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Filosofazer. Passo Fundo, n. 36, jan./jun. 2010. 119 * Bacharel em Filosofia pelo IFIBE (2009). O texto é parte do Trabalho Monográfico de Conclusão do Curso de Bacharelado em Filosofia orientado pelo professor José André da Costa. A linguagem como relação em Emmanuel Levinas Anderson Fontes Dias* Resumo: O artigo visa apresentar o sentido da linguagem no pensa- mento do filósofo Emmanuel Levinas. Considerando a linguagem como dimensão fundamental da filosofia contemporânea com a reviravolta linguística do século passado, a interpretação e reavaliação crítica feita por Levinas da filosofia ocidental, e a sua proposta de um pensar a ética da alteridade como filosofia primeira a linguagem assume uma papel fundamental na constituição da relação interhumana. Em Levinas ela é garantia de respeito ao Outro e de não indiferença à sua presença que interpela, questiona e chama a uma resposta como responsabilidade. Palavras-chave: Levinas. Linguagem. Rosto. Outro Introdução Uma das evidências de nossa era contemporânea parece ser a valori- zação da linguagem como porto de sentido humano do ser-no-mundo do

A linguagem como relação em Emmanuel Levinas

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* Bacharel em Filosofia pelo IFIBE (2009). O texto é parte do Trabalho Monográfico de Conclusão do Curso de Bacharelado em Filosofia orientado pelo professor José André da Costa.

A linguagem como relação em Emmanuel Levinas

Anderson Fontes Dias*

Resumo: O artigo visa apresentar o sentido da linguagem no pensa-mento do filósofo Emmanuel Levinas. Considerando a linguagem como dimensão fundamental da filosofia contemporânea com a reviravolta linguística do século passado, a interpretação e reavaliação crítica feita por Levinas da filosofia ocidental, e a sua proposta de um pensar a ética da alteridade como filosofia primeira a linguagem assume uma papel fundamental na constituição da relação interhumana. Em Levinas ela é garantia de respeito ao Outro e de não indiferença à sua presença que interpela, questiona e chama a uma resposta como responsabilidade.

Palavras-chave: Levinas. Linguagem. Rosto. Outro

Introdução

Uma das evidências de nossa era contemporânea parece ser a valori-zação da linguagem como porto de sentido humano do ser-no-mundo do

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homem e como ponte, sempre em construção, em vista da realização de melhores relações interhumanas, ou seja, de uma vivência e convivência pacífica e respeitosa entre as pessoas. Em outras palavras, pode-se dizer que as falhas de nossas relações sociais tem na falha da linguagem, em sua dimensão comunicativa, sobretudo, uma das causas mais patentes.

Tais considerações encontram raiz na chamada reviravolta linguísti-ca no início do século passado com Moore, Wittgenstein, Russell, a Esco-la de Viena, entre outros, que “transmigraram” a preocupação filosófica que girava em torno do estudo do ser, como na antiguidade e do conhecer na modernidade, para a dimensão linguística do homem, de forma que os problemas filosóficos se converteram em problemas linguísticos.

Podemos dizer também que a reivindicação desta transmigração justifica-se na medida em que se passa a compreender que o sentido da realidade não se reduz a uma “simples” teoria sobre o conhecimento; mas, sobretudo, que o sentido da realidade é de relação. Encontra-se na linguagem não só um simples veículo de materialização do pensamento, mas na própria possibilidade humana do falar e do compreender o fa-lado, o sentido que dá sentido ao pensamento expressado. No dizer de Levinas “a linguagem não apenas serve a razão, mas é a razão. [...] a razão vive na linguagem” (LEVINAS, 1980, p. 187).

Na esteira da reviravolta, o filósofo contemporâneo Emmanuel Levinas (1906-1995) encontra uma perspectiva que se abre à possibili-dade de consumar seus propósitos de pensar a relação interhumana tendo a ética e não a ontologia como filosofia primeira. Assim sendo, partindo desta tese básica do autor, esboçaremos como ele pensa a linguagem, por sua estrutura formal, como relação entre o Mesmo e o Outro, o Eu e o Tu, mostrando também a exigência da resposta e do compromisso, suscitado desde o rosto do Outro, como imperativo-ético, que interpela, questiona e chama à responsabilidade e ao respeito.

A ética como filosofia primeira

Resumidamente, pode-se dizer que o móbil do pensamento levina-siano é o desejo de falar para o ocidente “outramente”, ou seja, de outra forma, com outro horizonte de sentido, com outra perspectiva de busca

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pela verdade e pelo sentido do humano. Levinas considera que a tradição filosófica ocidental estaria “convencida” de que possui um único modo de falar do ser, do sentido e da verdade, e do próprio homem. Logo, a razão teria se “adequado”, acomodado, e com ela toda a realidade, aos esquematismos construídos desde os gregos: sistemas, conceitos signi-ficados, temas, relações lógicas, etc. Estas características seriam o que constiuiram basicamente o pensamento ocidental como fundado na on-tologia, “inteligência dos seres”, saber que afirma a prioridade do ser antes do ente, da liberdade do Eu à justiça ao Outro, da Totalidade como fonte e origem de sentido, seja em sua dimensão cosmológica, como nos gregos, seja na logológica, na modernidade (Cf. OLIVEIRA, 1996, p. 391).

O discurso deste pensador, portanto, pretende ir além do ser, além da totalidade, além da ontologia; intenção que justifica tendo em con-sideração a experiência da dor, do sofrimento e do horror dos campos de concentração, aliada ao fato de sua família ter sido praticamente eli-minada pela “política da morte” nazista. Levinas considera também que os acontecimentos que se desenrolaram de 1933-1945 teriam sido o li-mite da razão, do saber e da compreensão do ser como totalidade, pois durante, e ao cabo de tudo o que ocorreu, não se soube evitar e nem compreender este trágico evento, aspecto que justifica ainda mais o seu afastamento da filosofia tradicional e sua busca de sentido a partir da ética como filosofia primeira e não da ontologia. Com isto traz para o diálogo com a filosofia greco-ocidental elementos da tradição judaica ao postular que primeiramente o homem seja não o pastor do ser, mas o guardião do seu irmão; noções que, portanto, o separam também de seus mestres Husserl e sobretudo de Heidegger, que reivindica na contem-poraneidade uma ontologia fundamental, uma vez que para este autor a verdade do ser enquanto relação original com o ser humano, não havia até então sido perscrutada pela filosofia.

Uma das teses mais importantes da filosofia levinasiana afir-ma que antes de saber e poder, ou mesmo da compreensão do ser, o homem deve estar voltado para uma inalienável responsabilidade para com o outro homem, independente de suas qualidades. Por esta pre-tensão, reivindica uma ética da alteridade, defendendo que o Outro deve ser acolhido como outro; respeitado em sua diferença, desde o momento em que se aproxima; em que se faz presente no plano ético, mas ausente no plano ontológico, pois é só no encontro com o Outro,

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no face-a-face, que o humano se oferece a uma relação que não é poder (Cf. LEVINAS, 2005, p. 33), poder enquanto compreensão e desvela-mento do ser do ente, no caso, o homem. O Outro, ainda que exista a partir de sua história, dos seus meios, dos seus hábitos, de sua cultura, sempre excede à nossa compreensão e aquilo que dele dizemos. O autor lança mão da noção de rosto para indicar a possibilidade de uma rea-lidade que significa “outramente”, ou seja, que possui um sentido em si mesma e não desde um horizonte luminoso. “O rosto fala” (1980, p. 53), olha, se expressa, se apresenta significando, tendo um sentido antes de qualquer relação gnosiológica ou ontológica; ele não se reduz a um tema ou a um conceito, pois incessantemente trai a sua manifestação, se dis-simula, desfazendo a cada instante a forma que oferece (Cf. 1980, 53). O rosto, por sua expressão viva, inquieta e desconcerta o Mesmo, porque não se cataloga adequadamente no universo de sentido do Eu, é infinito, transcendência ou transbordamento de uma ideia adequada (Cf. 1980, p. 66); transbordamento que suscita a saída de um egoísmo originário para uma doação e generosidade como resposta a uma interpelação sempre exigente, sempre presente, mas enigmática, a uma razão sempre disposta a esclarecer todos os mistérios e capaz de fazer desaparecer aquilo que poderia chocar, como foi e são as barbáries das guerras e da violência.

A ética como filosofia primeira tem como base a afirmação de que metafísica preceda a ontologia. Considerando a metafísica como aspira-ção e relação humana radical com a exterioridade,1 enquanto desejo do absolutamente Outro, Levinas desenvolve uma metafísica da alteridade, ou seja, defende que a relação entre o Mesmo e o Outro que não culmina em totalidade, acontece movimentada por este desejo que é diferente da fome que satisfaz e da sede que sacia, dos sentidos que se aplacam. É desejo não de satisfazer-se com o bem, mas como desejo de ser bom; “desejo como bondade” que, ao invés de saciar, abre o apetite. Logo, a metafísica tem lugar nas relações éticas, no encontro, na proximidade e na interpelação; na afirmação da prioridade do Outro e na exigência da responsabilidade. A anterioridade da ética, como metafísica, precede

1 Exterioridade e alteridade são sinônimos (Cf. 1980, p. 272). Consistem basicamente naquilo que encontra significado desde si mesmo, fora de uma totalidade, no caso, a relação face-face, onde o rosto do Outro revela-se não como fenômeno a ser descober-to, mas sempre e antes como apelo e expressão. Pela linguagem portanto, a exteriori-dade do rosto “exercita-se, desdobra-se, empenha-se” (1980, p. 276).

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a ontologia por ter desde a presença do Outro uma origem crítica não na consciência do Eu, mas no rosto.2 Desse modo, a ética da alterida-de revela-se como a instância que põe em questão, “impugna”, critica o dogmatismo, a interioridade, a mesmidade; pois a crítica não reduz o Outro ao Mesmo; e a ética revela-se como a essência crítica ao saber como totalidade.

A essência crítica revela-se no rosto do Outro que, como ex-pressão e revelação, depõe o Eu de sua soberania e conforto, pondo-o em questão, excendendo por isso a Totalidade pela sua palavra e pelo seu olhar. A relação entre o Mesmo e o Outro corresponde a um abalo ético do ser por se produzir como ideia do Infinito. A subjetividade então se encontra numa situação em que ela não pode abarcar, mas pode se relacionar, pois pode, como finita, pensar o infinito, mas não pode enquadrá-lo em suas categorias, porque, do contrário, o reduziria à sua finitude. O aparecer do infinitamente Outro, que mesmo no olhar fala, chega como novidade, inquietando e ensinando o mundo ao sujeito. Na dimensão enigmática do olhar e na incerteza do falar, o rosto, como uma das categorias mais impor-tantes, é o signo da transcendência, signo do infinito, que com uma simples piscadela pode desconcertar a tendência de sermos sempre o Mesmo. O olhar revela uma resistência ética que desinstala, exige abertura e acolhida, e põe continuamente em questão. O olhar é a epifania do outro, “epifania do rosto como rosto”; é a sua manifesta-ção como expressão, como nudez e miséria, ou seja, desprovido de armas e ardis, mas provido de uma força de súplica de quem diz: Não matarás, não reduzirás o Outro à ideia, à tua compreensão, ao teu conceito; situação que desperta e condiciona o nascer do humano como hospitalidade e responsabilidade.

A ética, portanto, é anterior à ontologia; é a filosofia primeira; é o que permite que o Mesmo e o Outro se relacionem, sem que um ani-quile o Outro pelo saber ou pela representação, sem que a diferença seja anulada, mas acolhida e respeitada. Ela é primeiramente um aconteci-mento, um encontro e não conhecimento, revelação e não descoberta (Cf. FINKIELKRAUT apud SOUZA, 2000, p. 237); em outras palavras, antes

2 “O que chamamos rosto é precisamente a excepcional apresentação por si, sem para-lelo com apresentação de realidades simplesmente dadas, sempre suspeitas de algum logro, sempre possivelmente sonhadas” (1980, p. 181).

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da pergunta pela verdade a própria presença do interlocutor tem que ter um sentido não dado pelo saber. Por isso a relação face-a-face, homem a homem, é a situação última enquanto origem donde se apreende o sen-tido do humano. Veremos então que a linguagem nasce deste “encontro primitivo” e se firma como possibilidade mesma de significado da rela-ção ética pretendida pelo autor.

O nascimento e o sentido da Linguagem

Levinas pode ser inserido no contexto da reviravolta linguística da filosofia na contemporaneidade, uma vez que sua concepção difere do conceito semântico tradicional e tende mais para a dimensão pragmáti-ca. Logo no começo de Totalidade e Infinito, ele aponta a dimensão que a linguagem irá assumir em sua obra. Diz:

Esforçar-nos-emos por mostra que a relação do Mesmo e do Ou-tro – ao qual parecemos impor condições tão extraordinárias – é a linguagem. A linguagem desempenha de fato uma relação de tal maneira que os termos não são limítrofes nessa relação, que o Outro, apesar da relação com o Mesmo, permanece transcen-dente ao Mesmo. A relação do Mesmo e do Outro – ou metafísi-ca – processa-se originalmente como discurso em que o Mesmo, recolhido na sua ipseidade de “eu” – de ente particular único e autóctone – sai de si (1980, p. 27).

A linguagem é, portanto, relação; mas relação entre termos sepa-rados (Cf. 1980, p. 174). Se o objetivo do autor é pensar a partir da ética uma forma de se relacionar, logo, a incerteza do falar e o mistério do olhar, como expressões vivas, permitem que ambos os termos se liguem e ao mesmo tempo se desliguem; ou seja, que tenham uma relação sem relação (Cf. 1980, p. 66), pois a estrutura formal da linguagem, entendi-da desde a relação interpessoal, sujeito-sujeito e não sujeito objeto que, por isso, tem como base uma relação ética, o face-face, anuncia, por esta mesma condição, a “inviolabilidade ética de Outrem” (1980, p. 174). A inviolabilidade consiste no fato de que o Outro, como rosto que fala, é uma presença que extravasa a compreensão e a doação de sentido da in-

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tencionalidade que o visa, rompendo assim com os seus esquematismos e não entrando na esfera do Mesmo, pelo seu estatuto de infinito (Cf. 1980, p. 174), como exterioridade radical, interpelante e questionante.

Na palavra do olhar do rosto que se revela há sempre um chamado e um julgamento, “lembrando-me” de minhas obrigações. O chamado às obrigações é como que um despertar, que não vem do cogito, mas de outrem, que solicita não um acento a mais de responsabilidade de minha subjetividade para com ele. A presença e o encontro com o rosto revela que a subjetividade é ela mesma responsabilidade, antes que liber-dade de poder furtar-se do compromisso: “não poder esquivar-se – eis o eu” (LEVINAS, 1980, p. 223). Este “encurralamento” do eu pelo Outro é na verdade a possibilidade que o autor encontra para a realização deste mesmo eu na moralidade, ou seja, na situação em que toda relação in-terhumana converge numa exigência de serviço e acolhida, em existir para outrem e “temer mais o assassínio do que a morte” (1980, p. 224). O humano no homem insere-se, portanto, numa contínua ruptura da identidade, ruptura da imanência, numa saída de si, abrindo a razão à acolhida a uma alteridade que chega sempre antes em minha casa, como uma visita, ainda que indesejada. Por isso, a subjetividade pode ser com-preendida também como transcendência de si mesma e a transcendência é comunicação, como um incômodo dizer e um consequente desdizer o que foi dito, tendo como orientação o Outro:

Que o Outro enquanto outro não seja uma forma inteligível liga-da a outras formas no processo de um desvelamento intencional, mas um rosto, a nudez proletária, a indigência; que o outro seja outrem; que a cada saída de si seja a aproximação do próximo; que a transcendência seja proximidade; que a proximidade seja responsabilidade pelo outro, substituição ao outro, expiação pelo outro, condição – ou incondição – de refém; que a responsabili-dade como resposta seja o prévio Dizer; que a transcendência seja a comunicação, implicando, além de uma simples troca de sinais, o ‘dom’, ‘a casa aberta’ – eis alguns termos éticos pelos quais a transcendência significa à guisa de humanidade ou o êxtase como des-interessamento (LEVINAS, 2008, p. 32).

O comércio ético da linguagem defendido por Levinas funda-se, portanto, no face-a-face. Se o desejo, como movimento metafísico sem completação é o que move o Mesmo em direção ao Outro impedindo

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a posse pelo saber, a estrutura formal da linguagem evoca o discurso, a palavra, como percurso, como caminho de resposta de um em dire-ção ao outro (Cf. SUSIN, 1983, p. 269). Assim sendo, rosto que fala já significando outramente é pura revelação porquanto traz com a sua pre-sença uma novidade sempre imprevista, com a possibilidade de mentir ou falar a verdade, de acolher ou rejeitar. A presença e a possibilidade premente de surpreender revelam-se como acontecimento irredutível à evidência do cogito, como a ideia do infinito.

O eu é inefável, visto que falante por excelência; respondente e responsável outrem, como puro interlocutor, não é uma conteúdo conhecido, qualificado, captável a partir de uma ideia geral qual-quer e submetido a esta ideia. Ele faz face, não se referindo senão a si (LEVINAS, 2005, p. 50).

A existência desta ideia revela que nós existimos numa condição de passividade ou receptividade de algo que não culmina numa síntese transcendental em nossa consciência. A presença e novidade do rosto do Outro pela linguagem comportam não uma correlação entre consciência e mundo, mas um constante desprender os tentáculos do pensamento que pensa o interlocutor como tema.

Outrem não é primeiro objeto de compreensão e, depois, inter-locutor. As duas relações confundem-se. Dito de outra forma, da compreensão de outrem é inseparável sua invocação. Compre-ender uma pessoa é já falar-lhe. Pôr a existência de outrem, dei-xando-a ser, é já ter aceito essa existência, tê-la tomado em con-sideração. ‘Ter aceito’, ‘ter considerado’, não corresponde a uma compreensão, a um deixar-ser. A palavra delineia uma relação original. Trata-se de perceber a função da linguagem não como subordinada a consciência que se toma da presença de outrem ou de sua vizinhança. Ou da comunidade com ele, mas como condi-ção desta ‘tomada de consciência (LEVINAS, 2005, p. 27)

Para Levinas, a linguagem como relação também evoca uma es-pécie de assimetria, pois o interlocutor não é um tu, mas um Vós (Cf. 1980, p. 87), ou seja, o Outro e o Mesmo não estão no mesmo patamar. A palavra do “Outro inefável”, porque falante, revela-se sempre como um mandamento-ensinamento, como interpelação pri-meira suscitando resposta à invocação, que deve ser resposta de res-

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ponsabilidade. Esta “majestade do Outro”, tão peculiar da filosofia de Levinas, fica evidente ao indicar optar por termos como “discurso” e “ensino” e não por diálogo, como o eu-tu em Buber, o que, sob a perspectiva levinasiana, remeteria para uma espécie de reciprocidade na relação, o que já não seria mais desejo, que aspira a exterioridade radical, ao que falta sem nunca cumular, ao absolutamente outro, mas necessidade que se satisfaz na cumulação da interioridade.

O discurso e o ensino fazem parte do movimento da relação do Mesmo e do Outro na trilhas da linguagem. A deposição do sujeito so-berano e a reivindicação do privilégio do Outro na relação constituem e fundamentam a possibilidade de transcendência, o estar diante sem síntese, como comunicação. O primeiro ensinamento do mestre é estar diante do discípulo, e isto não é tematização, mas antes uma forma de re-lação originária que “condiciona assim o funcionamento do pensamen-to” (1980, p. 183), da compreensão das lições proferidas. Desse modo, a linguagem possui uma essência encarnada que não consiste somente em servir a razão como instrumento designativo, mas em possibilitar, antes da doação de sentido, uma significação que não provém do interior de uma consciência, mas do rosto como instância que põe em questão a ação e a própria manobra da razão em utilizar o signo como veículo da significação.

A linguagem tem de excepcional o facto de assistir à sua mani-festação. A palavra consiste em explicitar-se sobre a palavra, em ser ensinamento. A aparição é uma forma fixa da qual alguém já se retirou, ao passo que na linguagem se realiza o afluxo ininter-rupto de uma presença que rasga o véu inevitável da sua própria aparição, plástica como toda aparição (1980, p. 84).

Ouvir a palavra ou o discurso do Outro como ensinamento é tam-bém admitir uma racionalidade eleita, aprendiz, heterônoma, que, para o desespero dos kantianos, visa a produção das verdades, dos conceitos, das leis, não desde o si mesmo, como obra minha, a partir de minha con-dição transcendental. O ensino do Outro como movimento da lingua-gem, como relação, modifica radicalmente o sentido da intencionalidade do saber e do agir, de modo que não há verdade sem o face-a-face, sem a presença-proximidade, sem uma razão aberta à alteridade e, portanto, essencialmente relacional.

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Considerações finais

À guisa de conclusão, compreendemos que para Levinas a fala cons-titui-se como a grande expressão da relação humana, uma vez que a “ex-terioridade do discurso não se converte em interioridade”, em síntese fechada ou totalidade. A possibilidade de transcender do interlocutor na e pela linguagem constitui a sua singularidade (Cf. 2005, p. 50). A singularidade está na condição do que o autor chama de dizer, enquan-to realização da lógica do infinito, conforme Souza (1999, p.137), que é diferente do dito do Ser, como síntese concentrada de sentido, como totalidade (1999, p. 134).

O dizer infinito do Olhar do Outro como expressão que traz consi-go o seu sentido provoca a desordem da inteligibilidade ansiosa por dar cabo a todos os fenômenos. Com isso se percebe não apenas uma crítica à filosofia ocidental, mas a proposta de uma forma de filosofar que é “desfazer, em cada instante, a sua frase pelo preâmbulo ou pela exegese, em desdizer o que foi dito, em tentar redizer sem cerimônias o que foi já mal entendido no inevitável cerimonial em que se compraz o dito” (LEVINAS, 1980, p. 17). A linguagem como relação, fundada no face--a-face, evoca assim uma dimensão “abraâmica” para quem ocupa--se com a busca pela verdade ou pelo sentido do humano; dimensão errante e peregrina, sem lugar fixo, sem satisfação com temas e louros conquistados: a verdade se torna um desafio ético pelo Olhar do Outro, segundo Souza (1999, p. 143), uma vez que diante do rosto não se fica simplesmente a contemplar; assim como diante dos acontecimento da vida, dos traumas que nos atingem, dos quais podemos até, paradoxal-mente, fingir não saber.

O dizer do rosto do Outro, como dizer da vida, arrebenta com os conceitos; nos leva adiante a ponto de considerarmos que tudo é grave enquanto o respeito ao Outro e ao outro do Outro não falar mais alto.

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