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A última a sair de casa Nuria Basker Criatividade

A última a sairO pôr do sol insólito, de uma cor que vibrava os olhos, contribuía com o meu desejo de agarrar aquele dia. Ah, se eu pudesse pegar aquele astro, de tão radiante

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A últimaa sair

de casa

Nuria Basker Criatividade

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São Paulo, 2016

Cleônia de Sá Nunes

1a edição

A últimaa sair

de casa

Nuria Basker Criatividade

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A última a sair de casa (2016)

Cleônia de Sá Nunes

Edição de autor - 1ª edição

Selo Nuria Basker

Colaboração – Adriana Calabró

Projeto Gráfico – Rogério Aguiar

Revisão – Ellen Braga

ISBN: 978-85-5692-001-0

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Índice

Capítulo 1 - Um livro surge de um resgate ........................................ 9

Capítulo 2 - Deus adiante, paz na guia, nasce Cecília Maria ................................................................ 19

Capítulo 3 - Uma família de fé e de respeito ...................................... 29

Capítulo 4 - Um elo atemporal .......................................................... 37

Capítulo 5 - Vestiu-se de garra e firmeza ............................................ 43

Capítulo 6 - Na escola da vida ........................................................... 49

Capítulo 7 - Os primeiros passos ....................................................... 57

Capítulo 8 - Caminhos do amor ........................................................ 69

Capítulo 9 - O casamento ................................................................. 75

Capítulo 10 - A vida a três ................................................................... 81

Capítulo 11 - Muitas horas pouco tempo ............................................ 87

Capítulo 12 - Sábio vento .................................................................... 93

Capítulo 13 - Com o lenço, seguiu ...................................................... 101

Capítulo 14 - Insofismável................................................................... 105

Capítulo 15 - Resiliência ..................................................................... 111

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Prefácio

O destino tem dessas coisas e, um belo dia, ele me transportou, inadvertidamente, a uma casa de fazenda em Floresta, Pernambuco. Mas não apenas isso: levou-me também a uma plantação de soja no meio do Mato Grosso e às delicadezas de uma autora que queria colocar em prosa e verso a história de sua família. Sim, a Cleônia, pessoa que nunca tive o prazer de conhecer pessoalmente, mas que já conquistou o meu coração com sua doçura e sua poesia, me foi apresentada por uma caixinha de mensagens de email. “Adriana, sempre fiz poemas sobre minha mãe e agora decidi homenageá-la. E não somente por ser sua filha, mas por sua vida uma vida de luta, de batalha. Foi uma mulher revolucionária, a última dos seus 15 irmãos a sair de casa, a primeira a usar calça jeans, a sempre lutar pelo que acreditava. Foi feirante, na cidade e em vilas vizinhas, foi retirante em são Paulo, casou-se com um homem 12 anos mais novo, o que na época não era comum, enfim... foi uma mulher à frente do seu tempo. É sobre ela que queria falar no meu livro.” Ao terminar de ler a mensagem, me senti especialmente privilegiada por poder contribuir em um desejo tão genuíno. Foi ali que nasceu o meu contato com a Cleônia e a minha colaboração ao seu projeto. Na verdade, todo o mérito do livro é dessa poeta que resolveu estender à prosa a sua sensibilidade, uma mulher que, assim como a genitora, tem muita coragem e a provou pela persistência, pela disciplina ao escrever, pela bravura de buscar verdades e as trazer à tona por meio de palavras. Não quaisquer palavras, mas, sim, aquelas carregadas de sentimento, de beleza, de amor pela mãe e pela família. Que grande alegria fazer parte deste “A última a sair de casa”. Sem nunca ter chegado perto de Floresta, ainda assim me foi permitido um banho no rio Pajéu, uma ida a pé até a cidade, uma festança na Mãe d’água, à sombra dos tamarindos. Nenhum site na internet, nenhum link digital me traria tais sensações. A minha relação com o mundo de Cleônia, de Cecília e todos os integrantes da família que agora se imortaliza, foi a literatura que me concedeu.

Adriana Calabró

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Capítulo 1(Um livro surge de um resgate)

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Maçã do rosto se abreRubrosa, faceira pequenaNas intempéries da vida

Sorri, ainda que penaLevanta, sacode a poeira

Resiliente e sempre serenaExemplo de mulher

A minha garbosa morena.

O dia já claro, o trabalho chamava, balbuciando a rotina na fazenda. A brisa fria da manhã pedia que eu continuasse deitada, mas eu entendia que precisava render bastante em poucas horas, num dia agitado que adentraria na madrugada. Comecei arrumando a casa. Parecia que tudo estava desalinhado, fora do lugar. O cansaço já batia e insistia em permanecer, mas ainda assim finalizei a faxina.

Com os lençóis já trocados, a cama perfumada, era só sentir o cheiro que exalava naquele quarto, um espaço que ela dividiria com o seu neto caçula. Desde pequena, tenho o costume de gotejar a fragrância mais fraca por cima das fronhas, e gosto quando esse cheiro evola-se pela casa inteira.

Tomei meu banho, jantei e fui dormir, com a sensação de que adormecer encurta o tempo. Foi um instante até a madrugada fria em que fomos esperá-la. O calor humano nos envolveria e nos cobriria, como as colchas de chenile que ela costumava forrar sua cama de casal.

Chegando na rodoviária, esperamos em companhia do silêncio. Poucas pessoas circulavam por lá. Parecia que somente o meu sangue corria insistente, na ânsia de ver novamente o seu rosto, sentir suas mãos, ouvir suas reclamações constantes, presenciar sua hipocondria que saltava pelos poros. Uma luz ao longe anunciava que o ônibus poderia ser aquele. E era. Lá estava ela, com os olhos ávidos à espera da parada final. Sua posição era a mesma de sempre: na cadeira da frente, com as pernas estiradas, vendo a estrada. Dizia que era assim que se sentia em casa quando o sono não vinha. Ela me viu antes mesmo de descer, sorriu para o motorista e disse a ele que

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sua filha a esperava. Fui ao seu encontro, pegar suas bolsas a tiracolo. Mas havia bem mais. Era uma velha mania andar com inúmeras bagagens. Na mão, além da bolsa, levava sua toalha de rosto, um casaco e alimentos leves. Pedi minha bênção, dei meu abraço de carinho e vi que seu corpo não tinha sequelas, que não fora comprometido tão notoriamente. Sua mão portava uma bola daquelas pequenas, fisioterápicas. Era um exercício diário. Após a retirada e contagem das bolsas, fomos para casa, que não ficava tão perto. Mais uns cinquenta quilômetros para chegarmos e era tempo suficiente para falarmos do tema principal: o AVC. Eu não sabia como proceder, além dos remédios, que seriam controlados, sempre dentro do horário. O cuidado seria ali redobrado. Os olhares e ouvidos seriam multiplicados. Todos deveriam estar a postos numa eventual necessidade.

Paramos o carro em frente à casa. Corri ao lado da porta do passageiro, para que ela descesse com cuidado. Eu vinha no banco de trás, precisamente, no meio, entre o motorista e ela. Queria ouvir tudo. Queria estar inteira. Eu me sentia uma criança ao assistir a um filme infantil. Vez ou outra, eu interrompia a conversa. — Estamos chegando. Já entramos na sede da fazenda. Tudo escuro, silencioso, apenas o latido dos cachorros. Eles a reconheceram. Ela logo os saudou, pedindo que se calassem, com um riso entre os lábios. Entramos em casa e a levei para o quarto. Sentei-a na cama. Nesse instante, Guilherme já massageava seus pés enquanto ela descrevia as dores nas juntas, articulações e afins, como em uma música dolente. A madrugada se estendia. Minha ansiedade não me deixava pegar no sono. A vontade de dormir não era compatível ao sono. Eu já havia fuçado todas as malas à procura das especiarias que ela costumava trazer especialmente para mim: as castanhas de caju, os biscoitos suíços, rapaduras “batidas”, pedaços, traços e lembranças do sertão. Degustei algumas castanhas, bebi água e pedi a bênção. Depois da viagem cansativa, precisávamos nos deitar.

Um galo distante era o meu despertador, e assim que o ouvi pela primeira vez, me arrumei para o trabalho, já meio cansada da inadiável sina diária. Queria que o dia passasse rápido, que o tempo se aliasse às memórias e as

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saudades fossem logo substituídas pela presença dela.

O pôr do sol insólito, de uma cor que vibrava os olhos, contribuía com o meu desejo de agarrar aquele dia. Ah, se eu pudesse pegar aquele astro, de tão radiante que ele era!

Cheguei em casa já perto do jantar e ela já estava de banho tomado, sentada na sala. Levantou as vistas quando a chamei.

— Mamãe, um queijo ricota por seus pensamentos. Ela riu e já queria o queijo. Caímos as duas nas gargalhadas. Sentei num sofá bem em frente a ela. Precisava ouvi-la, desenrolar o fio de sua memória que pode tecer o que me veste até hoje.

Já havia percebido que seus braços e suas mãos se movimentavam sem travas, sem dormências. Que seus lados equilibravam perfeitamente. Mas e o passado? E sua história? O que existia em seu inconsciente daria um livro com a trajetória de quase oitenta anos. Um livro da vida dela contado por mim. Ainda não havia elaborado as perguntas. Mesmo assim, tudo parecia fluir, descer feito água, jorrar de uma fonte incipiente que se transformaria em rio, que banharia um passado, um presente e um futuro. E nessa procura, nessa costura, era preciso colocar a linha na agulha da memória e começar a confeccionar uma veste atemporal. Como uma roupa que serve a uns mas não a outros, como uma moda que hoje é fixa e amanhã se torna vintage, assim seria a sua história. Eu, no papel de observadora, fuçaria com apreço o que havia por trás dessa vestimenta.

Mamãe possuía três baús. Um deles deu de presente a uma de suas afilhadas, Gildaci, cunhada de sua sobrinha Maria Benvinda, que ela considera uma filha. Sobraram dois, que possuem cadeados. Lá são guardadas roupas de tempos atrás, até saia de sua mãe, de cor azul, com flores pequenas e vermelhas, meio borradas por conta do tempo. Lá também tem algumas folhas rabiscadas com receitas antigas e endereços de parentes de São Paulo. Mas não é somente nos baús de madeira boa, durável, forte, que ela esconde sua história. Ela guarda nos armários, no criado-mudo, que tem desde a minha infância, alguns papéis amarelados, apagados de épocas passadas. Qual a chave que pode abrir tudo ao mesmo tempo, ou em doses pingadas,

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nas colheres da sabedoria? Como pedir que seus baús, seus armários, seu criado-mudo sejam abertos? Que tire o lenço que protege sua cabeça do sol, da quentura dos dias? Qual a palavra que posso suplicar para que ela desbrave outros lugares, não pisados em retorno, deixados lá atrás? Eu não poderia extrair sem que ela sentisse vontade de dizer.

Só ela tinha a chave. Eu poderia ajudar a girá-la. E assim o fiz. — Olhando a senhora, vejo que está bem... ainda mais diante de tudo o que aconteceu, não é? —Talvez. Mas sinto ainda dificuldade. — Qual? — Ando meio doida. O povo fala comigo e eu não sei de quem se trata. — Mas é assim mesmo. Logo vai estar bem. Só tem que ter cuidado em ficar sozinha. — Estou pensando em ir para Rondônia daqui uns dias, ver Afonsina. Eu ouvi, com olhos arregalados, e mudei de assunto. Discordar diretamente não queria. Poderia se sentir reclusa. Essa visita à sua irmã Afonsina é um roteiro que ela sempre traça na memória, quando vem para Mato Grosso. Tanto que já seguiu para visitá-la por duas vezes. Sente-se em casa. Lá é roça, que se planta, que se colhe, que se trabalha semeando sementes e sonhos. Afonsina é mais velha que ela e mora em Rondônia há mais de quarenta anos. Fez família, criou filhos, netos e bisnetos em solo do norte. As feições são até parecidas com as dela, e o jeito de agir se assemelha também. Quando fala sobre suas irmãs, ela dá a impressão que precisa sentir a proximidade do sangue. Não o sangue que corre nas minhas veias, de filha, mas aquele de quem viveu a mesma história, no mesmo terreno, nas mesmas condições.

Viajar até o encontro de Afonsina é tentar romper a finitude da juventude, das lembranças dos idos tempos.

— Mamãe, vamos jantar. As marmitas chegaram. — Não, quero, não. Fiz cuscuz. — Oba, que maravilha. Então nem vou abrir as marmitas. Quero um prato cheio. Deixei esfriando. — Eita, menina pidona. Sentamos à mesa.

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— Deixe que eu pego, mamãe, tá quente. Soprei a colher com o leite e o cuscuz. Um prato amarelinho, consistente, símbolo da nostalgia, das referências que trago da infância. Faz parceria com a tapioca, com o doce de tomate, o doce de caju, o rubacão. E devoramos o prato. Depois saímos da mesa. Puxei assunto, de novo, na sala, enquanto assistíamos à novela das nove. Ela já havia dado boa noite ao apresentador da bancada do jornal, após ele findar o programa. -— Boa noite. Até amanhã. Gosto de você. Não tem quem não sorria em casa, quando ela assiste à TV. É um ouvido no que passa na tela e um ouvido nela, que faz inferência das cenas, das apresentações, dos artistas. Se ela apoia, deixa claro; se não tem simpatia, faz cara feia ou confunde personagem e ator. Ao observá-la, ao sentir a vontade de traduzi-la e eternizá-la, queria escrever, mas tinha a consciência de que me valia de uma rede na qual faltavam alguns pedaços.

— Mamãe, a senhora se lembra de tudo ainda? Fui direta ao ponto. — Nada. Esqueci muita coisa. Quem se lembra muito é Alice. Pergunte a ela. — Mas tia Alicinha não tá aqui. Vale a pena relembrar, é bom. A senhora podia era brincar. Vou ensiná-la a mexer no computador. Tem joguinhos que ajudam a não enferrujar a memória. — Oxe, não. Não sei mexer, não, menina. Caímos novamente na gargalhada. Suas respostas afiadas são marcas. Silenciosamente, ela cochilava no sofá, por cima de uma almofada. Eram mais de oito horas da noite e somente eu, mamãe e Guilherme estávamos em casa. Aproveitei o instante em que ela dormia e fui tomar banho. Deixei meu menino de sobreaviso, para que ela não assustasse. E ele logo mudou de canal. Entretinha-se enquanto ali estava. Não tenho costume de demorar no banho. Possuo costumes de economizar água, porque vim da terra onde ela é escassa, preciosa. — Mamãe, levante. Vamos para a cama. — me dirigi a ela, mas percebi que precisava do seu tempo no banheiro. Deixei-a e fui para o quarto. A cama já estava arrumada, volumosa, cheia de cobertas e de panos que ela cheira, igual fazia quando era criança. Não tem mais o pano fininho

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de sua infância, mas arrumou outros para substituí-lo. Vendo a convidativa cama, ela chegou e se acomodou. — Minha bênção. — Deus te abençoe. Desliguei a luz do quarto. Deixei a do banheiro acesa, para o caso dela levantar de madrugada, e saí. Esparramei-me no sofá, depois que troquei de canal. Esperava Odair, para lhe contar o dia. Levantei-me, quando senti um toque. — Levante. Vamos dormir. — Odair, um contumaz ouvinte, me chamava com voz baixa, como sempre. Ouvi mesmo, porque meu sono é leve. Sua voz é quase sempre inaudível. Mamãe costuma brincar que tem de adivinhar o que seu genro diz, principalmente quando conversam à noite, momento em que ela recorda suas histórias e ele a ouve atentamente. Nem vi que horas ele chegou, mas sei que fazia algum tempo. Já estava tudo desligado em casa. O cansaço imperava. Tinha sido um dia intenso, de resgates. E resgates de acontecimentos que podem explicar o presente são trabalhosos, cansativos. Como era de esperar, o sono me venceu. Lá pelas seis horas da manhã, o despertador tocou. Foi apenas uma vez. Nem chegava a segunda e já estava com a mão estirada, tateando o botão de desligar. Acordei Guilherme para a escola e disse para mamãe que tomasse café. Ele, na verdade, nem precisa insistir. Na hora certa de ir, já levanta rápido, arruma-se e vai. O ônibus leva os alunos das fazendas, bem cedinho, lá pelas 6:20, e volta às 11:30. Quando passa, já ouço o barulho e é a hora de eu também sair para o almoço. Almoçamos. Uma na cozinha, a outra no quarto. Era hora do jornal policial. Não perdia nenhum dia. Não sentia prazer no mórbido, mas eram notícias rápidas, reais, embora tristes. Falamos poucas palavras. Eu tinha de voltar rápido. Percebi que tudo estava nos conformes, que poderia sair sem tanta preocupação. Tive de resistir à vontade de fazer as malas e embarcar na viagem que tanto desejava. Queria mergulhar na sua fonte da memória e estava sedenta por saber de suas histórias, suas recordações, seus fatos marcantes, mas adiei para quando eu voltasse. Quando cheguei, ansiosa, nem mesmo falei com os cachorros, que se mexiam, anfitriões. Era mais de 21 horas. Eu estava colhendo milho. As colheitadeiras trabalhavam incansavelmente. Os operadores dessas máquinas

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aproveitavam o tempo que estivesse sem chuva para colher. A lavoura é regida pelo tempo, pelo clima. Todo período de colheita e de plantio é imperioso. Sempre passamos das horas normais. E ela sabia disso. Era da roça. Menor, claro, mas tinha uma visão agrícola, rodeada de sabedorias escutadas dos mais velhos, da sua experiência, quando lidava com o campo. Estava sem óculos, reclamando da visão, que já estava fraquinha. Sandália com dedos fora das tiras, que tentei ajustar. — Não pode, mamãe, andar assim. Já não está enxergando bem e com sandália desse jeito. Faça isso, não. — Não sou cega, Cleônia. Só estou vendo menos, só isso. Calei e deixei-a em pé. Procurava remédios, nas suas bolsas de todos os jeitos, de todas as cores, repletas de comprimidos. Lavei minhas mãos. Ela já estava perfumada. Senti de longe o perfume. — Já jantou? — Não. Cozinhei umas bananas da terra. ‘Tô com a barriga cheia. Vou só comer um pouco mesmo. — Certo. Eu estou com muita fome. Comi rápido. Era de praxe. Involuntariamente, eu sentia a vontade de falar, de ouvir, de relembrar. Não eram comuns os nostálgicos momentos entre nós duas. Alguma vez ou outra conversávamos, mas não se passava de poucas frases. Não eram contadas linhas e linhas de um contexto. Eram mais frases soltas que eu tinha de juntar na mente a outras frases que já tinha ouvido anteriormente para formar uma história. E já com o corpo alimentado, era o momento de nutrir a minha alma. Eu precisava entender muitas coisas que estariam por trás de sua vida, da minha, coisas que pudessem me responder algumas pendências sentimentais. Era momento de aproximar-me, de sentir que a distância de alguns segredos, de alguns fatos que corriqueiramente não conversávamos, poderia se estreitar. Ali era o instante. Deitei, já com a cabeça fresca, pronta para absorver alguns causos. — Mamãe, falei com Pipa um dia desses. Perguntei se poderia contar com ela na busca de algumas datas e tal, que ela pegasse com Padrinho Francisco alguns dados da família e ela disse que a senhora era considerada à frente do seu tempo. Que ele diz direto que senhora foi a primeira mulher que usou calça comprida na Mãe D’Água. É verdade? — Nem eu me lembro mais. Pipa é muito é engraçada. Esse ofício de contar a história estava meio lento, mas seguia, por mais que algumas vezes eu tivesse de retomar a pergunta.

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Nessa noite a fazenda ainda trabalhava. Eu havia chegado em casa, mas muitos ainda continuavam na lavoura. Dava para ouvir o barulho das colheitadeiras. Elas trabalhavam num talhão próximo à sede. Toda aquela movimentação embalava a casa. Não havia clima de parar e ouvir. Talvez outro dia. Estava bem perto de conseguir montar cada mosaico extraído de suas falas para a história deste livro. Mas já estava adiando muito. Era algo que faltava. Que vinha há tempos pensando. Por que não agora? E disse a ela o que eu pretendia. Mamãe não era muito de contar a história inteira. Eram perguntas, muitas vezes, com respostas sem um histórico, rápidas, tal qual seu modo de vida. Divagar a história poderia retomar momentos que não fossem tão agradáveis, que fizesse recordar de situações que a entristeceram. Perguntas rodeavam. Seria o momento de alguém viver um pouco o seu passado? Seria sua história uma lição de vida? Seria lenitiva? Seria uma descoberta de alguns impasses, de alguns entraves? As rochas da Mãe D’Água, nem que o tempo passasse, não saberiam as respostas sem que houvesse um estímulo, um impulso. E nisso eu me pus a agir. Contar a história dela pode fazer sua memória não se perder na efemeridade dos dias, e sua força, embora gravada no passado, possa eternizar nas letras de um futuro que compõem seu livro da vida.

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Capítulo 2(Deus adiante, paz na guia, nasce

Cecília Maria)

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Naquele larNasceu morena

Senhora bela.

Moça da janelaDa luz e da vela

Do rio e da terra.

Mulher maestrinaDas mãos prendadas

De riso largo, morena menina.

Voz inconfundívelEcoou das caatingasAo topo intangível.

E nessa calçada sorrindoBrincaram Cecília e mais meninos

Sob os centenários tamarindos.

Que terno seja nosso olharAo avistar no serrote a casa tão linda

Firme feito a rocha que não finda.

Saindo da cidade, dezoito quilômetros eram levados para chegar à fazenda. Logo na entrada, à direita assim que sai do asfalto, um pé de umbu recepcionava com um riacho à frente. Com sede ninguém ficava. A estrada de chão repleta de pedregulhos seria cansativa. Não longa. Eram apenas uns três quilômetros até chegar a casa. Mais à frente, uma linha de energia, mais conhecida como faixa, dividia o caminho. Era ainda mais adiante a cancela. Serrotes, calangos, cactos compunham o caminho. Mas, dobrando a última curva, já se via o telhado marrom ao longe. Se estivesse o mato seco, os tamarindos destoavam, continuando ali firmes, verdes. O ar que circulava naquele lar tinha cheiro de passos firmes, de atos guerreiros, fortes. Exalava o cheiro de couro, de gado, de caatinga, de vida. Via-se sob as centenárias árvores o poder da fé e da garra ultrapassar as áridas regiões.

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Nessa aliança com o divino, com o concreto, no sentido de “fazer por si, que Ele ajudará”, o cotidiano na fazenda era sinônimo de lida, era ligado ao suor que escorria de trabalhos incansáveis. A paisagem era rústica, de fortes troncos, que seguravam redes e mais redes, que despejavam os frutos e algumas gaiolas de cabeça vermelha. As cores se matizavam entre o marrom, do couro das selas e vestimentas, que viviam penduradas na pequena área da frente, e entre o verde das folhas. Não havia jarros de flores, como muitas fazendas imagináveis. Era tudo muito simples, sem apetrechos. O sol saía quase sempre, acrescentando a cor amarela ao cenário. É sertão, onde raras são as chuvas, e no quarto dia do ano de 1933, o sol estava muito quente. A lida já iniciava cedo, com o pai convocando os irmãos para ajudarem no campo. Não precisava de muitos falatórios. O olhar e a rotina incansável já instintivamente os colocavam na atuação das manhãs. Depois de encourados, o pai selou o cavalo, e em sua companhia estavam o cachorro Duque e os meninos mais velhos. Os menores ficavam em casa, embaixo da saia da mãe, e observavam da calçada de pedra, quando o velho Manoel Nonato e seus filhos Ulisses e João se destinavam a campear o gado. — Deus adiante, paz na guia, vão com Deus e a Virgem Maria. Cecília, a Mãe da Mãe D’Água, assim se despedia deles e logo seguia, convocando: — Todos para dentro. Assim chamava os outros, logo após perder de vista os homens da casa. Ela já estava meio cansada, chegando ao fim da gestação. Num casamento de 23 anos, essa já era a décima sexta; duas crianças faleceram ainda pequenas: Manoel e Urias. Como já estava nos dias do nascimento, suas dificuldades de locomoção iam aumentando. No entanto, isso não impedia que tomasse conta da casa, porque estava acostumada a tomar a frente dos serviços. Sentou-se perto do fogão de lenha, assim que o alimento havia sido retirado do fogo e servido na mesa. Um silêncio reinava depois que as crianças já haviam almoçado. Todas as refeições eram na hora certa, com a presença de todos, nem que não houvesse bancos suficientes. O prato já feito pela mãe era entregue com a colher de alumínio a cada um. Embora consumissem alimentos plantados na fazenda, da lavra, nem todas as refeições possuíam sobre a mesa três elementos nutritivos. — Ah, menina, você não sabe o que é fome. Hoje em dia, os mais novos, se

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não têm um danone, já pensam que podem chorar. Queria ver se fossem do meu tempo. Cecília sempre entoa, feito uma ladainha, alguns fatos ocorridos e marcantes. E, nesse caso, ela retrata bem a seca que assola, vez ou outra, o semiárido nordestino. Uma situação que seca as plantas, mas faz chover tristeza, onde tudo o que se planta não dá, onde se procura, não acha, onde se chora, quando se vê o gado tombando. — Ouô, hei, hei...Ou, gado... Esse aboio era dos homens da casa que vinham puxando no laço o boi meio bravo que haviam passado a manhã inteira procurando. Os sons de chocalhos se misturavam aos alaridos da vinda. O canto era entoado em coro.

Nem se banharam. Estavam esfomeados. Sempre costumavam almoçar mais cedo, por conta do trabalho pesado no campo, na roça. Estavam arranhados dos galhos secos que tocavam a pele quando eles se curvavam na caatinga cerrada. As crianças esperavam a chegada para vê-los bem e pedirem a bênção. Só assim iam para seus cantos. A comida era hora de silêncio, hora sagrada, de respeito e agradecimento. Todos estavam em casa. Aquela casa rústica, com paredes protegidas das intempéries e de algo que nem mesmo eles pensavam um dia surgir. Sentiam-se preparados. Ainda mais numa casa em que a turma de Lampião deu o seu ar da graça no ano de 1926. Nesse dia, três cangaceiros e mais o senhor Horácio Novaes, irmão de Dona Eutímia, da Fazenda Santa Paula, travaram combate com os civis em pleno meio-dia, bem próximo da casa-grande. Nessa batalha, um cangaceiro foi morto e enterrado no cemitério da família.

Era uma época de grandes batalhas. Uma delas era a do homem com o gado, que serviria para alimentar a fome. A lida de viver entre um lugar e outro era antiga. Campear as reses era tarefa diária, árdua. Quase todas as fazendas possuíam pessoas da família suficientes para fazer esse trabalho. Se tivesse um homem dentro de casa, era comum não ter sua presença, pelo menos um dia na semana. Se não tinha água ou comida num canto, ele ia a outro. Ou fazia, também, o inverso. Cedia sua terra para outros fazendeiros que sofriam com a seca causticante. Mas, naquele quatro de dezembro, todos estavam em casa, antes das três

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horas e, após terem se servido no almoço, voltavam ao rotineiro trabalho de alimentar o gado. Não havia tempo para o descanso, nem lá, nem nas demais fazendas do sertão pernambucano.

O curral ficava do lado direito. Havia uma parede de tijolos vermelhos, sem reboco, do lado da janela. A área da frente sinalizava que ali viviam vaqueiros. Pendurados nos tornos de madeira, resistentes, firmes, estavam as selas, os aboios, os chicotes artesanais, feitos em casa mesmo. Quando se destramelava o ferrolho do pequeno portão da área, já se deparava com a mesa da sala, grande, com gaveta, que ninguém mexia, mesmo sem chaves. Nas paredes, quadros com as fotos dos patriarcas da casa. E naquela tarde, precisamente na cozinha, não havia brisa que esfriasse o calor da matriarca. Abanava-se, soprava os longos e finos cabelos. Esperava, em vão, um pouco de vento, uma brisa fria, que pudesse tornar o seu trabalho de dona de casa mais suave. Mas ela sabia o que estava fazendo, qual sua parte a ser seguida naquela família. Não lastimava, não reclamava. Em meados da tarde, sentiu seu corpo responder ao chamado da criança que viria ao mundo naquele dia. Sentou-se e já começou a suspirar. — Corre, Ulisses, chame mãe Capitulina. Acho que o menino está nascendo. Mãe Capitulina, casada com um primo de Manoel Nonato, era uma senhora que morava no antigo distrito de Carnaubeira da Penha. Parteira da família, de confiança, o patriarca já tinha providenciado a vinda dela para fazer o parto da sua penúltima menina. Ela chegou um dia antes, de cavalo. Entre uma correria e outra, as crianças mais crescidinhas ficavam sorrindo, baixinho, à espera de mais um irmão, para completar a família. E ela nasceu. Morena, franzina, deram-lhe o nome da mãe. A terceira, na sucessão dos nomes, embora sua outra irmã era chamada Maria Cecília. Ela, por sua vez, seria Cecília Maria. Naquela época, era comum os pais pagarem promessas, dando nomes aos filhos conforme o santo que intermediava o pedido. No caso de Cecília Mãe, tinha o sobrenome de Jesus. À filha que acabara de nascer, deram o sobrenome do pai, um senhor alto, moreno, esguio, típico senhor do sertão. Cecília puxou a ele em muitas coisas. A tarde findava. O sol baixou sua cortina. Naquela noite, um novo ser era bem-vindo e mais sons seriam ouvidos naquela casa. O silêncio imperava apenas quando todos dormiam. As redes enfeitavam a noite e recebia o silêncio dos moradores da casa com cinco quartos, salas, corredor, áreas feitas de barro e pedra, paredes largas e calçadas resistentes ao tempo. Para lá e para cá, elas balançavam...

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Depois, paravam. Ali, dormiam os filhos da Mãe D’Água, que tinha esse nome por antigos dizerem que em suas águas uma Iara apareceu. Desde então, esse nome foi repassado à matriarca da família. Cecília veio dormir em cama, lá pelos anos de quarenta e poucos, quando sua irmã Benvinda casou, deixando a cama só para ela e Alice, sua irmã que nasceu dois anos depois, para que pudessem dormir com mais conforto.

Não tinha como comprar camas para todos. As redes, pelo menos, os mascates passavam vendendo na porta. José Nonato, irmão de Manoel, era um deles. Viajava muito de jegue pelas fazendas da região. Sabia que o produto era usado por todos, se não dentro de casa, era fora, no terreiro, especialmente quando o calor falava mais alto.

Floresta, naquela época, ainda não tinha um comércio farturado. Era uma cidade nova, de pouco mais de três mil habitantes. Sua rede de opções, de preços de concorrentes diferentes, era escassa. Quase toda a sua renda era oriunda do setor pecuário. A venda da carne do gado e, principalmente, dos caprinos, era o ponto forte na economia local. Isso impactava no número crescente de vaqueiros, do ofício passado de pai para filho. Cecília foi criada num ambiente similar. Desde muito pequena, cuidava dos afazeres com os irmãos. Todos tinham uma tarefa específica. A mãe sabia exatamente o que fazer, para não sobrecarregar as crianças, colocando serviços pesados como pegar água, cuidar das reses, responsabilizar-se pela cozinha. Cecília cuidava da roça, pastorando, para os pássaros não comerem o milho e o feijão, e para o gado não se alimentar da palma, ainda verde, sem corte.

Era uma lida diária em companhia de sua irmã Alice. Saíam cedinho, lá pelos seus dez e doze anos de idade. Ficavam de manhã e a tarde tangendo os passarinhos dos sabugos e grãos e o gado da lavoura de palmas. Claro que o alimento seria destinado às reses, mas, antes dele estar no ponto, não poderia ser mexido sem seguir a sequência da colheita, sem as fatias serem cortadas e colocadas no curral. Era uma labuta diária, independente do tempo. Não havia um dia em que as duas não fizessem esse serviço. Meninas pequenas, franzinas, mas que tinham a responsabilidade de muitos grandes. Não tinha como desobedecer. Nem ousavam isso. Era já instintivo. Sabiam que tinham de fazer. E faziam alegres. Cantavam,

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sonhavam, olhando para o céu. O rio ficava perto da roça. A água, sem sofrer com escoamentos de dejetos e com produtos defensivos, saía límpida e inodora das cacimbas em volta do rio Pajeú, que passava pela fazenda. Cecília nadava muito bem. Sempre dizia que nadava da areia à Pedra do Letreiro, um conjunto de rochas que entrou na lista dos pontos turísticos de Floresta. Tentaram muitas vezes desvendar os escritos que ele possui. Até arqueólogos vieram de fora para ver e registrar o bloco de rocha, com pinturas rupestres. Segundo lendas e antigos dizeres, foram os índios que deixaram aquelas marcas. Mas as pinturas só vieram a ficar conhecidas anos mais tarde. Sua importância era secundária. O rio era o principal deleite. Lá se serviam da água que carregavam nos galões, nas rodias – um tipo de pano que a mulher enrola e coloca na cabeça, para o galão ou o balde não ficar diretamente batendo na cabeça –, nas cacimbas puras, mas que precisava ser coada para depois ser colocada nos potes quando chegassem em casa. Lá no rio se banhavam. Não todos os dias, porém, quando iam, a mãe ia junto. O cuidado era dobrado. O rio era fundo. Não se conseguia, àquela época, alcançar o fim dele. — Água não tem cabelo — o que a mãe sempre falava mais tarde ela também iria repetir.

Os irmãos mais velhos faziam os serviços mais sofridos, como pegar água, ir atrás de lenha para fazer a comida.

Na cozinha, sua mãe sempre tinha alguma das meninas para ajudá-la. Como não tinha luz, se pudesse sair tudo antes de escurecer, já era de boa valia. Quando não, o candeeiro ficava em cima da mesa e outro na sala, para iluminar o caminho. A casa era grande, não era tão fácil chegar até a cozinha, local de encontro de todos, nunca vazia. Ai daquele que não obedecesse e não fosse jantar na hora certa. — Ô, meninos, a comida tá pronta. Venham simbora. E todos, com chinelos nos pés, com as mãos lavadas, se dirigiam para lá. Eram muitos, mas não se ouvia barulho. Nenhum sequer. Na mesa grande, sentavam-se os mais velhos e o pai na cabeceira. Cecília, Alice, Domingos e todos os menores sentavam no chão, no corredor que ligava os cômodos da casa à cozinha. Se fossem pequenos, de braço, a mãe segurava; as irmãs mais velhas dividiam as tarefas. Os pratos eram já certos. Um pegava uma vasilha mais funda, outro pegava um prato de flandre. O que se prezava era

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o alimento. Mas conversas, nem pensar. — Mãe, era bom que hoje a comida fosse igual à de ontem. — Tá reclamando, menina? E, pela afronta, Benvinda levou umas chineladas boas. A comida a que ela se referia era uma buchada de bode que sua mãe havia preparado com a ajuda de sua outra filha, Amélia. Mas nada que um olhar, um carinho não fizesse aquela menina se esquecer das chinelas de rosto, que não deixaram marcas. Na hora em que terminavam de comer, sequer um prato poderia ficar fora da pia. Depois, rezavam, pediam a bênção e iam dormir. Na manhã que vinha, todos acordavam com a luz do sol. Não precisava chamar. Todos já sabiam. Não existiam despertadores eletrônicos. Eram os galos, as galinhas, os passarinhos que comandavam o tempo. Com poucos goles de leite e uma tapioca ou um pedaço de quebra bucho, feito com rapadura, por Natinho, ou apenas com um pouquinho de farinha, a mastigar, todos estavam prontos para sua rotina. Esse bolo era feito um dia antes. Milho tirado, moído em um moinho, que ficava dentro da casa de Mãe Chiquinha. Depois, era peneirado na bacia e colocado para assar numa frigideira grande de barro. Cecília e seu sobrinho Natinho eram os feitores principais. No preparo, ele colocava os ingredientes, ela ajudava na preparação. Quando os dois iam à Roça do Mato, uma outra sede da fazenda, cerca de uns cinco quilômetros, cedinho já estava tudo no jeito. Levavam a rapadura e mais o que tivessem, porque o trabalho seria árduo. Eles iam para lá, porque lá na roça ficava o melhor gado, mais produtor de leite, para fazerem queijo. A lida era sortida de brincadeiras. Uma das diversões era ver os bichos na estrada. Os saguis saltavam pelas árvores e os olhares de Cecília também. — Meu braço ficou doendo de tanto jogar pedra nos soin. — os saguis, na linguagem escrita. — Tinha medo deles, porque diziam que sua mordida poderia matar. Se era verdade ou não, eu que não ia me arriscar. Quando Cecília conta essa parte da história, com riso largo e mexendo os braços para descrever a dor que sentiu, a sensação é que toda essa luta travada no passado não deixaram marcas de tristeza. Ela agia espontaneamente às obrigações que tinha. Natinho foi o primeiro filho de sua irmã Maria Cecília, que chamavam de Cacá. Um rapaz inocente, sempre da lida do campo, foi morar desde cedo na casa dos avós. Cuidava de tudo que era serviço pesado, enquanto Cecília fazia uma outra parte. Consideravelmente pesado para uma mulher, mas não

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para ela. Cecília sempre foi de fazer, sem melindres, sem delongas. Seus atos até os dias de hoje demonstram a coragem que ela possui enraizada em seu sangue. — Menina, eu acordava era de madrugada e já deixava café pronto. Papai já dizia a gente que no outro dia tinha de ir para o Mulungu, e eu e Natinho dormíamos era cedo. Natinho não casou. Viveu para a família, junto aos seus. Depois de alguns anos, foi para a cidade, morar com os pais. Vez ou outra, retornava à fazenda. Cecília e ele, mesmo ele sendo sobrinho, mantinham a relação de irmãos. Não só ele como Bel, um outro sobrinho, ajudava em casa. Bel, mais novo, era como um filho para ela, com uns 12 anos de diferença. Sua vocação era mesmo o gado. É comum o trabalho em conjunto, em atos solidários. Dificilmente um vaqueiro sai sozinho para adentrar na mata. E o menino campeava horas e horas, na companhia do seu avô, numa relação de pai e filho. Sua mãe, Lourdes, era a oitava filha, que se casou e foi morar numa fazenda mais distante. Mas Bel, que também se chamava Manoel, em homenagem ao pai e ao avô, escolheu não ir com eles. Estava acostumado com o ritmo da caatinga e com o ar da casa-grande. Não havia muitas famílias morando próximo à fazenda. No entanto, Manoel Domingos e Eutrópio Novaes dividiam a Mãe D’Água. Eram parentes próximos. E, de Manoel Domingos, Bel fez grande amizade com seu filho, também um outro Manoel, que dura até hoje. Algumas noites por semana, eles vinham visitar os vizinhos. Conversas rápidas, objetivas. Problemas de cercas, gado, de seca ou chuva, eram tratados sob os tamarindos. Um café fazia parte do agrado e o cigarro de palha dava para o palavreado todo. A mãe não participava das conversas. Ficava dentro de casa e as crianças já dormiam. — Lugar de criança não é perto de adulto. Era uma frase coberta de sermões intencionais e resumida, às vezes, num só olhar de soslaio. O gesto dizia tudo, se algum desavisado ou esquecido chegasse na sala. Mas isso quase nunca acontecia. A casa-grande, com paredes largas, ficava silenciosa. Lá fora, as conversas dos adultos iam longe. Não faltavam assentos. Havia bancos de madeira, tamboretes de couro bovino e a rede que Manoel Nonato deitava antes de entrar em casa. Deixava na janela do quarto da frente a ponta de cigarro, que no outro dia dava um jeito de acender, e ia dormir. A noite findava, os bichos dormiam, os filhos ressonavam.

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Capítulo 3(Uma família de fé e de respeito)

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Não há morena mais linda, que nasceu no sertãoCecília de corpo formoso, olhar carinhoso e cor de verão

É tão querida, grossinha e ciganaUma Nonato, por geração.

Mais bela e perfumada,Flor de pura cor

Transborda alegriaMiss simpatia

Querida e com muito amor.

Mãos prendadas na cozinha,Liberdade é o seu lema

Conserva a pureza, mas com firmezaBem “coisa de cinema”.

Riso farto, voz firmeSão tônicos em sua vida

Seu cheiro, que sensação!Oh, morena, sempre bela

A Mãe D’Água do Sertão.

Para ela, a reverência,Símbolo de firmeza e forte por essência

É, nada mais, nada menos,Cecília, por excelência.

Quando ouvia o galo cantar, a família já estava em pé.

Embora várias pessoas morassem ali, a casa permanecia quase sempre silenciosa. Gestos retraídos, gestos imperiosos faziam parte do ambiente. Todos os sentidos eram apurados naquela fazenda. Sons de cantiga eram entoados na cozinha, quando se preparavam os alimentos. O tempero dos Nonato é uma referência que evola da família, assim como a força e a garra sempre atribuídas aos seus entes. Naquela fazenda criava-se um lar onde até as mulheres sentiam-se firmes, autênticas, com alguns atos de liberdade que muitas ainda não portavam à época. Tanta fortaleza tornava-se um estigma

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do qual era difícil de escapar.

Cecília já estava com uns dois anos, quando veio a notícia de mais uma gestação. Era a última. Cecília Mãe, nos seus 39 anos de idade, seria mãe novamente. Agora seriam quatro crianças com menos de cinco anos a brincarem pela sala. Alice nascera.

Casa cheia. Alguns filhos já casados, morando em outras localidades, e uma na cidade, ficaram em casa os mais novos e aqueles que ainda não tinham contraído matrimônio. Além dos filhos, dois netos residiam e mais alguns vinham sempre em fins de semana. Muitas vezes, passavam semanas inteiras. Todos, na mesma proporção, ajudavam a mãe. O pai tinha seus companheiros na lida com o gado, enquanto a esposa cuidava da casa, mas as refeições quem costumeiramente preparava era sua filha Amélia, que só saiu de casa para se casar com Manoel “Tô”, quando Cecília tinha 26 anos.

E se eles sabiam que uma visita viria num domingo, todos ajudavam nos serviços. Uns limpavam o terreiro, com aquelas vassouras feitas de alecrim, outros limpavam a cozinha, outros faziam o almoço. Com cheiro de fumaça que já circulava pela casa, logo cedo, os amigos chegavam, para banhos no rio e para uma conversa com Manoel Nonato. Conversa de adulto, precisa, sem rodeios. Vinham caminhonetes ou carros pequenos que paravam à sombra dos tamarindos.

Eram bem-vindos todos, independente do sobrenome que carregavam. Manoel Nonato não se detinha a questões políticas ou pessoais. Sempre deixou claro seu lado: o da razão. As famílias e pessoas solteiras que ali eram recebidas aceitavam de bom grado essa condição.

O tempero que exalava na cozinha era o aroma perfeito, recordado por muitos durante anos. Costumeiramente, todos elogiavam, quando experimentavam ou quando se despediam.

— Esse mungunzá está uma delícia, Cecília. Assim disse D. Inezinha Goiana, uma senhora da cidade, que frequentava vez ou outra, em companhia de seu irmão Bibi e sua cunhada Alicinha Jardim. Inezinha, solteira, acompanhava e cuidava dos sobrinhos, na hora do banho no rio. Grandes amizades iniciavam ou se solidificavam ali. O

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mungunzá era feito de milho e feijão, plantados na roça, e pisados no pilão. A casa, já não mais tão cheia dos filhos, era mais calorosa quando vinham pessoas de fora. Muitos eram parentes de um genro, de uma nora, amigos de longas datas. Mas o que se via sempre em volta eram respeito e diversão. Aquela casa, de grande, tornava-se pequena, na presença de tanta gente, nos encontros dominicais. Para ir ao Pajeú, era por trás da casa. Tinha um caminho por onde passava dentre as roças, um pé de umbu e vários pés de quixaba, mandacaru, até chegar à areia. Antes mesmo de entrar na água, todos já tiravam seus chinelos, para sentirem a areia volumosa, limpa. A volta, sempre à tarde, era mais lenta. Passavam pelo mesmo local que foram, mas muitos também vinham pelo cemitério, onde estão enterrados membros da família. Um cemitério pequeno, organizado e limpo pelos entes dos que se foram. Até os dias atuais é assim. Os donos da casa sempre foram religiosos. Até no seu leito de morte, o patriarca invocou o nome de Mãe Santíssima, à qual ele era devoto. Já a matriarca tinha mais intercessores: Sagrado Coração de Jesus, Bom Jesus dos Aflitos, este padroeiro de Floresta. A família inteira era católica, com exceção do filho Antônio. Não havia uma noite em que a matriarca não rezasse o rosário, antes de se deitar. Ela fumava também. Seu cachimbo, sempre farto de fumo, dava até para ser compartilhado com quem pedisse um pouquinho. E ela sempre concedia. Guardava-o numa sacolinha de pano, dentro do bolso do seu jaleco. Vestia-se sempre de saia longa e uma camisa com bolsos, quase chegando ao cós da saia. Era mulher recatada, simples. Cuidava da família, como guerreira, com equilíbrio, além de agradar a mãe do marido, sempre com vocativos cordiais e cuidados expressivos. A sogra chamava Francisca Gomes de Lima, mais conhecida como Mãe Chiquinha. Firme, mas amiga dos seus netos. Vivia numa casinha atrás, perto de onde se fazia queijo e com uma sombra grande de uma quixabeira. Cecília dormia com a avó desde que ela chegou àquela casa lá pelos anos 1940, junto ao marido Raimundo Nonato, um homem baixinho que não mais enxergava. Na verdade, a fazenda Mãe dD’Água era herança do pai de Francisca, Domingos Novaes, que tivera uma relação com Paula Gomes de Lima (Paulina), sua mãe, natural de Tacaratu. Mas quando se casou, mudou com Raimundo Nonato do Nascimento para outro local do município e deixou a fazenda aos filhos, que logo a dividiram. A parte de Manoel Nonato, pai de Cecília, seria aquela que permaneceria na família até os dias atuais.

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Mãe Chiquinha, como era conhecida a avó paterna de Cecília, gerou filhos guerreiros. Embora não tenha nascido assim, era uma moça com pernas aleijadas, o que não era empecilho para a locomoção. Ela andava a casa inteira, sem cadeira de rodas, algo que não existia à época, nem tampouco, outro meio. Eram suas mãos a mola que a impulsionava. Teava com bilros, no seu quartinho, as rendas. Cantarolava, enquanto a linha era trabalhada, e o barulho das crianças, as toadas, os mugidos, os berros das cabrinhas no terreiro formavam uma orquestra. O rádio não havia dado seu ar da graça. Nos bolsos de sua saia comprida, pedaços de rapadura e farinha, que dava aos netos, após o cansaço bater. Dava escondido porque era fora do horário das principais refeições. Alguns aperreavam, mas ela não sentia raiva. Bradava, reclamava e, na mesma hora, já estava amorosa. — Domingos aperreava Mãe Chiquinha que só. Mas só de brincadeira mesmo. Quando ele aprontava, ela gritava: “Oh, Manoel, venha dar um jeito nos seus ‘diabos’”. Nessas horas, Domingos chaleirava, dando uma muncheia de fumo, que pegava de papai, toda vez que ele esquecia na janela do quarto. Não demorava, ela já sorria satisfeita e parava de entregar os meninos. Ela morreu em 1949 de infarto fulminante, depois do marido, Raimundo. Toda a simplicidade do lar era colorida com aquelas crianças. O irmão homem mais velho, Antônio (a primogênita era Maria Cecília), já estava no Rio de Janeiro, antes mesmo de Cecília nascer. Servia ao Exército do Brasil. Comunista, não aceitava que os sobrinhos pedissem a bênção. Era ateu também. Se alguém pedisse, ao estender a mão, depois que ele chegava, era ter por certo a resposta: “Vai-te pra lá, menino.” E menino ou menina ele não teve em vida. Quando chegou em Floresta, estava casado com Edite Carvalho, uma senhorinha franzina, jeito de fina, de classe. Era carioca da gema e torcia pelo Vasco, bem como pela Escola de Samba Padre Miguel. Esse gosto, inclusive, acompanha alguns sobrinhos até hoje. Desde que D. Edite chegou, não mais retornou ao solo carioca. Fincou raízes na fazenda até o dia de sua morte. Tinha um cachorrinho chamado Gitano, que tratava como filho, e o próprio Antônio, ao qual ela era subserviente. Uma moça delicada que logo foi contagiada pela garra e firmeza dos sertanejos. Ele, irmão mais velho, era mais retraído. De porte alto, chegou com a cultura e trejeitos diferentes dos outros filhos. Os outros irmãos já estavam crescidos, tinham suas raízes, seus valores. Não era tão fácil assimilar novos, principalmente de quem vinha de tão longe. Mesmo assim, entre quietudes cariocas e manias sertanejas, havia equilíbrio. A família bastante religiosa cultuava as tradições. Padres frequentavam

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a casa, rezavam as missas, mesmo fora das datas religiosas. Ainda hoje há imagens por todos os cômodos e oratórios de madeira, sendo muito cobiçados pelos netos, como relíquia, e louvores do passado ainda são citados pelas filhas daquela família.

— Desvire a chinela. Um padre uma vez me disse que, quando tiver alguém morrendo, primeiro desvire, para depois colocar a vela na mão. Muitos não conseguem entender tamanha crença, mas é uma frase que a matriarca dizia e que Cecília sempre profere quando vê chinela para cima. precisa discordar. Na hora, é desvirar e seguir mesmo. Essas tradições ainda são presentes. O batizado, a primeira comunhão, a crisma, as missas, as procissões são seguidos espontaneamente. Tão fortes que hoje, dentro da família, poucos são os que se tenderam a outra religião. E se isso acontece, há a tolerância, o respeito.

— Ai da gente se não louvasse antes de pedir a bênção. “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, e papai respondia: “Para sempre seja Deus louvado”.

Antes de dormir, depois de levantar ou às seis horas da noite, as bênçãos eram entoadas. Não havia esquecimento. A religiosidade naquela casa era primaz. Todos os filhos foram batizados, assim como os netos. Pagão só se nascesse em outra geração. Os padrinhos eram as pessoas próximas, que, intencionalmente, enxergavam o coração, o cuidado, em vez de outros quesitos. Cecília se lembra que, de tanto amor à sua madrinha, todos os fins de semana queria visitá-la na fazenda. D. Enedina Novaes e José Tiburtino eram seus padrinhos. Raramente ia, mas nutria bons sentimentos que perduram até hoje.

— Os amigos tinham de ser muitos para dar para serem padrinhos de todos. — diz ela, sorrindo.

Todo início do mês de junho, quando na família tinham crianças, em vez de Cecília Mãe e os filhos irem à cidade, os noveneiros vinham a pé até a fazenda.

Inácia, Xuri, a família dos Contente, Euzébio e outros amigos da Fazenda Cachoeira chegavam cantando, a fim de pagar promessas e arrecadar alguns tostões para a novena de Santo Antônio, dia 13 de junho. Chegavam com

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a imagem do santo e todos da casa já ficavam em pé, esperando e rezando junto. “Meu Divino São José, aqui estou a seus pés, pedindo chuva com bonança, Meu Jesus de Nazaré.” Esses hinos cantados e mais outros faziam parte das rezas naquele dia. Depois de todos rezarem, os presentes beijavam o pé do santo, que passava um por um e, então, era servido um café com bolacha. Daí, logo se despediam e, aos cantos, iam às casas de Cota, Ulisses, Manoel Domingos, mais próximas da casa-grande. Essa tradição religiosa trazia muita alegria. Pelas orações e por pessoas tão agradáveis visitarem a família. Para comemorar o São João, o melhor bode era escolhido para o dia da fogueira, e como sobremesa um doce de melancia. — A gente ficava o dia inteiro sem comer muito, esperando a noite — diz Cecília. Em outubro, dia sete, dia em que nasceu seu pai, era sempre feita uma festa, mas, antes, era celebrada uma missa. A data fazia parte do calendário festivo daquele lugar. Para findar o ano, Cecília se recorda que as idas à cidade, quando criança, eram raras. Nem todos os meses a família viajava, porque sempre foram muitos filhos e o custo seria além do programado. Mas, em dezembro, na festa do padroeiro Bom Jesus dos Aflitos, a ida era sagrada, similar à fé. Logo cedinho, lá pelas três horas da madrugada, todos se levantavam e caminhavam em direção a Floresta. Já na véspera, era entre o dormindo e o acordado, porque todos ficavam na expectativa de chegarem o outro dia. Eram crianças e a vontade de ver cores, algo diferente, deixava os olhos delas brilhando, tanto que a caminhada de dezoito quilômetros não se tornava cansativa. — Vamos, Domingos, levante. Já estamos indo e vamos deixar você. Sempre era comum chamarem-no, porque ele era muito engraçado, de humor aguçadíssimo, para não dizer um tanto sarcástico. De ano em ano, a mãe vendia algumas cabeças de cabra ou bode e comprava roupas para as crianças. E lá iam Cecília, Alice, Manoel Pinheiro, Joaquim e Domingos, todos a pé, acompanhados por ela. Levavam apenas um pouco de água e rapadura. As vestes eram feitas por costureiras conhecidas, quando não pela própria Cecília, a matriarca, mesmo. Mas dezembro era o momento especial, no qual eram chamadas as costureiras das roupas mais bem feitas: D. Gercina e Doia ou Amélia, irmãs da mãe de Cecília.

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Para não confundir, Amélia era nome da irmã de Cecília, que era gêmea com Angélica, assim como também se chamava a irmã da matriarca, uma senhora doce, de rosto terno e angelical. Os vestidos eram dois, para cada uma das meninas. Os meninos iam de calção e blusa de botão. O único calçado, sempre de couro, era, muitas vezes, presenteado ou comprado dos mascates. Uma vez, Cecília ganhou de Zé Nicodemo um que trouxe especialmente da feira de Serra Talhada. Ela guardava como ouro, sempre bem cuidado. Tinha que ficar novo para usar o ano inteiro, se o pé não crescesse tanto. E lá iam à cidade. Lá chegando, na abertura da festa, jantavam na casa de quem desse abrigo. Hospedavam-se na casa de Maria Cecília, filha mais velha e já casada, ou na casa de Especiosa de João Tenente, amigos de longa data. Não chegavam a demorar. Havia um propósito maior, além da visita: a fé. Todos iam até a igreja. As crianças ficavam no batente, após terem acompanhado a procissão, brincando e se encantando com as novidades da cidade. Cecília sempre foi de valorizar o belo e dizer-lhe, se assim o é. Quando passava uma mulher bonita, ela logo perguntava: — Ei, como é seu nome? O nome, na verdade, era o que menos importava. Queria poder ver os traços, os vestidos. E tomou gosto. A vaidade dela, mesmo comedida, fez com que, sob a quentura da aridez, valorizasse o belo. Quando o dia amanhecia, despediam-se da irmã Cacá, como assim era mais conhecida a primogênita, e voltavam para casa, pela areia do Pajeú. Cansados, contentes, já refeitos, chegavam contando as novidades a quem estivesse lá. Pelo caminho, algumas paradas, para beber água, para descansar as pernas mesmo, mas sem demoras. Em uma de suas aventuras, Cecília se recorda de uma parada na Fazenda Folha Miúda, de propriedade de seus primos, para “filar” um café. Já estava pronta uma panela de batata doce. Comeram tanto nesse dia que chegou a impedir a caminhada. Teve de descansar bastante para seguir para casa. Até pensaram em demorar mais um pouco, mas a necessidade era imperiosa. — Cecília, cadê Alice? Vocês duas vão, já, tanger os bichos. Tudo voltava ao normal. A cidade ficou para trás. A lida continuava. O tempo não parou.

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Capítulo 4(Um elo atemporal)

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Sem nuvens feito véuO homem ora ao céu

Esperando Pingos incolores escoarem as dores

Semeia esperança!

— Direito, Ulisses. Bote ali no pote que tem o caneco de alumínio em cima. O de cá ‘tá cheio. Bote o pano para coar. O zelo que a mãe de Cecília tinha com o pingo de água era o mesmo zelo ao guardá-la. Não podia levar poeira, cair sujeira. Bem tampadinho era o pote, ou a vasilha que a guardaria. Água era um tesouro no ano de 1958, quando Cecília tinha seus 25anos, mas a sua falta absoluta, na seca de1932, fora sofrida demais. — Tanto foi sua intensidade que até hoje ouço mamãe pinçar da memória o que seus pais e irmãos sentiram e falavam da famigerada estiagem. Quando ela nasceu, ainda estavam colhendo os efeitos da ausência de água no rio Pajeú que cortava a fazenda. Se com uma escassez normal já não havia alimentos que dessem para a família e nem mato para alimentar os bichos, há de se imaginar numa seca que, na época, era denominada como impiedosa. Contudo, não havia choros, resmungos, caso não fossem supridas as necessidades no momento da refeição. O que se tinha permanente era a fé, que não amornava, nem muito menos esfriava. Por mais que a seca faça parte do cenário cíclico daquela região, não se previne do problema, como deveria. Não tem tantos recursos, muito menos investimentos do poder público. E isso sempre aumenta o sofrimento, ano após ano. Desde que um sertanejo se entende por gente, isso afeta e devasta demais. Ah, se eles pudessem adivinhar quando sofreriam com ela! A seca é assim. Não chove durante muito tempo, quando se devia chover, e aí, os efeitos são dramáticos. Se planta, não nasce, se nasce, pode vir a morrer por falta d’água; se a água de beber diminui, tem de se criar toda uma logística de como conseguir trazer para as famílias que sofrem. Se hoje ainda é assim o transtorno pela escassez da água, dá para se imaginar o sofrimento naqueles anos, em que os recursos e as estruturas eram mínimos. Já se falaram em todos os versos, em rimas, de todas as formas, sobre o modo de vida de quem sobreviveu a uma seca, morando no meio que mais representa esse clima: a caatinga. Mas ouvir de quem estava ali, tentando escapar e fazer sobreviver os animais que eram companheiros, eram fonte de

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vida, isso é impagável, emocionante, além de não ser um assunto velho, isso porque ainda persiste em dias bem atuais, não somente no imaginário de quem ouve, porém salta ao real quando os sertanejos são vistos correndo de um lado para outro em busca de água. O gerúndio da esperança passa a ser um verbo que se conjuga em todos os tempos. Ainda não era o fim dela. Os alimentos do corpo eram escassos. Os da alma permaneciam. A fé unia, aliava, abria portas. E se ali não tivessem mais janelas, eles iam a outros lugares. Antes dessa seca de 1932, Manoel Nonato, pelos anos de 1908 ou 1909, foi em busca de outro lugar para conseguir ganhar uns tostões. Sua primeira saída de Pernambuco foi direto para o sertão do Piauí. Ele e mais alguns irmãos e amigos foram extrair o ouro daquela época: a borracha. Com seus 24 anos, ele casou-se com sua prima legítima Sebastiana Lopes, mas ela acabara morrendo no trabalho de parto antes de ele voltar ao lar. A moça teve muito sofrimento, numa estrada de chão, enquanto o marido tinha migrado para outro Estado à procura de mais recursos. Manoel deixou-a grávida, pois tinha a esperança de voltar e reencontrá-la já com seu primeiro filho nos braços. Não deu tempo. Lá chegando, desbravaram matas, à procura da borracha. Tudo novo, diferente, mas logo eles se habituaram ao novo meio de convivência. A saudade de casa, que não podia ser amenizada nem por carta, foi aumentando a cada dia, porém eles precisavam alcançar o objetivo daquela sofrida lida. Não poderiam retornar nos rastros. A extração da borracha era diária, cansativa e sempre com enormes possibilidades de serem contraídas doenças que não havia em Pernambuco. Havia também os animais silvestres, da mata, seu habitat natural. Os homens invadiram, na avidez do dinheiro, por parte de alguns, e na necessidade, como no caso de Manoel Nonato e companheiros. Poucos meses depois de terem lá chegado, o que poderia parecer uma das lendas da floresta aconteceu. Seu irmão, companheiro das agruras desse tempo, foi morto por uma onça e ela foi morta por ele. Uma luta que só pôde ser contada e passada adiante porque ele retornou ao barraco, sangrando e desfalecendo. — Estou morrendo, Manoel. Uma onça me matou. Mas deixei ela morta, também. Todos ficaram perplexos e receosos para saírem de casa. Tiveram de ir e na mata encontraram a onça morta, por uma faca pequena que ele andava na bainha. Na mesma mata, algumas horas depois, seu irmão foi enterrado.

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Desgostosos e entristecidos, demoraram mais alguns meses, para ver se conseguiam meios de não chegarem com as mãos abanando, e decidiram retornar ao sertão de Pernambuco. Mal sabia Manoel que o mais triste ainda estava por vir e encontraria sua esposa e seu filho enterrados. Era de se esperar uma revolta, um ressentimento à alma. Mas, no serviço na fazenda, na lida diária e nos ciclos de plantação e seca, no trato com os animais, as coisas foram voltando ao normal. Algum tempo depois, ele casou-se com Cecília e trouxeram ao mundo 17 filhos. A matriarca era uma mulher de boa família, branca, com raízes nascidas perto da Mãe D’Água. Casou-se com Manoel, quando tinha 18 anos, e ele, 26. Filha de José Francisco de Sá e de Maria Angélica de Jesus, casados desde 11 de novembro de 1880, teve outros irmãos, sendo ela a mais velha. — Mãe, como foi que a senhora conheceu papai? — Oxente, menina. Coisa bonita. Cecília sempre perguntava à sua mãe sobre o encontro dos seus pais, em companhia de sua sobrinha Sueli, que passava dias na Mãe D’Água. As duas, gaiatas, segundo Cecília diz, queriam conversar sobre outros assuntos, fora dos temas corriqueiros da fazenda. — Ah, menina. Manoel vinha em casa, mas era só de longe. Pegava um gravetinho e ficava colocando embaixo da rede, quando dormia lá, nos dias que ia “pegar bicho”. Eu pegava na madeirinha para dizer que estava ali. Dali logo ele se encantou com aquela moça. Não se separaram mais. Quando foram para casar, Manoel “roubou” Cecília, saindo por trás do curral. Sua mãe, Maria Angélica, sabia que eles fugiriam e só avisou ao seu pai, Francisco, quando eles já estavam longe. Nada puderam fazer diante da recusa de não querer que sua filha saísse de casa. Não havia motivos desfavoráveis ao rapaz. Era apenas a idade que seria um empecilho, mas, já que tinha sua filha nos braços de seu um rapaz, agora, tinha de casar. E assim fizeram, em 1910, vindo a gerar o primeiro filho, que era uma menina, em abril do outro ano. Ela se chamaria Maria Cecília. Tiveram seus 17 filhos, e a todos ela tratava com doçura. A matriarca foi moça bem criada. Viveu rodeada de meninas, quase todas da mesma idade. Esse laço afetivo, de ser irmã mais velha, foi sendo regado no coração e florescendo nos filhos, aquela imagem de compreensiva, amiga, complacente. Era de se esperar que uma família numerosa pudesse ter esse elo. Muitas vezes, na ausência do patriarca, a matriarca tinha de decidir, com grande sabedoria, qual alimento seria feito unicamente no almoço. Na seca de 1958, Manoel viajou para outras terras, recém-adquiridas por

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ele, acompanhado de Bel, um neto que fora criado na fazenda. Por possuir mais palma, macambira e mandacarus, ele comprou a propriedade de um conhecido perto da Serra da Canoa, que se chamava, à época, de Posse. Apesar de ter perdido, em duas noites, cerca de cinco ou seis reses, dava para alimentar a maioria dos animais, e lá, num trabalho árduo, chegou a abrir vários cacimbões. Já na Mãe D’Água, o rio não estava seco, mas não tinha como irrigar as roças, muito menos havia chovido naqueles meses. As primeiras gotas só chegaram nove meses depois. O patriarca dos Nonato ficou de março a dezembro daquele ano longe de casa, mas vinha uma vez por semana para buscar bolo, carne pronta e outros alimentos para passar os dias. As mulheres da casa ficaram em casa, em companhia de Natinho, filho de Maria Cecília (Cacá), que lidava com a parte mais pesada, que era pegar água. Dormiam todos perto. Alice com Cecília Mãe, Cecília filha num outro quarto e Natinho na sala, de olho. Na roça do Mulungu, havia outras cabeças de gado e de caprinos, menos do que as que foram para a Posse, o que não diminuía a necessidade de alimentos e cuidados da mesma forma. Com a demora da estiagem, as mulheres tinham de fazer sua parte. Cecília subia em árvores para cortar canafístula , ingazeira, juazeiro, e embaixo ficavam Alice e a matriarca para espalhar os galhos, de modo a evitar os animais brigarem entre si. A seca foi dura, a ponto de ter o dinheiro e não ter onde comprar as coisas. O jeito era economizar mais do que deveria. Não sabia quando ia acabar aquele sofrimento. Mas, na religiosidade que ali circulava, feito um presente concedido pelo Menino Jesus, a chuva caiu no sertão, para alegria do povo. Na Mãe D’Água choveu por alguns dias. Tanto que amigos de outras fazendas mais distantes trouxeram seus gados para comerem no pasto da fazenda. Quando chegavam, era uma festa. Sr. Rosalvo Martins, Quinca Leal, Sr. Germano, da região do Capim Grosso, traziam com eles as reses e os alimentos para que a matriarca cozinhasse. O arroz vermelho, bandas de bode, já retalhadas, e outros mantimentos contribuíam para aqueles dias que seriam intensos. Quando o gado já estava mais forte, eles retornavam aos seus lugares de origem. Novamente, ficavam os homens, a Mãe e os filhos da Mãe D’Água. As crianças eram a obediência crua, genuína, de um tempo que um olhar, literalmente, dizia mais do que palavras. Elas saboreavam, alegremente, qual fosse o prato. Até o mais comum,

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que era a farinha e a rapadura. Ouve-se muito, nos clássicos sertanejos, sobre essa combinação do doce e o sabor típico da mandioca moída, que era, verdadeiramente, o mais consumido nos idos anos. É tão forte que Cecília sente esse sabor sempre que o traz à memória. Sua mãe, que andava de saia longa e camisão com bolsos, tinha sempre uma “mão cheia” desses alimentos. Não que seu pai fosse avarento, mas não podia se comer tantas vezes ao dia. Era comum “regrar” os alimentos, porque “não sabemos o dia do amanhã”, diz Cecília. E sua mãe, em forma de agrado, sempre dava um pouquinho a cada um. A menina meio gordinha, que puseram o apelido de Grossinha, não fazendo jus ao comportamento rude, mas ao tipo físico, era uma menina de queixo fino, olhos negros, feito quixabas, como aquelas que frutificavam num pé atrás da casa-grande. — Oh, Docha. Dochinha minha, esse refrão era um acalanto na rede, de uma irmã a outra mais nova. Essa cantiga era entoada para ela, quando sua irmã Benvinda, sete anos mais velha, ninava, carinhosamente. A irmã cuidou dela até sair de casa para se casar, pela primeira vez, com Odon. Com a ludicidade aflorada, as crianças brincavam com o que tivessem em mão. Uma das brincadeiras prediletas, quando Cecília era ainda pequenininha, era fazer chiqueirinhos, com gravetos. As bonecas eram feitas de barro molhado, moldadas pela imaginação. Na hora de dormir, quase sempre acalentada por Benvinda, seu paninho de estimação, já surrado, acompanhava nas noites. Na verdade, a menina queria dormir com sua mãe, mas, esta, já cansada dos afazeres da casa, da roça e do cuidado com os outros filhos pequenos, não dava conta. Deixava que Benvinda amenizasse, ternamente, aquele vazio. Era pequena demais para dizer, mas todo o carinho de sua mãe, um olhar, uma mão que tocava a cabeça, um mingau preparado, era tesouro para Cecília. O amor que ela sentiu por sua mãe derrama em lágrimas, porque nem de longe pode sentir mais o seu cheiro, ainda que, até hoje, o tenha guardado na lembrança.

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Capítulo 5(Vestiu-se de garra e firmeza)

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Ninguém por aliSomente ela e as pedras

Casa centenária... ostra e pérola

Cecília, forte, rochaAzul resplandece o céu anil

Vestido escurecido o tempo tingiu

Perfume “livre” exalaSertaneja gargalha, embora sofríveis batalhas

Mulher de fibra... rara.

— Oh, Manoel, corre, menino. — Tô indo, madrinha Grossinha. Irra. Peguei. — ‘Me dê a corda, Manoel. Pronto! Com seu traje habitual, que era um vestido florido, de cor clara, cabelos longos, pretos, esvoaçantes, cobertos por um lenço de pano amarrado e uma alpercata de couro, Cecília chama seu sobrinho Manoel, filho de sua irmã Cota, que corre incansável, para chegar ao lugar em que ela conseguiu segurar o bode, na carreira. Já no início do ano de 1958, a seca já estava dando sinais que viria cortando todo o sertão e guardar os alimentos era usar de sabedoria. Se havia a necessidade de pegar um bicho, só se estivessem doentes, para não executar com proeza o trabalho, que era uma diversão ao mesmo tempo. Mas, mesmo assim, iam bravamente à procura. Nessa época, Cota ainda não havia se mudado para o Caldeirão da Chinela e todos os dias eles vinham fazer uma visita à casa-grande. Com Natinho nos cuidados pesados e Bel e o patriarca na lida com o gado, Manoel de Cota fazia as reses com sua tia Cecília. O bode que eles tinham capturado seria retalhado e colocado num varal, para secar sob o sol. O restante dele, espinhaço e a buchada, bem lavada, temperada, costurada, já colocavam no fogão de lenha no mesmo dia. Quem ouvisse ao longe o brado, não tão facilmente imaginaria que seria uma mulher que corria atrás daquele bode, e que conseguia pegá-lo “na carreira”, como ela costuma contar. As vantagens, as conquistas eram meramente ligadas ao comportamento forte, destemido. Com o corpo esguio, tinha facilidade em correr, em nadar, em praticar atividades que eram mais típicas aos homens. Costumava nadar por muitos metros, sem cansaço

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aparente. — Menina, eu até boiava. Ficava de corpo para cima. — descreve. Desde criança, a lida com os animais e a roça tinham cores que o mundo lá fora não matizava à altura. Não executava suas tarefas porque somente eram impostas. Sentia-se do meio e isso contribuía na lida, apesar de alguns entraves, diminutos, em comparação à satisfação. Como dormiam cedo, logo depois de jantarem e prosearem no terreiro, sempre pela madrugada, antes do galo cantar, Cecília já estava acordada. Dormia pouco, quando se tinha algo grande a fazer no outro dia. Mesmo que tentasse, o serviço falava mais alto. O vigor da juventude contribuía para que o cansaço e o desgaste não predominassem. Ela precisava chegar à meta que tinha daquele dia, se não quisesse ouvir do seu pai um sermão. Tentava não errar tanto, para que não houvesse uma penalidade. Sabia que se tivesse, podia ser doída no corpo, na alma. E se fosse desmerecido, ficava somente no pedido de desculpas. De todas as formas, a reclamação após proferida, a surra após ser dada não poderia voltar no tempo. — Papai me deu uma surra tão grande, um dia. — Por quê, mamãe? — Só porque ele pediu para eu colocar um lixo num lugar, achou que eu não tinha feito e me deu uma lapada, com um chicote de cavalo. — Mas a senhora não falou que o lixo estava lá, que a senhora tinha colocado? — Falei antes, mas não adiantou. Ele bateu, depois foi ver e, quando eu estava com mãe, ele chegou e me disse: “Cecília, eu vi o lixo. Você colocou lá mesmo, mas agora é tarde. Já bati.” Cecília conta, deixando no ar uma tristeza que, de tão intensa, deixou marcas por mais de sessenta anos. Portanto, fortes demais. As coisas foram se tornando mais claras, mais visíveis, com o passar do tempo, com mais experiência e convivência. Sempre que alguém frequentava a fazenda, para papear ou para tomar banho no rio, deixava marcas, referências. Nem sempre eram assimiladas, espelhadas, mas poderia se tornar o tema do assunto da noite, por exemplo. Quebrava-se um pouco das faces bravias o riso que transbordava, quando estavam juntos, antes de dormir. Mesmo cansados, as redes balançavam, no embalo das conversas. Ou estavam planejando o trabalho do dia seguinte, ou era um assunto novo que não poderia deixar para outro dia, enfim. Quando não se ouvia mais o rangido das cordas grossas, nos tornos de madeira, é que “todos já estavam no quarto sono”, como Cecília costuma dizer. Mesmo sendo rotineiro, natural, o modo que cuidava da roça, dos

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bichos, era inevitável o florescer, mesmo sutil, de uma nova fase; nascia aos poucos uma moça, uma mulher. Ainda adolescente, não havia desbravado lugares, outras sensações. Tinha na fazenda a única alternativa de vida até então. Como não tinha acesso ao novo, sentir seria mais difícil. O convívio com os sobrinhos, com o pai, fez com que ela se tornasse mais independente. Presença feminina, na sua juventude, só de sua irmã Alice e sua mãe. Esta, já com seus quase 60anos, ficava mais sentada embaixo dos centenários tamarindos do que na lida da casa. Sem dúvidas, o respeito, mesmo no silêncio, ainda imperava. Era um ponto de chegada, quando todos vinham da lida, no fim da tarde. Ela escutava, aconselhava, reclamava, se fosse preciso, mas todos se sentiam suaves, leves. O patriarca era mais inacessível. A moça se sentia mais pressionada. Mesmo que se identificasse com a lida no campo, por conseguir correr atrás, literalmente, e ver que seu objetivo era alcançado, ela queria poder, também, ter direito a outros sonhos, sentir-se mais mulher. Usar sua liberdade num outro propósito. Quase não ia à cidade. Umas três vezes por ano, ela ia em companhia dos irmãos, da mãe, de sobrinhos. Nunca mesmo poderia ir só. Colocar calças compridas, também não. — Só se fosse. Papai dizia que calça comprida não era para mulher da fazenda. Era para gente vivida. Uma declaração sucinta, que fez com que ela só provasse uma calça, à época de tergal, quando se casou e foi morar em São Paulo. Até lá, somente suas saias, com blusas de mangas, ou vestido. Nada muito chamativo. No figurino, quando ia à cidade, predominavam as cores clássicas, claras. Tecidos eram comprados por metro e, muitas vezes, utilizados para fazer peças para algumas mulheres da casa. Uma blusa para uma, do mesmo pano uma saia para outra, um vestido ou um lenço para outra. Não tinham tantas opções. Na fazenda não havia espaço para vaidades. Elas ainda se preocupavam com os cabelos, que eram lavados com sabão de pedra, receita milagrosa da matriarca. Corpos limpos, cheirosos e dispostos eram símbolos da beleza. Pinturas de rosto ou roupas mais extravagantes, nem pensar. Se fosse para chamar atenção, que fosse no mérito do trabalho. E isso se refletia até nos contatos com os meninos da mesma idade, que passavam férias nas casas dos vizinhos ou alguns fins de semana. Não tinha como evitar o encontro, às vezes meio “desengonçado”, como diz mamãe. — Oxe. O que foi Chico? — Nada, Cecília. Só olhando. E Chico caiu na gargalhada com os meninos.

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— Agora, pronto mesmo. Já vi. Chico, filho de Emiliano de sua tia Maria Panta e de seu Tio Manoel Joaquim, estava com uns amigos no Poço do Letreiro, quando ela vinha correndo atrás dos bodes. Atravessou a areia e só ouviu o som dos sorrisos dos meninos. Ela olhou, com um olhar meio envergonhado, mas era parar ou perder o bode de vista. Decidiu seguir. Só que antes não deixou de ter feito aquela pergunta ao seu parente Chico, que tinha seu tio Eutrópio morando vizinho à Mãe D’Água. Só depois, Cecília seguiu correndo. O jeito de menina do mato talvez afugentasse quem por ela nutrisse algum interesse. Diz que não se lembra de alguém que tenha se sentido atraído por ela, embora descreva que paquerava, se visse algum rapaz interessante. Era mais comum se algum ia à fazenda. Na cidade, sim, via muitos, mas, lá ou cá, não poderia, nem em sonho, chegar perto. E cai na risada, complementando: — Oxe, só se fosse para papai me dar uma surra. — Mas nem um olhar, mamãe? — Olhar podia, desde que papai ou mãe não visse. Quer dizer, comum à idade de uma menina de seus 15, 16 e mais alguns anos para frente, contudo, no caso dela, a paquera, o namoro era mais uma convenção. Não havia o toque, uma declamação, um sinal mais expressivo que ali poderia surgir algo. Era o tempo, as circunstâncias que poderiam afirmar ou negar esse enlace. Porém, ainda não estava em seus planos uma relação duradoura. Ela sentia-se livre para sonhar, mas não nutria pensamentos desse tema. Preferia pensar na noite, naquela cabeça de criação que estava para ser capturada. Se assim era o objetivo de uma manhã com sol rachando, por dentre a caatinga, assim era o frenesi que sentia se visse seu paquera um dia, mesmo de forma repentina e muito rara. O que viria daquela paquera era o mesmo que correr atrás dos passarinhos no milho e feijão ou tanger para longe o gado das palmas. — Eu tinha mais o que fazer — diz. — Mas a sensação tão boa... do encontro, da paquera, a relação iniciando. Ave Maria, mamãe, isso não tinha na época? — Eita, Cleônia... Coisa bonita. Tinha, mas eu não ligava para isso, não. Era muita coisa para fazer que não tinha tempo para isso. Viver num ambiente masculino, em meio a uma lida diversificada, fez de Cecília mais madura. Talvez tudo em seu tempo. Mas ela não se fixava na ideia do que poderia acontecer: se havia erros, acertos, entregas demais. Ela tinha o que fazer. Assim pensava. Então tinha em suas mãos a casa para

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limpar, roupas para lavar, comida para fazer, alimentos para os bichos a serem coletados, lavouras a serem cuidadas, leite a ser extraído e queijo a ser produzido, tudo isso tomava seu tempo e preenchia sua alma. Ou tornava mais dura, mais impossível de arranhões. Só que o corpo cansava. Se tinha executado seu trabalho, de qualquer forma, sendo ela mulher ou sendo um homem a efetuá-lo, o cansaço chegaria da mesma forma. Não havia mais como ter um escudo protetor, num trabalho que era exaustivo, no fim da tarde. O corpo não poderia manter-se em total controle por todo o dia. Quando chegava da roça, pela manhã, já pegava o arroz para colocar no fogo. A mistura, sempre uma carne da própria lavra, cozinhava, com caldo. Rendia. Os temperos fortes exalavam por dentro daquela casa. Quem tivesse lá fora sentia o aroma, que vinha convidativo. Dificilmente alguém se negaria a almoçar, mesmo que só tivesse feijão, arroz e carne. Vez ou outra macarrão, quando era mais dia de domingo. Mas o toque final era no tempero. Nada de diferente. Apenas na sutileza típica, repassada pelos antepassados. O coentro, a pimenta do reino, o cominho compunham o prato. Com a saída de Amélia, Cecília ficou por dona da cozinha. Não delegava suas atividades, mas se sentia bem quando sua irmã Alice e seus sobrinhos a ajudavam. Não dava para fazer tudo ao mesmo tempo. Tinha coisas que começavam num dia, e findavam apenas no outro. Alguns serviços eram finitos, outros repetitivos, rotineiros. Por mais que não tivesse domínio de algumas novidades daquela época, que não estivesse informada do que acontecia no mundo naqueles anos, ela ouvia e não agia por impulso. Ser destemida não teria o mesmo significado de extrapolar espaços ou doutrinas. No tempo certo, sabia que uma seta apontaria o rumo, sem precisar pular etapas, infringir regras, romper com o velho. — Bênção, papai. — Deus te faça feliz. Foi o que Manoel Nonato respondeu à filha antes de ir para Posse levar o gado naquele ano em que a seca castigou Floresta. Nesta noite em que dormiriam sem o pai e sem Bel, ela não se esqueceu de adormecer acalentada pela frase que bem mais tarde ela iria seguir: “Deus te faça feliz”.

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Capítulo 6(Na escola da vida)

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Já esperavam inquietosGalinhas, perus entoavam seu canto

A doce morena veioNo corpo esguio o vestido estampado

Na face, o sorriso largoÉ assim, até quando

Passa suas noites em claro.

Mistura de fortaleza e calmariaTem uma sutil e segura magia

Aves bailam suas penasCecília está chegando

Traz o amor que contagiaO terreiro encheu-se de alegria.

— Deus nunca deixe faltar. Levantaram-se da mesa, agradeceram e Amélia já recolhia os pratos de estanho ou os de barro, feitos por Inácia da Cachoeira. Todos tinham os seus e Cecília comia numa tigelinha. Não era mais de sete horas da noite. Tinham acabado de jantar e não poderiam dormir de imediato. Mais um tempinho no terreiro para brincarem, para os adultos conversarem, fumarem seu cigarro de palha, até dar a hora de entrar. Os tamarindos abriam suas folhas, como se estivessem sorrindo, ao ouvir as cantigas de roda que os meninos aprendiam. As cantigas eram decoradas durante as aulas que aconteciam na própria casa. O canto não só encantava as crianças, mas também os mais velhos, que cantarolavam baixinho ou batendo palmas, sob a luz de candeeiros ou da lua, que, se estivesse cheia, projetava sua luz por entre os galhos.

“Ô Siriri, Ô meu bem, Ô Sirirá Roubaram o meu amor

E me deixaram sem amar Eu agora arranjei outro E quero ver você tomar”

Até o pai Nonato, que era mais fechado, gostava de acompanhar essa marchinha, quando os meninos decidiam cantarolar. Ao se posicionar num

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mesmo lugar que aquelas crianças, cantando, o patriarca quebrava barreiras. “Eu sou rica, rica, rica” Quando me conta essa história, minha mãe está cantando a cantiga que nem eu mesma imaginei que existisse naquela época. Tentei com que ela se recordasse de outras, mas não lembrava mais. Só lhe vêm à memória as que, cheias de significado, enfrentaram o tempo. Como não havia possibilidade das crianças irem à escola na cidade, o jeito mais prático dado pelo pai era o de contratar professoras particulares, que coubessem no seu orçamento. Pessoas próximas, algumas até parentes, que vinham passar a semana, com tudo pago por ele. Sala única, com as crianças juntas, independente da idade. Era somente uma professora, portanto, adequar-se era a solução. Não tinha que reclamar. Ainda era muito. Estudar não era lá tão aceito. O patriarca tinha receio de que as meninas escrevessem bilhetes românticos. O propósito era aprender ler e escrever o nome e fazer “contas”. Estava bom se alcançasse isso. Aos fins de semana, a professora voltava para casa. — Eu aprendi foi conta de dividir com doze números. Fazia tudo que a professora Iraci mandava. Hoje, eu que tô maluca, não lembro mais de nada. Cecília sempre teve uma caligrafia de perfil meio redonda, com as letras desenhadas, que ela tende a soletrar, com firmeza: ceeciceicileilia - cecília. A leitura, meio lenta, pausada, não lhe deixa leiga em alguns momentos. Conseguiu interiorizar os conhecimentos, porque suas professoras tinham vocação para ensinar. Eram meigas, interessadas, ensinavam calmamente, contudo o ciclo se findava no primário. Quem desejasse seguir para outras séries teria de ir embora da fazenda. E isso seria a contragosto do pai. Alice até foi para a Varjota, mas teve de voltar. Sair de casa só se fosse para casar. Outras primas, que também estavam na Varjota, conseguiram se formar e fizeram faculdade. Cecília bem que queria, mas não insistiu. — Nem que eu quisesse, papai não deixava. As aulas eram esperadas pelas meninas. O novo que as professoras traziam da cidade eram de deixar os olhos brilhando. Não havia entre eles somente uma relação meramente profissional. A amizade circulava naquele ambiente, bem como o respeito. Primeiro, as aulas aconteciam na casa de Manoel Domingos. Dona Alzira, depois casada com Nestor, que era sobrinho de Cecília Mãe, começou a dar aulas para a Cecília Filha e seus irmãos. Dali, uma grande amizade nascia, inclusive com Bebai, irmã dela, que morava com a irmã Maria Gercino, esposa de Eutrópio, também do outro lado da Mãe D’Água.

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— Essa tia era uma costureira de mãos prendadas. As três irmãs eram finas, simpáticas. Não tinha como não se apaixonar por elas.

Mas as aulas de Dona Alzira também não duraram muito. Ela logo foi morar na Folha Miúda, quando se casou com Nestor e, depois, foram morar em São Paulo. Após algum tempo, procurava-se outra professora e encontraram Luiza, uma prima que ministrava suas aulas na casa de Zé Nonato, a cerca de uns duzentos metros de distância. Ela era filha de Feliciana, tia paterna de Cecília. Moça mais velha, aprendeu e repassava aos seus primos os seus conhecimentos. Mas também não demorou muito, e teve de ir embora. O patriarca, por mais que não dispusesse de muita vontade para os filhos irem à cidade, via nos estudos um modo dos meninos aprenderem o que ele não teve possibilidades. Sem lamento. Sempre dizia que nunca fora ao banco, nem sentia falta. Sua vida era a labuta da vida no solo árido, seco, mas que brotava quando Deus queria. O campo era a escola, campear era o verbo mais conjugado. E essa vida o levou a ser considerado um dos melhores vaqueiros da região, com direito a uma medalha enviada pelo governador Paulo Guerra, recebida das mãos do bispo Dom Francisco, por ser o mais velho a exercer a função de vaqueiro. Teve até lenço presenteado por Luiz Gonzaga. E como fazia bem feito o trabalho, era, de vez em quando, chamado para procurar gado de outros fazendeiros em suas caatingas. Por merecimento, hoje uma rua de Floresta tem o seu nome. Pouco tempo depois, quando Cecília já tinha seus 17 anos, Iraci, filha de Olímpio, primo da mãe, veio de Floresta, para ministrar as aulas. Agora, já dentro de casa, as coisas poderiam se ajustar melhor. Nessas aulas, foi aprendida a conta de dividir, houve melhora na sua letra, a leitura passou a ter mais segurança. Iraci era uma mulher calma, boa. Sempre que Cecília toca no nome dela, usa tais adjetivos. A gratidão permeia toda a narrativa dessa época da escola, mesmo a professora tendo feito uso da palmatória, em alguns momentos. Nada que um instante não curasse. O amor sobressaía. O novo batia sempre à porta e as lágrimas cessavam. Era aprender ou ficar leigo. Escolheram o primeiro. Quando as aulas terminavam seus ciclos, a professora voltava à cidade. Nesses dias as crianças tinham suas atividades em casa, estudando a tabuada, escrevendo na carta do abc, que eram inadiáveis, mas, depois, conversavam uns com os outros sobre o que aprenderam. Claro que, devido às idades não serem compatíveis, o desenrolar das aulas era quase equiparado, porque todos na mesma sala estavam ouvindo e participando dos mesmos conteúdos.

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Apenas havia algumas disciplinas que uns se destacavam mais. Cecília gostava da matemática, e também treinava a soletração, todos os dias. — Soletre seu nome, Antônio. — Anea-tio-neton. — E é Antoniu? — risos saltavam. — É assim, menino: Anea-tionton-neinió Testes de Cecilia e seu saudoso sobrinho Antonio, filho da irmã Cacá, eram sempre cobertos de risos. Ela tinha domínio e gostava de passar para os sobrinhos o que aprendia. Isso não somente nas letras, mas também nos alimentos, na lida com o gado. As meninas, entre elas, Sueli, era uma companhia e tanto. Mais nova, era uma graça quando as duas se encontravam, em algumas datas importantes, na cidade. Riam bastante, contavam seus segredos, uma relação de tia e sobrinha, mas também de amizade pura, verdadeira. Sem banheiro em casa, o galão de água que trazia do rio era separado para o banho. A água, com o tempo, esfriava. No entanto Cecília banhava-se mais demorado que o normal, pois os longos cabelos pretos davam certo trabalho. Eram lavados com sabão de soda. Esse sabão era sua mãe que preparava com sebo de bode ou banha de porco, misturada com soda cáustica, e com isso dava para ganhar até uma renda extra. Até os fazendeiros vizinhos compravam. D. Iraídes Novaes era uma das clientes mais fiéis: Esse sabão “obrava” milagres. Penteava seus cabelos cuidadosamente, sem cremes, hidratações, eram apenas cuidados com as mãos e secagem ao vento. Pequena, sua mãe fazia tranças e amarrava com tirinha de pano e até a cordinha de pavio, mas seus cabelos eram escorridos demais e não a seguravam. Quando ia à cidade, um pouco mais de apetrechos. Eles eram presos, feito volta, e um berilo segurava os fios. Espere. Faltava mais alguma coisa. O perfume. Tinha de ser forte, decifrável. Marca atemporal dela, que se recorda de várias fragrâncias que usou quando adolescente e mais mulher. Seiva de Alfazema, Topaze, Charisma, à época, perfumes considerados em alta. Tinham de durar muito. Não eram tão acessíveis e, mesmo que fossem, nem sempre poderia ir às lojas, quando eles viessem a findar. Quando isso acontecia, os frascos de vidro enfeitavam a casa. Havia outros cuidados também. Na face, talco ou pó compacto. No corpo, vestido no joelho e um calçado mais feminino. Um que tinha para todas as ocasiões. Ia sorrindo à feira. Ia de chinelo, a pé ou a cavalo, mas levava na sacola o calçado para andar nas ruas. Se tivesse um sapato mais novo, ele ia na sacola e, nos pés, o chinelo mais surrado. O evento, sendo importante, a sandália ou o sapato novo era usado, assim que

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lavasse os pés, ao chegar na cidade. Nem que, quando voltasse, tivesse toda a lida rotineira à espera. Passeava nas ruas de terra como num tapete; ali, caminhava saltitante. O perfume exalava nas esquinas.

— Grossinha, quando passava nas ruas, você deixava o cheiro. – foi o que disse Oton, um conhecido, quando me encontrou em Floresta. Ela sempre diz que não é porque morava na caatinga que não gostava de flores. Tanto que até hoje tem no perfume o seu acessório preferido. Os cheiros adocicavam os sonhos dela. Sempre tão perto do mato, do gado, que, quando saída da roça, sentia que sua alma feminina reinava, ainda que em doses, em pingos. O encanto que sentia quando via as moças da cidade, sempre tão belas, bem vestidas, era mais pelo batom, que tinha vontade de passar, mas não podia. Pelo menos não na fazenda. Se quisesse apanhar, deixasse o pai ver a boca vermelha. Sua madrinha Bilia, que assim chamavam Maria José Novaes, trazia do Recife. Sapato bem feito, bico fino, meio alto ela tinha, mas guardava. Havia dia certo para colocar no pé. O patriarca não deixava que as meninas usassem batom, nem pintassem as unhas. Cecília e as meninas aproveitavam a ida à cidade para ver os modelos das roupas e para passar o batom escondido dele. Lá ele não ia mesmo. O único medo era alguém de lá vir até a fazenda e contar tudo. Essa vontade de se “aprifilar” não era tão recente. Na Mãe D’Água sempre iam aos domingos alguns parentes de Manoel Nonato, sobrinhos de Senhor Juca, primo por parte de Domingos Novaes. As meninas viviam no Rio e sempre traziam novidades. Cecília, adolescente, já se via vaidosa em sonhos. Quando na cidade, andar na praça era como se fosse andar nas nuvens. Um lugar leve, em que poderia se sentir mais bonita, mais moça. Não se sentia mulher ainda para atrair olhares. Ela queria mesmo era poder caminhar livre, cantarolar, divertir-se, sem ter de fazer isso simultaneamente à lida. — Eita, mas eu gostava de andar na roda gigante. — Mas tinha naquela época, mamãe? — perguntou a filha à mãe. — Claro. E era bom ver o povo do alto. — Tinha medo, não? — Eu não. Eu ia com Sueli, Benvinda. Ela que tinha mais. O parque, quando vinha de ano em ano, coincidia com a festa do padroeiro, o Senhor Bom Jesus dos Aflitos. Pelas praças largas, disponíveis, Cecília gostava de caminhar. O parque apenas acrescentava uma opção a mais

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para quem só tinha um dia livre. Os demais ela estaria na roça. Se brincasse, seria com os bonecos de sabugo, os chiqueirinhos feitos de pedaços de galhos secos e os bichinhos de barro. Sentar na cadeira da roda gigante era o trono. O que Cecília sabia era que ela estava ali a passeio. E se seu lar era real, sua aceitação e entrega também eram reais. Não tinha essa de choros, vontade de não voltar para casa. — Boa romaria faz quem em sua casa está em paz — diz Cecília, que, quando adolescente, não se perturbava, não se recolhia. Ela se aceitava, embora admirasse mulheres da cidade. Sabia que a diversão poderia ser intensa, sem precisar ser diária. — ‘Bora, Cília. — Natinho a chamava abreviando o nome. Não era sempre. Apenas quando queria. Iam para o Mulungu. Saíam de madrugada. Era dia de tirar leite, para fazer os queijos. Era um trabalho rotineiro, cansativo, mas havia gosto. Não era feito somente por obrigação. O caminho até aquela outra sede era livre, de mata pura, e as cercas que separavam as terras não eram as mesmas que dividiam a fazenda da cidade. Por aquela, pulavam e seguiam. Não existia a distância, a fantasia. Era uma realidade que eles viviam até quando houvesse a vontade.

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Capítulo 7(Os primeiros passos)

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Em qualquer estaçãoNos campos

Solos da vidaEm meio à flora

Fulgura a florDentre tantas, a mais bonita.

Cecília, moça formosaBeleza atemporal e de outroraNão me canso de reverenciar

Sua beleza, minha doce senhora.

Sob o manto azul infinitoUm encanto, enlevo do mundo

Seu riso distrai até os passarinhosE eu, única filha de teu ventreVersejo, sentindo seu perfume

O meu carinho e deveras contente.

Assistindo à TV Cecília sempre comenta com asco sobre os beijos molhados, apertados. Quem no instante ali se encontra, ri e sempre pergunta se ela nunca beijou. São de praxe as reações de espanto. — Desse jeito, não. Só se fosse, mesmo. — Nenhum beijo, mamãe, nunca? Soltando um sorriso de soslaio, ela diz: — Só beijo no rosto, se desse. Esses beijos mostrando a língua, Deus me livre. Paquerei muito, mas, na minha época, era só de longe. Não tem quem prenda a gaitada. Não é tão fácil assimilar a ideia de que o beijo existe há muitos anos, e que nem todos são adeptos dele. Difícil explicar para quem vive numa década diferente o sabor, a sensação que tem aquilo que ela não tem o costume de praticar, de viver. Ela era da lida com o campo, com os animais, e esse trato afinado e extensivo a todos os seres encontrava neles a acolhida. Não sentia a clara necessidade de viver o diferente, até o dia em que encontrou, por acaso, o primeiro amor. No ano de 1954, em uma de suas andanças pela praça da Catedral, ela foi rendida a um novo encanto. Viu Elias Siqueira, rapaz bonito, carismático e os olhares foram trocados. Ele era filho de Seu Elias Sacristão e de Dona

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Maria. Um rapaz moreno, de boa índole, que morava na praça perto da Igreja do Rosário. Ela vinha à tarde, pela praça, quando olhou de lado. Sentado na calçada com mais algumas pessoas, ela olhou para ele. Ali nascia um encontro que daria um novo rumo a sua vida. A troca de olhares permitiu que os dois se conhecessem. Foram apresentados e começaram a namorar. Com pouco mais de 21 anos, ela sentiu que estava pronta para viver a dois. Sentia vontade de deixar um pouco de lado a lida com os bichos, a fazenda, e rumar a outro destino, a outras situações. O amor poderia lhe trazer isso. Em três meses, Elias pediu sua mão em noivado. Um rapaz trabalhador, na época no DER, órgão público, e, com isso, Cecília sentia que seu pai não hesitaria em conceder. Ela já frequentava a casa dele. Diz alegremente que D. Maria, mãe dele, já a tratava como ente da família. Lembra-se perfeitamente de um bolo de camarão que ela fazia. Durante a semana, eles não se viam. Como ele morava e trabalhava na cidade, e ela na sua rotina na fazenda, finais de semana ele ia para lá. Os dois sabiam que estavam no mesmo local, viam-se ao longe, sentiam seus perfumes, que ela fazia questão de colocar bem mais forte, mas não se tocavam. Uma frase ou outra trocava, mas sempre em frente dos irmãos. Sentia que tudo ia nos conformes até que uma amiga de seu pai chegou do nada e o instigou a pensar mais no casamento. A partir dali, por motivos que ela não mais se recorda, seu pai não permitiu mais o casório. Elias ficou sabendo e, antes mesmo dela estar ciente, terminou o noivado. Ela ficou muito triste, sentindo-se preterida por não poder mais ficar com ele, decidiu ir para um convento. Sentiu que precisava sair um pouco daquele lugar que sempre viveu intensamente, mas, quando conheceu o amor pela primeira vez, seu pai a impediu de ir adiante. Passar um tempo fora poderia amenizar a tristeza que ora sentia. Enxugou suas lágrimas e rumou à capital. Seus pais conversaram com Olga, filha de Manoel Olímpio, parente de sua mãe, Cecília, e elas partiram na van que pertencia a Evan Ferraz. Era um carro que levava passageiros de Floresta ao Recife todas as semanas. Chegando lá, pegaram um trem até o convento que se localizava no Barro, um bairro antigo da capital. Muito bem recebida pelas freiras, foi para seu quarto que dividia com algumas irmãs. Uma de suas maiores lembranças dessa época era o carinho. Com riso largo, recorda que gostava muito das moças que moravam lá. Contavam histórias, rezavam e brincavam. Uma das brincadeiras era a corrida com ovo na colher, que é atemporal. Nas noites insones, lembrava-se com saudades de sua casa, da lida, que

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poderia amenizar o vazio que ora sentia. Não durou muito lá. Em seis meses, retornou para casa. Voltou com seu primo Antônio Cícero, filho de seu tio Cícero Birico, irmão de sua mãe. Veio de carona diretamente para a fazenda. Lá entrando, pediu a bênção aos pais, deu um abraço na mãe, em sua irmã Alice e em seu sobrinho Bel, e trocou de roupa para ir à roça. Não queria ficar em casa. Foram poucos meses após o ocorrido, e sentia que a ocupação poderia ser lenitiva ao pranto. Estar na lida, na correria sob o sol escaldante, poderia esquentar seu coração. Todos os dias a mesma rotina preenchia a semana. Levantava cedinho, colocava seu lenço no cabelo e saía de madrugada com Natinho ou com um dos seus irmãos. Tomavam café, muitas vezes embaixo do pé de umbu ou outra árvore mais próxima que tivesse uma boa sombra. Vez ou outra cantavam para passar mais rápido. Dentre suas músicas, Orlando Dias compunha o repertório. Tanto gostava de cantarolar que costumava escrever a letra na carta do abc, quando ouvia no rádio de pilha que Bel colocava na estação, ou então cantarolar as letras das músicas de Jerry Adriani, escritas no caderno por Toinho de Dindim, primo de seu cunhado Manoel Quinca. Músicas românticas que enterneciam o meio bruto do qual faziam parte. Sua coragem e força não eram medidas pelo corpo esguio, mas pela vontade de seguir, sem medo de errar. Os erros eram apenas meros resultados. Poderia corrigi-los e recomeçar, e assim o fez por toda a vida. Como em sua casa, muitos eram os visitantes. Mais dia, menos dia, ela sentia que outro amor encontraria, nem que, para isso, demorasse alguns anos. Mesmo sem nenhum grau de parentesco, alguém poderia surgir, sem bater à porta à sua procura. Poderia aparecer naturalmente e, dali, começar uma nova história. Quando seu primo Afonsinho, filho de Afonso Nonato, do irmão de seu pai, foi visitar a família no ano de 1966, eles conversaram superficialmente, sem delongas, mas logo sentiram que a paquera desenrolaria para algo mais sério. Era assim na época. Os compromissos firmados não precisariam de anos para serem formalizados. No caso deles, em menos de um mês já se falava em noivado. Ele, por ser já da família, não tinha como haver uma recusa por não conhecê-lo bem. Sabia procedência, intenção e, por isso, se entregaram ao novo relacionamento, sem mesmo haver uma aproximação de corpos. Namoro de convenção, de sentimento. O corpo somente quando fosse oficializado o matrimônio. Afonsinho era um rapaz galanteador, que escondia um antigo namoro. Ao namorar sua prima, não lhe contou que outra moça fazia parte de sua

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vida e que, com ela, manteve uma relação amorosa. Pouco menos de três meses de namoro, a moça apareceu grávida e, com essa notícia, deslanchou para o fim a história do amor entre Cecília e ele. Depois de quase doze anos do seu primeiro amor, ela acreditava que esse poderia dar certo, mesmo sem ter tido tempo e nem tanta clareza de que seria esse homem o seu par para todo o sempre. Essa definição de eternidade era bem clara quando os casamentos naquela época aconteciam. A união, sob qualquer condição, era uma premissa. Casar para viverem juntos, sem separações. Se aconteciam, eram raras. No entanto, desde o início, ela sabia que era um pouco diferente. Casar era uma porta, porém se a chave não desse certo, permaneceria dentro, à espera, sem correria, de alguém que destramelasse e ela conseguisse se libertar. Não se sentia presa, com vendas nos olhos ou com vigias. Seus pensamentos não eram amarrados. Conseguia, pelas paredes daquela casa, sonhar e sentir que sua vida poderia mudar a qualquer momento. Mas a rudez de seu pai e a doçura de sua mãe já começavam a não ter mais o equilíbrio. Via que a cada dia era mais difícil domar suas vontades femininas em casa, na labuta com o gado, com as plantações, se todas as suas irmãs já estavam casadas. Com recursos provenientes de sua lida no campo, conseguiu adquirir algumas coisas, seu enxoval, mesmo sem ter ninguém em vista. Queria casar. Sabia que não poderia deixar sua lida do campo, de casa, em segundo plano. Só que a vontade de contrair matrimônio era uma forma que ela encontrava de poder cortar seus longos cabelos, e que seu pai, até então, proibia. Sempre cautelosa, sabia que precisava ter alguns trocados, em caso de uma necessidade. Não era moça de ficar pedindo. Tinha de ter o seu trocado, ao sair de casa, para ver o horizonte por trás dos serrotes. Queria também sentir-se bonita. Sempre gostou de perfumes e joias eram algo novo. Com sua irmã Benvinda já casada e morando na cidade, comprou alguns anéis de pérola, colares, pulseira com seu nome gravado. Sua irmã tinha muito conhecimento com Marina, irmã de Sr. Arlindo, e, uma vez por ano, com o dinheiro proveniente da venda de algumas cabeças de gado que conseguia vender, comprava suas joias à vista. Nunca gostou de fiado. Isso desde que me entendo por gente. — Não precisa dizer no livro, não, menina. Besteira. — É não, mamãe. É bom colocar os detalhes. Sua história é tão bonita. Tentar argumentar com ela não é tão fácil. Fuçar histórias, muitas vezes não tão fáceis de serem digeridas, pode voltar alguma lembrança meio triste. Quando ia me aprofundar, eu a deixava sempre que contasse por meio de

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minhas perguntas. Às vezes, ela se esquecia, não respondia inteiramente; muitas frases fragmentadas precisavam ser escritas para serem coesas e entendidas. Naquele tempo, o namoro era apenas passo para um casamento. Se agradasse aos pais, se fosse aos seus olhos um bom parceiro, a demora era mínima para se realizar o matrimônio. Moça de família tinha de se preservar, de seguir algumas regras. Mais especialmente no caso dela, os cabelos não eram cortados, sua pele e suas unhas não eram pintadas. Se os cortasse, se as pintasse, talvez até não houvesse punição, uma surra, mas não tinha como prever. — Ah, papai era muito severo. Quando ela cita frases justificando o cerceamento de sua liberdade, sempre corre do assunto. Os caminhos da roça e de sua vida estavam alargando. Ela vinha há mais de 32 anos encontrando nos afazeres o trabalho e o lazer. Era mulher comprometida com a casa, com sua família, com os bichos. Isso, por mais que tivesse um vazio, se ela não estava tão contente, calava-se. — Ah, se eu respondesse a papai. Nem em sonho. Um dia, João respondeu a papai e ele deu foi uma surra. João ficou desgostoso e foi embora. João era seu irmão, um pouco mais velho. Morou durante muitos anos em Ceres, no estado de Goiás. Casou-se, mas logo se separou. Voltou em Floresta por duas vezes. Ela foi visitá-lo uma vez, mas ele acabou falecendo e sendo enterrado em terras goianas. Se para os homens da casa era difícil opor-se às normas descritas pelo pai, imagine para uma mulher que, sozinha, estava à frente dos serviços e, solteira, permanecia em casa. — Ô, Cecília Nova. — chamava seu pai da frente da casa. — Já vou. — respondia ela da cozinha. Mas a resposta estava a poucos metros dele, porque não se poderia demorar. — Pegue umas cadeiras para Zé Piauí. Ela pediu a bênção à visita, que vinha com seu filho mais velho, José, mais conhecido como Zequinha. Um rapaz alto, olhos verdes, magro, todo encourado, chegava da caatinga, com o pai, e que Bel os acompanhou até em casa. Sentados, seu pai pediu para que ela buscasse água. Numa bandeja, ela trouxe os copos que vinham com água fria do pote de barro. Trouxe na bandeja porque tinha medo de derrubar as vasilhas. — E quando a senhora viu ele, achou bonito, mamãe?

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— Oxe. Nem podia olhar direito. Mas eu já tinha visto Zequinha. Ele já tinha ido outras vezes com Bel lá em casa. Bel, filho de Lourdes, irmã de Cecília, morava na Mãe D’Água desde pequeno. Era companhia do avô quando campeavam e cuidavam dos bichos. Primo legítimo de Zequinha, pois os pais eram irmãos. Havia laços dos dois lados. Ela sentiu que algo diferente aconteceu. O lenço que estava prestes a atar não era o de sangue somente, era o laço que a ataria à liberdade, à renovação do coração. Novamente ela se via capaz de seguir uma paixão e que essa poderia ser a chave de sua libertação.

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Capítulo 8(Caminhos do amor)

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Frondosos pés de tamarindoMagistrais e anfitriões

Frutos bailam feito sinos

Vívidos, ainda que a chuva tardaDão boas-vindas a todosAos que vêm àquela casa

Abraçam e acolhemRedes balanços nos seus galhos

Vaqueiros se deitam, descansam um bocado

Suas folhagens atraemMenina, mulher ou rapaz

Sob a sombra tão boa, quem não se sente apraz?

Não somente a perpetuação das árvores, mas o amor torna ainda mais belo um enlace embaixo das sombras centenárias. Os tamarindos da Mãe D’Água encabeçam as descrições da fazenda, quando se perguntam sobre o que tem de bom naquele lugar. — Ah, tão bom sentar sob eles. Se todos tinham essa frase como lembrança, os que lá se encontraram, que se casaram, que se divertiram com eles, sabem que há uma magia envolta nos tamarindos.

Naqueles anos 1940, 1950 não estavam no auge os casamentos feitos ao ar livre. Hoje é muito comum vermos as celebrações em praias, fazendas, parques, seguindo tendências. Na fazenda da família de Cecília, o lugar era apenas um detalhe. A simplicidade, os donos da casa, a amizade e o amor eram essenciais aos noivos. Naturalmente, o cenário rústico que ali nasceu embelezava ainda mais a festa. Pés altos, frondosos, com os frutos pendurados, ornamentavam ricamente os casamentos. O banho no rio era um atrativo a mais. As pedras de onde todos pulavam para a água e a fartura da casa aproximavam as pessoas. Os donos da casa sentiam prazer em ter em seu lar os noivos, amigos de longas datas. Escolher e pedir permissão para a realização daquele evento era ter o sim como resposta. Muitos dos filhos casaram na cidade e voltaram para a

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fazenda para aproveitar as festas. Algumas duravam mais de dois dias. No entanto, com os casamentos, menos pessoas ficavam em casa. Vazios cômodos silenciavam a casa que tinha a voz e os aboios como sinfonia. A matriarca sentia alegria aos ver que seus filhos estavam felizes, mas sentia, também, a tristeza por não tê-los mais embaixo da saia, como costumava dizer. E, nessas ausências, amigos enchiam a casa aos domingos, feriados. Gente de todo sobrenome, até de fora de Floresta. Pescadores de Garanhuns vinham visitar, na tentativa de levar uns peixes que não cessavam naquele rio, ora cheio. Cecília ganhara uma afilhada, Maísa, que desde muitos anos não mantinha mais contato com ela. Eram amizades de sentimento que aquela fazenda uniu. As bodas de amigos também enchiam o terreiro. Muita gente ajudando na cozinha, bode sendo tratado, retalhado, buchadas costuradas, vassouras valsando na terra serviam para encher as manhãs que antecipavam as celebrações da tarde. Todos colocavam as mãos nos preparativos. Geralmente, os casamentos eram realizados cedo e depois o almoço acontecia. Quem não ia à Igreja vinha para a festa, ou em seu carro próprio, ou de carona. Os convidados quase nunca desistiam de participar.

— Papai dava a casa e ainda ajudava com um bode, com o que pudesse — diz Cecília, recordando os eventos. — Não esqueço do casamento de minhas irmãs Afonsina e Angélica, gêmea de Amélia e sua madrinha de batismo. Era um dia de domingo, 27 de dezembro de 1947, quando eu tinha meus 14 anos. Angélica casou-se com Manoel Quincas, parente da família, que morava no Morro Preto. Afonsina casara-se, então, com Benício, tendo apenas dois filhos com ele, Célia e o saudoso Cirlei. Logo depois, viuvou-se, casando com José Leite. Foi festa por dois dias. Havia cantador e tocador de sanfona. Era José de Olímpio, filho de um primo da mãe das noivas. Casa cheia. Do dia anterior, já estavam na cidade, mas, no domingo cedo, depois do casamento, todos voltaram para a casa-grande. Já tinha gente lá nos preparativos, só esperando os noivos chegarem. Os tamarindos uniam pessoas. Antes de Cecília nascer, muitos casais nasceram dali. E não só os da família Nonato. Antigamente, pelo não consentimento dos pais, as noivas eram “roubadas”. Os futuros maridos fugiam com as moças na garupa de um cavalo, sentadas de lado. O destino era sempre a casa de alguém que os acolhesse. E Manoel Nonato foi padrinho de José Nicodemos e de Isaura. Grandes

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amigos, ele não pôde se opor à união. Sua casa serviu de abrigo até o dia do casamento.

Zé Nicodemos tornou-se amigo de toda a família e sua presença era sempre esperada pelas crianças. Trazia presentes, quando vinha da feira de Serra Talhada, e a garotada já corria para pedir a bênção. Mas houve outros finais felizes também.

Lá na casa-grande, Dodô e Zé Pedrão, um casal amicíssimo e que a amizade passou de geração para geração, também se uniram sob as árvores centenárias. Eram parentes do patriarca, mas a amizade era bem maior que o sangue que corria nas veias. Essa amizade passou de geração para geração. Como o patriarca dessa família, ele fez o mesmo roteiro da festa de Zé Nicodemos. Após casarem-se na Mãe D’Água, o que importava era o amor ali instaurado e formalizado nas pedras da calçada da fazenda. E enraizava-se. Lá era assim. Casar era para ficar até o fim da vida. Os eventos faziam sucesso com a criançada, com os rapazes. Novas pessoas eram encontradas, os conhecidos se reencontravam. E nem precisavam sair de casa para que isso acontecesse. Era uma alegria só. Ir à cidade, à feira, parar no mercado de Meuzinho Novaes para fazer as compras como se fosse a uma festa de gala. Para as mulheres, sair causava ânsia. Tinha de se arrumar duas vezes, porque os cabelos lavados, enrolados, com tranças ou soltos, ficavam despenteados quando o vento batia, se fossem de carro para a cidade. — Eita, mas era bom quando a gente ia para a rua. Colocava minhas joias, perfume e os sapatos numa mochila, para calçar quando chegasse lá. Minha madrinha Balia me trouxe um sapato azul do Recife, que achava lindo. — Hum. E vocês iam sempre, mamãe? — Oxe, não. Uma vez em cada seis meses ou de ano em ano. A ida à cidade era comemorada. Quando crianças, iam com a mãe, a pé, por dentro do Pajeú, saindo perto da rua da Catedral. Foram crescendo e pegando carona, muitas vezes iam de cavalo. Se o evento era para todos, um carro ia buscá-los na fazenda. Sair de casa, para o que fosse, era motivo de festa. — Eu gostava de ir nas eleições. — Mesmo, mamãe? Gostava de votar? — Não. Gostava de passear.

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Já sabendo escrever, não tinham tanto problema na hora de escrever o nome do candidato. Para votar, cedinho o carro do senhor Zé Quincas Novaes, pai de Maria José de Afonso, passava para pegar o pessoal. Era compadre do pai dela. Tinha uma caminhonete e todos iam em cima, alegres. O que mais importava era chegar lá. Os encontros faziam parte da rotina. Se viessem à cidade, encontrariam os familiares, se fosse na fazenda, encontrariam com os vizinhos, com os visitantes. A família gostava de não estar só. Nas eleições desciam do carro perto da igreja do Rosário, porque o motorista morava perto dali. Mesmo maiores, não podiam se separar muito. Tinha hora marcada e tinha regra, até para andar na rua. Dali, dirigiam-se aos setores de votação, mas logo que finalizavam, iam a um ponto de encontro, à casa de uma parente, costumeiramente a casa de Cacá, para almoçarem, conversarem e depois se juntarem para irem embora. Sempre que saíam, aproveitavam para levar umas coisas para os que moravam na cidade: uma banda de bode, um pouco de feijão-de-corda, um queijo. O que tivessem. — De mãos abanando ninguém ia para a casa dos outros. Papai não gostava. Até hoje, Cecília cultua esse ato. Leva para quem hospeda, presta favores, a ela ou sua família, alguma coisa especial. Não é uma atitude de pagar favor, mas simplesmente porque simboliza gratidão e os agrados são sempre bem aceitos. Com quase todos os filhos casados ou morando em São Paulo ou no Rio de Janeiro, sobraram na casa apenas Cecília e os sobrinhos Natinho, Bel e os meninos de Ulisses e Cota, que moravam próximo e visitavam sempre a casa-grande. Ela tinha a companhia deles nos serviços, mas, mesmo que não tivesse, fazia sozinha as atribuições diárias. Quando iam à cidade, lá ela se encontrava com Sueli, sua sobrinha, e iam passear. Por mais que Cecília tivesse formalizado um namoro, não podia encontrar o namorado a sós. Sempre de longe, olhavam-se, porém, de perto, alguém estava vigiando. Bilhetes ou toques não eram permitidos. Era uma liberdade assistida. Ir para as ruas, para as praças, era sentir-se livre, porém com limites. O fato de ver coisas novas supria o que fazer com essas mesmas coisas. — Mas era bom andar com Sueli. A gente ria demais. Quando conheci Elias, foi na rua. Um dia ele me deu uma caixa de sabonete Orquídea. Nunca esqueci. — Ele deu à senhora na cidade? — Não, menina. Levou lá em casa. Não tá vendo que a gente não podia chegar perto, se não tivesse gente?

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Uns quinze anos depois, assim que namorou Zequinha por três meses, mesmo depois de alguns empecilhos, eles se casaram. Zequinha foi uma escolha que ficava entre a liberdade e o despertar de um novo mundo. Ele, bem mais novo, doze anos de diferença, algo incomum à época; ela, uma mulher beirando seus quarenta anos, vivaz, forte, que sempre viveu em função da casa de seus pais, decidiu escolher o amor que havia chegado na hora certa, por mais que já conhecesse seu futuro marido, ainda criança, quando banhava-se nas águas do rio Pajeú. A vida seguiu. Agora, a moça do campo, que viveu quase quarenta anos na labuta com o gado, na casa de seus pais, teria que cuidar de sua casa.

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Capítulo 9(O casamento)

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No ano de 69 casaram, sem a presença dos paisEla 12 anos mais velha

Ele que a amava por isso bem maisEra amor incomum àquela época

Mas isso a ele não importavaO sentimento era lindo demais

Era o sonho da morena unido aos olhos verdes daquele rapaz.

Nasci, depois de três anos casadosE eles ficaram juntos por vinte anos

Mas, para minha tristeza, depois se separaramSó que a lembrança do chá que ele levava quente

À cama, quando ela se encontrava doente,Ou quando ela batalhava bravamentePor dias melhores: isso inspira a gente.

Ah, meus pais tão amados,Que por mais que hoje se encontrem separados

Ele, que não se encontra mais neste plano,Ela, guerreira, segue, os passos contando

Só peço a Deus que ilumine grandementeE que eu possa ajudá-la, cuidadosamente

Pois agradeço aos dois e os amarei eternamente.

Desde quando Cecília conseguiu traduzir seus sentimentos, sentia-se diferente. Não trazia em si pensamentos semelhantes às moças de sua idade. Sobressaía a vontade de se profissionalizar em vez de casar. Não via no casamento a formosura que apregoavam nos anos 1950, 1960. Ocupava-se demais nos afazeres comuns à sua realidade, tanto que não havia sentido ainda a necessidade de sair de casa. Em alguns serviços, destacava-se bem mais que alguns homens da lida. De preferência, gostava mais de ouvir elogio dessa habilidade do que sobre sua beleza, seu lado feminino. — Papai era muito severo. Pegava muito no meu pé. — Mas, por quê, mamãe? Por que não queria que a senhora saísse de casa? Mesmo sabendo que eram os braços e as pernas deles, depois que todos

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os seus irmãos casaram, ela se contém ao responder: — Era isso, não. Eu acho que papai gostava mesmo era de me reclamar. Não tinha mais ninguém para ele fazer isso. Vez outra, percebe-se que ela guarda sentimentos nunca desbravados, daí a ausência dos argumentos, da necessidade de aprofundá-los. Num contexto patriarcal, Cecília muitas vezes se esquivou de diálogos. Sentia que jamais mudaria algo já inerente da época, de sua criação. Foi aí que viu no casamento a sua carta de libertação, um mapa por onde poderia circular fora de onde o seu pai desenhava. Todos os irmãos estavam casados ou tinham ido embora de casa. Alguns em São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Rondônia, outros em Floresta e nas redondezas; ela foi a penúltima a sair de casa. Depois dos dois namorados que teve, passou muitos anos sem ter seu coração cativado por algum moço. Nem se preocupava com isso. Era se aparecesse e se ela permitisse. Tinha no campo a alegria, embora faltasse algo que pudesse tornar seus dias mais completos. Não que não conhecesse seu futuro marido, mas quando seu noivo, agora rapaz, apareceu na fazenda em companhia de seu primo Bel, e, também, sobrinho dela, sentiu que um sentimento surgia. Era controlado, disfarçado, porém havia algo diferente. — Menina, já vi Zequinha pequeno tomando banho, enquanto a mãe dele lavava roupa no Pajeú. — conta sorrindo, destacando a diferença da idade. Ele e sua família moravam do outro lado do rio quando os dois eram pequenos. Era o mais velho de dez irmãos. Seu pai, sobrinho de Sebastiana, primeira esposa do pai de Cecília, viviam dos mesmos serviços, mas em terras arrendadas. Sua mãe, da região de Nazaré e Carnaubeira, era uma senhora alta, olhos azuis, de porte magistral. Uma matriarca sem rodeios. Cecília não era de frequentar a casa deles em Floresta, por não poder frequentar a casa dos noivos sozinha. Mas Zequinha era vaqueiro que, vez ou outra, passava nas terras da Mãe D’Água para beber água, conversar sobre os bichos, papear um pouco. Quando os dois começaram a paquerar, ele vinha com mais frequência. Já morava na cidade nessa época. Ainda sem ninguém saber, e nem mesmo os dois haviam falado sobre isso, os olhares afirmavam que havia um compromisso, ainda que a formalidade não tivesse sido colocada em prática. Assim como a bênção que era pedida todos os dias, ao se levantar, às dezoito horas, ao dormir ou ao sair de casa, assim também era a tradição dos namoros de antigamente. Não se tocavam, mas quando os olhares assinalavam a

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paixão, firmava-se o respeito e a lealdade. Passados uns dias, ele pediu sua mão em noivado ao sogro, que aceitou, embora não fosse de total agrado. E, mesmo conhecendo a família dele, isso não fazia diminuir a distância. Tinha todo um procedimento, uma lista de condutas. — A senhora amava papai, mamãe? — Muito, não. No começo era só olhar, menina. — Mas e depois? — Depois, sim. E as conversas não são estendidas com relação aos sentimentos. — Zequinha ia lá em casa, mas a gente não ficava só, não. Ele mandava recado por Bel, e Bel me dava escondido. Depois, quando já estava rapaz, o olhar verde iluminava mais no rosto da morena. Não era um olhar por baixo. Era direto, porém fugidio. Mesmo com a diferença de idade, eles decidiram encarar a reprovação do pai dela, da sociedade, porque não era comum uma moça mais velha casar-se com um rapaz mais novo e até mesmo de condições financeiras diferentes. Nessa época dos três meses de namoro, ela estava com 36 e ele com 24 anos. É sabido que o pai de Cecília não era tão favorável ao casamento, mas ela nunca gostou muito de enfatizar o tema. Receio que quem ouve essa história interprete como soberba. O fato é que permear uma ruptura daquilo que ela vivia seria um choque. Ela não se opôs, contudo, libertar-se era querer conhecer coisas além das cancelas, dos serrotes da fazenda. Por mais que seu noivo ali vivesse, quando se unissem, sairiam do meio. Não definitivamente, mas isso daria um tempo para eles. Somente para eles. E assim foi. — Vivia só “socada” em casa. Não podia sair que papai era pastorando. Ela sempre ajustada economicamente, costumava fazer sua poupança, dentro de casa. — Menina, quando eu me casei, tinha toda guarnição. Comprei tudo, aos poucos. Juntava todo meu dinheirinho que ganhava. Madrinha Bilia me trazia coisas do Recife, quase eu nunca comprava. A guarnição de Cecília era o seu enxoval, o qual mandou fazer. Lençóis de boa qualidade, bordados à mão, são guardados até hoje. Um pulo para mandar fazer o vestido. Quem fez o seu vestido, tubinho branco, foi Detinha, costureira renomada em Floresta. Depois do casório, a roupa foi reformulada. Ficou sem as mangas, e, até hoje, é guardado no armário, mesmo amarelado por causa do tempo.

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— Seu pai não deu nada? — Mãe até que pediu, mas ele só me deu trinta mil cruzeiros novos. Mas eu tinha. Vendia as cabeças de gado que eu tomava de conta e consegui comprar as coisas. E na sexta-feira que antecedia o casório, eles foram para a cidade. Não era comum casarem no meio da semana. Foram antes, para dar tempo de ajeitar as coisas. — Papai me chamou, do lado do curral, e me perguntou se era aquilo mesmo que eu queria fazer. Eu ouvi tudo e disse que queria. Pedi a bênção a papai e a mãe e fui. Fui a pé pela “rodage”. Casaram-se num domingo, na Catedral, na presença das daminhas e irmãs Fátima Rocha e Cristina, dos primos, compadres, amigos e das irmãs, mas sem a presença dos pais. Eles não costumavam sair de casa. Já era de se esperar. De quase nenhum casamento dos filhos eles participavam. Gostavam da vida pacata da fazenda. Já do lado do noivo estavam alguns irmãos dele e amigos. Toda noiva demora um pouco, tradicionalmente, para chegar à Igreja. No caso dela, não. Acordou cedinho, depois de banhar-se, colocar seu perfume Charisma, amarrou os cabelos. O vestido de seda pura, em cima do joelho, foi colocado por último, para não sujar de pó compacto, única maquiagem junto ao batom, que usou no dia. Maria José Novaes, de Zé Quinca, emprestou o sapato. — Eu me lembro das meninas me arrumando e Maria José dizendo que nunca viu cílios tão grandes e sobrancelhas tão bonitas. Sem correria, estava pronta cedo. Foi para a Igreja, no carro de sua testemunha Nelson Rosa. Após o sim e o fim da cerimônia, foram para a Rua de Cima, para a casa de sua irmã Amélia, que ficava vizinha à casa de Cacá, irmã mais velha. A festa rolou o dia inteiro, ao som de Orlando Dias, Nilton César, cantor preferido dela. O som era um aparelho pequeno. Um bolo muito bonito centralizava a mesa de madeira, de quatro cadeiras. Foi feito por Glória de Manoel de Chico Novaes, doceira de mão cheia, como diz Cecília. — Não comprei nada fiado — diz ela, com orgulho. — Na igreja tinha um tapete vermelho, que me lembro que foi Amélia e Benvinda que ajeitaram. Quando a festa findou com o raiar do sol, os dois arrumaram as coisas do casamento, na companhia das irmãs, e foram para o novo lar. Era uma casinha que tinham alugado antes de se casarem, que ficava próxima a Adauto Doroteu, na Rua do Cinema.

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Ali, iniciava sua história, com seu “gato escaldado”, apelido carinhoso que ela costumava chamar, por conta dos olhos verdes, marcas dele.

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Capítulo 10(A vida a três)

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Foi meio demorado o encontroMas precisava seguir sem impulso

Era a hora exata no tempoEm nós dois nasceu a empatia, a contento

Cedemos ao amor que nasciaEra certo o ser par, sermos de nós companhias.

Essa vontade de se acertar financeiramente norteou a vida de Cecília. Assim que se casou, ela e Zequinha foram morar na Rua do Cinema, numa casinha alugada, e só depois foram para a Rua de Cima, onde já tinham alguns parentes por lá. Sempre hiperativa, começou a comprar banana e revender em casa mesmo. Do pouco que recebia, juntava um tanto. Um ano depois, feito muitos naqueles anos, foram para São Paulo, em busca de uma vida autônoma e diferente. Sua sobrinha Maria Benvinda, que já tinha partido para terras paulistas, entrou em contato e disse que, naquele Estado, seria bom de emprego para o casal. Eles foram em outubro de 1970, no caminhão de Camilo, casado com Maria José Novaes, e começaram a trabalhar logo que chegaram. Muitos dias na estrada, mas que não diminuíram a ânsia de um novo começo. — Wilson Cornélio já era acostumado lá em casa, na Mãe D’Água. Era caminhoneiro e arrumou um emprego para mim numa distribuidora de melões, no bairro da Penha. Eu colocava rótulo e ganhava pelo que fizesse no dia. Zequinha trabalhava na Rodorégis. Quando ele tava lá, arrumou pra mim e eu fui para a Rodorégis também. Eu era arrumadeira lá. Não pagava aluguel, nem luz e nem água. Quem arrumou para a gente foi Chiquinho Rosa e Piduca, pessoas boas de Floresta. Em São Paulo eles tinham conhecimento. Em dezembro, com apenas um mês de grávida, ela começou a enjoar. Até de perfume sentia repulsa. Era forte. Não queria admitir que sentia. Mas não tinha jeito. Até seu Toque de Amor não conseguia sentir a fragrância. Trabalhava muito em pé, o que causava certo incômodo, porém sua atuação não cedia aos entraves de uma gestante. Os cuidados, sim, eram meramente tomados. Sua idade, seu primeiro aborto, tudo isso era levado em conta. Agora ela sentia que ia dar certo. No início de 1972, com alguns meses de gestante, eles decidiram voltar a Pernambuco para ela dar à luz. Chegando, foram direto para a fazenda, seu porto seguro. A filha nasceu em agosto, na Maternidade Ana Carolina Ferraz. Era uma

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menina. No resguardo, a nova mãe voltou para a Mãe D’Água. — Batizei foi logo. Já estava na rua mesmo. Naquele tempo, criança não podia ficar pagã, não. A menina já estava batizada, com dezessete dias que estava na cidade. A madrinha foi Angélica e o padrinho de consagração, Francisco Vital. Seu irmão Joaquim, que seria o primeiro padrinho, estava em São Paulo. Com alguns dias na casa da comadre, depois de ter saído da maternidade, voltou para a fazenda de seu cunhado Manoel Quinca. — Mãe dizia que nunca viu menina mais quieta. Nem dava trabalho. Era calada. — Mamãe, meu nome a senhora viu onde? É diferente e não acho bonito, não. — Eu acho é lindo. Ouvi na Rádio Clube de Pernambuco, em 1954, e guardei para colocar quando você nascesse. Depois do resguardo, voltou ao trabalho da roça para ajudar a mãe, que estava só. Poucos meses depois, voltou para a cidade. Pegou costume de trabalhar “com mais gente”. Ela queria trabalhar, ganhar seu dinheiro. Sua mãe, já idosa, queria que eles permanecessem lá, mas eles vinham todos os fins de semana visitá-la. Assim que chegaram à cidade, alugaram uma casa que pertence a sua sobrinha Célia e lá colocaram um Hotel, na Rua do Cinema. Na verdade, o estabelecimento já existia, mas sob outro comando: Amélia, casada com seu tio Afonso. Com a convivência, Cecília foi pegando gosto e decidiu iniciar nesse ramo. Com a sua única filha pequena, as meninas de Angélica ficavam com ela. Arrumava, tiravam foto em Bartinho, era um gosto só. Passados poucos meses lá, eles receberam o convite para trabalhar numa fábrica de móveis, de Pedro “Orfo”, no bairro de Piraporinha, em Diadema, Grande São Paulo. Ele, natural de Floresta, convidou o casal, porque já tinha informações de seu irmão, então casado com uma prima dela, Maria Amélia. Sem muito tempo para pensar, deixaram o hotel e partiram, novamente, para aquela capital. Zequinha começou a montar móveis de bambu e ela, para não ficar parada, também começou uma atividade. Pedro emprestou duzentos cruzeiros e ela aplicou todo o dinheiro em produtos da feira. Começou a fazer comida, que revendia aos funcionários. — Ah, lá eu ganhei dinheiro. Cozinhava e vendia os pratos feitos. — Eu me lembro, mamãe, da rua lá. Lembro que tinha uma barraca de pastel, aos domingos. Eu era pequena, mas lembro direitinho.

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Nessa segunda vez que voltaram a São Paulo, entre os anos de 1975 e 1977, as coisas continuavam a dar certo. Conseguiram economizar um dinheirinho, que ela tomava conta. No último ano, no entanto, voltou a Floresta, depois de receber a notícia de que sua mãe estava bastante doente. A diabetes estava descontrolada e precisava de cuidados. Não pensando duas vezes, retornou. Pediu demissão do emprego e o marido ficou em solo paulista. Quando chegou em Floresta, pegou um carro para pagar uma promessa em Tacaratu. Depois, foi direto para a Mãe D’Água. Queria chegar logo e ver sua mãe, com seus 85anos. Ficou por lá até a morte dela, em abril do ano seguinte. Uma dor grande que a fez permanecer em sua cidade. Não queria mais largar a raiz. O marido, logo depois, voltou. Sentia fortes dores de cabeça, devido ao frio, e isso fez com que ele retornasse. Sem trabalho, os dois decidiram recomeçar. Ele vivia como vaqueiro, campeando, vendendo criação (caprinos) ou carne de gado aqui ou ali, e ela, com dom de vendas, resolveu iniciar no ramo dos tecidos. Com a irmã Benvinda morando em Timbaúba, já casada com o professor Elias Dantas, que conheceu quando ele ensinava no antigo Colégio Industrial, Cecília decidiu viajar para lá, para comprar os primeiros produtos da banca da feira. Timbaúba era um lugar maior que Floresta, perto do Recife, onde ela conseguiria seus tecidos e roupas por preços mais baixos. Suas economias deram para comprar os produtos, bem como uma casinha, hoje casa de Geni Leal, na Rua XV de Novembro. Ficava bem perto da casa de sua irmã Angélica. Dando início às vendas, começou nas caminhadas pelas fazendas. Da Malhada Vermelha ao Angico e redondezas, ia a todas. Não parava. Depois, viu que na cidade poderia expor seus produtos e vender para todos. E aí colocou sua “banca”, num ponto disponível, em frente à sapataria do cunhado Manoel Quincas. Seu jeito espontâneo conquistou muitos fregueses. Não mais indo a Timbaúba, ia para Serra Talhada, que ficava vizinha a Floresta, e lá comprava na Mafel os tecidos de todos os tipos e estampas. Vendia de tudo. Saia, vestido, calça, camisa. Não podia faltar a encomenda dos fregueses nos sábados de feira. Sua filha a acompanhava nas vendas, aonde fosse, enquanto o pai estava no “mato”. Almoçavam lá mesmo, numa marmita de alumínio, em que ela levava a comida. Se não tivesse levado uma sobremesa, chupavam um picolé, comprado em Euclides, e estavam satisfeitas. Com as vendas crescendo, aos domingos ela ia para o Massapê, uma vila na divisa de Carnaubeira e Floresta. Levava quase todas as bagagens, no carro

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de Chico da Roupa, e também as encomendas da semana anterior. — Dona Cecília, que “salha lindra” — disse uma de suas freguesas. Até hoje essa frase permanece viva na memória, não pela linguagem, mas pela evidente satisfação que tinha a cliente ao adquirir um produto com ela. Nesse caso, pendurada num cabide suspenso na banca da feira estava a saia feita de tecido estampado, comprada em Timbaúba, uma cidade vizinha à capital. Cecília sempre foi de bons argumentos, de papo persuasivo, quanto a vender seus produtos. Envolvia-se num tratamento mais humano, menos frio, mais familiar, com todos, de igual para igual. Não será de se espantar que lhe concedessem, para ser madrinha, mais de sessenta afilhados, pelos povoados que ela andava, desde batismo à fogueira. Aprendeu a se virar, fora dos campos de mata cerrada, espinhosa. Uma queda na venda, uma diminuição de produtos seriam os entraves. Mas ela não tinha medo. Enfrentava, nem que fosse só. Por mais que fosse incomum a uma mulher tomar as rédeas da casa, mesmo com um marido presente, ela se fez e seguiu dessa forma. Começou em São Paulo, retomou em Pernambuco, viajou todos os fins de semana, empreitou-se num ramo de hotel e ali começou a conquistar seus sonhos. Com dinheiro da primeira casa e as economias de suas vendas na feira, fez uma casa, hoje de Osmar da Beira do Rio, e lá morou até 1980, vindo a comprar outra casa mais próxima do centro, essa também construída por ela, hoje pertencente a Zé Quincas do Icó (in memoriam). Ali morou alguns anos, até o esposo trocar a casa, por uma Ford Rural, carro muito utilizado naquela época. Depois, iniciou no ramo de hotel, em 1983. Ele a ajudava, mas vivia mais da lida com caprinos e campeando gado. Com o hotel indo de vento em popa, ela adquiriu mais uma casa e um terreno. A casa pronta, praticamente nos acabamentos, ela vendeu a Eugênio do Doce, algo que a entristece, ao relembrar. — Quando passo em frente, chego a encher os olhos d’água, por saber que não tenho mais. Assim que conseguiu levantar as paredes, deixar a casa na estrutura em que se encontra hoje, Zequinha a vendeu novamente. A intenção talvez não fosse de gastar com coisas desnecessárias, conceder regalias a outros, mas, acreditava ela, era uma impulsividade e um descontrole que faziam com que ele não conseguisse permanecer com os bens ali, quietos. O movimento era a mola propulsora em suas atitudes, mas não da forma na qual ela sentia necessidade. Estava começando a entrar o desequilíbrio. Depois que Zequinha vendeu a casa e o terreno, Cecília, com o dinheiro,

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comprou uma casa no Recife. Já prestes a se separarem, em 1990, sua filha fora morar na capital, onde trabalhou numa oficina de máquinas pesadas. Morava sozinha e Cecília a visitava mensalmente, embora não sentisse segurança em ver sua filha morando em uma casa. Com a ideia de um apartamento ser mais viável para alguém que more só, Cecília decidiu comprar um, afastado do grande centro da capital. Essa mudança durou um ano, mas, logo no ano seguinte, sua filha retornou a Floresta. O dinheiro da venda desse apartamento e de uma caminhonete C10 foi repartido entre o casal, e Cecília passou a não ter mais casa própria. Agora, iniciaria sua vida em casa alugada, e ele, da mesma forma, mas com uma grande banca de frutas na feira. E como se verá, em companhia de outra mulher. Cecília sempre enfrentou resiliente as baixas da vida. Em 1984, um ano após colocar o Hotel Bom Jesus naquele mesmo lugar em que ela iniciou no ramo hoteleiro, houve uma enchente na cidade. Ela, recuperando-se de sua sétima cirurgia (vesícula), perdeu alguns móveis e foi obrigada a arcar com gastos quando o rio baixou. Vivia daquilo. Tinha de colocar para funcionar a todo vapor, assim que a água escoasse. Sua força não escoou. Pintaram novamente as paredes do hotel e alguns móveis foram consertados. Mas, não foram muitos, porque ainda deu tempo de retirá-los e colocá-los numa sala comercial de Lero Lopes, parente de Zequinha, que ficava no “Alto”, hoje bairro Santa Rosa. As meninas que sempre estiveram à frente dos serviços ajudaram bastante. — Ceiça, Rita de Ulisses, Beth de comadre Francisca eram uns anjos. Podia sair que elas tomavam de conta. E assim foi até o ano de 1990. Essa nova década foi um divisor de águas. Sem casa, mas ainda prestes a tentar construir pontes que alicercem um tempo mais real, seguro. Ela só tinha a coragem de começar tudo novamente. Dinheiro era ausente, mas não um pressuposto que só ele poderia impulsionar. E ela seguiu.

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Capítulo 11(Muitas horas, pouco tempo)

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São tantas marcas suas, fortes.A sua inquietação, se está parada,

Os chamados altos, musicalizados...Desde que me entendo por gente,

Seu chamado era um brado:“Oh, menina, vem pra casa.”

E eu ia, ai se não fosse.Era uma mulher baixinha,

Um misto de ser forte e doce.

Fui criada com amor,Somente três à mesa compor.

Sou grata a Deus, em cada gesto.Recordo de tudo, com tanto afeto,Chegam às lágrimas, bem perto.

— Cleônia, Cleônia, cuidado com o que tá escrevendo. Não gosto de aparecer, não. — Oxente, mamãe. Sua história de vida é que é linda, serve de lição, de inspiração. Quem dera eu fosse tão forte quanto a senhora. — Olhe, olhe. Não vá inventar de contar as coisas de namorado, de que papai reclamava muito, essas coisas, não. — Mas tem de contar. Não reparou quando li uma parte para a senhora que tudo ficou conforme aconteceu? Então. Ah, se as mulheres todas, inclusive eu, tivessem sua garra, sua resiliência. E outra coisa: é um presente que lhe dou, que tanto fez por mim, de sua forma, mas que fez tudo por amor. — Tá bom, então. Desde muito jovem, Cecília fez um grande círculo de amizades, de comadres, compadres. Com seu jeito falante, de riso fácil, de respostas na ponta da língua, sem rodeios, sempre reunia pessoas ao seu redor. O trabalho do hotel necessitava de gente sempre ajudando, numa coisa e outra. Ela tinha Ceiça, uma moça que considerava como filha; Bete, filha de sua comadre Francisca; Rita, de seu irmão Ulisses. E sempre vinham os sobrinhos, filhos de compadres e pessoas das fazendas vizinhas à Mãe D’Água. A casa sempre cheia. Aos sábados, a feira livre era em frente. Então, barganhavam verduras para almoços, mas apenas para alegrarem-se com a presença uns dos outros. O movimento dos hóspedes aumentava, dependendo da época. Sempre

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com clientes fiéis, fosse na época da safra do tomate, em que os compradores vinham de Belo Jardim e já tinham seus quartos separados, fossem das “firmas” que vinham prestar serviços à prefeitura. Esses clientes assíduos passaram a ser tratados como se fossem da família. Tanto que a madrinha de crisma de Cleônia foi escolhida por Cecília diante das visitas constantes de sua comadre Landinha Menezes, que sempre fazia refeições por lá e criou um afeto grande à menina. Muitas coisas aconteceram naquele hotel. São lembranças, muitas delas até prováveis de causar tristezas, decepções, mas outras de sonhos realizados, de descobertas. Logo um ano depois do negócio estar estabelecido, o rio Pajeú entrou na cidade. De repente, mas já anunciado, ele despejava suas águas por mais de metro, em ruas mais baixas. A do Hotel era bem abaixo do nível. Depois de alguns atropelos, da correria com móveis para serem levados a ruas mais altas e de ter se hospedado uns dias nas casas de familiares e conhecidos, Cecília retornou ao comércio, porém desta vez, Zequinha estava à frente. A dor na vesícula chegou na mesma época e resultou em uma cirurgia no Recife. — Naquela época, era uma cirurgia que mais parecia uma cesárea — diz Cecília, que já passou por sete operações. Cecilia sempre arrumava força. Após o período pós-operatório no hospital, ela logo retornou para o Hotel e, ainda em fase de repouso, retomou aos poucos o seu trabalho, que, no seu íntimo, era seu lazer, seu sustento. O tempo que tinha era pouco. Não que não soubesse administrar ou que excluísse por vontade outras atividades, como a de dar uma atenção maior à menina que observava tudo atentamente. O fato é que essa entrega ao trabalho em demasiado ocasionou um distanciamento entre mãe e a única filha. Na primeira vez em que Cecília colocou o Hotel, Cleônia tinha um ano. Desde aquela época, a rotina ocupava todo o seu tempo, e era como se já tivesse se acostumado com isso e o trabalho não era fácil. Desde a preparação dos alimentos durante o dia, arrumar os quartos, repor os mantimentos. As meninas de Angélica pegavam Cleônia para dar banho, arrumar, tirar fotos. Era muito bem cuidada, e as imagens que resistiram ao tempo nos álbuns de fotografias eram a prova disso. Todas elas, desde os primeiros meses de vida, até os quatro anos, eram as primas que mandavam Bartinho, o retratista, tirar. A menina gordinha era tida como uma filha, tanto que chamava o esposo de sua madrinha de “pai”. O pai legítimo ela chamava de “papai”.

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O Hotel Bom Jesus possuía oito quartos fora e três dentro de casa. Eram quartos bem pequenos. No primeiro, o casal, no segundo, Cleônia e Ceiça, e no terceiro Rita, Beth ou quem estivesse a mais por lá. A porta que separava os hóspedes dos moradores era logo após. — Eu tinha medo de dormir por cima, mas tinha de ser assim, porque Ceiça só queria dormir na parte de baixo. Eita, que dava uma raiva. Hoje eu me lembro com graça. Ficava arretada por besteira. Cleônia recordava de uma época em que sentia bastante vazio e que encontrava nos discos de vinil, numa adolescência meio rebelde, uma forma de extravasar seus sentimentos. Não sentia companhia em casa e tentava encontrar nas ruas, nas pessoas que a rodeavam, sua âncora. E, muitas vezes, a decepção a impulsionava a alongar ainda mais essa distância. Parece que se sentia melhor fora que em sua própria casa. Cecilia viu o amor nascendo em sua filha quando o ano de 1986 já despontava. Sua filha estava começando seu primeiro namoro. Era um menino que morava no Recife e que passava férias em Floresta, apenas de ano em ano. Ela apaixonou-se perdidamente, e sua mãe era favorável, pois idolatrava o “genro”. Depois de quase quatro anos, o namoro teve fim, por ciúmes da menina. A filha sofreu, chorou por noites e noites, ouvindo as músicas que lembravam o amado, mas sempre procurava sair para a casa de amigas da rua, conversar, para não sofrer mais, embora a mãe a chamasse sempre. — Ô, Cleônia. Caminha para casa, menina teimosa. Boa romaria faz que em sua casa está em paz. Em Floresta havia a Difusora, um clube social que abria aos domingos, após a missa. As mães deixavam as filhas irem, mas diziam a elas que estivessem em casa às 21 horas. Nesse pouco tempo, as meninas tinham de dar a resposta aos paqueras, caso eles a pedissem em namoro num domingo anterior, ou para dançar as músicas de rock e lentas com o seu amado. Era pouco tempo, mas que ficavam por muito mais na memória. Na verdade, a semana inteira era baseada no que tinha acontecido no domingo. E se na empolgação elas perdessem a hora, só Deus. As mães iam buscar suas filhas, como aconteceu uma vez, de Cecília ir com a chinela na mão, porque Cleônia havia se atrasado. Em sua companhia, estavam mais mães que foram em busca das filhas. As meninas, envergonhadas da cena, corriam, pelo Beco da Facada, que ligava a Rua do Clube à do Cinema, onde elas moravam. A cena foi cômica. E assim foi durante muito tempo. A mãe reclamava, Cleônia desobedecia,

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e, em outros momentos que queria sair e não podia, ficava a chorar ao lado de seu gravador e seus pôsteres de artistas na parede. Não lhe faltava nada de bens materiais. Muito pelo contrário. Em dezembro, tinha roupa para todos os dias. Cecília sempre foi “mão aberta”. Sua filha passava férias no Recife, na casa de sua irmã Amélia, tinha seus lanches preferidos, e quando se tratavam de eventos, eles apoiavam e investiam na filha, desde os desfiles cívicos da escola, para os quais era preciso fazer fantasias, roupas típicas, até a primeira comunhão e crisma, em que as roupas de cambraia bordada eram feitas pela costureira predileta Elvira. Impecáveis vestidos. Nos quinze anos de Cleônia, foi festa o dia inteiro. Era um domingo. Logo cedo teve uma missa de ação de graças. Gleide, filha de seu compadre Artur, organizou, Ana Maria Barros, pianista e professora de datilografia, tocou seu piano para a entrada da debutante e seus pais. Tudo ensaiado. Após a missa, cantou-se parabéns para a menina, e todos foram para o Hotel. Teve um almoço no muro, com mesas e cadeiras espalhadas para os convidados mais próximos. À tarde, foi a vez do bolo, que, de tão grande, não passou na porta da frente. Carmem, esposa de Tadeu de Abrãozinho, vizinhos de muitos anos, foi quem preparou. Era um bolo Bossa Nova, cujo sabor até hoje fica na memória de quem o provou. Muitos presentes, muitas pessoas enfeitaram aquela casa. Apenas à noite a festa acabou. Sobraram muitos salgados e bolo, que foram distribuídos e repartidos entre os convidados e amigos, e também entre os amigos que não vieram para a festa. O convite foi impresso para quatrocentas pessoas. Gracinha Feitosa foi quem fez o “lachiado” do convite. Após todos irem embora, Cleônia, o namorado e amigos foram para a praça. No dia do aniversário podia-se ficar até um pouco mais tarde. Depois, tudo voltava ao normal. Na segunda-feira, Cleônia retomou as aulas no Afonso Ferraz, e Cecília aos seus afazeres no Hotel. Mas não havia diálogos para se entenderem, para haver uma cedência. Cecília não era a única culpada. A filha ainda não tinha consciência de que poderia compreender a trajetória da mãe. Uma vida de sal e de vultos. Só quando Cleônia também foi mãe é que pôde integrar infância e adolescência e, aí sim, vivê-las em companhia de Cecília. Até o dia do nascimento do primeiro neto de Cecília, ainda existia o medo de desabafar. — Mamãe e eu nunca fomos tão amigas inseparáveis. Na verdade, quando engravidei do meu primeiro filho, eu contei primeiro ao meu pai. Tinha mais abertura com ele, o que deixava mamãe com raiva. Quando ficou adolescente, a relação de Cleônia com seu pai se tornou

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mais próxima. Como ele não ficava muito tempo em casa, quando chegava sempre a cobria de afeto. Ela não queria saber se ele tinha razão em não participar em casa com alguma coisa, o seu carinho a tudo supria. Já havia se acostumado a ver a mãe na batalha. Vivia sem a percepção da essência dos fatos. Quando os pais discutiam, muitas vezes a filha ficava a favor dele, mesmo sem a intenção de confrontar a mãe. Na cabeça da menina, havia um desequilíbrio, uma incompletude que a levava a se aproximar de quem se dispusesse a ser mais presente. Embora Cleônia admirasse o jeito da mãe, sua garra, sua honestidade, ela não sabia dizer. E isso foi durante muito tempo. Só com mais de trinta anos ela conseguiu elogiar a mãe e vice-versa. O orgulho de Cecília ao ver sua filha entrar com seu neto, na formatura da faculdade, era notório. Os olhos das duas falavam por si, embora palavras não fossem pronunciadas tão claramente. Quando a filha passou no concurso para professora, aconteceu o mesmo: orgulho, comoção e o olhar de quem admirava as conquistas. Hoje as palavras saem facilmente. Os desagrados, as opiniões também. Mas, até chegar a esse estágio, os tamarindos deram mais frutos, a cidade de Floresta ganhou mais algumas ruas, as memórias se acumularam nas mentes e corações. Nasceram dois filhos de Cleônia, ocorreram separações, dela mesma e de sua mãe com seu pai, e mais alguns percalços involuntários.

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Capítulo 12(Sábio vento)

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No início,Nós apertados.

DuranteVultos alheios.

Indiferentes às amarrasDesgastadas pelo tempo,Nem ao menos zelaram

Anunciado era o romper.No fim,

Desatados nós.

“Meu coração é de cristal, por teu amor, pode quebrar...Lá, lá, lá, lá, lá”. Esse é um trecho de uma música da Jovem Guarda, cantada pelo papagaio que Cecília cuidava desde moça. Não se sabe se era um presságio, mas foi dessa forma que um casamento entre a mulher coragem e o rapaz de olhos verdes de esperança desenrolou por toda a vida. Quando ela estava no Hotel, a corrida era muito grande, quase não tinha quase tempo para ela, nem para a filha. De madrugada já se levantava, corria atrás dos mantimentos, distribuía tarefas, corria contra o tempo, para tudo estar pronto na hora certa. E assim foi durante todos aqueles anos, até o dia em que o pior, e que ela tristemente não acreditava, aconteceu. Acabara de chegar de uma viagem de São Paulo. Costumava viajar de ano em ano, ou de dois em dois anos, para a casa dos sobrinhos que moravam lá. Sempre voltava repleta de presentes. Uma festa quando chegava na rodoviária. Mas, no dia em que desceu do ônibus, algo diferente estaria esperando. Lá encontravam-se sua filha, o marido, Ceiça e um táxi que levaria as bagagens. Descarregadas as malas, foi tomar um banho, para aliviar o cansaço. Logo de pé, firme, foi à cozinha, comer um pouco. Depois, atendeu algumas visitas e foram “revistar” as malas, atrás dos presentes. Todos, num estado de espírito normal. No outro dia, logo cedo, ela levantou-se e foi à padaria comprar os pães do café. Encontrou uma conhecida, que chamou e disse: — Cecília, como vai? Há quanto tempo! Mulher, procurei você esses dias, mas disseram que vocês estavam em São Paulo. Fez boa viagem? — Fiz, graças a Deus. Fui e voltei em paz. Mas, diga lá. — Então. Não coloque meu nome no meio, não, mas o povo anda falando que Zequinha tá traindo você. Fique observando. Dizem que é com uma mulher que tem “uma banca” perto do Hotel.

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Enraivecida, determinada a descobrir a verdade, Cecília agradeceu e voltou para casa. Passados dois dias que ela tinha chegado de São Paulo, por conta própria começou a vasculhar os fatos. Daqui e dali, ouvia-se um pouco, vigiava, rondava atrás dele, para ver se via algo mais contundente, até o dia em que uma pessoa de extrema confiança contou-lhe a verdade. — Cecília, Zequinha foi ontem à noite na casa da amante. Ele entrou pela porta da frente, ela pela de trás. Era na casa dos pais dela, no mato. Zequinha, nessa época, trabalhava numa caminhonete, para um conhecido, levando pessoas que vinham fazer a feira na cidade e levava-os para casa no fim de tarde. A dor de Cecília pelo esposo tê-la traído foi imensa, mas a dor por ser com alguém que frequentava sua casa foi ainda maior. O hotel com hóspedes, as moças que a ajudavam presentes, panelas no fogão de lenha. Cerca de três horas da tarde. Ele estava na rua, com seu primo Bel. Quando chegou, tirou o chapéu de couro, o sapato surrado, deu a bênção à sua filha e foi diretamente para o banheiro. Saiu logo e dirigiu-se à mesa. Almoçaria tarde naquele dia. O prato feito, com rubacão e carne moída, compunha a refeição. — Seu sem vergonha. Agora você sabe vir aqui. Quando queria me trair soube procurar uma moça mais nova. Pode ir embora daqui e não pise mais nessa casa. Foi o que disse Cecília, assim que ele se sentou à mesa. Ele meio que engoliu a primeira colherada, mas logo deixou o prato e saiu. Ainda falou algumas palavras, mas logo foi para o quarto do casal. Ela foi atrás. E as palavras foram junto. O discurso arredio, triste, amargurado. E o embate apenas tinha seu início. O ano de 1989foi repleto de novidades, de coisas que poderiam ser esquecidas e decisivas. Depois de toda a descoberta, os dois decidiram se separar. Ela logo, de imediato, pediu o divórcio, que saiu alguns anos depois. E, mais rapidamente do que imaginava, expulsou o marido de casa. Lá pelo mês de novembro, sua filha estava terminando o curso Científico, hoje Ensino Médio. Não teve colação de grau, festa de formatura, porque não era tradição nesse curso, mas o que importava para eles é que ela estaria formada, com diploma de segundo grau na mão. Em dezembro, a última casa do casal foi vendida. Uma casa grande, construída numa área alta da cidade, arquitetada pela família. O dinheiro foi recebido alguns dias depois. Nesse período, sua filha foi embora para o

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Recife, onde estudou alguns meses. Ficou na casa de amigos de muitos anos. No hotel, com o movimento mais fraco, ela repassou a direção a um parente, que o arrendou com o próprio trabalho. Cecília passou alguns dias na Mãe D’Água e Zequinha na casa de seus pais. Todo descontrole inesperado ocorreu. Em meados do ano, ela comprou uma casa no Recife. Sua filha morou lá por alguns meses e Zequinha, uma vez por mês, ia visitá-la. Cecília comprava coisas no centro da cidade e levava para Floresta para revender. Seu dom de vendas permaneceu, embora passassem muitos anos da época em que era feirante. A necessidade falava mais alto. Passado um ano, sua residência na capital foi vendida. Com o dinheiro, para repartir com o marido, ela deu a ele uma caminhonete e com o restante investiu no ramo de alimentos. Vendia refeições, marmitas. Sua filha, nesse período, ficou alguns meses com uma prima em Paulo Afonso, onde fazia um curso de computação e ajudava na casa com os afazeres domésticos. Retornou em outubro de 2002 e conseguiu emprego no armazém de outra prima. Numa casa alugada no “Alto”, as duas moravam sozinhas, enquanto Zequinha estava na companhia da amante. O silêncio não existia na época. Por mais que o trabalho tomasse bastante tempo de Cecília, aceitar aquela situação era constrangedor. Passaram-se mais de vinte anos, mas é sempre vivo o assunto na memória. — O desgosto maior que tive na minha vida. Ele acabou com tudo o que eu tinha. Esse rancor expresso, ora sentido, ora chorado, ora cantarolado na música “Não aprendi dizer adeus”, era também solto nas inúmeras vezes em que ela explodia de raiva e proferia impropérios, quando avistava, mesmo de longe, a mulher que seu marido teria trocado por ela. Quantos momentos foram angustiantes. Não se poderia mais voltar atrás. Ou ela aceitaria e lutaria por aquele amor ou deixaria de lado e seguiria adiante. Ela, por algum tempo, conviveu com a incompletude, as dúvidas, mas decidiu seguir sozinha e certa do que estava fazendo. De repente, ela se via sem nada, e ele construindo seu novo mundo com a outra. Com algumas reservas, ele logo colocou uma banca na feira grande, repleta de frutas bonitas, suculentas, parece que eram mais belas que seus tecidos, suas roupas, quando estavam expostas nos cabides. Em 1993, com Cleônia já trabalhando, ganhando semanalmente, as coisas começaram a folgar. O aperto era sentido de forma mais leve, sem tanto desgaste. A alegria passava a rondar aquela casa. Jovem, sua filha se

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divertira com amigos, aproveitava a vida de sua forma. Cecília, sempre do mesmo jeito, reclamava para que a moça não saísse tanto. A televisão quase sempre ficava desligada. Não existia tanta cumplicidade. Era mais silêncio em casa, mesmo com as duas lado a lado. Dormiam juntas, dividiam, por vezes, a velha cama de casal, mas sem tantos diálogos. Cecília aparentava se sentir triste, a sofrer, mas esse sentimento eufórico nadava agora num remanso. E ela lutava todos os dias por um novo lugar sob o sol. Colocava seu lenço, que tinha, por certo, de combinar com a roupa. A vaidade, embora não tão visível, ainda existia. Ela gostava de si, mesmo que a dor do desprezo fosse feia. Ela a venceu. Bem cedinho, partia para o Mercado Público, onde tinha um boxe que vendia refeições. Depois da separação, trabalhou como cozinheira na casa dos funcionários de uma firma, que vieram trabalhar fazendo asfalto na cidade. Também trabalhou na casa de casa de Gustavo Gominho, um senhor conterrâneo, em João Pessoa. Depois foi para Serra Talhada com seu sobrinho Bel para montar um restaurante, e depois mais outro na Bomba, próximo a um posto de combustível. Foram tantas atividades. Ela não parava, até se encontrar naquele boxe. Passou mais de dois anos na lida. Amizades regadas, outras novas, e daí ela foi esquecendo de conviver com a traição. Em 1995, sua filha passou na faculdade. Antes não havia feito por causa das condições. Deixou passar o tempo. Mas, naquele ano, Cleônia iniciou seu curso. Foi bem. A filha também sabia se virar nos negócios: ensinou inglês a dez alunos e sua ex-sogra deu-lhe suas aulas para que ela ficasse no contrato do Estado, sendo sua substituta. Era tempo da filha de Cecília se encontrar consigo mesma. Ali, sua vida tomaria um novo rumo. Via que ser professora poderia aliar sua necessidade à felicidade que sentia ao ministrar as aulas. Em casa, as coisas iam melhorando. Antes de iniciar as aulas, sua filha passou no IBGE, provisoriamente, apenas por seis meses. Mas aquele dinheiro serviu demais. Passava-se a fase dos medos, dos aperreios. Brechas de luz viam-se pelas frestas das portas, da janela daquela casa, na Rua de Cima. Um novo começo. Foi corrido. Tudo muito corrido. Cecília passava o dia inteiro no trabalho, sua filha com menino pequeno estudando, trabalhando; muitas vezes, ela o levava à faculdade. Não tinha com quem deixá-lo, quando sua mãe estava na Mãe D’Água ou na Malhada Vermelha com os parentes. Cecília passou a viajar muito. Não para tão longe, mas, dali, começou sua vida de “cigana”, como a apelidava seu saudoso sobrinho Antonio “de Lourdes”, sua irmã.

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Não obedecia, mesmo que pedissem a ela que parasse, que não viajasse tanto. Era só sentir vontade que ia. Aposentou-se, pela idade, e sua vida ficou mais amena, com relação ao lado financeiro. Mesmo sua filha fazendo uns bicos, as coisas de casa era Cecília quem colocava. Com mãos prendadas na produção dos alimentos, comia-se bem. Poderia não ter nesse período tantas variedades, mas o pouco que tinha era bem feito, temperado. “Deus nunca deixe faltar” era a frase com que sempre findava toda refeição e que sua filha continuou frisando. Esse dizer tem sempre a gratidão de sua família. O valor de cada alimento, o não desperdício foi uma ladainha entoada, desde quando ela era pequena. E que bom que isso se perpetuou no tempo. No ano em que sua filha formou-se em Letras, passou também no concurso para professora. A alegria de Cecília, de Zequinha que, mesmo morando em outra casa, agora não mais com a amante, mas só, foi levada à Colação de Grau. Não havia dinheiro para comprar o anel, que seria de cor azul. Cleônia tinha um brinco de pedra daquela cor e um anel que possuía um vão no meio. Colou com Superbonder e foi daquele jeito. Ela era oradora da turma. O que importava era o que estava acontecendo. O anel, a bata, emprestada de sua prima Regina, o sapato emprestado de uma amiga não eram tão relevantes e não havia uma vergonha por ser assim. Cecília fretou um táxi e partiram com Lucas, que já estava com quatro anos, Zequinha e uma amiga de Cleônia. Separaram-se para a entrada. Os parentes dos formandos ficavam de um lado diferente destes. Quando se ouviu o nome Cleônia de Sá Nunes, os olhos de seus pais brilhavam. Lá vinham a sua menina e seu neto, para colocar o anel. O paletó dele, emprestado por sua tia, era de linho, assentou naquele menino lindo, de cabelos bem cortados. Tudo o que fora ensaiado deu certo. Era o fim de uma jornada e o começo de outra. No início do ano seguinte, sua filha fora chamada para assumir o cargo de professora. Separada do pai do seu filho, criaram as duas sozinhas Lucas, fruto de uma relação conturbada. Cecília sempre observava as discussões e, quando não se sentia confortável, saía. Naquele período, foram muitos problemas. Vez ou outra, Zequinha andava lá, mas sem muitos diálogos. Vez ou outra, Cecília reclamava porque sua filha não seguia seus conselhos, pois, depois que havia resgatado a autoestima, adormecida há oito anos, percebeu que acalentar amarguras, explodindo, retrucando, brigando, não seria uma boa escolha. Guardava-as dentro de si. Sua filha sofria de um lado, e sair para as fazendas de parentes era uma constante, uma rotina, que

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estigmatizou seu caminho. Ela cortava feito um facão as raízes doloridas, para que pudesse andar com mais destreza, mais leve. Aquela menina da infância, da adolescência, ensinou àquela mulher que se transformava. Os ventos leves sopram, os ventos fortes fortalecem, mas o importante é sempre seguir.

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Capítulo 13(Com o lenço, seguiu)

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Fios soltos ao ventoVoavam tão leves...

Tão poucos, Aos poucos

Não preenchiamOs vãos dos dedos

Pentes deslizavam,Grampos não prendiam...Algumas pessoas poderiam

Até enlouquecer.Mas, ela passou a disfarçar o seu volume,

E se não desse, conformava-seTentava esquecer.

Pois cabelos são belosCausam boa impressão,

Mas onde eles moram é o mais importante.E é a esse local que ela deu mais atenção.

— Mamãe, o que é isso em sua cabeça? — O quê, menina? — Não sei, mamãe, mas tem uma bolinha sem cabelo. Numa tarde, em meados do ano de 1978, Cecília e sua filha estavam sentadas na sala de sua casa, que, nessa época, era bem próxima à de sua irmã Angélica. Desde muito pequena, Cleônia dormia lá, e eles decidiram comprar uma casa perto, assim que retornaram de São Paulo. Quando a menina penteava os cabelos de Cecília, já não tão longos como na juventude, percebeu que algo estranho existia. Próximo à nuca, havia um espaço, feito uma bola branquinha, em meio aos fios pretos. Estava lisa, sem cabelos. Cecília, ao ouvir a fala da filha, correu para a casa de sua irmã, para comprovar o que estaria acontecendo. Angélica ainda estava na sapataria. Mas as suas três filhas estavam lá. O papagaio ficou cantando, quando as duas adentraram na casa. Foi de supetão. Abririam a porta, sem ao menos chamar. Queriam logo constatar o que ocorria de verdade. — Tia Grossinha, seu cabelo tá caindo. — disse Fátima, sua sobrinha que se levantou da máquina de bordar, para atender sua tia. As suas outras irmãs vieram, assim que foram chamadas. Cecília desmoronou. A tristeza por estar perdendo o cabelo tombava aquela mulher tão forte, que sofreu secas

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causticantes, que enxergava bem mais que os serrotes da fazenda. Mas, dali, não foi ao médico. Demorou alguns dias. Sozinha com Cleônia, ela chorava, e os motivos das lágrimas se mesclavam. Na cabeça, a perda dos cabelos, no coração, a perda da mãe, seu alicerce, seu alento. Já fazia tempo e ainda assim doía. Tristeza de tudo aquilo que se desprendia dela para sempre. O diagnóstico veio de um médico do Recife. Ansiedade e estresse como causa, Alopecia areata como resultado. Agora era preciso fazer de tudo. Consultar os melhores médicos, buscar os melhores remédios. Quando chegou a loção dentro do frasco pequeno, com aquele cheiro de remédio amargo, ela passava o dia e inteiro com um pedaço de algodão, em frente ao espelho da penteadeira. Sentava na cama e lá ia tenta amenizar aquela tristeza. Uma tristeza do corpo sofrer sem dor física. A queda é indolor. — Eu acho que a dor de perder mãe fez eu perder meu cabelo. Foi a pior dor da minha vida saber que ela tinha morrido. Vê-la morrendo. Ela me pediu para fazer um chazinho perto do almoço, eu fiz, ela tomou. Mas, depois, deitou-se. Eu fui para a cozinha. Depois, eu fui ver de novo e ela estava gemendo. Chamei: mãe, mãe. Peguei na mão dela, mas não aguentei. Colocaram a vela e ela logo morreu. Cecília conta esse trecho sempre com o semblante triste, e diz que perdeu mais do que uma mãe. Era uma amiga para todas as horas e todas as dores. Quando Cecília teve malária, que ela nomeia como Sezão, sofreu muito. Sua mãe levava todos os dias a menina, que na época tinha quatorze anos, para fora da casa. Era um frio intenso, que fazia bater os dentes. Além dos chás feitos pela mãe, Cecília banhava-se sob o sol para esquentar as mãos que ficavam tremendo, de tão frias. O hospital não tinha naquela época. Veio a ser disponível ao povo de Floresta apenas em 1953. Eram os remédios, a fé e os cuidados caseiros que curavam as doenças. Nessa, Cecília passou mais de um mês sentindo-se mal. Mas, sempre que adoecia, tinha em sua mãe o colo necessário. Fez o possível para que os cabelos voltassem a nascer. Com o tempo, eles foram ficando ralos, e ela, antes mesmo de perder todos os fios, comprou uma peruca. Com ajuda de sua sobrinha Fátima, localizou no Recife uma senhora que a vendeu. Feita de cabelos de verdade, caiu bem em seu rosto Ficava diferente quando a colocava. Pouco tempo depois, caíram todos os cabelos da cabeça, da sobrancelha, dos cílios. Os do corpo inexistem também. Não teve como implantar. A sua idade, segundo o médico, talvez não ajudasse num esperado resultado. Ela decidiu, então, deixar como estava. Dali, os

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indícios de uma hipocondria foram dando sinais, mas não tão evidentes. “Só Deus sabe o que eu sinto” é sempre a resposta que ela dá, ao ouvir sua filha dizer: Mamãe, não diga somente que tá ruim. Fale que tá bem. A senhora tá nova toda. Foram muitas as agruras que fizeram parte dos seus dias, mas nenhuma que impedisse Cecília de prosseguir. Durante os anos no Hotel, seu cabelo estava ralo. Ao sair de lá para outro meio de vida, o lenço foi seu acessório mais usado. A cor de cada um era escolhida com material que não escorregasse e da cor que combinasse com suas roupas. Ela sabia que tinha de conviver com a ausência de fios. Ainda que meio aos empurrões, a sua força era presente, talvez similar à de Sansão, mas com uma diferença: a dela resistia, quando se viu sem os cabelos. Cabelos que seu pai não deixava cortar, o que só veio a ocorrer, quando se casou e saiu de sua casa da fazenda. E foi com essa mesma atitude de desgarrar-se de um passado que ela se viu. Se não tinha a força de um jeito, teria de arranjar de outro. E ali ela teve de conviver com a escolha de colocar o lenço ou a peruca, dependendo do evento a que ela fosse ou de sua vontade, bem como na sobrancelha, que decidiu tatuá-la e permanecer assim para todo o sempre.

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Capítulo 14(Insofismável)

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Do lado dele, ela estavaÀ frente do tempo, ela vive

Ela era coração, era braço, era parteEra campo, casa, cidade

De nome resiliente Cecília valente!

— Seu pai ‘tava do mesmo jeitinho. Parece até que ‘tava mais bonito, afilado. Quando Cecília disse essa frase pelo telefone à sua filha, as lágrimas e a voz embargada compunham o cenário de um dia, após o falecimento de Zequinha. Ela não se referia como ex-marido. Era como se fosse sempre seu, mas sem pertencimento. — Eu senti que ele tinha morrido quando Maria José foi lá em casa. Ela chamou, pediu para eu me acalmar. Eu sabia. Eu disse logo: pode dizer. O que aconteceu com Zequinha? Nessa hora, era a madrugada do dia primeiro de junho de 2014. Cecília morou durante alguns anos sozinha, após sua filha ir embora para Mato Grosso. Mas, precisamente, nesse ano da perda, ela morava no Bairro Santa Rosa, com seu neto mais velho, Lucas. Ele estava estudando e havia decidido ficar um tempo com a avó. E Cecília escolheu esse bairro porque ficaria perto de sua irmã mais nova, Alice. Apenas ela e Afonsina, uma outra irmã. Todos os outros já haviam falecido. Afonsina morava distante, em Rondônia, havia mais de quarenta anos, mas, vez ou outra, as irmãs se reencontravam. A união sempre continuou a mesma. Cecília quase sempre viaja, entre fazendas da família, de amigos, além de ir por outros cantos. Sua vida nunca foi parada e sua marca é o caminhar. Sempre que diz “agora é para ficar”, desconfia-se da afirmação. Quase sempre, demora, mas não fica. Ela já não tem mais a visão imutável. Pertencia ao campo, como poderia pertencer à cidade, ao novo. Ela sempre foi de um temperamento um tanto diferente das moças de sua época. Casou-se com Zequinha, com seus quase 36 anos, não tão nova para aquela época, enquanto ele tinha 24. Os olhos verdes da cor das folhas eram a marca dele. Rapaz alto, esguio, olhos pequenos, meio puxados, tinha na sela do seu cavalo sua diversão, quando rapaz. Campeava pela caatinga, quando viu Cecília na casa dela. Depois de alguns anos, ele não mais estaria ali. Mesmo depois de divorciados, morando na mesma cidade, viam-se

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uma vez ou outra. Se ela estivesse doente, e ele sabendo, ia visitá-la e ligava para sua filha para dizer. Tinham uma relação de respeito, embora durante a relação do casal muitas tristezas e dissabores foram sentidos. Muitos até lembrados, mesmo após a morte dele. A alguém de fora, não era fácil explicar a cena de vê-la sentada, do lado do caixão, recebendo as condolências pela morte do ex-marido. Eles não estavam mais juntos, mas, ali, ela se rendia à misericórdia. — Não gosto dessa brincadeira, não. Coisa sem graça. Nenhum homem vai dormir comigo, a não ser meus netos. Não tinha uma só vez que ela não respondesse assim, quando alguém brincava que ela poderia ter casado novamente, assim que se separou. Sentia-se fiel, independente de tudo. E isso ela levou até o último instante em que ele estaria de corpo presente. Não é fácil conceber a ideia de que uma traição mal resolvida, como a que aconteceu na vida deles, possa ser deixada de lado. Mas ela deixou. Ali, naquele instante, Zequinha não poderia mais se defender. Ela rezava por ele. Relembrava. O amor talvez tivesse amornado, mas ainda não tinha chegado ao frio. Chorava, mas nas lágrimas não saía a raiva represada. Era luto. Luto pela perda, por mais que estivessem separados no matrimônio e apenas ligados, involuntariamente, pela única filha que nasceu da relação. Sempre que ela encontrava Zequinha, principalmente, quando sua filha visitava a cidade uma vez em cada ano, era por certo alguns dias os três estarem juntos tomando um café ou fazendo uma outra refeição. Mas ele ia à casa dela, porque amava a filha. Cecília tinha certeza disso, como também tinha certeza de que não conseguia deixar de transparecer a mágoa que doía, por ter sido trocada por outra, por se sentir sem o concreto das suas conquistas. Tudo o que construiu de material, nenhum tijolo ficou em pé. E isso a amargura corrói, sempre que se lembra disso, ou quando arrumava seus móveis para mudar-se de casa. Em quase todas as ruas de Floresta, do Centro ao “Alto”, ela já morou, entre as casas que possuiu ou que alugou. Seu pai já alertava, quando moça: “Case, não, Cecília. Desmanche esse casamento.” Não se sabe ao certo se era um presságio ou uma conveniência por ser ela muito servidora em casa. Cecília, vivaz como sempre, brilhou seus olhos e iluminou por cima dos serrotes. Via longe. Queria andar por ruas, em vez de roça. Seus pés, de tanto andar por cima do solo árido, seco, cansou-se da rotina dos dias. Mas não por muito tempo. Ela saiu, viajou, mas voltou. Voltou, achava, que de vez. Mas foi por apenas alguns meses. Nesse último

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retorno, perdeu sua mãe, chorou, sofreu demais. Dor que sentiria para sempre. Vazio não preenchido. Perdeu seu pai, véspera do aniversário de 96 anos dele, quando ele a chamou, à sua cama: “Cecília, se eu morrer, pode continuar a festa.” Ela perdeu seu pai. Dor imensa. Ficou sem eles. E por tantos anos, muitos se foram do convívio. Dores imaginárias, semelhantes, até perder Zequinha. Foi diferente. Eles não estavam juntos como marido e mulher, mas existia uma relação, um vínculo maior que apenas pais de uma filha. E isso se via em saudações informais, em encontros. Numa volta ao passado, ela lembrou dos seus 80 anos, que celebrou sua festa, na Rua de Cima, após cair uma chuva de alguns minutos. Era um momento especial, com cheiro de terra molhada. A filha veio de Mato Grosso, alguns parentes convidados e Zequinha estava lá. Participante, sentava na casa dos sobrinhos dela. Ela mais distante, em companhia de sua irmã Alice e de alguns amigos, mas estavam num mesmo local, com as mesmas pessoas. Poderiam conviver. As dores do passado permaneciam. Vez ou outra, elas teimavam sair. E ela aproveitava para conjugar a ação. Muitas vezes, no calor da descoberta da traição, sua filha discordava de tamanha amargura. — Você só gosta dele, Cleônia. Só dá razão a ele — dizia Cecília, quando sua filha defendia o pai, mesmo em meio a tantas decepções. Ele sempre foi um pai presente. Sempre mimava, mesmo distante. Dos anos em que sua filha morou em Mato Grosso, não tinha uma vez que Zequinha não ligasse e dissesse: — Alô. Liguei para ouvir sua voz, amor de minha vida. Isso cativava a filha. Ela sabia que, por conta dele, sua mãe perdeu muita coisa, sofreu bastante, mas ela não conseguia sentir a mesma coisa. Ele era um bom pai. Poderia faltar um presente, um dinheiro, mas seu amor ela tinha, gratuita e incondicionalmente. O fato de sua filha sempre argumentar dessa forma talvez fosse uma forma do elo entre seus pais não ter se desligado. O vínculo de família foi sempre preservado, mesmo com eles separados de casa, de vida. A morte de Zequinha pegou a todos de surpresa, pelo conceito natural da vida. Mais novo que Cecília, não gostava de hospital, mesmo tendo trabalhado como vigia em um por mais de dez anos. As pessoas esperavam que ele pudesse ter se espelhado com a realidade em que viveu e ter colhido mais informações que pudessem ter ajudado a se cuidar. Mas havia medo de agulha e uma certa autoconfiança que algo maior pudesse não acontecer. Quantas e quantas vezes sentiu-se mal e seus irmãos o levaram para consultas?

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No hospital, ele não ia adiante nos exames e nem obedecia à prescrição médica. Cecília, por sua vez, pegou mania de remédios, agravando-se depois da perda de sua mãe, da queda de cabelo. Mas, diferente do ex-marido, se constatados alguns problemas, ela seguia à risca a medicação, o tratamento. Zequinha morava só quando tudo aconteceu. Sentiu a forte dor, levantou-se pela madrugada, abriu o portão e começou a pedir ajuda. Conseguiu pegar o telefone do orelhão e discou para seu irmão Laércio. Ouvindo o pedido de socorro vizinhos correram para ajudá-lo. Em menos de cinco minutos, seu irmão já estava a postos. Levou até o hospital, mas não deu tempo. Era chegada a sua hora. Zequinha não suportara a dor. Veio a falecer. Cecília chorou a perda, nunca antes sentida. Sua filha, distante, consolava-se, em choros, em ligações. Sua mãe tentara amenizar dizendo que estava ali, do lado dele, junto, até o último instante. Não poderia ser diferente. Ele seria enterrado no cemitério da Mãe D’Água, o cemitério de toda a família. A missa celebrada pelo primo Domingos enterneceu o coração dos que sofriam a perda. E Cecília estava ali. A sela de couro pendurada na parede da sala traduzia que ali os vaqueiros existiram e que mesmo que não estivessem mais, sua história seguiria costurada naquela terra. A alegria, a rudeza, as decepções de amor. Tudo permaneceria. Na volta para a cidade, semblantes tristes se misturavam na viagem. Cecília chegou em casa, à tarde, abatida. Tomou banho. O descanso já estava pedindo que ela lhe concedesse um tempo. As mágoas do passado pediam trégua. Era hora de parar. Pelo menos por um instante.

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Capítulo 15(Resiliência)

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Quando se sente sozinhaE sua asa levemente ferida

Refaz-se feito as borboletasOlhando o horizonte, confiante

Portas e janelas se abremO mundo não lhe nega guarida

Pequena, nas folgas poucas do trabalho na roça, Cecília costumava correr com os irmãos para o Pajeú, assim que seu pai ia para a cidade. Juntavam os irmãos quase da mesma idade, e com a prima Maria Nonato, que morava perto, partiam para o rio. Saíam correndo. Parecia que a água do Pajeú não estaria mais no lugar, se demorassem a chegar. Eram crianças com muita energia. Quando chegavam lá na areia, já tiravam a chinela e pulavam no rio. Quem saltasse mais alto das pedras ganhava a competição. Mas o mais importante era brincar, sorrir, estar junto. E tinha de ser logo. O pai não demoraria. Era sempre objetivo. Cecília criança já gostava de ser livre, de descobrir, de ver e encantar-se com coisas novas. Mas, ainda assim, era obediente. Se tinha sonhos, guardou até sair de casa. — Ai, ai. Arranquei foram todos os meus dentes sadios. — Como assim? — perguntou sua filha, em gargalhada. — Oxente! Eu arranquei de um em um, só para ir para a cidade. Depois, coloquei uma chapa. — Meu Deus, mamãe. Então, era igual a votar. Só ia porque era um dia diferente, animado. Esse jeito que Cecília encontrava de sentir-se livre florescia ainda na infância, mas não foi embora. A vontade de ser livre, de não se prender, sempre a acompanhou. Para alguns, o jeito cigano era o segredo da juventude. Uma pele sem sinais de velhice enquadrada pelo lenço que usa todos os dias. Hoje já não olha no espelho com a tristeza de anos atrás. Suas reclamações voltaram-se a um novo destino: as dores nos ossos, que não ajudam na locomoção. Mas, se não estiver alguém ali, olhando, ela vive num centro hospitalar ou arrumando malas de remédio. Cecília pegou mania. Ouve-se dizer que crianças de antigamente gostavam de comer AAS, pelo sabor doce e, semelhante a isso, dá até para pensar que ela tinha esse costume, se desconhecesse sua história de vida, sua trajetória, até chegar nessa hipocondria. A palavra empatia veio a surgir no mundo da filha de Cecília muito

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tempo depois. Não que não houvesse uma gratidão. Mas a demonstração de carinho entre as duas ficou mais fortalecida quando a filha também se tornou mãe e quando ouviu por muitas noites ela contando um pouco do que viveu. E não foram somente as audições. Cleônia lapidou a compreensão da vida de Cecília ao presenciar as atitudes da mãe na rotina dos dias. Conseguia interpretar o que tinha por trás de cada palavra rude proferida, cada abraço que não foi dado, cada parabéns substituído por um presente. E pôde comprovar, também, quando faltava algo que, em outras épocas passadas, ela teria em mão. Porém, diante do que estavam vivendo, Cecília não tinha mais como conceder. Não havia mais reserva dos anos, em que batalhou arduamente no campo, na cidade ou quando foi para o maior centro do país. Por mais que a sua força continuasse presente, vê-se um sofrimento, embora discreto, de não ter mais o fruto do que tanto semeou e que tanto tomou espaço em sua vida. — É triste chegar na minha idade e não ter uma casa para morar. Quando Cecília dialoga com quem quer que seja sobre o fato de morar de aluguel, deixa no ar uma frustração por não ter contido a vontade do ex-marido de vender as coisas que eles construíram. Uma vez que ela assinava os documentos, não desfazia o negócio. Não queria criar um transtorno maior para ninguém. No fim, ela acabava cedendo e colocava sua assinatura. Depois de um sonho desfeito, lá ia novamente Cecília em busca de mais um bem. Primeiramente, o alimento, a dignidade. Depois, se sobrasse, guardava. Mas não em banco. Poupança só teve uma vez, mas, na década de 1980, e lá mesmo ficou no antigo banco do estado. Guardava mesmo era em casa. Uma atitude que hoje não tem. Pegou birra de pensar no futuro, de tanto ter vivido em função dele e depois perceber que de nada tinha adiantado. Mas era resiliente, mesmo sem total conhecimento dessa sua inigualável qualidade. Desde que saiu de casa, em 1969, Cecília não mudou muito da época em que morava na fazenda. Talvez pensasse que outras ideias surgiriam, que haveriam mais caminhos a serem trilhados. Contudo, sua essência a travava, mesmo involuntariamente. Cecília deixou de trabalhar na roça, para trabalhar, e fazer disso sua maior rotina, na cidade. Esse seu jeito de não deixar nada para amanhã não só lhe rendeu louros,

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mas um tanto de atribuições que tomavam seu tempo e roubavam os momentos com sua família. — Mamãe não era carinhosa comigo, não. Hoje, em dia, depois que nasceram os meninos, é que ela mudou, que temos uma relação mais de mãe e filha, de amigas. Hoje, eu consigo abraçá-la, cheirá-la. Antes, ela dizia para sair. Não gostava. Claro que não fui uma adolescente tão obediente, mas sentia vontade de ter minha mãe mais perto. Ainda bem que conseguimos, a tempo, mudar isso. Eu entendo hoje a sua história. Ela não me dava porque não tinha recebido tanto. Quando Cleônia, então com vinte anos, engravidou, por receio não contou à mãe. Não tinha ainda uma abertura tão grande para diálogo. O assunto era sério e chegava numa hora em que a vaca gorda estava emagrecendo. A menina contou ao pai, que a apoiou visando um casamento, mesmo de papel passado. Ela não quis. Sabia que o pai do filho, já que estavam separados, não iria fazer de boa vontade. No dia marcado ela não compareceu ao cartório. O pai, decepcionado, reclamou e ficou alguns dias sem falar com ela. Isso aconteceu três anos depois de Cecília não ter mais casa, nem reserva. Uma criança a mais, um acompanhamento, roupas que não caberiam mais, outras que precisariam ser compradas. Como fazer, o que Cecília e Cleônia iriam fazer? Mas isso não foi problema. A então sogra de sua filha concedeu uma casa, na rua em que moravam alguns parentes. Francisco, sobrinho de Cecília e compadre, também ajudava na alimentação. Uma prima de Cleônia emprestou um macacão de grávida e um vestido foi feito para toda a gestação. E isso, para elas, era um detalhe. Ali viria o primeiro neto de Cecília, que se chamaria Lucas, nome escolhido por Fátima de Amélia, sua irmã. Uma continuidade. A relação das duas foi se transformando. A filha passou a entender que, juntas, eram mais fortes. Eram as duas pelas duas. Cecília não estava acostumada a ser coadjuvante. Quando o menino nasceu, ela vivia a mimá-lo. Era o primeiro neto, ainda não havia sentido um amor assim. Ficou durante muito tempo com ele, quando a filha fazia faculdade, quando a filha trabalhou fora. Educava, mas também tirava a ordem da filha. E quando isso acontecia, aquela paz que reinava em casa ficava estremecida. Mãe de primeira viagem, Cleônia sentia que tinha de tomar as rédeas da situação, e, se isso não era do jeito que esperava, as caras de fechavam. Mas logo o tempo alegrava e fazia brotar o sorriso. Nunca demoravam. As duas sempre tiveram uma característica muito peculiar: não guardam rancor. Podem até explodir, mas, se há arrependimento, tentam

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consertar e não acalentam a amargura. Durante alguns anos, mãe, filha e neto moraram juntos, até que em 2001 Cleônia mudou-se para um distrito. Já concursada, decidiu ser transferida, para dar um tempo a uma relação conturbada. Não demorou. Retornou à cidade, e, no mesmo ano, engravidou novamente do pai de Lucas. Veio mais um menino em 2002: Guilherme, nome escolhido em homenagem ao avô da criança. Nesse caso, havia brecha para mãe e filha, já independente, conversarem. Cecília sorria. Gostava de ser avó. Cuidou de todo o resguardo, com caldo de carne, para dar sustância, com rapadura ralada, para dar mais leite. Mantinha cuidado diariamente, mesmo trabalhando no mercado público, à época. Era mais presente na infância dos netos do que foi na infância da filha. E mesmo tendo nutrido a vontade de se casar na igreja, durante toda sua juventude, não cobrou da filha que fizesse igual. Apenas que se casasse. E assim ela fez um juramento no civil, na presença de poucos familiares. Mais investimento não era preciso. Ninguém tinha muitas expectativas, e até os pais, embora não se opusessem ao enlace, não acreditavam que fosse muito adiante. Que Cleônia fizesse o que bem entendesse. Eram outros tempos. Um ano depois do seu neto mais novo nascer, Cecília ficou sozinha. Sua filha fora embora da cidade. Saiu, sem que muitos soubessem o destino. Pensavam que ela iria para Rondônia, onde sua tia Afonsina morava, mas foi mesmo para Mato Grosso. Nenhum parente em vista, nenhum conhecido da cidade. Apenas acreditou na intuição e foi ao encontro de um rapaz que conheceu na internet, depois de estar divorciada. Cecília nem mensurava perigo, por ser um desconhecido. Apoiou a filha e, nesse instante, contrariamente, o pai não aceitava a decisão dela de ir embora. Não queria ficar só, sem vê-la. Esse era seu argumento. Cecília, então, acreditou e apostou em um novo futuro para sua filha. Como mãe, não queria mais presenciar o sofrimento da filha num relacionamento conturbado. Não tardou até Cecília ir atrás de Cleônia e dos dois netos, em Mato Grosso. Sozinha, de ônibus, levava a saudade dos seus e inúmeros produtos típicos. Uma festa quando ela desceu do ônibus. Mas logo ela achou tudo muito estranho. A estrada que ligava a cidade à casa de Cleônia era de terra vermelha. Não se dava para ver nada na frente, se o veículo estivesse atrás de outro. A poeira invadia. Sua filha já tinha se acostumado. Cecília, não. — Ave Maria, nunca vi tanta terra em minha vida. Um lugar longe. Achei que não chegaria nunca. E não era somente a estrada que ela achou diferente. Reclamava, já no

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segundo dia em que pisou em terras do cerrado, do frio, do batente da casa, das pessoas, dos pães que eram caseiros e não franceses, do telefone que era orelhão, nem sempre disponível para falar com sua irmã e sobrinhos. Ainda assim foram quatro meses antes de retornar a Floresta. Sua filha, seus netos, seu genro não queriam que ela fosse, mas não tinha jeito. — Quando ela quer algo, nada faz a mãe desistir. Nem que erre, nem que se arrependa e volte atrás, ela vai, ela faz.

Cleônia conhecia bem a mãe. E confiava no olhar dela também, inclusive sobre o genro. — Odair é um menino bom, um vivente. Desde o primeiro momento em que ela viu seu genro, considerou um rapaz direito. Então deixar sua família nas mãos dele não seria preocupante. Acreditava em sua calma e no seu silêncio. O motivo dela retornar à sua terra seria para continuar andando, nunca parar. Sem contar que a adaptação ali não estava fácil. Vivia em casa, só indo à cidade uma vez por mês, no dia de pagamento da filha ou do genro. — Não vejo a hora de chegar em minha terra. Deus me livre. Agora vou demorar a voltar aqui. De longe, viram o nome iluminado: Juina/Cuiabá. Era nesse ônibus que iria até a capital. Depois, mais três até a cidade natal. Todo o cuidado era pouco com muitas malas e viajando sozinha. Mas se não havia a facilidade de uma companhia, havia vontade de sobra. Nada era entrave para ela. Subiu no ônibus com seu travesseiro e sua bolsa a tiracolo e partiu. — Bênção, mamãe. Ligue da estrada e tenha cuidado com as bolsas. Não peça ajuda a todo mundo não, tenha cuidado. — Eu não sou besta, não, Cleônia. Não nasci ontem. Despediram-se, dando tchau pela janela, lágrimas de saudades escorriam pelo rosto e a família que ficou voltou para casa. Foram apenas alguns meses em solo pernambucano. Depois de várias ligações, ela achou melhor voltar. Agora a filha morava em uma fazenda de grãos e era para essa morada que ela passou a ter idas e vindas. Mais de dez vezes. Até hoje é o humor e as saídas para a cidade que definem quanto tempo ficará em um lugar. Cecília é assim em tudo o que faz. Viver sempre parada, sem ver muitas pessoas, sem poder passear quando der na telha são situações que Cecília só passa se for por um período muito

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curto. Sair de sua cidade é uma decisão tomada bem antes, com tempo de se organizar, de deixar suas coisas sob os cuidados de alguém. Nunca vem sem programação, de forma impulsiva. Apenas uma vez. E isso foi em 2013, quando ela teve um AVC. Morando sozinha numa casa, mas numa rua de parentes e amigos, de madrugada, um vizinho ouviu um chamado de socorro, bem baixinho, quase inaudível. José Antônio correu e chamou sua mãe: — Corre, mãe. Ouvi a voz de Tia Cecília baixinho, chamando. Todos correram atônitos, agoniados, abriram a porta da casa e ela estava deitada ao lado de sua cama. Já não mais dizendo coisa com coisa, pegaram-na no colo e correram para o hospital. Pela cena, cogita-se que ela levantou para ir ao banheiro, mas teve a dor de cabeça, urinou-se e escorregou no líquido. A partir daquele instante, todos se mobilizaram. Pegaram carro de um, outros ficaram arrumando e limpando a casa, sobrinhos ligavam para a filha para dar a notícia, seu ex-marido correu para o hospital. Todos só fortaleceram a solidariedade, que era presente no cotidiano de Cecília. No hospital, foi detectado o AVC do lado esquerdo. Com uns dias internada, ela saiu sem sequelas visíveis. Apenas alguns períodos na memória ousam a desaparecer, retornando em outros momentos. Remédios novos também entraram na relação daqueles que ela sempre costumava tomar. E, agora, teria de ser para um controle permanente. Já em casa, ainda em fase de recuperação, tinha sua irmã Alice que estava ao seu lado. Era uma companhia, além das pessoas que iam visitá-la. Sentia que havia amor, além dos laços de sangue. Sentia-se bem cuidada. Era tão verdadeiro que, num desses momentos de alento, revisitou o passado tão longe e lembrou-se do jeito que sua mãe lhe tratava, do seu carinho, e era tudo o que ela queria naquele instante. Parecia real, não queria acordar, mas percebeu que era apenas um sonho. O que restou foi baixar a cabeça, tirar seu lenço e deitar-se. Naquele momento que ela dormia, sua irmã ligou para Cleônia. Queria contar como Cecília estava, o que poderia ser feito e dizer que ela deveria ir para Mato Grosso para morar com a filha. Seria melhor estar mais protegida, com companhia, com mais recurso. Sua filha ouviu atentamente, mas, sentindo-se impotente por estar distante, decidiu ir a Floresta visitá-la. Assim o fez. Foi no final de semana após o telefonema. Visitou, conversou com familiares e ficou certo que queria sua mãe junto dela. Deixou claro que não era para cercear a liberdade dela. Depois de um tempo, sentindo-se melhor e mesmo

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com alguns conselhos que não viajasse sozinha, ela partiu ao encontro da filha. Depois de ter ligado de lá, avisando que estava a caminho, nem ouviu sua filha aconselhar que não seria bom que viajasse assim, mesmo porque ela não ouviria. Principalmente, numa situação em que estava fazendo o que mais gostava, que é passear, mesmo sem condições físicas para isso. Portanto, sua filha caiu na real que não tinha mais o que fazer, a não ser rezar para que a viagem fosse em paz. Chorou na despedida, abençoou sua sobrinha que a deixara no aeroporto, mas logo um sorriso saía. Era a aeromoça que vinha buscá-la numa cadeira de rodas. Esse gesto simples de carinho ficou guardado na memória.

Caminhando lentamente, acolhida pelo comissário e equipe do avião, Cecília desceu calmamente e pegou o táxi até a rodoviária. O ônibus sairia trinta minutos depois. Sua filha, em casa, tratou de organizar o quarto para esperá-la. Não somente pensava no cheiro do lençol que ela deitaria, mas perfumes da ansiedade evolavam dentro de casa. Cecília precisaria de mais cuidados, atenção e paciência. E essa atenção sem medida, que não foi uma companhia tão rotineira, teria de nascer no seio daquela família. Amor era um sentimento que transbordava, tinha de sobra e esse sobressai aos entraves. Mas faltava a expressão nos poros, na voz, no abraço, nos cuidados atenciosos. Dedicar-se a novos dias era tudo o que Cecília mais desejava. Queria viver mais segura, perto dos entes que vinham do seu ventre. Era mãe, avó, além de irmã, tia, amiga. A filha, seus netos já crescidos sentiam essa necessidade de sempre ouvi-la, de ver sua participação mais efetiva em casa. Deram força para estarem juntos, apesar de naquele instante ser bem melindroso, pois havia toda uma recuperação por trás. Mas, mesmo assim, quando ela quis, ela pôde ir. Ela tinha o comando do tempo. O ponteiro do relógio correu mais ligeiro que o normal e não teve como parar num melhor momento que o daquele dia. Cecília viajaria do sertão ao cerrado, talvez até com data de volta bem rápida, mas essa vez seria intensa. Dentro do ônibus, ela oscilava entre dormindo e acordada. Preocupava-se com as bagagens apenas. Sua filha já estava à espera, bem antes do ônibus parar na rodoviária. As duas na mesma proporção de ansiedade. São muito parecidas por natureza. Quando ela desceu, esperavam sua família e seus novos dias. Dias a serem provados bem mais lentamente, sentindo o sabor que antes era mais insípido. Agora o tempo seria um aliado, revisto e escrito por mãe e filha.

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Os abraços apertados foram de saudade, de pazes, de pés caminhando juntos, num futuro tão sonhado, resgatando sua história. Relembrar o passado, quando se sentava na cama, enquanto sua filha escrevia as linhas, os parágrafos, foi mais que habitar num novo tempo. O aprendizado, a reflexão não somente passaram a limpo a memória. As conversas, os risos que saíam ao reviver mais de oito décadas eram agora livres. Residiam novos moradores no coração da mãe e da filha. A voz e o ouvido agora eram conectados pelo caminho da vontade. Uma chance que não foi desperdiçada. Sua filha sabia que havia uma história que permeava todo o cenário de distância na adolescência. E não era tarde para um novo início. Os rios, as pedras, a caatinga, os girassóis, os grãos dourados eram apenas enfeites nos lugares em que Cecília caminhava. A relação de mãe e filha tinha raiz no amor e na resiliência.

O sonho de um novo tempo estaria apenas começando. Filha, mãe e netos são as tramas no laço que Cecília não conseguiu apertar com sabedoria há muitos anos e nem teve auxílio tão seguro de sua filha na condução. Mas o laço estava ali. Não havia desatado. Com a mão de cada um, ela sabe que consegue atá-lo, sem brechas, sem arrependimentos. Forças de duas mulheres se equilibram. A vida sofrida de outrora, a seca, as dores, a ausência de diálogo, as traições, as perdas, a alopecia, tudo o que provocou lágrimas de tristeza daria lugar a uma vida mais leve, sem baús fechados, mas apenas com bagagens de mão que servem de experiência. Cecília é uma mulher guerreira, que marcou sua vida não somente nas calçadas centenárias da Mãe D’Água, mas deixa um legado por toda estrada que passa. Ela é uma prova viva de que pode ser múltipla, e é uma mulher que não teme erros, nem é ávida pela perfeição. Aprendeu que, se há desequilíbrio no caminho, é hora de aferir e de deixar seus passos seguirem aonde querem chegar.

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