110
Biblioteca Breve SÉRIE LÍNGUA PORTUGUESA A LÍNGUA PORTUGUESA, ESPAÇO DE COMUNICAÇÃO

A língua portuguesa, espaço de comunicação

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Maria Leonor Carvalhão Buescu | PDFICALP - Colecção Biblioteca Breve - Volume 851984

Citation preview

  • Biblioteca Breve

    SRIE LNGUA PORTUGUESA

    A LNGUA PORTUGUESA, ESPAO DE COMUNICAO

  • COMISSO CONSULTIVA

    FERNANDO NAMORA Escritor

    JOO DE FREITAS BRANCO

    Historiador e crtico musical

    JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa

    JOS BLANC DE PORTUGAL

    Escritor e Cientista

    HUMBERTO BAQUERO MORENO Prof. da Universidade do Porto

    JUSTINO MENDES DE ALMEIDA

    Doutor em Filologia Clssica pela Univ. de Lisboa

    DIRECTOR DA PUBLICAO LVARO SALEMA

  • MARIA LEONOR CARVALHO BUESCU

    A lngua portuguesa, espao de comunicao

    MINISTRIO DA EDUCAO

  • Ttulo A Lngua Portuguesa, Espao de Comunicao Biblioteca Breve / Volume 85 1. edio 1984 Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes Praa do Prncipe Real, 14-1., 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao reservados para todos os pases Tiragem 5000 exemplares Coordenao geral Beja Madeira Orientao grfica Lus Correia Distribuio comercial Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal Composio e impresso Oficinas Grficas da Minerva do Comrcio de Veiga & Antunes, Lda. Tr. da Oliveira Estrela, 10 Junho 1984

  • NDICE

    Pg. I / GRAMTICA E CULTURA........................................... 6 II / A ESCRITA: UMA SOCIOGNESE........................... 18 III / J TIVRAMOS CONQUISTADA A LNGUA

    LATINA ..................................................................... 42 IV / MAIS NOBRE O VULGAR ................................ 73 V / OS VRTICES DO HEXGONO:

    O ALCANCE DA NORMA ......................................... 82 NOTAS ............................................................................... 95 BIBLIOGRAFIA .............................................................. 105

  • 6

    I / GRAMTICA E CULTURA

    Quando, em 1536, publicada em Lisboa a Gram-tica da Lingua Portuguesa de Ferno de Oliveira (1) gramtica, diremos avant-la-lettre mas antes, segundo o autor, uma primeira anotao da lngua; quando, em 1539-40, so publicadas a Cartinha e a Gramtica (2) de Joo de Barros esta j uma verdadeira gramtica, dotada de sistematizao e dum carcter no s vincadamente pedaggico mas tambm normativo; quando, ainda, se publicam as primeiras Cartinhas, a do Bispo Frei Joo Soares, pregador de El-Rei e mestre dos Infantes, por volta da dcada de 40, e, no ltimo quartel do sculo XVI, tratados de Ortografia, como o de Pro de Magalhes de Gndavo em 1574, e o de Duarte Nunes de Leo, em 1576 esses factos significam no o comeo mas o termo de um longo processo cultural que, sem soluo de continuidade, articula a Gramtica do Renascimento com os seus criadores clssicos e tambm com aqueles a quem iro passar o testemunho. , no fundo, o que resulta da anlise de Michel Foucault (Les Mots et les Choses, Gallimard, 1966) ao postular a viragem

  • 7

    epistemolgica de que um dos pilares , no Renascimento e da ao sculo XIX, at instaurao das correntes estruturalistas e ps-estruturalistas, a tomada de conscincia da linguagem como objecto de formalizao.

    Efectivamente, no seria correcto fazer comear a histria da filosofia e da lingustica pelo Renascimento, porque o renovo da Antiguidade comeara muito antes e podemos dizer que no sofrera interrupo. Os gramticos do Renascimento, gramticos da lngua vulgar (3), acentuemos, so antes verdadeiros elos de ligao, garantes duma continuidade, mediante o aproveitamento duma herana. As suas inovaes, por vezes espectaculares, no que diz respeito terminologia e audcia de repensar a formulao clssica-escolstica, decorrem de um novo contexto perante o qual no deixam de estar atentos, numa tpica atitude presencialista.

    A civilizao grego-romana, na sua essncia e em todas as expresses da sua vida, manifestara uma unanimidade, sem que possamos, com preciso, delimitar-lhe o incio e o termo. Poderemos, talvez, defini-la, articulada segundo uma axiologia espcio-temporal.

    A cultura, que nos empenhamos por compreender e penetrar, uma unidade e como unidade tem de ser captada e interpretada.

    Verificamos, portanto, que da gramtica grega j cientfica, se bem que ainda no uma cincia histrica, sobrevivendo talvez decadente ou menos criadora em Roma e em Bizncio, derivou a nossa cincia gramatical. A gramtica grega o modelo

  • 8

    arquetpico de toda a arquitectura gramatical moderna.

    Efectivamente, quando Plato, no Crtilo, emite a opinio de que, segundo a natureza, para cada ser existe uma designao exacta, ele aborda j um problema de ordem especulativa que vai servir de ponto de partida a Aristteles para a elaborao de todo um sistema de categorias que exprimem a constituio da frase, a sua diviso em unidades e classes de palavras. As categorias lgicas de substncia, qualidade e quantidade esto claramente representadas e correspondem simetricamente s categorias gramaticais de substantivo, adjectivo e advrbio. Ora, nessa correspondncia lgico-gramatical, condicionando-se reciprocamente, reside, a nosso ver, a fundamentao terica da prpria constituio da gramtica, isto , a sua natureza formal; a reside tambm, por outro lado, a sua justificao pedaggica, de um ponto de vista pragmtico e, de certo modo, substancial. A gramtica converte-se, pois, no sustentculo de todo o pensamento formal. Num parntesis antecipativo, diremos mesmo que essa correspondncia ser um dos parmetros da Lingustica Moderna.

    Ora, o facto de essa correspondncia sistemtica se dever, em primeira instncia, a Aristteles, garantir, durante a Idade Mdia aristotlica por definio a conservao da correlao estabelecida entre a lgica e a gramtica e a salvaguarda do pensamento forma-lizado. Assim, se a organizao da Gramtica Clssica, como sistema de pensamento, legado grego, a sua construo como quadro ou estrutura sistemtica, alcanada pelos Alexandrinos, assume uma projeco

  • 9

    divulgativa atravs dos gramticos romanos, voltados para um pragmatismo que os leva a introduzir a Gramtica no plano de estudos que, da poca imperial, passar Idade Mdia.

    Na Europa ocidental, a Gramtica antiga, na sua formulao latina, devia servir de sustentculo ao ensino da lngua, que sobrevivia no uso prtico, como lngua da Igreja universal do Ocidente, a Igreja catlica. Ela seria, portanto, o veculo duma cultura que, parecendo destinada a uma runa total, todavia resistiria insularmente, nas formas artsticas do discurso, produzindo uma nova literatura latina e preservando a tradio jurdica romana.

    Simetricamente, segundo o eixo espacial, a lngua e a gramtica gregas desempenham um papel e ocupam um lugar semelhante na cultura bizantina da Europa oriental. A diviso do Imprio Romano em duas metades fora irreversvel e provocara uma ruptura cultural articulada em torno de duas lnguas de civilizao o latim e o grego, respectivamente. Ambas, provenientes de fonte comum a cincia helenstica da gramtica, vinculada pela teoria das partes do discurso e pela etimologia doutrina dos sofistas criam, por sua vez, reas culturais diferenciadas entre si mas internamente unitrias.

    Essa fragmentao bipolar conhecer uma tendncia de reunificao aps a queda de Constantinopla. O Ocidente revitalizar de modo precrio talvez o interesse pelos estudos helnicos. Em Portugal, os estudos gregos conhecem tambm uma fase de aprofundamento e ampliao: um dos nomes do de Vasco Fernandes de Lucena, tradutor de Xenofonte,

  • 10

    que dedicou a traduo de Ciropedia a Carlos o Temerrio, filho de Isabel de Portugal (4).

    Contudo, o Oriente e o Ocidente da Europa haviam j evoludo separadamente e construdo culturas diferenciadas, de cariz prprio e fisionomia especfica. Era j demasiado tarde para promover um unitarismo cultural. No Ocidente, em que a Igreja escolhera para seu uso, quer litrgico quer evangelizador, a lngua latina literria, a Gramtica e a Retrica foram salvas pela Escola Crist, e com elas um resto da cultura enciclopdica antiga nas Sete Artes Liberais da Universidade medieval.

    Com efeito, no limiar da Idade Mdia, os mosteiros do Reino Franco e das Espanhas tornam-se os centros culturais em que se salvam da conquista rabe as runas da cultura mediterrnica. Da, a preocupao prioritria dos conclios hispnicos quanto organizao das escolas paroquiais e episcopais. Em 527, o Conclio de Toledo havia decidido a constituio de internatos de clrigos, formados desde a tenra idade na domus ecclesiae. O quarto Conclio de Toledo, em 633, torna o percurso escolar mais exigente. A so formados homens como Frutuoso, Martinho e Leandro de Braga que, segundo as prescries de Isidoro de Sevilha, deviam, antes de mais nada, conhecer satisfatoria-mente a gramtica para compreender, sem o auxlio da pontuao, onde termina um grupo de palavras, onde a frase fica em suspenso e onde, finalmente, se completa do sentido (5).

    Ao examinarmos a programao curricular da escola medieval, verificamos que a cincia gramatical, a partir de Isidoro, durante toda a Idade Mdia, apoiada

  • 11

    sobretudo pelos manuais de Donato e Prisciano, a fonte primeira da sabedoria e da lucidez. S depois de conhecidas as principais regras do latim o aluno passa a interpretar poetas e historiadores, como Virglio, Estcio, Terncio, Horcio, Ovdio, Lvio. De tal modo, que alguns letrados consideram excessiva a importncia da Gramtica. Raoul Gilbert refere que em Itlia esse excessivo culto levava negligncia das outras artes: a Gramtica, por antonomsia, a gramtica latina, , portanto, a cincia omnipresente e omnipotente. Segundo Isidoro ainda, ela o fundamento das belas letras, a me gloriosa da eloquncia, a ama de todas as artes.

    A imprensa, introduzida em Roma na segunda metade do sc. XV, abre, naturalmente, uma poca nova. Comea, pois, a fazer-se sentir o desejo de reproduzir textos que falassem uma linguagem acessvel a um pblico infinitamente mais vasto. Ora, significativo notar que o advento da imprensa coincide cronologicamente com os primeiros gramticos italianos. As Regole, primeira obra gramatical, depois do pioneirismo lingustico de Dante, so de cerca de 1498. A Gramtica Castellana, de Antnio de Nebrija, aparecera em 1492. Significativo parece tambm o facto de a imprensa promover e exigir uma uniformidade regulamentar da Ortografia, at ento anrquica e caprichosa.

    Durante o sc. XV, assiste-se, portanto, a um progressivo movimento de imposio do uso do vernculo, em concorrncia com o latim, nos nveis literrio, cientfico e administrativo. Previses e decretos visam paulatina mas definitiva substituio

  • 12

    do latim pelas lnguas vernculas ou vulgares. Generalizam-se as tradues, com privilgio para Ccero, Tito Lvio, Virglio, Horcio e Plnio. Os homens do Renascimento so conduzidos chamada questo da lngua e, logo, reviso do conceito e do esquema gramatical, que ter de corresponder feio diferenciada das lnguas modernas em relao ao latim.

    o que faz entre ns, de modo notavelmente crtico, Joo de Barros, cuja reviso crtica expressivamente se manifesta atravs da sistemtica comparao entre ns (os romnicos) e eles (os latinos). No se trata, portanto, no Renascimento, de tentar reviver e admirar passiva e acriticamente o passado clssico. Trata-se, principalmente, de revestir esse legado duma arte nova. Assim, se alguns, intransigentemente, se agarram velha tradio humanstica, e defendem ponta de espada a primazia do latim, ns vemos que essa defesa v, e que, partida, a causa est perdida. As lnguas vernculas abriram definitivamente caminho, e debalde Romolo Amaseo em 1529, pronuncia duas oraes De Lngua latina usu retinendo. Ariosto, Machiavelli, Bembo, reconhecem e defendem o vernculo como lngua nacional.

    Atingindo as lnguas modernas uma maioridade, no momento de plenitude do Renascimento, a que se situam os domnios da Gramtica moderna. O termo Gramtica deixa de ser, por antonomsia, a gramtica latina. Pela primeira vez, embora a princpio timidamente, se preconiza a prioridade do ensino gramatical da lngua materna. o que significam as palavras de Antnio, no Dilogo em louvor da nossa lnguagem, de 1540: se eu no soubera da gramtica

  • 13

    portuguesa o que me vossa merc ensinou, parece-me que em quatro anos soubera da latina pouco e dela muito menos. Mas com saber a portuguesa, fiquei alumiado em ambas (6).

    Em Espanha, Pedro Simn Abril prope a Filipe II a

    convenincia de se proceder ao ensino das vrias matrias em lngua vulgar e de se ensinar aos meninos a gramtica espanhola antes da latina, o que, efectivamente, representava uma fractura em relao tradio pedaggica anterior.

    As lnguas modernas parece estarem, pois, definitivamente codificadas nos finais do sc. XV, o bom uso definido a partir dessa codificao gramtica e, finalmente, o contexto cultural exige que a gramtica assuma um carcter normativo.

    O sc. XVII voltar-se-, preferentemente, para a lexicografia: em 1612, a Accademia della Crusca publica o seu Vocabulrio Toscano; a Academia Francesa, sob Richelieu, iniciou a elaborao de dicionrios e gramticas oficiais. Em Portugal, precoce-mente, surgira, em 1563, o Dictionarium Latino-Lusitanum e Lusitanum-Latinum, de Jernimo Cardoso, publicado em 1570. Quase ao mesmo tempo, os Jesutas publicam o Dictionarium Latino-Lusitanum ac Japonicum.

    Entretanto, em 1606, a Origem da Lngua Portuguesa, de Duarte Nunes de Leo, incluiu j longas listas vocabulares. O Dicionrio de Morais Silva sair em 1789, enquanto, em 1793, a Academia Real das Cincias de Lisboa iniciar, malogradamente, a

  • 14

    redaco do seu Dicionrio, interrompida no final da letra A.

    Por seu lado, os estudos gramtico-lingusticos, ao avanarem, conhecem uma profunda alterao de conceitos. Ao concretismo pragmtico e presencialista do Renascimento, equilibrado na serenidade clssica, sucede a dor do tempo, que caracteriza a crise espiritual, religiosa e social do Barroco.

    A dialctica dramtica que se exprime pelo binmio interrogao/resposta, abre caminho para a pesquisa teleolgica. A etimologia, desprestigiada e ironica-mente ou timidamente abordada pelos Renascentistas, como cincia dos poucos doutos, segundo a irreverente expresso de Ferno de Oliveira, , na nova formulao lingustica, a busca das Origens. Em 1669, publicada em Paris a obra Origini della lingua Toscana: em 1606, Nunes de Leo publicara a Origem da Lingua Portuguesa.

    Essa dialctica inicia-se nos tempos modernos, em que se esboa a luta contra a lgica anstotlica, em que se rejeita o dogmatismo, em que se opera, em suma, uma revoluo filosfica atravs duma ruptura epistemolgica. lgica aristotlica recusado o direito de se intitular a sistemtica do esprito.

    A correspondncia, a aliana, at, entre a lngua e uma gramtica universal, a pedra de toque da nova formulao. A partir da, com Lorenzo Valla em Itlia, Vives em Espanha, Pierre de la Rame em Frana, tenta romper-se o equilbrio da filosofia aristotlico-escolstica. O cartesianismo lanara uma nova luz sobre a teoria da linguagem, buscando o ideal dum saber unificado. E, ao lado da mathesis universalis

  • 15

    surge o conceito de lingua universalis. Ao lado da filologia emprica, vai surgir uma nova forma universal de gramtica. O estudo da linguagem posto na presena imediata do problema central que domina o conjunto da histria espiritual do sc. XVII, o problema da subjectividade, que tenta afirmar-se atravs duma viso mais larga e mais profunda da realidade arrancando-a aos estreitos limites conceptuais dum empirismo psicolgico, fazendo-a sair, em suma, da esfera da simples existncia contingente e da actividade arbitrria, para reconhecer a sua forma especi-ficamente espiritual.

    O problema da linguagem e, em consequncia, da sua reduo a quadros gramaticais coerentes, surge no conjunto duma metafsica universal do esprito. Logo, ao problema especfico, j colocado anteriormente, da origem das lnguas vulgares, vai suceder-se o problema da origem e essncia da linguagem humana, como capacidade universal, numa perspectiva racionalista e filosfica.

    A gramtica filosfica de Port-Royal o corolrio desta nova perspectiva. Surgida em 1660, ela inicia a tradio duma gramtica filosfica, fundamentada na teoria cartesiana. A Escola de Port-Royal, frutificando em Paris e Beauvais, com Charles Rollin, j em meados do sc. XVIII revolucionaria o mtodo gramatical e iria impor-se como formulao terica capaz de cobrir toda a realidade lingustica, a nvel universal. O eco dessa nova formulao atinge o pragmatismo da programao escolar. ndice desse facto, em 1759, o Regulamento para professores de Gramtica, Latim, Grego, Hebreu e de Retrica, para uso das escolas, em que se preconiza

  • 16

    o mtodo de Port-Royal e se recomenda o manual de Charles Rollin (7), pedra basilar da Reforma pombalina.

    Em 1784, o editor da tipografia Rollandiana, reedita, sobre a 1. edio, a obra de Duarte Nunes de Leo, dizendo: Nestas duas obras (Ortographia e Origem) tm muito de que se aproveitar os que se abalanarem ao desempenho do Programa da Academia das Sciencias de Lisboa, sobre a composio de uma gramtica filosfica de lngua portuguesa gramtica notoriamente inspirada no prestigioso modelo de Port-Royal, de que houve alis, algumas tentativas de maior ou menor alcance.

    A Gramtica continua, pois, o seu percurso metodolgico da formalizao do pensamento: a Gramtica de Port-Royal o termo dum longo caminho de sucessivas mas ininterruptas formulaes, e est, de certo modo, presente na lingustica moderna. Chomsky, consciente dessa filiao, afirma: Mencionei anteriormente que h impressionantes semelhanas entre o clima de opinio do sc. XVII e o da psicologia cognoscitiva e da lingustica contemporneas. A gramtica filosfica assemelha-se muito de perto gramtica generativa corrente (8).

    Ao chegar ao fim deste itinerrio necessariamente breve da cincia gramatical, no momento em que assistimos a um abandono muitas vezes sistemtico do ensino da gramtica, a nvel pedaggico, parece oportuno deixar algumas perguntas, espera de resposta: Estaremos, neste preciso momento, perante uma

    degradao da gramtica como disciplina?

  • 17

    A sua eliminao total da praxis aos nveis pedaggicos ser sintoma dessa degradao? Ou, pelo contrrio, essa eliminao significar

    uma re-aristocratizao da gramtica, a sua reduo a cincia de poucos, os privilegiados do pensamento formal?

  • 18

    II / A ESCRITA: UMA SOCIOGNESE

    A origem da escrita (donde o conceito de gramatologia, termo empregado pela primeira vez por I. J. Gelb (9) identificada com a origem da linguagem: ler e escrever so definitemas dum conceito complexo. E, todavia, a escrita surge como um substituto imperfeito e perigoso, infeccionado pela mysre orthographique (de que fala Vendryes (10)), baseado sempre na diferena (11) alteridade e no ardil. Surge como um suprimento, a partir duma viso contrastiva entre uma substncia auditiva e uma substncia visual. Assim, a Gramtica que, num plano mental, nascera com a lgica, sucedendo averiguao especulativo-filosfica pura, separa-se dela para se infixar numa diferena e nasce, em segundo nascimento, num plano tcnico, com a Gramatologia. Assenta num axioma base, a partir do momento em que a cultura ocidental faz a grande opo dum alfabeto fontico e supe, num itinerrio explorativo, a indagao, em primeiro lugar, do nvel fonolgico da linguagem, isto , da sua segunda articulao.

  • 19

    Ora, as vrias modificaes verificadas na evoluo da escrita dependem de dois estratos presentes no acto da escrita: as primeiras, do estrato caligrfico; a ltima, do estrato da diferena ou correspondncia, isto , da relao contrastiva entre som e grafema, resultante da anlise fonolgica. Este nvel de anlise, com efeito anlise da segunda articulao tal como a define Martinet por oposio primeira articulao da linguagem, supe j no s um grau de abstraco como um grau de secundaridade notvel, j que a escrita um sistema auxiliar, criado pelo pensamento, signo de signo, significante de significante. , no fundo, uma tcnica ao servio da linguagem e o primeiro passo para a formao duma ars, com tudo o que ela implica de doutrinao e tambm de aplicabilidade: ars que vai traduzir-se na criao da cincia gramatical, potenciando a forma metalingustica do discurso. A secundaridade da escrita j est claramente definida por Aristteles, ao afirmar que os sons emitidos pela voz so smbolos da realidade e as palavras escritas smbolos dos sons emitidos. No so portanto as coisas que so submetidas a discusso, mas os smbolos das coisas, isto , as palavras. , alis, este o fundamento da lingustica estruturalista moderna, que define a linguagem como sistema de signos e a lingustica como cincia de signos. Se, porm, nos debruarmos sobre a reflexo aristotlica, veremos que, na verdade, quanto a ns, a escrita ser mais do que uma instncia secundria: ela , na verdade, uma instncia terciria, j que as paixes da alma instncia primria so simbolizadas pelas palavras emitidas pela voz instncia secundria e

  • 20

    finalmente estas simbolizadas pela escrita, instncia terciria e tambm alternativa.

    A mesma base operatria, isto , a anlise ao nvel da segunda articulao, presente na translao do alfabeto fencio para a escrita grega, introduzida em Atenas no princpio do sc. V a. C., preside constituio dos alfabetos itlicos, provenientes do grego e donde, provavelmente, por intermdio do etrusco, se formar o alfabeto latino (12). Este oferecia apenas cinco vogais (das oito gregas), sem distinguir longas de breves. As dezassete letras alfabticas que formavam a mtica grafia evandriana (13), no eram suficientes para corresponder estrutura fonolgica do latim. Por outro lado, se faltavam letras, outras eram ociosas e eis, portanto, novamente em jogo uma anlise de segunda articulao que vai permitir suprir as inadequaes dum alfabeto de origem estrangeira ao ser aplicado a um novo sistema lingustico, numa estratgia que poderemos chamar desenvolvimento ou expanso alfabtica: com efeito, por uma translao, esse alfabeto, que provm dum espao exterior, efectua uma trajectria e instaura uma ordem nova que se erigir como um novo espao cultural. Contudo, o suprimento dessas inadequaes ser sempre imperfeito, no obstante os esforos, desde Digenes da Babilnia at cio, atravs dos mtodos da dialctica estica, para resolver o inconcilivel: a antinomia entre a escrita e a leitura, entre grafema e fonema. que, de facto, a escrita sempre uma instncia de imperfeio: sempre uma aproximao, um revestimento mal ajustado a uma realidade diferente. a irrupo do de fora no de dentro (14).

  • 21

    Assim, cremos que, de facto, a formao da Gramtica deve ser buscada no momento que precede a inveno do discurso metalingustico. Deve procurar-se na sua pr-Histria, quando o homem reage contra a inquietao dum devir portador da precaridade da linguagem oral e encontra numa artificiosa tcnica o meio de exorcizar essa precaridade, conferindo fixidez e permanncia a uma realidade lbil e fugidia. por isso que as teses teolgicas relativas origem da linguagem tm a sua rplica nas que se referem origem da escrita, aco restrita, reservada a iniciados, sacerdotes e fundadores duma nova ordem, antes que a des-sacralizao da escrita instituisse os alfabetos laicos, patrimnio generalizado pelo uso comercial e burocrtico.

    Vai ser essa, simetricamente, em suma, a situao com que deparam, no ainda os gramticos das lnguas romnicas mas, antes deles, os annimos e humildes copistas, escrives e tabelies, que possuem um alfabeto o latino j longamente e de modo quase perfeito adaptado lngua latina. No obstante a extensa e prestigiosa tradio que o consagrara, ele apresenta-se ainda sujeito a uma certa flutuao, que varia entre as 21 letras e as 22 (com incluso de Z e Y), apesar de estes dois caracteres haverem sempre sido considerados como letras peregrinas (15). , portanto, esse alfabeto que eles se vem obrigados a utilizar para registar as lnguas brbaras do Ocidente cristo, oscilantes, fragmentadas e hesitantes ainda. So esses homens obscuros e sem nome que vo elaborar uma doutrina emprica laboratorialmente ensaiada no interior dos scriptoria transmitida por ensino

  • 22

    directo, semelhante a uma tradio oral e aceite por consenso. Ora, essa doutrina parte, inevitavelmente, duma anlise da segunda articulao da linguagem. Eles vo solucionar, mediante essa anlise, ou, pelo menos, vo equacionar os problemas que na sua maior parte sero legitimados pelos gramticos que, a partir do Renascimento, imprimem s lnguas respectivas uma fisionomia definitiva, ainda que passando por propostas que, acaso, o uso e a doutrinao posterior (algumas vezes bem menos audaciosa) rejeitaro. Efectivamente, numa apreciao global da situao, verificamos que o sc. XVI foi o sculo das grandes criaes ou tentativas gramaticais em geral e ortogrficas em especial. Ao terminar o sculo, podemos dizer que os dados esto lanados e a fisionomia ortogrfica delineada na sua feio moderna, aps um estudo reflexivo do certo e do errado. Vai, enfim, projectar-se o estabelecimento duma norma, baseada no uso e na autoridade, a partir de definio do justo, do legtimo e do correcto, aps a superao conseguida pela instaurao dos modelos. assim e por isso que Duarte Nunes de Leo, embora na transio de um sculo para outro , notoriamente, pela estrutura do seu pensamento, um homem do sc. XVII, representa j um novo universo mental e lgico: podemos, pois, dizer que a dcada de 1540-1550 marca o encerramento ntido de um processo de pesquisa e de experimentalismo. Representa, afinal, uma nova atitude de dinamismo e destemor, o esprito de rebelio de que fala Eugnio Garin. Criador do universo baseado na realidade circundante a cada passo inventada, o sc. XVI aparece, na histria, como o

  • 23

    momento das grandes opes e dos grandes alcances da confrontao com o real.

    Mas tomemos como testemunho a figura, talvez modesta se a compararmos com as figuras gigantescas de alguns dos humanistas do sculo, de Pro Magalhes de Gndavo.

    Nasceu em Braga, filho de pai flamengo, origem de que d conta o nome Gndavo, derivado do topnimo alatinado Gandavum, Gand, cidade da Flandres com a qual Portugal mantinha estreitas relaes comerciais, e que era conhecida com o nome de Gante ou Guante (16). Foi, contudo, na sua provncia natal de Entre Douro e Minho, regio conservador da semente portuguesa, como lhe chamara Joo de Barros (17) que Pro de Magalhes de Gndavo, que entretanto ocupara tambm o cargo de copista da Torre do Tombo, foi casado e ensinou latim e, obviamente, portugus.

    Apesar de pouco sabermos sobre a sua preparao escolar, a verdade que a sua obra, ainda que exgua, testemunha que o humanista estava a par do panorama literrio portugus do sc. XVI, mencionando, com entusiasmo adequadamente hierarquizado, os poetas e humanistas que assinalaram o movimento intelectual do tempo, desde S de Miranda a Lus de Cames, passando por Andr de Resende e Joo de Barros. Apreo talvez recproco, como fazem pensar os tercetos e o soneto que, servindo de prlogo sua Histria da Provncia de Santa Cruz (1576), constituem uma homenagem de Cames ao autor.

    Embora uma parte da sua vida tenha decorrido, pois, em Entre Douro e Minho, o percurso biogrfico de Pro de Magalhes leva-o por duas vezes ao Brasil,

  • 24

    resultando, de cada uma dessas estadias, a redaco de uma obra de contedo brasileiro, as quais fazem do mestre de Braga o primeiro historiador do Brasil, muito provavelmente fonte, com Jos de Anchieta, por exemplo, da obra de Jean de Lry ou Ioannis Lerius que, em verses e tradues vrias, difunde, atravs duma Europa vida, as primeiras imagens dum mundo novo e pujante.

    Assim, o Tratado da Provncia do Brasil que se manteve indito at ao sc. XIX (18), deve ter sido redigido por volta de 1569, data provvel da sua primeira estadia no continente sul-americano, e a Histria da Provncia de Santa Cruz em 1576, aquando da sua segunda estadia, em que desempenhou o cargo de Provedor da Fazenda da Capitania de S. Salvador da Baa. Ambas essas obras constituem no s uma exortao pragmtica ao povoamento, mas uma primeira homenagem europeia, atravs duma viso euforizante, ao pas do genus angelicum, o grande mito que alimentar o pensamento utpico do sc. XVII, e que encontrar como arautos, entre outros o jesuta Antnio Vieira e o franciscano Mendieta. Todavia, a primeira dessas obras s tardiamente conhecer a difuso da imprensa. O Tratado publicado pela primeira vez em 1826 pela Academia Real das Cincias, na Coleco de notcias para a Histria da Geografia das Naes ultramarinas e a Histria, aps a primeira edio de 1576, apenas republicada em 1858 pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e, no mesmo ano, tambm pela Academia Real das Cincias.

  • 25

    Parece, pois, existir uma paradoxal desproporo entre o desinteresse pelo menos em Portugal pela obra histrica de Gndavo e o que poderamos considerar o xito editorial dos seus dois opsculos de contedo lingustico e gramatical. Essa desproporo ter, talvez, explicaes histrico-sociolgicas que, por sarem do mbito deste texto, no discutiremos mas apenas propomos: por um lado, o relativo desinteresse pela Terra de Vera Cruz, qual, apesar das tentativas no de todo conseguidas de D. Joo III, s D. Joo V ir dar ateno aguada por um imediato interesse econmico. Por outro lado e pelo contrrio, a estimulante colocao dos problemas lingustico-gramaticais durante o sc. XVI e a partir das obras-padro de Ferno de Oliveira e de Joo de Barros, bem como, num aspecto menos tcnico mas no menos decisivo, a polmica envolvente da Questo da Lngua, na qual se empenham poetas e humanistas.

    Eis porque nos parece que as duas zonas que a obra de Gndavo abrange a zona histrica e a zona lingustico-gramatical tiveram diferente e significativa fortuna editorial. Com efeito, a divulgao e a democratizao cultural permitida pela imprensa projecta-se, atravs da obra de Gndavo, no sentido duma circulao que ultrapassa largamente os circuitos da educao palaciana e aristocrtica (background da obra de Barros) e tambm a especializao, por vezes polmica, da de outro dos gramticos do sc. XVI: Ferno de Oliveira: As regras que ensinam a maneira de escrever a Orthographia da Lngua Portuguesa,

  • 26

    com hum Dilogo que adiante se segue em defenso da mesma lngua.

    Trata-se, em confronto com a obra dos seus dois antecessores, dum breve trabalho de propores reduzidas e de intenes modestas que, na edio de 1592, a terceira, vem publicado acostado ao tratado de escrita de Manuel Baratta e a hum tratado de Arismetica. E, contudo, se atribumos sua obra a dimenso dum instrumento divulgativo, esse facto decerto comprovado pela circunstncia de, durante o sc. XVI, ter sido o nico, da trade dos gramticos, portugueses, a ter mais de uma edio: a de 1574, edio princeps, por Antnio Gonalves; a de 1590, por Belchior Rodrigues; e, finalmente, a de 1592, por Antnio de Siqueira, a qual, por circunstncias histrico-polticas circular em duas verses, merc, como veremos adiante, dum processo de censura a posteriori.

    De facto, dirigindo-se ao discreto e curioso lector (19), ele tem em vista toda pessoa que escreve (20), a quem convm saber bem guardar a orthographia, pondo em seu lugar as letras e os accentos necessrios que se requerem no discurso das escripturas (21). Assim, trabalhou por comprehender em breves palavras pera com ellas aproveitar a toda pessoa que as quiser seguir (22). Mais significativo ainda, ele escreve pera os que no so latinos (23). Se compararmos esta posio com a assumida no discurso contido na Gramtica de Joo de Barros e na mais prolixa exposio de Ferno de Oliveira, obras nas quais intervm, como suposto, o conhecimento ou, pelo menos, a notcia das lnguas grega, hebraica e latina,

  • 27

    alm do rabe e das lnguas romnicas e at exticas; se, sobretudo, examinarmos os pressupostos culturais do interlocutor de Joo de Barros no Dilogo em louvor da nossa linguagem, facilmente reconheceremos uma profunda e significativa alterao, ou antes, alarga-mento do projecto.

    Alis, Gndavo define mais claramente esse projecto quanto ao estatuto cultural dos seus destinatrios:

    E por esta razo quis nellas (regras de orthographia) dar algs explos, para que assim ficassem mais claras, c menos trabalho fossem entendidas de qualquer pessoa ainda que nam tenha (como digo) inteligencia de latim. Porque se meu intento fora somente aproveitar com ellas aos grammaticos, ouvera os taes exemplos por escusados; pois est claro no serem necessarios seno a estes que escassamente sabem que cousa he nome e que cousa he verbo (24).

    O Dilogo em defensam da lngua Portuguesa, que se segue ortografia, assume-se igualmente como um discurso popularizante, em que a prpria matria da argumentao se desenvolve de modo adequado ao estatuto cultural j definido: (se no qual desapassionadamente quiserdes pr os olhos, () achareis que em muitas partes faz ventagem vossa (lngua castelhana), como logo vos posso mostrar em hum vocabulo que agora me lembra () e he que dizemos olhar, e vs mirar: pois se o instrumento com que vemos chamamos olhos, com razo dizemos olhar e vs chamais ojos, e vs dizeis mirar. O qual verbo no pode ser conveniente, nem conforme a sua significao, sem dizerdes ojar, ou chamardes aos olhos miros (25).

  • 28

    Assim, num discurso simplificado, num tom afastado de qualquer conotao aristocrtica, a obra de Gndavo, a nica de que o pblico destinatrio justificou, no sculo XVI, trs edies, avanou um largo e decisivo passo na via aberta pelo livro impresso, instrumento poderoso do acesso de muitos a um espao cultural at ento de poucos.

    Com efeito, a introduo da imprensa apresenta-se como um instrumento novo que vai proporcionar ao prprio acto comunicativo uma fora at ento insuspeitada, perante a qual a primeira reaco quase a dum temor reverente. Significativo o testemunho de certo modo ingnuo de Garcia de Resende, na imediatez dum primeiro encontro, que inclui a tipografia entre as maravilhas ou monstros do seu tempo tempo que com a mais aguda percepo ele identifica como um tempo de viragens e rupturas:

    E vimos em nossos dias ha letra de forma achada com que a cada passada crescem tantas livrarias e a sciencia he augmentada. Tem Alemanha louvor por dela ser o auctor daquesta cousa tam digna. Outros affirmam na China o primeiro inventador (26).

    Aprendiz de feiticeiro, o humanista est, de certo

    modo, ultrapassado e subjugado por uma tcnica que avanou talvez a um ritmo imprevisvel e incontrolvel. A ortografia submete-se, pois, de algum modo, a uma tecnocracia dominadora e imparvel. anarquia

  • 29

    ortogrfica do escrivo, sujeito sua imaginao e at a projectos e iniciativas individuais, por vezes caprichosos e discordantes ou mesmo dependentes da fantasia ornamental e simblica do esprito medieval, sucede a supremacia da vaga tipogrfica avassaladora e to capaz de recusar propostas como de impor costumes. Sempre, porm, no sentido duma regularizao. E essa regularizao passa pela atribuio de valores adequados aos smbolos alfabticos, isto , em suma, ao estabelecimento de um alfabeto.

    Assim, essa arte (que) vem novamente Terra (27)

    constitui uma presso tecnolgica que, de certo modo, controla e condiciona as opes tericas dos humanistas e gramticos. Kukenheim, efectivamente, afirma, em relao ao caso francs: Au dbut du XVIe sicle lcriture relevait () plutt de la typographie (28) Em Itlia, Gelli, por exemplo, numa Carta ao Cardeal de Ferrara, observaria que tinha lasciato la cura della ortografia allo stampatore. E, quanto situao castelhana, Valds, no seu Dilogo de la Lengua afirma, atenuando as suas crticas a Nebrija: Quanto a la ortografia no digo nada, porque la culpa se puede atribuir a los impressores y no al autor des libro. O impressor , portanto, aquele que detm a tcnica e, com ela, o poder de ditar a lei ortogrfica, resistindo, por vezes inquebrantavelmente, s tentativas reformadoras com base nas posies doutrinrias dos teorizadores da lngua. A essa resistncia teremos, porventura, ficado a dever a efemeridade do sistema proposto por Joo de Barros, bem como a ainda maior

  • 30

    efemeridade do sistema de Ferno de Oliveira, sistemas que, ambos, continham reformulaes importantes na constituio do alfabeto que pretendiam capaz de corresponder s realidades fonolgicas da lngua.

    Observa-se, pois, que na Gramtica de Joo de Barros (de que consideramos parte a Cartinha, sua introduo) aparece por quatro vezes a indicao e at a descrio do alfabeto. Mas, paradoxalmente e primeira vista, nunca de modo coincidente. Na Cartinha apresentado em primeiro lugar um alfabeto figurado, em que cada letra acompanhada duma pequena imagem em cujo nome existe, como primeira, a letra a designar: rvore (para o a), besta (para o b), etc.

    Um alfabeto do mesmo tipo faz tambm parte da Cartinha do Bispo de Coimbra, Frei Joo Soares, correspondendo, portanto, a uma matriz-tipo que, ainda que no a mesma matriz, aparece em obras da mesma espcie e no resulta necessariamente duma criao especificamente destinada quela ocorrncia. Pelo contrrio, parece provir duma tradio pedaggico-didctica e simblica anterior. Cotejando os dois alfabetos figurados, verificamos que o alfabeto da Cartinha de Frei Joo Soares contm apenas vinte e uma letras, visto no fazer parte dele o x, representado na Cartinha de Barros pela figura xarroco, que perfaz, portanto, o total de vinte e duas letras. As gravuras no so as mesmas, mas correspondem a idnticas simbolizaes:

    a rvore c cesta b besta d dado etc.

  • 31

    Ora, o alfabeto ou abece das figuras, como lhe chama Frei Joo Soares, no corresponde na Cartinha do Bispo de Coimbra ao alfabeto no figurado que encabea a primeira pgina da sua Cartinha e que apresenta vinte e nove letras, contando com as duplicaes das letras a, d, r, s e v. Essas duplicaes no aparecem no alfabeto das figuras. Idnticas divergncias se verificam nas vrias edies da Cartinha de Frei Joo Soares que tivemos possibilidade de examinar (29).

    De facto, ao examinarmos a constituio do alfabeto figurado de Barros, reconheceremos desde logo que ele se afasta da doutrina repetidamente exposta e discutida ao longo da Gramtica. O alfabeto figurado consta das seguintes letras, que formam aquilo que se chamar alfabeto latino, sendo no entanto concorrente com outro alfabeto latino em que no figura o k: a, b, c, d, e, f, g, h, i, j, k, l, m, n, o, p, q, r, s, t, u, x, z.

    Consta, portanto, de vinte e duas letras e coincide

    com os alfabetos caligrficos que existem nos pequenos e numerosos tratados para o ensino da escrita que circulam no espao cultural-europeu romano-saxnico.

    Ora, este alfabeto das vinte e uma ou vinte e duas letras aquele que a arte da impresso acolhe nas suas matrizes e representa uma simplificao em relao aos complicados alfabetos que, nas audaciosas propostas de Ferno de Oliveira e Joo de Barros, atentos realidade fonolgica, atingem o nmero de trinta e uma e at trinta e quatro letras em figura. Este nmero, alis, o mais elevado, obtido pela contagem de (til) como figura de letra, alm da incluso de signos grficos

  • 32

    diferenciados para as vogais abertas e fechadas, para i/j e u/v e ainda dos dgrafos ch, nh e lh, e de ss e rr.

    Do exame contrastivo dos diferentes alfabetos

    propostos e, ao mesmo tempo, dos silabrios que constituem, diremos, a praxis alfabtica, julgamos poder extrair, em ltima anlise, duas concluses importantes. Em primeiro lugar, que os homens do sc. XVI (e no s aqueles a quem podemos atribuir o ttulo prestigioso de humanistas) se encontravam envolvidos num processo de descoberta no qual audaciosamente se empenham. Sem preconceito e sem sujeio. Em segundo lugar, concluiremos tambm que nesse processo de descoberta ou inveno est presente uma conscincia lingustica cujo primeiro vector aponta para uma conscincia fonolgica a qual, no entanto vai rapidamente obliterar-se em favor da normalizao imposta pela tcnica tipogrfica.

    certamente por isso que Magalhes de Gndavo apresenta o seu alfabeto internacionalizado, formado por vinte letras, ou vinte e ha, com este y grego e fora h que lhe no chamam os latinos letra seno aspirao (30). Parece, pois, conformar-se com o alfabeto latino das vinte e uma letras. No enfileira, muito pelo contrrio, nas propostas graficamente inovadoras e de feio fonologista, no se afeioando incluso dos dgrafos como ch, nh, lh, rr, ss, nem das novas vogais preconizadas por Ferno de Oliveira, , , : limita-se ao alfabeto internacional da tradio latino-romana: o uso dos acentos, com o qual transigir, e que fizera parte da doutrinao de Joo de Barros, no altera a fisionomia j fixada e, no fundo, inaltervel, do velho

  • 33

    alfabeto latino. O carcter recessivo da proposta de Gndavo, parece, pois, evidente. Opsculo que podemos considerar como um pronturio ou guia ortogrfico de caractersticas acentuadamente prag-mticas, mais do que uma obra doutrinria, mantm-se dentro de um critrio de regrada prudncia, avesso a propostas demasiado discutveis ou at polmicas. Note-se, ainda, que os Exemplares de diversas sortes de letras de Manuel Baratta com que o pequeno tratado de Gndavo andou editado, apresenta os alfabetos segundo idntico critrio, apenas acrescentando em alguns casos as variantes caligrficas de s e de r.

    Do exame comparativo dos alfabetos propostos durante o sc. XVI, parece resultar com clareza que, se os abcs de Ferno de Oliveira e de Joo de Barros representam uma expanso, o de Magalhes de Gndavo, pelo contrrio, representa o que chamaramos contraco ou recesso alfabtica, ao retomar a substncia grfica do alfabeto latino. A sua proposta marca, na verdade, uma regresso em relao aos projectos anteriores. A estrutura em mudana, sentida como tal nos meados do sculo, converte-se, no seu ltimo quartel, numa estrutura estvel.

    Se os seus dois antecessores quinhentistas, por exemplo, haviam adoptado as designaes de grande e pequena respectivamente para as vogais abertas e fechadas, divergindo, no entanto, quanto sua representao grfica, verifica-se que Magalhes de Gndavo renuncia a tais designaes e omite a distino fonolgica brilhantemente anotada pelos gramticos de 1536 e 1540. E se, como j dissemos, transige quanto utilizao dos acentos sobre algas letras, limitar-se-

  • 34

    quelas que tiverem duvidosa significao (31), pista alis tambm j aberta por Barros: nam escrevendo as dies onde cada um srve, ficariam anfibolgicas e duvidsas, ddo que o modo da construim as mis das vezes nos ensine a tirr sta anfibologia (32). Assim, o uso de acentos , para Gndavo, funda-mentalmente, uma funo grfica distintiva e impeditiva da homonmia, ferindo, todavia apenas a slaba tnica. Escreve ele: Tambm h muitos verbos que no se sabe se falo do tempo passado se do porvir: e pera se tirar esta duvida, quando falarem do tempo passado, se por o accento na penultima, que no he a derradeira sylaba, seno a que est antes della, assi como alcanra, louvra, agradecra, etc. E quando falarem do por vir, prseha na ultima desta maneira, assicomo, alcanar, louvar, agradecer, etc.(33).

    A funo distintiva ou profilctica do acento foi, alis, tambm proposta por Barros, relativamente ao acento circunflexo, cuja utilizao se reduz a e , formas pronominais, representando fonicamente o mesmo que a e o, artigos. Neste caso encontramos, na utilizao do acento grfico, uma nova e ambgua funo: a funo indicadora da categoria morfolgica e, por consequncia, afectada dum valor significativo ou semntico (34).

    A utilizao do acento circunflexo , porm, diferente para Gndavo, cuja doutrina, de certo modo, se dilui num pragmatismo simplificativo e reducionista.

    Tendo, como j vimos, o acento circunflexo um valor semntico e/ou morfologicamente distintivo, a exemplificao ocorrente mostra-nos, no entanto, ao afectar a vogal o pode corresponder vogal aberta: E

  • 35

    assi tambem quando se ouver de usar desta letra o, em alga invocao, prseha com hum accento emcima, assicomo: Vos poderoso Senhor valeinos, gro Rey ajudainos, etc. (35). A aplicao ortogrfica do prprio texto gandaviano parece apontar para o timbre aberto de : s = s, ainda que pensemos que a praxis tipogrfica s sob cauo pode ser considerada como probatria.

    Em contrapartida, o acento agudo, marcando a slaba tnica, parece nada ter que ver com a abertura da vogal, a julgar pela exemplificao do autor: agradecra em oposio com agradecer (36).

    De modo semelhante ao de Joo de Barros, embora decerto sem a mesma sistematizao didctica, Gndavo apresenta os seguintes casos: Quando este articulo a, ou as, se ajuntar a algs nomes femininos, a que se concede ou nega alga cousa, ter um accento em cima, assicomo, vossa gerao se deve esta honra () (37) Poderemos interpretar esta ambiguidade como uma interferncia entre a primeira e a segunda articulao da linguagem? Em qualquer caso, porm, parece-nos que o acento, sinal auxiliar ou diacrtico cujas funes convergem com o uso do h, = he como veremos, que est na base desse jogo interferencial.

    Incoerncia ou disparidade de critrio na qual incorre tambm Joo de Barros ao considerar dispensvel sta ltra u, com que (g) fa a prolam de ga, go, gu, (38) diante das vogais e e i.

    Dos problemas discutidos, s a este se refere Magalhes de Gndavo, seguindo a doutrina unnime dos dois antecessores:

  • 36

    Sempre diante g, se seguir u, ante e, e ante i, quando se pronunciar com fora, assim como guerra, sangue, guitarra, guia, etc. E se no tever este u, ante e, e ante i, ter a pronunciao desta maneira, assicomo, gente, gerao () (39).

    Ora, comparando a posio dos trs doutrinadores

    que exigem a presena de u quando (g) se pronunciar com fora, com as grafias medievais segia = seja, agia = aja (40), reconhecer-se- que em ambos os casos, embora em sentido inverso, se recorreu a uma vogal (respectivamente e e i) que assuma uma funo diacrtica.

    A oitava letra da matriz alfabtica herdada do latim colocava os linguistas e gramticos das lnguas vulgares (italiano, portugus e francs (41) perante um problema. Mas a verdade que, por outro lado, se lhes oferecia como um instrumento capaz de produzir a soluo para outros problemas. De facto, tratava-se de atribuir a uma substncia grfica um novo contedo de representao: a um elemento da sinaltica grfica, tornado (aparentemente) intil conferir a capacidade representativa, a qual vai apresentar-se, no unvoca, mas multivocamente. essa natureza multvoca que, de algum modo, vem perturbar a ordem no sistema alfabtico.

    Se, por um lado, o h figura como letra no interior do alfabeto, a verdade que o poder que detm no se identifica com o poder das outras letras: s lhes semelhante em figura. A definio de letra dada por Nebrija (no es otra cosa la letra sino figura por la cual se representa la boz e pronunciacion (42) engendra

  • 37

    um debate interno acerca da considerao de h como letra. , pois letra imperfeita, visto que no tem voz e no se pronuncia por si s.

    Para Joo de Barros, porm, cujo discurso gramatical foge ao tom polmico e at ao discurso expositivo, por economia didctico-pedaggica, e apesar de considerar que h tem os Latinos ser espirao e no ltera (43), h, e tambm til entram no nmero delas e com elas se perfaz o nmero de trinta e quatro que compem o mais audacioso dos alfabetos barrosianos (44). que, para o gramtico, e, em coerncia com a sua prpria definio de letra (a mais pequena prte de qualqur dim que se pde escrever) (45), as trs cousas que as lteras veram ter (46), a saber, nome, figura, poder, esto na natureza de til e de h. Logo, elas so letras, ainda que o autor insista: sta figura h os Latinos nam lhe chamam lteras mas aspiram (47). Ora, o termo aspirao, parece funcionar para Gndavo apenas como designativo ou nome de h, sem que se nos afigure referir-se, de algum modo, aspirao fonolgica que para os seus dois antecessores se apresentava somente no caso de algumas interjeies, e, mesmo assim, com certa reserva.

    Examinando globalmente a postura dos ortografistas perante a existncia primariamente injustificada de h na srie alfabtica, qualquer que esta fosse (quer se mantivesse fiel ao alfabeto latino quer tivesse sofrido as mutaes ou implantes que a anlise fonolgica postulara) verifica-se que a essa letra so agora adstritas trs funes: funo etimolgica, funo distintiva e funo diacrtica.

  • 38

    No caso da funo distintiva, julgamos poder ainda identificar, como subfunes, a distino grfica e a distino semntica, as quais por vezes se identificam ou coincidem com a funo etimolgica ou at com a funo diacrtica (48). Efectivamente Magalhes de Gndavo escreve:

    Tambem a esta letra e, se ajuntar h, quando for verbo, quer significar ser alga cousa, quer negando quer affirmando, assicomo, he muito meu amigo. No he quem parecia, etc. E isto no porque o tenha de sua origem, mas pera com elle denotar que he verbo como digo, e no conjuno. Posto que tambem costumo algas pessoas por escusar este h, no tal verbo, escrevello somente com hum accento em cima desta maneira . Finalmente que de qualquer destas se pode usar. Mas porque com este accento he muito pouco usado, e muitas pessoas o avero por novidade, ignorando pela ventura o que o tal accento denota, pareceme que sera mais acertado e melhor escrevello com h () (49).

    Vemos, neste passo, que a funo diacrtica

    equivalente do acento coincide com a funo distintiva (50).

    Assim, a viso dos linguistas portugueses apresenta-se como uma viso moderada, intermdia entre o radicalismo do princpio ortofnico e do princpio etimolgico. No h, efectivamente, guerra movida contra o h etimolgico, mas somente uma certa reserva quanto sua necessidade. Para Ferno de Oliveira, h, sinal de aspirao na escritura e no na voz (51), , no entanto, admitido como marca etimolgica, no

  • 39

    fazendo mais que s para mais certo conhecimento de quem so, como homem, o qual segue ainda a escritura latina, Haver outro tanto (52).

    Gndavo , neste passo, o mais explcito, ainda que apenas aceite (sem parecer recomend-lo) o uso etimolgico de h: muy raramente, ou nunqua teremos necessidade em princpio de dio, usar mais delle, salvo em algs vocabulos que o teverem de sua origem, assicomo homem, honra, honestidade, historia, etc. (53). No entanto, num rasgo que no deixa de ser surpreendente, o emprego do h etimolgico associado a essa instncia quase abstracta e talvez por isso mesmo poderosa e incontestvel: o uso. E ele, de resto, que justifica alguns dos casos do emprego do h no etimolgico e desprovido tambm de qualquer das outras funes que lhe so adstritas: E pelo conseguinte he necessrio usarse tambem deste h () no porque seja necessario () mas por razo de se entenderem e significarem melhor, conforme ao uso desta nossa linguagem, assicomo hum, ha, hia, hi. Porem tirando estes, muy raramente, ou nunqua teremos necessidade () (54).

    E ao uso poderoso, mais uma vez impondo leis, que Ferno de Oliveira se submete sem discusso: Mas, hum e alghum, hi e ahi, advrbios de lugar, honra, honrado, s de nosso costume os escrevemos sem mais outra necessidade (55). Assim, h no tem, para os gramticos portugueses, nem voz nem virtude prpria. letra imperfeita, definio que se aproxima da designao de Salviati de mezza lettera. No tendo voz nem virtude, ela nem sequer tem nome: chamam-

  • 40

    lhe aspirao, espirao. S Ferno de Oliveira ousa chamar-lhe aha.

    Intil e sobeja, nada mais por si prpria representando do que um sinal de aspirao realidade fonolgica duvidosa e precria em interjeies que nem parecem de bom riso portugus, essa letra fica, portanto, disponvel para outras funes: como signo distintivo na profilaxia grfica e como diacrtico, modificando a voz das outras letras, quando misturado com elas, representando esses fonemas novos que, no alfabeto portugus apresentam a figura de nh, lh, ch.

    A flutuao no registo dos ditongos nasais, que se verifica na praxis ortogrfica, ainda que, doutrinariamente, todos os gramticos paream estar de acordo, regride, no entanto, a partir da dcada-chave de 40. Se, na Gramtica de Joo de Barros am e o finais oscilam, apesar do discurso categrico de Ferno de Oliveira (56), em 1574 Magalhes de Gndavo parece testemunhar uma doutrina j fixada, ao menos pelo uso, e facilitada, certamente, por um caso de profilaxia verbal (57) isto , a fim de evitar a ambiguidade do discurso escrito. Diz, portanto: E estes verbos e todos os mais no plural, quando falarem do passado que fezerem o accento na penultima se escrevero com m, assicomo, alcanaram, louvaram, etc. E quando falarem do futuro que fezerem o accento na ultima, se escrevero com o, assicomo, alcanaro, louvaro, etc. (58).

    E, contudo, hesita ainda: Ou tambm se podem escrever com m, quer falem do passado quer do porvir,

  • 41

    distinguindo esta duvida com os mesmos accentos da maneira que acima digo (59).

    O processo de imposio e generalizao da grafia dos ditongos nasais, provenientes da convergncia das terminaes -om, -am, -o, em curso desde a reforma ortogrfica da Chancelaria Real de D. Dinis, de que fala Lindley Cintra (60) est, pois, prestes a terminar, fixando-se na terminao -o. Til representa, na ortografia portuguesa, uma marca de originalidade, na medida em que utiliza, de forma autnoma e diferenciada, um sinal que, ausente das grafias italiana e francesa (61), se reduz, na castelhana, funo de abreviatura ou suprimento de n apenas (62).

  • 42

    III / J TIVRAMOS CONQUISTADA A LNGUA LATINA

    Comecemos com o mestre quinhentista das questes da lngua vulgar, Joo de Barros, falando com seu filho Antnio, submisso interlocutor no Dilogo em louvor da nossa Linguagem: Mas agora, em nossos tempos, com ajuda da empressam, deu-se tanto a gente castelhana e italiana e francesa s treladaes latinas, usurpando vocbulos, que os fez mais elegantes que foram ora h cinquenta anos. Este exerccio, se o ns usramos j tivramos conquistada a lngua latina, como temos frica e sia, conquista das quais nos mais demos que s treladaes latinas.

    Conquista da lngua latina, como factor de ampliao lingustica e conceptual, registo da ambio de nobilitar a lngua e fazer dela um instrumento total de comunicao, capaz de veicular todas as mensagens.

    A traduo, porm, exerccio, como lhe chama Joo de Barros, no deixa de ser objecto de controversas opinies. Mas tarde, Custdio Jos de Oliveira, escreve, em 1771, na Prefao do Tratado do Sublime, cuja traduo d estampa: Estes (que

  • 43

    por muitas vezes tm tido o impulso de o traduzirem), agora, vendo completos os antigos desejos, de bom nimo se esforaram em limar algumas frases que conferi com eles, a cujo voto muitas vezes me sujeitei, para assim conservar, com a maior possibilidade, na nossa lngua, a fora, a energia, a magestade e a harmonia que mais se pudesse assemelhar do Autor original (...). No deixaro outros de desaprovar este meu trabalho, por terem uma ideia muito desavantajosa das tradues ().

    O que certo, porm, que o problema da traduo, como factor de enriquecimento, se constituira como tema de debate e como campo de exerccio desde a Idade Mdia. Podemos dizer que, desde ento e sem soluo de continuidade, a omnipresena duma cultura latinizante atestada nomeadamente atravs dos cdices alcobacenses, a qual regista j um certo cunho leigo e clssico, que toma como instrumento o latim da Igreja. Prisciano, o italiano Ppias, outros gramticos italianos do sc. XI, Eberhard e Villa Dei, impressos j no sc. XV, bem como Eugcio e Caracena, tutelam de algum modo uma latinidade que pouco a pouco amplia um projecto cultural que ir muito alm do mero utenslio eclesistico e litrgico. O exame dos Cdices Alcobacenses (63) mostra, efectivamente, uma supreendente riqueza de manus-critos de carcter lingustico-gramatical, muitos deles originrios dos scriptoria alcobacenses, ainda que outros tenham provenincia estrangeira. Assinalemos, entre os mais significativos, as vrias cpias da Grammatica Ebrardi, o cdice intitulado Notabilia seu annotationes in Grammaticam e o espantoso cdice

  • 44

    Vocabularium Latinum tribus partibus distributum... per Fr. Alphonsum do Lourial. Mencione-se ainda a Anonymi Glossa in Isaiam, dotada de uma listagem importante de verbos latinos traduzidos em portugus. Alguns exemplos apenas de uma srie de instrumentos lingusticos que demonstram uma preocupao claramente evidenciada, em termos tericos, por D. Duarte no Leal Conselheiro, ao indicar uma a uma, as regras para bem trelladar do latim (64). Alis, anotaes e uma quase-doutrina em torno da problemtica da traduo do latim em vulgar so uma vez mais abordadas pelo rei-escritor no Livro dos Conselhos, proveniente da Cartuxa de vora.

    Doutrina que no deixa, de resto, de deparar com um certo nmero de dificuldades partida: a diferena das estruturas lxico-semnticas a primeira dificuldade, a qual vem postular, para os potenciais tradutores, a menor capacidade das lnguas vulgares, escassas em vocbulos. Tal postulado tem como funo desencadear uma polmica em torno da possibilidade ou impossibilidade de traduo, isto , da traduzi-bilidade ou intraduzibilidade dos textos clssicos. E se D. Duarte, prudentemente, aconselhara (e praticara) a introduo de vocbulos capazes de responder s necessidades semnticas, eis que ser aos gramticos e doutrinadores do sc. XVI que caber o encargo de legitimar a traduo, postulando a traduzibilidade: E manifesto que as lnguas grega e latina primeiro foram grosseiras e os homens as puseram na perfeio que agora tm, diz Ferno de Oliveira (65), acrescentando ainda: Sempre afirmarei que, pois Quintiliano, no primeiro livro, confessa que os Latinos usavam de

  • 45

    vocbulos emprestados, quando lhe os seus faltavam, que tambm da nossa lngua tomaram alguns, como ns tommos da sua, os quais como nossos os havemos de tratar e pronunciar (...). E, para que isto seja bem feito, necessrio que nesta parte no tenha licena seno quem, com habilidade e saber, for merecedor dela (66).

    Acreditamos poder, talvez, definir, o sc. XVI em Portugal como um tempo de ambiguidade, marcado simultaneamente por continuidade e rupturas. E tambm como um lugar de encruzilhada, ponto de encontro das culturas mediterrnicas, entre a Europa e os outros Continentes.

    Tal ambiguidade assinala, de certo modo, a especificidade do Renascimento ibrico e portugus: Slo en el siglo XVIII, y por influjo francs, se comenz a estabelecer aqu (em Espanha) la divergencia y el antagonismo entre la tradicin clssica y la popular () (67). Esta reflexo coloca, assim parece, o problema nos termos em que se define a esttica renascentista no contexto das humanidades em Portugal. O Renascimento no constitui, com efeito, uma ruptura em relao aos modelos medievais, mas, antes, uma busca de conciliao entre esses modelos e a cultura italianizante. Desta conciliao, ou deste compromisso no polmico, emerge, efectivamente, uma leitura autnoma de um movimento cultural cujos denominadores comuns produzem a grande unidade da Europa italianizada e cuja autonomia engendra a especificidade da cultura quinhentista hispnica. Nesse sentido, parece significativa a reflexo de Georges le Gentil: Alors que chez nous Du Bellay et Ronsard lanaient lanathme contre les genres prims du

  • 46

    Moyen ge, les potes de Cour, au Portugal ne voulaient rien abdiquer dun pass encore vivant (68).

    O Renascimento em Portugal define-se, pois, segundo um duplo registo: o que poderemos chamar herana clssica correspondente emergncia de elementos que, por via italianizante e, mais tarde por via directa, transmitem um dos parmetros que vo funcionar na construo do edifcio cultural do Renascimento, isto , a cultura da Antiguidade greco-latina; a herana medieval, correspondente a essa outra zona de elementos aproveitados que, provenientes de uma tradio anterior, funcionam quer autonomamente, como no caso de Gil Vicente, quer em simbiose com os elementos clssicos, como no caso, por exemplo, de S de Miranda e at de Bernardim Ribeiro, mais tarde de Cames. Se possvel afirmar, pois, que o Renascimento portugus no significa uma ruptura com os modelos culturais da Idade Mdia, certo tambm que a cultura medieval no constitui tampouco a ruptura total com uma herana clssica, embora se tenha organizado, selectivamente, em torno de alguns mentores cujo pensamento se adequava aos padres mentais instaurados e vo, de algum modo, funcionar como garantes duma continuidade, no interrompida, entre a Idade Mdia e o Renascimento. Assim, Virglio, por exemplo (que o P.e Antnio Vieira julgar como o prncipe dos poetas antigos), foi um daqueles que a Idade Mdia no considerara proscritos, antes, merc da sua cloga IV, suposta previso do advento de Cristo, fora tido como pago iluminado. No entanto, s nos finais do sc. XVI a sua obra traduzida para portugus, por Leonel da Costa (69) e s

  • 47

    a partir de ento as tradues se multiplicam, o que nos parece poder ter que ver com o virgilianismo evidente de Cames e de Os Lusadas. Significativo, sem dvida, que s depois da publicao do poema camoniano (1572) se ampliasse de golpe o interesse pelo poema-modelo de Os Lusadas e que a restante obra virgiliana recebesse o mesmo tratamento e fosse objecto do mesmo culto. E assim Virglio se torna, a partir de ento, o poeta latino privilegiado pelos tradutores portugueses.

    Pelo contrrio, durante a Idade Mdia, quase no h obra mstica e moral que no mencione e at cite Ccero e Sneca, s vezes Virglio e Bocio (mais raramente Horcio, cujo risonho epicurismo o tornava mais dificilmente concilivel com o pensamento cristo de tendncia estica) ao lado de Santo Agostinho, So Bernardo ou So Toms. que, precisamente as obras (filosfico-morais) de Ccero e de Sneca se prestavam, aos olhos dos pensadores da Idade Mdia, como esplendidamente adequadas fundamentao do estoicismo moral que determinava um dos mais importantes parmetros da reflexo crist (70).

    A presena de Ccero assinala-se, pois, ao longo da Idade Mdia portuguesa sobretudo a partir de dois vectores, ambos determinantes da cultura medieval: a Moral e a Retrica, esta, gmea da gramtica, a disciplina omnipresente e tutelar.

    Longo seria, ainda que, certamente, significativo, inventariar todos os lugares da escrita medieval em que se encontra Ccero como autoridade moral. Familiarmente, ele aparece chamado quer por Marco Tlio, Tlio, Cicero e at, pitorescamente, por Dom

  • 48

    Cicero, nessa obra curiosssima, o Boosco delleytoso que, publicada em Lisboa, em 1515 , certamente mais antiga, (talvez derivada da obra de Petrarca De vita solitaria), cuja linguagem aponta para o princpio do sc. XV ou, at, finais do sc. anterior (71). No Boosco se referem Dom Pratom Dom Virglio, Dom Cicerom, Dom Quintiliano, Dom Seneca e ainda Oracio como autoridades de peso equivalente a So Bernardo ou So Toms, no incitamento vida retirada e ao abandono das tribulaes mundanas.

    Outros cdices de feio mstico-religiosa, nomeadamente o Virgeu de Consolan e o Castelo Periguoso (1368) reflectem limpidamente a presena de Ccero, como lugar de exemplificao moral. Transcreve-se o seguinte saboroso passo, que , na realidade, uma trelladao de um passo bem conhecido de Ccero: Foram dous filosofos pagos que muito se amavam. () u dos amigos avia nome Damon e o outro Pitias. O emperador de Roma mandava matar u, o qual demandou espao para ordenar seus feitos (). E aquele seu amigo o fiou de boa mente ().

    Contudo, o itinerrio e a presena ciceroniana tornam-se constantes e imperiosos na corte dos Prncipes de Avis.

    Assim, Vasco Fernandes de Lucena, representante do rei D. Duarte no Conclio de Basileia, em 1435, traduziu, provavelmente a pedido do Infante D. Pedro, o dilogo De Senectute, que deixou manuscrito e ter sido destrudo no terramoto de 1755. Esse dilogo, alis, que formava, de certo modo um corpus com De Amicitia e De Officis foi, depois traduzido e publicado

  • 49

    por Damio de Gis, Cato Maior ou Livro da Velhice (72). Alis, quanto a essa obra formosssima do orador, retrico, filsofo e moralista latino, assinale-se que o tradutor, Duarte de Resende, parece t-la traduzido tambm, segundo nos informa na carta-prefcio que dirige a Garcia de Resende; Tomei este atrevimento neste tratado De Amicicia (sic), mas ainda ousei tirar nesta linguagem os trs livros De Officiis e o De Senectute, que se intitula Cato Maior, com as Paradoxas (sic) e o tratado do sexto livro da Repblica que se diz o Sonho de Cipio (). E quis somente que viessem por mim luz estes () que atee aguora nam foram em lingoagem alga trasladadas, o que nam fiz em os De Officiis e Senectute, porque estando pera os mandar com estes imprimir, os vi impressos, tirados em linguagem castelhana (73). Julgamos que se trataria da traduo, publicada em Sevilha, em 1501, do De officiis y de senectute en romance.

    O De Officiis traduzido pelo Infante D. Pedro, que dedica a obra a seu irmo, o rei D. Duarte, que, por sua vez, no Leal Conselheiro (74) informa explicitamente: fiz tralladar () algs cappitulus doutros livros, entre os quais, exactamente, o De Oficiis ou Livro dos Deveres.

    Uma coerncia ou, se quisermos, coincidncia de contedo parece relacionar o De Ofiiciis, De Amicitia, De Senectute, Paradoxa e Somnium Scipionis: com efeito, essas obras aparecem frequentemente associadas. Dolce publica em Veneza, em 1563, o conjunto das cinco, o mesmo sucedendo em 1619, na traduo de Francisco Thamara e Juan Javara (juntamente com o Econmico de Xenofonte): como j

  • 50

    vimos, esse havia sido o projecto de Duarte de Resende, modificado pelas anteriores tradues em romance de De Officiis e de De Senectute.

    Para alm da traduo de D. Pedro do De Officiis, no Livro da Virtuosa Benfeyturia, mais prximo, argumentativamente, do De Beneficiis de Sneca, por vrias vezes Ccero tambm citado como referente moral e mestre da arte retrica, e, numa delas, o que nos parece significativo, mencionado o sonho de Scipiom africano. Na biblioteca de D. Duarte, qual remonta o fundo mais antigo da Biblioteca Nacional, existia o Libro de Marcho Tullio ieron que se lhama la Retorica trasladado de latin en romance por el muy reverendo don Alfonso de Cartagena obispo de Burgos a ynstancia del muy esclareido Prinipe don Eduarte Rey de Portugal (75). E, para alm das tralladaes feitas ou encomendadas pelo rei, certo que a lio moral de Ccero est presente em muito da reflexo eduardiana. No Leal Conselheiro, ainda que remetendo para uma experincia vivida ( alis, esse um dos factores de originalidade do autor, na pesquisa quase masoquista dos mistrios do eu), ao captulo Do Amor subjaz uma leitura pessoal do dilogo ciceroniano, nomeadamente na taxinomia da Amizade. E, no Prolloguo do IV Nobilirio, D. Pedro, Conde de Barcelos, ainda que cite Moiss, na vedra lei e Aristteles (tica a Nicmaco), estabelece os limites e deveres da afeio, num discurso em que se pressente, uma vez mais, a dialtica ciceroniana em torno da Amizade: E os amigos verdadeiros devem-se guardar em sas palavras de dizer coudsa per que seus amigos nom venham a fama ou a mal, ca per i se desataria a

  • 51

    amizade. E nom se devem mover a crer de ligeiro as cousas que lhes deles digam de mal e devem-se guardar segredos e nom devem retraer as obras que se fizeram (76). tambm na fundamentao das afeies que Ccero citado por Ferno Lopes, no Prlogo da Crnica de Dom Joo I: E assi parece que o sentiu Tlio, quando veio a dizer: Ns no somos nados a ns mesmos, porque a parte de ns tem a terra e outra os parentes.

    Assim, Ccero atravessa triunfantemente a Idade Mdia para entrar no Renascimento, ainda que aproveitado segundo novos vectores. Es muy difcil (diz K. Kohut), casi imposible, llegar a apreciar en una justa medida la influencia de Cicern sobre el humanismo espaol (). Es el siglo XVI donde la influencia de Cicern alcanza su grado ms alto. Sus obras estn, com las de Aristteles y Quintiliano, entre las que forman el capital de la tradicin retrica (77).

    Afigura-se no entanto, que outro o Ccero que aparece, em pleno fervor humanstico: diferente desse que a Idade Mdia entronizara, tomando-o como modelo moral e como doutrinador e gracioso retrico, como lhe chamava o Infante D. Pedro no Tratado da Virtuosa Benfeitoria. Ccero agora o motivo e o motor da polmica entre Cicerorianos e Erasmistas, e as obras em torno das quais se disputa so, de preferncia, as de contedo esttico-retrico, nomeadamente o Brutus, o De Oratore e o Orator. Lus Vives, em espanha, chega mesmo a uma subtil compendiao de Quintiliano e de Ccero, no seu tratado De ratione dicendi; e Alfonso Garcia Matamoros, mestre complutense, declara-se

  • 52

    decididamente ciceroniano, por oposio ao iracundo Erasmo.

    Assim, o chamado Ciceronianismo, ainda que talvez menos violentamente que em Itlia, (onde, alis, Bembo, na epstola De imitatione (1512) d uma pista de conciliao ao recusar a mera formalizao em detrimento da eficcia do discurso) desencadeou, tambm na Pennsula Ibrica, a polmica da imitatio, pondo em confronto os Ciceronianos e os Erasmistas, cujo apoio se buscava justamente no Ciceronianus de Erasmo. Nessa linha, por exemplo, a obra Commentum in Plinii naturalis historiae prologum a iuris utriusque doctore Martino Figuereto editum serenissimi Portugaliae regis senatore coloca-se como um dos manifestos mais expressivos do Ciceronianismo em Portugal, ao lado, por exemplo, de Andr de Resende (na sua orao Pro Rostris pronunciada em 1534) e de Jernimo Cardoso que, na Oratio Pro Rostris habita Calendis Octobribus Olisiponensi Academia de laudibus Omnium disciplinarium (1536) segue, a par e passo, quase em parfrase (de si mesma ciceroniana pela elegncia), a argumentao de Ccero no De Oratore, atribuindo eloquncia os poderes de persuaso, de fora emotiva e estimuladora de Virtudes: Tambm no negaremos que a desmedida audcia de Catilina, o mais criminoso homem que conspirara contra a Ptria, foi reprimida e desfeita pela eloquncia arrebatadora de Marco Ccero (). Por isso que Ccero, no livro intitulado Do Orador, afirma que nada h superior eloquncia para manter os agregados humanos, seduzir o esprito, levar as vontades (78).

  • 53

    Alis, o mesmo Jernimo Cardoso, coloca, de algum modo o seu Dictionarium Latino-Lusitanicum et vice versa (1592) sob a tutela do modelo ciceroniano, ao acrescentar-lhe Varii loquendi ex praecipuis auctoribus decerpti praesertim ex Marco Tullio Cicerone.

    Mais ainda do que traduzido (o que, de algum modo, poderia ser intil e ilgico para homens latinos, como seriam os Ciceronianos), Ccero largamente comentado na Pennsula Ibrica, e, no s comentado como imitado. Entre os castelhanos, avolumam-se os nomes de Lus Vves, Antnio de Nebrija, Pedro Simn Abril. Entre os portugueses, podero destacar-se, alm dos j mencionados, Andr de Resende (In M. T. Ciceronis Topica Annotationes, 1552), Jernimo Cardoso, Antnio de Gouveia (irmo mais novo de Andr de Gouveia) e Aquiles Estao Lusitano. O primeiro, com Commentaria in M. T. Ciceronis vatinianam interrogationem (1542); Critica logicae pars certans cum Ciceronis Topicis (1545); Commentaria in Ciceronis epistolas (1544); Commentaria in libros De Legibus (1553); Commentaria in orationes: Pro Balbo, Pro Ligurio et Pro Lege Manilia. O segundo, Aquiles Estao, compe, comentando Ccero, as seguintes obras: M. T. Ciceronis De optimo genere oratorum liber Achillis Statii Lusitani in eundem. Commentarii (Lovanii, 1552;) Appendiculae explanationum Achillis Statii Lusitani In libros Tres M. Tullii Ciceronis De optimo genere oratorum, Topica De Fato, atque Observationes rerum aliarum (Antuerpiae, 1553).

    Neste contexto, as tradues de Duarte de Resende parecem-nos significativas duma situao no unvoca,

  • 54

    segundo a qual se define o Renascimento em Portugal. Por um lado, pelo seu contedo tico, elas prolongam o prestgio do Ccero que a Idade Mdia consagrara, isto do doutrinador moral. Mas, por outro lado, o prprio facto do empreendimento da sua verso em romance insere-se num programa cultural que nos parece ir alm da polmica erudita do humanismo ciceroniano. Com efeito, a divulgao e a democratizao cultural permitida pela imprensa projectam-se, atravs da actividade tradutora, no sentido duma circulao que ultrapassara largamente os circuitos da educao palaciana, aristocrtica e acadmica. As tradues tomam a dimenso e assumem a funo de instrumentos divulgativos de expanso cultural, dirigindo-se, por definio, aos no latinos, isto , aqueles a quem, tendo apenas acesso ao vernculo, estaria vedada a inteligibilidade dos textos em latim. A introduo da imprensa apresenta-se, assim, como um instrumento novo que vai proporcionar ao prprio acto comunicativo uma fora at ento insuspeitada, perante a qual a primeira reaco quase a dum temor reverente.

    O pequeno volume, publicado em Coimbra, por Germo Galharde, em 30 de Agosto de 1531, apresenta, pois, em conjunto, as trs obras: Marco Tullio Cicerom de Amicicia, Paradoxas e Sonho de Scipio. Tirado em lingoag Portuguesa per Duarte de Resende, Cavaleyro Fidalguo da Casa del Rey nosso Senhor. , no entanto, de notar que a ordem por que elas se apresentam no volume no aquela por que so anunciadas, pelo que o clofon rectifica essa apresentao: Acabou-se de emprimir a presente Obra

  • 55

    de Amicicia e Sonho de Scipio, e Paradoxas em sa nobre e sempre leal cidade de Coimbra per Germ de Galharde, tirada em lingoaj per Duarte de Resende Cavaleyro Fidalgo de Casa del Rey nosso Senhor.

    Se a associao dessas obras (a que, como j vimos, autor projectara juntar o De Officis e o De Senectute) corresponde, talvez, a uma tradio medievalizante, o facto de textos de autor latino serem publicados em romance (no caso vertente, em portugus) denotam, como j sugerimos, um conceito novo de um homem novo: o homem do Renascimento, decidido a tentar novas aventuras lingusticas, cuja primeira etapa demonstrar a aptido da lngua vernacular para a expresso de qualquer ordem de discurso, at ento, por definio, privativa de uma das grandes lnguas clssicas. Duarte de Resende coloca-se pois, entre aqueles humanistas que encaram sem superstio a valorizao comunicativa das lnguas vulgares e que, embora com reverncia em relao s criaes da cultura antiga, optam pela autonomia expressiva das lnguas modernas.

    O tratado ciceroniano Da Amizade adopta a forma de dilogo, largamente utilizada em toda a rea do Humanismo europeu como instrumento de indagao. Apresenta-se como um dos elos mais nobres duma cadeia que se inicia, talvez, no mbito da cultura ocidental, com o Lsias de Plato e a tica a Nicmaco de Aristteles. Plutarco e Luciano, entre outros, retomam a problemtica da amizade e dos seus limites e obrigaes. De entre os modernos e apenas a ttulo de referncia, (pondo de lado a vasta genealogia das tradues que a partir de meados do sculo XVI se

  • 56

    multiplicam pela Europa) lembramos, em Portugal, o Dilogo da Verdadeira Amizade, de Frei Heitor Pinto, fazendo parte da Imagem da Vida Crist, publicada no ltimo quartel do sc. XVI. A literatura europeia dos sculos XVII e XVIII multiplica as rplicas tratadsticas sobre a amizade: Jeremy Taylor publica, em 1657 uma pequena obra, Friendship; Louis de Sacy, em 1703, o seu Trait de lAmiti, o que, em suma, parece apontar para uma notvel identidade e permanncia de preocupaes e de interesses. O que se afigura, no entanto, que nenhuma dessas obras consegue, como a de Ccero, alcanar a elevao e nobreza e tambm a popularidade dum pensamento que se exprime atravs dum discurso em que a habilidade dialctica no obscurece a limpidez conceptual. Ao colocar, em confronto, Gaio Llio, (companheiro de armas de Cipio Emiliano, no cenrio da conquista de Numncia, apelidado de sapiens pelos seus contemporneos, merc da severidade do seu carcter e da amplitude da sua cultura) com os seus dois genros, Cvola e Fnio, o primeiro, notvel jurisconsulto, o segundo, soldado e historiador, Ccero acaba por eleger como personagem central, ainda que ausente, o grande Cipio Africano. No deixa de ser significativo que seja precisamente essa nobre figura que, no texto colocado a seguir, na edio de que nos ocupamos, em O Sonho de Cipio, toma o lugar principal, j que ele o protagonista e relator do Sonho, e, por conseguinte, o portador da mensagem que lhe subjaz.

    No empreendemos neste lugar a anlise desse texto a vrios ttulos extraordinrio e talvez enigmtico, cuja transmisso de deve a Macrbio, e que constitui a parte

  • 57

    final do De Republica, de Ccero, isto , o VI Livro desse tratado poltico. Mas julgamos significativo estabelecer algumas correlaes entre esse texto de Ccero e alguns lugares relevantes da literatura e da cultura portuguesas.

    O Sonho de Cipio constitui, indubitavelmente, uma das mais belas nekuias, isto , evocao dos mortos da literatura antiga. Literariamente, o seu modelo discursivo denota uma notvel perfeio e equilbrio estrutural, ainda que, porventura, moldada sobre exemplos anteriores (79). porm, o seu contedo ou, se quisermos, a sua mensagem, que nos parece de sublinhar, se tivermos em conta que esse contedo subjaz, no s ao episdio camoniano do Sonho de D. Manuel (Lus., IV, 68-75) como (ainda que sumariamente) foi apontado por F. Rebelo Gonalves (80), mas tambm e sobretudo ao sentido global que o poeta atribui totalidade do Poema.

    Enquanto o Sonho de Cipio implica, por si s, um determinado corpo doutrinrio, no cremos que seja esse o caso do Sonho de D. Manuel, que se nos apresenta como um belo episdio, sem dvida, com uma certa dimenso alegrica, admitimos, mas despojado do sentido escatolgico que constitui o ncleo significativo da nekuia ciceroniana.

    Esse sentido escatolgico, se em ltima instncia remonta a Plato, tem que ver com o pensamento estico e tambm com o pitagoricismo que, segundo Carcopino (81), se instala como um dos vectores em certo momento dominantes do pensamento romano, por intermdio de Posidnio, por um lado e de Pancio, por outro. Afirma a imortalidade, prmio para aqueles que

  • 58

    se tornam eminentes pelas prprias aces praticadas para o bem pblico: Mas pera que tu, Africano, sejas mais alegre em conservar a repblica, toma isto, que todos os que a ptria conservarem, ajudarem e acrescentarem, tem certo e determinado lugar no Cu, onde os bem aventurados gozam para sempre (82). Mais ainda, situa essa imortalidade num lugar que assembleia dos deuses, lugar de princpio e de retorno.

    Eis o que diz Cames (Lus., IX, 88-91):

    dos feitos grandes, da ousadia Forte e famosa, o mundo est guardando O prmio l no fim, bem merecido, Com fama grande e nome alto e subido. Que as imortalidades que fingia A antiguidade, que os ilustres ama, L no estelante Olimpo () No seno prmios que reparte, Por feitos imortais e soberanos, O mundo e os bares que esforo e arte Divinos os fizeram, sendo humanos; Que Jpiter, Mercrio, Febo e Marte, Eneias e Quirino e os dous Tebanos, Ceres, Palas e Juno com Diana, Todos foram de fraca carne humana.

    Aqui, sim, cremos que o sentido escatolgico do

    Sonho de Cipio foi plenamente captado por Lus de Cames, captao, alis, talvez reforada pela sugesto dos comentrios de Macrbio, e que se confirma, ao longo do Poema, em aparentemente fragmentrias reflexes, a que o sentido total do Poema, no entanto,

  • 59

    afecto. A divinizao dos humanos, nas palavras de Baco: () temo/Que do Mar e do Cu, em poucos anos,/Venham Deuses a ser; a conquista da imortalidade pela participao da ambrsia e do nectar, alimento dos deuses.

    A terceira obra de Ccero, que completa o volume de 1531, sada dos prelos de Germo Galharde, a traduo dos Paradoxa Stoicorum ad M. Brutum, considerados por alguns crticos apenas como um exerccio retrico, atravs do qual o autor pretenderia divulgar ou popularizar seis conhecidos paradoxos esticos: a honestidade o nico bem; a virtude a nica via para a felicidade; todas as ms como as boas aces so iguais; todos os ignorantes so loucos; s o homem sbio livre, e todo o ignorante escravo; s o sbio rico.

    Em breves traos, convm fazer uma apreciao crtica do valor da traduo dada por Duarte de Resende, em 1531, reeditada na Rgia Oficina Tipogrfica, em 1790. Com efeito, os comentadores variam quanto a essa apreciao e dessa disparidade de opinio que se faz eco Inocncio da Silva: a traduo recomenda-se, no s pela fidelidade mas pela riqueza da frase e nativa graa dos vocbulos prprios da antiga linguagem em que est escrita (83). Logo a seguir, porm, no mesmo lugar, o autor acrescenta: H todavia quem sustente () e tenha por destitudos os louvores (). O Sr. P. Francisco dos Sanctos Saraiva mostra que a traduo no fiel; etc.

    Parece-nos, com efeito, que, em termos de exegese filolgica, poderiam apontar-se desvios, omisses pontuais ou, pelo contrrio, a introduo de expresses

  • 60

    destinadas a clarificar o sentido ou a situao no totalmente acessvel ao leitor no latino. Trata-se, porm, nem sequer de deslizes de tradutor inadvertido, mas to somente de factores de adequao textual, a nosso ver, de sinal positivo. necessrio no esquecer que o conceito rigoroso de traduo fiel uma conquista da cincia filolgica como tal instaurada apenas nos finais do sculo XVIII e, sobretudo, no sculo XIX, a partir dos trabalhos de filologia clssica da escola alem.

    O que nos parece em extremo positivo que o texto portugus de Duarte de Resende nunca atraioa o fundo; e, quanto forma, dando testemunho de notvel sensibilidade lingustica, capaz de recriar essa dupla caracterstica da literatura dialgica de Ccero, associando, em dose adequada, a elegncia despojada do estilo e a familiaridade coloquial. Alis, os relativamente escassos dados biogrficos que alcanmos do autor mostram-no em comunicao com os grandes humanistas do seu tempo, entre os quais Joo de Barros, Andr de Resende e Garcia de Resende, de quem era irmo ou parente prximo, e a quem dedica as suas tradues de Ccero, na carta-prefcio a que j nos referimos. (84)

    Por seu lado, esses seus contracenadores no grande teatro do humanismo portugus do tempo retribuem-lhe o apreo, como testemunha a dedicatria que lhe dirigida por Joo de Barros no prefcio da Rpica Pnefma. E no cremos que seja esse facto de tomar como mera cortesia, dado o carinho que o autor teria por essa sua controversa obra. Diz, pois, Joo de Barros: Em toda-las cousas que se pedem, se a de

  • 61

    considerar quem pede, quem da, a cousa pedida, e se e tempo della e convm a ambas as partes. Esta regra quis seguir no que me pedistes (85). De resto, a publicao da Rpica, por Germo Galharde, em 1531, parece dever-se a uma interveno de Duarte de Resende que a havia pedido a Joo de Barros para ser publicada. Ao autor das Dcadas se devem tambm algumas das poucas informaes biogrficas sobre Duarte de Resende, quando se refere, no lugar a que j aludimos da Rpica ao recente seu regresso das ilhas de Maluco, onde estivera por fector del Rey nosso senhor, mais precisamente na fortaleza de Ternate, ao que parece desde 1522.

    A actividade literria do tradutor de Ccero documenta-se j a partir do Cancioneiro Geral, onde, dentro dos modelos da poesia palaciana, no deixa de evidenciar uma certa originalidade e pendor para as subtilezas duma anlise sentimental de feio petrarquista:

    Sobedecera rezam e resestira vontade, eu vivera em liberdade e no tivera paixam (86).

    Trata-se, portanto, de uma presena literria, que a

    data de publicao do Cancioneiro de Garcia de Resende (1516) leva a situar nos primeiros anos do sculo. Em 1531, mal regressado ao reino, publica a traduo dos trs textos de Ccero; mas, no intervalo, talvez de nove anos (se certa a data avanada pelos bigrafos de 1522 para a sua passagem ndia) ter aproveitado para comear os seus trabalhos de tradutor,

  • 62

    j que no seria em poucos meses, ainda que, segundo Joo de Barros fosse homem de boas letras, latino e estudioso (87) que poderia ter levado a cabo to laboriosa tarefa.

    A ele se deve tambm a conservao dum manuscrito, hoje perdido (88), relativo viagem de Ferno de Magalhes: () e assi (eu) houve outros papeis, e livros, que Duarte de Rezende, Feitor de Maluco recolheo do Astrologo Andres de San Martin. Porque como era Latino, e homem estudioso das cousas do mar e Geografia, entendeo logo nellas; e vindo a este Reyno, houvemos delle alguns, principalmente hum livro que elle Andres de San Martin escreveo de sua mo (89). Segundo confirmao da mesma fonte, o prprio Duarte de Resende ter redigido um Tratado da Navegao que Ferno de Magalhes e seus companheiros fizeram s ilhas de Maluco, dedicado a Joo de Barros, mas de cuja impresso no h notcia:

    Elle (Duarte de Resende) me dirigio um Tratado sobre esta navegao de Castela, como quem teve na mo huns apontamentos que o Astrologo Faleiro tinha feitos (). E porque Duarte de Rezende traz as formaes palavras que Andres de San Martin diz sobre esta materia, e tambem sobre hum eclipse de Sol, que alli tomou () e falla per termos Astronomicos, ou foi do Tratado que me elle dirigio, que eu emprestei, ou que tambm elle em sua vida daria o traslado a outrem () quizeram-se aproveitar delle em huma escrita desta navegao () (90)

    Latinista e poeta, entendido em coisas do mar, geografia e astronomia, envolvido na aventura oriental, Duarte de Resende, de quem, paradoxalmente poucos

  • 63

    dados biogrficos se coligem, representa o tipo comum do humanista e aventureiro, em suma do Homem Portugus de Quinhentos.

    Se o latim se apresentava, em muitos casos, como um suporte lingustico capaz de veicular uma literatura, no causar, no entanto espanto que as tradues de textos clssicos de algum modo escasseiem. As tradues parafrsticas do Cancioneiro Geral (a epstola de Enone a Pris, traduzida de Ovdio por Joo Rodrigues de Lucena; a de Penlope a Ulisses, e de Dido a Eneia por Joo Rodrigues de S de Meneses, por exemplo) apresentam-se talvez mais como glosas ou exerccios literrios do que como tradues funcionando como tal e, objectivamente, destinadas a permitir o acesso a textos inacessveis. Do mesmo modo, parfrases ou rplicas se encontram entre as composies lricas, por exemplo de S de Miranda ou de Antnio Ferreira, privilegiando Horcio, como modelo tico e esttico. que, de facto, ainda que o grego houvesse reentrado no convvio cultural da rea romnica, virtualizando, com o conhecimento do hebraico, o ideal humanstico da linguagem trifrica (91), ainda que as elites culturais portuguesas contassem com nomes famosos de helenistas, e que oraes de sapincia e discusses acadmicas houvessem sido sustentadas em grego, no mbito da Universidade portuguesa, o que nos parece que essa tardia helenizao nunca ultrapassou em Portugal os limites da pura erudio e era sentida como uma zona de conhecimento limitada rea prestigiosa duma alta cultura e, por isso mesmo, distanciada dos homens de comum saber. Pelo contrrio, no duvidamos de que,

  • 64

    em Portugal e no sc. XVI, no necessrio atingir o grau de erudito para saber latim, programado j nos Estudos Menores sob a desigano modesta de Gramtica, preldio das Humanidades Studia Humanitatis. Para tal, basta que se possua uma boa cultura mdia. Assim, no Colgio das Artes, por meados do sculo XVI, encontramos apenas um mestre de grego, Vicente Fabrcio, capaz de comentar Homero na lngua original, segundo o testemunho de Clenardo, contra oito mestres de latim, ensinando em quatro regras (nveis). Isto, no plano do ensino superior, j que, como sabido a gramtica que todo o jovem escolar comeava a aprender logo a seguir aprendizagem da leitura e da escrita era a latina. Assim, humanistas como Duarte e Andr de Resende, Diogo de Teive, Damio de Gis, Aires Barbosa, Jernimo Osrio, Baltasar Estao, para no citar seno poucos do vasto coro de latinistas portugueses do sc. XVI, no podiam ter surgido num contexto cultural que no estivesse estritamente vinculado a uma tradio humanstica. E, o que mais significativo, essa tradio no era, de modo algum, uma aristocracia cultural. Era, antes, o registo duma cultura democratizada: em latim, os mdicos redigiam as suas receitas, os astrnomos e matemticos expunham as suas doutrinas e concluses; os mestres ditavam as suas notas e compunham os seus tratados, os pregadores pregavam, os crentes oravam e at as damas escreviam por vezes a sua correspondncia pessoal. A poesia e a prosa latinas de cunho literrio, ainda que jamais houvessem prejudicado a produo em portugus, apareciam por vezes, aos olhos dos humanistas, dotados de uma

  • 65

    capacidade de difuso, penetrao e permanncia superior quela que pertencia escrita em portugus.

    O que certo, porm, o que o estatuto de tradutor surge, no sc. XVI, ligado desde logo s obras clssicas dos mais prestigiosos autores latinos, a saber, Ccero, Horcio e, finalmente Virglio. verd