto aqui os dois gabinetes organizados pelo marquês de Olinda (1862 e 1865), uma vez que estes
tiveram um caráter mais de arbítrio entre as facções que se combatiam do que de compromisso direto com a
política progressista.
94
Nabuco de Araújo, Saraiva e Ottoni. O fracasso da constituição da Liga em um partido coeso
sem dúvida alguma remonta à preferência por uma atuação mais pessoal que partidária, fato
que deve ter influenciado especialmente o distanciamento do grupo liberal ou “histórico”,
visto que este nunca vira em Zacarias um de seus representantes legítimos.
Não obstante os problemas de instabilidade ministerial enfrentados pelo Partido
Progressista até o ano de 1866, ele sobrevive ainda sob a liderança de Zacarias, chegando até
o momento no qual uma nova inflexão política poderia enfim ocorrer: as eleições para a
Câmara programadas para aquele ano. Os esforços do gabinete em impulsionar as
candidaturas progressistas em detrimento daquelas ligadas aos liberais históricos foram
visíveis durante o pleito (NEEDELL, 2006, p. 221) – sem dúvida alguma, Zacarias buscava
emergir dali com uma maioria parlamentar mais segura do que aquela com a qual conseguira
ultrapassar a sessão legislativa de 1866. Apesar de ter atingido o objetivo em questão e ter
ampliado a sua base de apoio, o preço pago foi o rompimento completo da coligação que
sustentava a situação progressista: a disputa eleitoral acirrada travada nas províncias teve
como efeito a eleição de uma Câmara que não se constituía mais de um partido fracionado em
duas metades, acompanhado por uma inexpressiva minoria saquarema; o último gabinete
Zacarias (que será também o último gabinete a levar o epíteto de progressista) enfrentará a
partir de 1867 uma Câmara dividida em três partidos: o progressista, composto pelos
conservadores dissidentes que apoiavam o ministério, e as minorias liberal e conservadora
cuja adversidade em comum as unifica no contexto da luta legislativa (Idem, p. 221). Além
disso, nessa fase final de desagregação da situação progressista, um fato inesperado jogará um
papel decisivo: os primeiros passos no encaminhamento da emancipação da escravatura no
Brasil.
De fato, desde meados da década de 1860 d. Pedro II mostrara-se preocupado com a
manutenção da escravidão no Império – esse desconforto parece ter derivado da percepção de
que, com o fim do escravismo no sul dos Estados Unidos, o Brasil seria a única nação
independente na América a manter esse regime de trabalho servil (Idem, p. 234). No ano de
1865, a viagem do imperador a Uruguaiana proporcionaria outra ocasião para reforçar a visão
de isolamento da nação brasileira em decorrência da manutenção do escravismo: ali d. Pedro
percebera claramente que a escravidão aparecia não só ao inimigo paraguaio como também
aos aliados na guerra como uma “mancha” pela qual o Brasil era frequentemente malvisto
perante seus vizinhos republicanos (COSTA, 1996, p. 183; CARVALHO, 1998, p. 57). A
disposição em dar encaminhamento à emancipação da escravidão é materializada ainda
naquele ano, quando o imperador encarrega o senador e conselheiro de Estado José Antônio
95
Pimenta Bueno, o visconde (e depois marquês) de São Vicente, de estudar a questão servil e
propor medidas para que ela seja discutida perante o Conselho de Estado (BEIGUELMAN,
1967, p. 110). Os projetos de Pimenta Bueno, que são encaminhados ao Conselho por
Zacarias no início de 1867, significam os primeiros movimentos concretos sobre a questão da
escravidão desde o fim do tráfico negreiro em 1850 – o rompimento dessa “cortina de
silêncio” (CARVALHO, 1998, p. 52) erigida desde então causará uma grande agitação nos
meios políticos, a qual fora inclusive prenunciada por Olinda na primeira sessão confidencial
do Conselho de Estado em que o tema é tratado: “uma só palavra que deixe perceber a ideia
de emancipação, por mais adornada que ela seja, abre a porta a milhares de desgraças”
(CONSELHO DE ESTADO, 1867, ata de 02 de abril).
De fato, a primeira das “desgraças” temidas pelo conselheiro Olinda seria explicitada no
mês seguinte, quando a introdução do tema da escravidão na Fala do Trono daquele ano36
causou um imenso desconforto até mesmo na base de apoio de Zacarias, servindo como mais
um ingrediente de deterioração das relações entre o governo e a Câmara (NABUCO, 1949
[1898], p. 54). Do lado da oposição, a menção à causa da emancipação produziu um
estreitamento das relações entre saquaremas e luzias contra o gabinete progressista, como se a
mera disposição em romper o consenso escravista então existente fosse o suficiente para
abrandar as antigas divisões entre os grupos e uni-los contra o ímpeto reformista proveniente
da Coroa e encampado por Zacarias. Assim é que, durante a discussão da Fala do Trono,
ocorre a estranha cena em que o liberal Martinho Campos interrompe seguidamente o
discurso de uma das principais lideranças saquaremas na casa, o deputado fluminense Sayão
Lobato (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1867, sessão de 13 de junho) – não para desferir
críticas, mas sim apoiá-lo:
Fala-se no elemento servil, indica-se a ideia de emancipação para ser oportunamente
considerada, sem a mínima atenção para as reais circunstâncias do país! O governo
recomenda oportunidade acerca desta gravíssima matéria, quando tão impertinente e
inoportunamente aventa semelhante questão [...]. De sua natureza é ela assim
exposta uma faísca elétrica que levará o pasmo, consternação e abalo a todo o país,
aumentando os perigos e riscos em que já estão os nossos concidadãos, que vivem
isolados, e que a experiência demonstra que são tantas vezes vitimados.
O Sr. Martinho Campos: Apoiado.
36
“O elemento servil no Império não pode deixar de merecer oportunamente a vossa consideração, provendo-se
de modo que, respeitada a propriedade atual, e sem abalo profundo em nossa primeira indústria – a agricultura –,
sejam atendidos os altos interesses que se ligam à emancipação” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1872, p. 591).
96
Já do lado da maioria progressista, a menção ao tema da emancipação trazia o perigo de
desagregação da base parlamentar que assegurava a manutenção de Zacarias naquele
momento. Se os problemas ligados à condução da Guerra do Paraguai e à crise bancária já
eram suficientemente explosivos para pôr em xeque a estabilidade do ministério, a introdução
da questão servil ao abrir-se a sessão legislativa de 1867 tornava a situação ainda mais crítica:
a própria emenda oposicionista proposta pelo liberal Bernardo Avelino Gavião Peixoto, a qual
tocava neste ponto do projeto de reposta à Fala do Trono37
, contava com o apoio de um
número expressivo de deputados progressistas, e especulou-se mesmo que se o ministério
tomasse a emancipação como “questão de gabinete” haveria defecções na bancada governista
(CORREIO MERCANTIL, 06/06/1867, edição nº 156).
Se Zacarias trazia à tona o espinhoso tema da escravidão, fazia-o menos por um pendor
abolicionista do que pelas exigências concretas relacionadas à dinâmica da Guerra do
Paraguai. Com efeito, acima já foi dito que a própria disposição do imperador em dar
encaminhamento ao tema estava relacionada às peculiaridades da guerra; todavia, para além
de uma preocupação com a “honra” nacional e com a posição do Brasil frente às outras
nações americanas, a guerra colocava dilemas a uma dimensão do Estado imperial cuja
organização fora sistematicamente solapada até então: a dimensão coercitiva encarnada pelas
Forças Armadas. A organização de um exército regular moderno, baseado na conscrição
universal, tinha seu limite na existência de um ordenamento escravista que não só excluía a
população cativa do recrutamento, mas também parte substancial da população livre cuja
mobilização era necessária para a manutenção de uma vigilância perene sobre os escravos
(COSTA, 1996, p. 242). No primeiro momento no qual a contradição entre a ordem escravista
e o monopólio estatal da violência poderia tornar-se patente – a saber, durante os eventos que
levaram à independência –, o fato de não ter ocorrido uma guerra prolongada entre os colonos
rebeldes e as tropas metropolitanas contribuiu para que a conservação da ordem escravista
fosse possível (Idem, p. 41); nesse processo, a “opção monárquica” representada pela
manutenção de um descendente da Casa de Bragança na chefia do novo Estado nacional
brasileiro deteve um papel crucial, exercendo uma espécie de força “centrípeta” que tinha
como base a conservação da unidade nacional e a defesa dos interesses senhoriais ligados à
propriedade escrava (Idem, p. 36). Assim, a monarquia aparecia como o símbolo de uma
37
“A câmara dos deputados, senhor, está profundamente convencida de que só o tempo, o progressivo aumento
da riqueza nacional e a prosperidade estável das finanças públicas poderão determinar a época de atender-se à
antiquíssima instituição servil, que as leis do Estado reconhecem, sem abalos bruscos do valor e segurança de
toda a fortuna pública, e sem detrimento grave dos mais elevados interesses brasileiros [...]” (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 1872, pp. 594-595).
97
transação entre a classe proprietária, na qual a construção do Império do Brasil ligava-se à
manutenção de um regime de propriedade e de trabalho herdado da condição colonial rompida
(politicamente) pela independência.
O prolongamento da Guerra do Paraguai demandava efetivos para a campanha militar
que conflitavam diretamente com as necessidades de segurança interna relacionadas à ordem
escravista. A principal faceta desse divergência se dá na relutância da Guarda Nacional em
participar da guerra – não tanto pelo seu despreparo enquanto força militar (que sem dúvida
era grande), mas antes por sua estreita ligação com os interesses privatistas dos senhores de
escravos que dela dependiam para exercer controle efetivo sobre a escravaria (COSTA, 1996,
p. 234). Por isso mesmo a impossibilidade de executar um recrutamento ostensivo entre a
população livre fez com que o governo lançasse mão de um recurso extremo: a mobilização
dos escravos da nação para a guerra. Discutida no Conselho de Estado antes mesmo do
encaminhamento dos projetos de Pimenta Bueno sobre a questão servil, a libertação de
escravos, enquanto iniciativa do próprio Estado brasileiro, revelava os limites que a ordem
escravista impunha à organização de um Estado moderno – além disso, em tal medida
tornava-se explícito pela primeira vez uma dissociação entre os interesses senhoriais ligados à
escravidão e os interesses de Estado, consubstanciados na campanha militar contra o Paraguai
(Idem, p. 248). O terceiro gabinete Zacarias coincide, assim, com a experiência de
distanciamento entre a razão de Estado e a razão privatista, cujo impulso básico proveio dos
desafios impostos pelo conflito platino, os quais se mostraram capazes de promover o
“desnudamento das contradições sociais e políticas do Império” (Idem, p. 244).
Do que foi dito até aqui fica claro que a introdução do tema da escravidão na Fala do
Trono em 1867 não caiu de paraquedas entre a classe política do Império; a menção ao tema
apenas tornava mais aguda uma situação que vinha se desenhando desde pelo menos 1865: o
afastamento entre a lógica de ação da Coroa e os interesses materiais da classe proprietária.
De qualquer modo, a referência à emancipação feita na mensagem imperial ao parlamento
representava, em última instância, uma “ameaça às premissas políticas básicas da própria
monarquia” (NEEDELL, 2006, p. 238; tradução livre), uma vez que esta tinha na ordem
escravista um dos pilares sobre os quais a opção monárquica no pós-independência havia
adquirido a adesão das elites regionais. O fato de que a introdução deste tema perante o
parlamento tenha estreitado os vínculos oposicionistas e produzido um desconforto entre a
maioria progressista indica-nos que o consenso escravista entre a classe proprietária
representava um dos limites máximos em que a situação progressista poderia tocar; aliada à
instabilidade ministerial que minou a unidade da Liga desde o segundo gabinete organizado
98
por Zacarias, a intenção de produzir transformações na ordem escravista colocava em xeque,
perante o conjunto da classe política, a viabilidade de manter a opção progressista na direção
do Estado imperial. Na medida em que não passava despercebido a ninguém que os impulsos
de emancipação provinham do alto do trono imperial, a crise política que põe um fim ao
Partido Progressista em 1868, reconduzindo os conservadores ao poder sob a liderança do
visconde de Itaboraí38
, inicia também a crise do próprio regime monárquico; as críticas que
daí se avolumam à influência do “poder pessoal” de d. Pedro – o qual foi escancarado pela
inversão partidária que a transição de Zacarias a Itaboraí engendrou39
(HOLANDA, 2005
[1972], pp. 124-125) – reverberam a percepção de um gradativo afastamento entre a Coroa e
os interesses da classe proprietária, afastamento que se expressou, durante os anos finais da
década de 1860, no “sentimento da perda de controle sobre o processo de emancipação”
(COSTA, 1996, p. 254) que parecia ser então monopolizado pelo imperador.
Nesse contexto de perene instabilidade na base parlamentar progressista (rompida a
coligação que dera razão a sua existência) e de avanço do tema da emancipação, a opção
política expressa pelo Partido Progressista perdia completamente a força que aparentava deter
anteriormente, ao emergir na Câmara como maioria inconteste no ano de 1864. Essa opção
tinha como fundamento a produção de um novo equilíbrio entre os polos da ordem
(conservação) e da liberdade (progresso), objetivo que seria perseguido através da busca por
um rearranjo do legado regressista que os líderes saquaremas haviam consolidado nos anos
1840; assim, a alternativa progressista à política encampada pelos conservadores partia de um
terreno que era comum a ambos os grupos: o consenso em torno do ordenamento
sociopolítico do Império, consagrado no projeto nacional de um Estado liberal-federalista
38
Para um relato mais detalhado acerca dos eventos que cercaram o fim do terceiro gabinete Zacarias,
intimamente relacionados ao problema do comando das tropas brasileiras no conflito platino, ver especialmente
(COSTA, 1996, pp. 243-257). 39
Destacou-se na crítica à influência pessoal de d. Pedro na política a folha Opinião Liberal, fundada em 1866 e
que serviu até 1870 de veículo às ideias dos liberais “radicais” que haviam se dissociado da coligação
progressista e que possuíam ideias mais “avançadas” do que o grosso da bancada liberal. Nos artigos publicados
por este periódico a atuação do imperador era frequentemente comparada àquela do monarca britânico Jorge III
(conhecido por seus conflitos com o parlamento), ou então era tachada de “imperialismo” e “cesarismo”,
contrária à prática parlamentar “sincera”. A própria perpetuação dos progressistas no poder era encarada pelo
Opinião como fruto exclusivo dos “caprichos” do imperador; a queda abrupta de Zacarias em 1868 serviu para
reforçar essa visão que em breve seria compartilhada por outros órgãos de imprensa. Dois dias após a ascensão
de Itaboraí, eis o que afirmou o Opinião (18/07/1868, edição nº 72; grifos no original) sobre a situação política
de então:
O grande partido progressista, em quase totalidade na câmara dos deputados; o ministério
algoz dos liberais sinceros; o orgulhoso e onipotente Sejano que o presidia; todos esses
instrumentos de descrédito da ideia liberal caíram – sob a conspiração do desprezo de
palácio... Os instrumentos, completada a obra da traição e do extermínio, foram arrojados ao
pó da ignomínia! Coitados!... Será este, pois, o epitáfio do pobre progressismo, que acaba de
sepultar-se na vala do ridículo: VIVERAM DOS FAVORES DO REI, MORRERAM DE
DESPREZO DO REI.
99
capaz de integrar as elites regionais em seus quadros. A restrição do programa progressista a
um reformismo de natureza eminentemente jurídica explicita que sua divergência em relação
à opção saquarema não residia na proposição de um projeto nacional radicalmente distinto,
mas antes se dava numa compreensão específica a respeito das possibilidades de avanço no
processo de construção do Estado imperial – o que contrastava com a percepção saquarema de
que o status quo monárquico estaria melhor preservado se mantido o ordenamento político
delineado durante os anos do regresso. Ora, a impossibilidade crônica dos progressistas em
operacionalizar a maioria parlamentar que detinham para a produção de aperfeiçoamentos no
arranjo institucional do Império, ocasionada pelo duelo de força entre os setores que
compunham o novo partido, levou à implosão da própria alternativa encampada pelos setores
liberal e conservador dissidente coligados contra a perpetuação da hegemonia política
saquarema. Nesse processo, a deterioração da situação econômica e a deflagração da guerra
no Prata tiveram uma influência decisiva, visto que colocavam a dinâmica política interna sob
a influência das necessidades urgentes relacionadas com esses eventos. Quanto a tais pontos,
sobressai aqui a pressão que a guerra exerceu sobre a ordem escravista, alterando a lógica de
coerção privatista que impedira a organização de um Exército regular estruturado, além de
trazer à tona o problema da emancipação do elemento servil. Assim, o reformismo jurídico
dos progressistas sucumbe ao inesperado impulso de reforma social proveniente da Coroa, o
qual implicava numa reorganização das bases socioeconômicas do Império que nenhum dos
grupos políticos dominantes (conservadores, liberais ou progressistas) estava disposto a
empreender.
A quebra do consenso escravista por iniciativa do próprio imperador indica os primeiros
sinais de esgotamento da solução monárquica encampada pela classe proprietária no processo
de independência do Brasil. Intimamente ligada aos objetivos de conservação da unidade
territorial e defesa dos interesses escravistas, o rompimento de um desses laços significava o
enfraquecimento do vínculo que ligava a grande propriedade agrária ao regime monárquico.
Ao assumir a posição de uma espécie de monarca “ilustrado” capaz de encaminhar o
problema da emancipação da escravatura, d. Pedro passava por cima das prerrogativas
constitucionais associadas ao Poder Moderador que ele encarnava (NEEDELL, 2006, p. 235),
o que colocava em xeque a estrutura mesma do sistema político do Império. Com efeito, a
plena adesão ao status quo monárquico por parte tanto de saquaremas quanto de luzias era
indissociável da tarefa de “empoderamento” das elites regionais nos aparelhos de Estado –
processo que tinha como objetivo a concentração de um maior controle dos rumos nacionais
nas mãos desses grupos. A iniciativa da Coroa em relação à escravidão não feria apenas
100
interesses estritamente econômicos da classe proprietária (o que já seria muito), mas aparecia
também como um elemento que desequilibrava o quantum de poder distribuído entre os atores
políticos associados à direção do Estado imperial. No que tange aos rumos da situação
progressista, a alternativa de avançar o processo de construção do Estado através do
aperfeiçoamento do arranjo institucional consolidado pelos saquaremas perdia aqui a sua
razão de ser; a possibilidade de um consenso em torno de tal tarefa, se já estava sendo
gradativamente minada pela instabilidade do predomínio parlamentar progressista, esfacela-se
por completo diante do rompimento de um acordo tácito sobre o qual ela repousava: a
garantia monárquica de perpetuação do trabalho escravo. A ideia de construção de um terreno
consensual no plano político tinha seu fundamento no consenso prévio quanto às bases
socioeconômicas do Império – o abalo nesta dimensão desestruturava o projeto nacional em
que estiveram envolvidos saquaremas, luzias, conciliados e progressistas, projeto no qual o
aperfeiçoamento da relação entre o Estado e as elites regionais estava indissociavelmente
ligado à preservação da instituição escravista que organizava a grande propriedade agrária.
101
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106
Anexo
PROGRAMA DO PARTIDO PROGRESSISTA
(apud BRASILIENSE, 1878, pp. 15-21)
“O partido progressista é um partido novo. Não toma sobre si a responsabilidade das crenças e
tradições dos extintos partidos a que pertenceram os indivíduos que o compõem, e aceita sem
distinção, e qualquer que fosse o seu passado, o concurso de todos os que o quiserem
acompanhar no pensamento de fazer realizar na administração publica do país os princípios e
regras consagradas no seguinte programa.
O partido progressista não quer:
1º A reforma da constituição política, à qual, como ao imperador e à sua dinastia, consagra o
maior respeito e adesão.
2º A eleição direta.
Não sendo possível realizá-la por meio do sufrágio universal, à base do imposto, ou de
qualquer outra distinção de classes sociais, privaria a muitos cidadãos brasileiros do exercício
de seus direitos políticos.
3º A descentralização política, que considera incompatível com a integridade e força do
império.
4º O exclusivismo nos cargos públicos.
Reconhece que todos os brasileiros tem a eles direito igual, sem outra distinção mais que a
proveniente dos seus talentos salvos os de confiança necessários à manifestação e execução de
seu pensamento político.
5º A jurisdição administrativa em matéria penal nem nas questões cíveis concernentes à
propriedade.
O partido progressista quer:
107
1º A regeneração do sistema representativo e parlamentar pela sincera execução e amplo
desenvolvimento do dogma constitucional da divisão dos poderes políticos para que não
sejam uns absorvidos ou anulados por outros.
Assim tem como máximas sagradas:
A responsabilidade dos ministros de estado pelos atos do poder moderador;
A verdade do orçamento.
2º A realização pratica da liberdade individual em todas as suas relações. Assim consagra a
liberdade individual como regra, e a atribuições da autoridade, a tutela do estado e as
restrições no interesse coletivo como exceções, que só devem ser determinadas por evidente
utilidade, expressas e literais.
3º A defesa dos direitos e interesses locais da província e do município.
Assim tem como máximas sagradas:
A sincera e efetiva execução do Ato Adicional;
A descentralização administrativa necessária à comodidade dos povos.
4º A economia dos dinheiros públicos combinada com as necessidades demonstradas do
serviço e sem prejuízo da honra, crédito e dignidade nacionais.
5º A responsabilidade efetiva dos empregados públicos.
6º A severa punição dos crimes.
7º A reforma e sincera execução da lei eleitoral de modo que as qualificações sejam
verdadeiras e a eleição a expressão real da vontade nacional.
Como meios tendentes a este fim:
As incompatibilidades;
A representação necessária das minorias.
8º A reforma e organização judiciária sob as seguintes bases:
1ª Julgamento definitivo dos juízes de Direito no crime e cível – Por consequência
julgamento em 2ª instância competindo exclusivamente ás Relações – Relações em
todas ou na maior parte das províncias.
108
2ª As funções dos juízes municipais reduzidas ao preparo e execuções dos processos
crimes e cíveis.
3ª Garantias necessárias para a nomeação, substituição e independência pessoal dos
magistrados.
4ª Criação e organização do ministério público no crime e no cível.
9º Separação da polícia e justiça neste sentido:
A polícia prende o criminoso, faz o corpo delito, colige as provas e remete-as à autoridade
judiciária. Os juízes municipais formam culpa exclusivamente nos crime inafiançáveis e nos
afiançáveis cumulativamente com os juízes de paz – O juiz de direito pronuncia e julga.
10º Competência do júri para julgar todos os delitos, compreendidos os dos empregados
públicos não privilegiados e os excetuados pela lei de 2 de Julho de 1850.
Excetuam-se desta regra aqueles, cuja pena no máximo não exceder a 1 ano de prisão,
desterro ou degredo, e a 1:000$000 de multa.
Os crimes de responsabilidade, porém, e os de abuso de liberdade de imprensa qualquer que
seja o máximo da pena, serão sempre julgados pelo júri.
11º As absolvições do júri, vigorando, não obstante as nulidades do processo, cujo efeito será
somente no interesse da lei, para correção e responsabilidade dos que a elas deram causa
salva, todavia, a disposição do art. 79 §1º da lei de 3 de Dezembro.
12º Código civil. É disposição do art. 179 §18 da constituição. Organizar-se-á quanto antes
um código civil.
13º Reforma hipotecária e sucessivamente a organização do crédito territorial.
14º Revisão do Código Comercial, especialmente na parte relativa ás falências, às sociedades
e aos seus julgamentos.
15º Reforma municipal, separando-se a deliberação da execução, pertencendo aquela à
câmara e esta ao seu presidente.
109
16º Nos municípios cuja renda exceder de 100:000$, as assembleias provinciais, e na Corte a
assembleia geral, poderão criar e retribuir administradores municipais pagos pelos cofres das
câmaras, eleitos como os vereadores e substituídos por estes. Art.10 §§ 4º e 7º do Ato
Adicional.
17º Reforma da guarda nacional para que seja devidamente qualificada, sem prejuízo do
exercito e armada, e aliviada quanto ser possa do serviço ativo.
18º Em favor da liberdade individual: prisões preventivas, decretadas somente no caso
facultativo do art. 175 do código do processo e pelos juízes de direito.
As fianças reguladas por uma tabela calculada somente na proporção da pena do crime, na
qual se fixe o máximo e o mínimo, dentro dos quais e atendendo a possibilidade dos réus e as
condições domiciliárias deverá o juiz julgar a fiança.
Ficam salvos os meios cíveis quanto ao valor do dano causado e das custas do processo, o
qual é demandado por ação cível, conforme a lei de 3 de Dezembro.
O tempo de detenção computado na pena, logo que exceder de 3 meses.
A fiança mais extensiva para os domiciliários.
19º A educação e regeneração do clero.
Finalmente o partido progressista aceita a administração pública como um fato comum e
respeitável para todos os partidos, salvas as alterações que a conformidade dos princípios
políticos, a experiência do serviço público e as necessidades correntes houverem de
justificar.”