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A MAGIA DO CONTAR E RECONTAR HISTÓRIAS ANCESTRAIS NA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA: RECRIANDO VALORES Jorge Luiz Gomes Junior Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-raciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Relações Étnico-Raciais Orientador: Prof. Dr. Sérgio Luiz de Souza Costa Rio de Janeiro Maio/2014

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A MAGIA DO CONTAR E RECONTAR HISTÓRIAS ANCESTRAIS NA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA: RECRIANDO VALORES

Jorge Luiz Gomes Junior

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-raciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Relações Étnico-Raciais

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Luiz de Souza Costa

Rio de Janeiro Maio/2014

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A MAGIA DO CONTAR E RECONTAR HISTÓRIAS ANCESTRAIS NA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA: RECRIANDO VALORES

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações

Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Relações Étnico-Raciais

Jorge Luiz Gomes Junior

Aprovada por:

___________________________________________ Presidente, Prof. Sérgio Luiz de Souza Costa, Dr. (orientador),

___________________________________________ Prof. Maria Cristina Giorgi, Dr.

___________________________________________ Prof. Bruno Rêgo Deusdará Rodrigues, Dr. – (UERJ)

Rio de Janeiro

Maio/2014

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Ádupé (Agradecimentos) Agradeço inicialmente a Olorum (Deus) e aos òrìsà (orixás), em especial a Esu (Exu), princípio do movimento e da comunicação, a Osala (Oxalá) o sopro da vida, a Yemoja (Iemanjá) senhora das cabeças e a todos os òrìsà (orixás) e ancestrais que permitiram que esse trabalho, posicionado entre o sagrado e o científico, em prol de um uma sociedade mais democrática e pontuada com princípios da equidade, acontecesse. Aos meus pais, minha família e amigos, em especial a minha mãe, Tânia Regina, que desde sempre confiou em meu potencial, incentivou meus projetos e me auxiliou no trajeto deles. Ao professor Dr. Roberto Borges, que ao se permitir sonhar sem tirar os pés do chão, e sempre com muita atenção, cautela e dedicação a causa que gera todo esse movimento de enfrentamento ao racismo em um núcleo dentro desta instituição permitiu que cada de um de nós, discentes desse programa realizássemos um sonho pessoal. Ao professor Dr. Sergio Costa, meu orientador, pela atenção e dedicação dispensada à produção desse trabalho, colaborando sempre. À professora Dra. Cristina Giorgi que desde sua participação na banca de qualificação dessa pesquisa mostrou-se crente nessas ideias, incentivando o progresso desse estudo. À Mãe Stella e ao Àse Opó Àfonjá (Axé Opô Afonjá) pela acolhida e contribuição primordial para o desenrolar desse trabalho. Agradeço imensamente aos amigos e amigas que conquistei ao longo desse processo de pesquisa, com os quais as trocas foram fundamentais para o crescimento nessa área do conhecimento, em especial a Neidjane Gonçalves e Katia Silva, companheiras de todas as horas, pares para discussões bastante enriquecedoras e Patrícia Rodrigues, que, além da companhia e debates valorosos, foi uma ajuda imensa na transcrição da entrevista. Vocês não sabem como foram relevantes nesse processo.

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Dedico esta pesquisa a todas as ìyálòrìsà (mães de santo)

do Brasil e a todas(os) aqueles(as) que reconhecem o

valor da contação de histórias nas casas de candomblé e

fazem dessa uma prática cotidiana. Em especial à Mãe

Stella de Òsóòsí (Oxóssi), um farol, no mar revolto das

complexidades da existência, sempre pronto a oferecer um

norte àqueles que chegam às terras de Sàngó (Xangô) que

foram entregues ao governo da estrela azul da Bahia.

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"A educação é a arma mais poderosa que você pode usar

para mudar o mundo." Nelson Mandela

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RESUMO

A MAGIA DO CONTAR E RECONTAR HISTÓRIAS ANCESTRAIS NA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA: RECRIANDO VALORES

Jorge Luiz Gomes Junior

Orientador: Sérgio Luiz de Souza Costa

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Relações Étnico-Raciais.

A pesquisa propõe uma reflexão acerca da presença e força dos mitos religiosos na sociedade africana, de cultura yorubá, e seus ecos na reconstrução desses valores, na promoção da afro-brasilidade, a partir do desenvolvimento da religiosidade de matriz africana, nesse sentido, o Candomblé. Considera-se ainda o espaço dessas narrativas de base oral e de origem ancestral na construção da identidade das crianças de terreiro, que, em decorrência da fé que professam, dialogam com essas narrativas em seu cotidiano, assim como, também, a presença desses textos que habitam no espaço híbrido que se constrói entre a voz e a letra, na literatura brasileira para crianças e jovens. Nessa perspectiva, compreende-se a referida literatura como um instrumento capaz de recriar conceitos referentes ao entendimento e percepção da cultura africana e afro-brasileira. Diante da necessidade de promover uma releitura das referências culturais do país, à medida que se começa a questionar os valores enraizados e propagados pela sociedade, (re)avaliando/considerando a noção de afro-brasilidade presente nela e apoiados pela lei 10.639/03, pensa-se na possibilidade de apropriação da oratura de temática africana, para se recriar conceitos solidificados no imaginário de parte considerável da sociedade, a respeito da cultura e religiosidade afro-brasileira, oferecendo bases para o trabalho com a educação em uma perspectiva étnico-racial, abarcando uma lógica multicultural, além de possibilitar a autoafirmação dos herdeiros do axé no âmbito educacional.

Palavras-chave:

Educação para as relações étnico-raciais; Oralidade; Candomblé

Rio de Janeiro Maio/2014

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ABSTRACT

THE MAGIC OF TELLING AND RETELLING ANCESTRAL STORIES IN BRAZILIAN CHILD AND JUVENILE LITERATURE: RECREATING MORAL VALUES

Jorge Luiz Gomes Junior

Advisor:

Sergio Luiz de Souza Costa

Abstract of dissertacion submitted to Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais (Etnic-racial Relations Program of Postgraduation) - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, as partial fulfillment of the requirements for the degree of the Master in Ethnic-racial relations.

This paper proposes a reflection about the religious myth’s presence and force in African society of Yoruba culture and its echoes on rebuilding these values, furthering the Afro-Brazilian way, whereof the development of the African religiosity – the Candomble. It also considers these oral and ancestral narratives on the construction of the identity of children from the Candomble yards that, because of their faith, deal with these narratives everyday just like this text’s presence in this hybrid space constructed between voice and word, in Brazilian Child and Juvenile Literature. On this perspective, we comprehend this Literature as a way to recreate concepts referring to the understanding and the perception of the African and Afro-Brazilian culture. Towards the need of promoting a review of the country’s culture references, as you begin to debate the rooted and spread values by society, (re)evaluating/considering the Afro-Brazilian way presence and supported by law 10.639/03, we think about the possibility of borrowing the African theme rhetoric, to recreate concepts settled on most of the society, about the Afro-Brazilian culture and religiosity, offering bases to education in an ethnic-racial perspective, on a multicultural logic view, and also enabling the self-affirmation of axé’s heirs in the educational range.

Keywords:

Education for ethnic-racial relations, orality, Candomble.

Rio de Janeiro May/2014

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Sumário

Apresentação 01

Considerações Iniciais 08

I A África no contexto educacional brasileiro 12

I.1 A lei 10.639: uma década para além de somente uma lei 12

I.2 Encontros e saberes: por uma educação multicultural 21

I.3 O ser negro e a Literatura para crianças e jovens 25

I.4. Religiosidade, educação e cultura: os mitos para além das bases

de uma religião 28

II Literatura, oralidade e saberes: uma abordagem sobre a força das palavras e da contação de histórias no candomblé 33

II. 1 Ìtan Atowodowó: história imemorial - mitos yorubás, oralidade e literatura 35

II.2 A palavra nas sociedades africanas 38

II.3 Percursos da palavra: entre heranças africanas e ressignificações na religiosidade afro-brasileira 40

II.4 Entre voz e letra: os mitos yorubás e a literatura para crianças e jovens 42

III Crianças de terreiro e a contação de história s: a construção/fortalecimento de

uma identidade 50

III.1 Ìyálòrìsà: intelectuais orgânicas em uma religiosidade matrilinear 54

III.2 Entre a louvação e a negação - ser de candomblé na escola: uma

abordagem 63

Conclusão 70

Referências Bibliográficas 76

Apêndice - Entrevista: Ìyá Stella de Òsóòsí 79

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APRESENTAÇÃO

Feliz ano novo!!! É o que mais se ouve no período que antecede o encerramento do

ciclo de doze meses que determina a passagem do tempo, que nesse sentido denominamos

ano. O final do ano carrega consigo toda uma magia, uma reflexão, ainda que involuntária, e

sobretudo um desejo de superação de todas as mazelas que de alguma maneira se fizeram

presentes durante os mais recentes 365 dias. E por isso, no último dia do ano os religiosos, em

aliança com os dogmas de sua fé, entram em comunhão com Deus, ou com seus Deuses, em

busca de força, boas vibrações, bênçãos para que o novo ciclo que se iniciará.

Fogos, champanhe, alegria, músicas, lágrimas, roupas brancas, flores para Yemoja1

(Iemanjá), flores ao mar, espaço repleto de histórias que vão desde os mistérios religiosos até

o entendimento de travessia; essas e outras coisas compõem esse imaginário do final do ano.

Ao passo que um tempo se encerra outro se inicia e, a criança, prestes a nascer, estimula a

esperança. Talvez essa seja a palavra que melhor defina as sensações que surgem da magia

das comemorações do ano novo.

Primeiro de janeiro, o bebê nasceu. Um novo ciclo se inicia! Por mais doze meses

daremos um nome numérico a esse tempo. Todo tempo carrega consigo, ao menos para

aqueles que creem, uma energia e o povo de orixá sempre busca meios para se harmonizar

com as forças que o conduzirão e é Ifá, o senhor da adivinhação, que os orienta nas

caminhadas da vida.

O dia começa a nascer. O sol vai dissipando a escuridão da noite, abrindo espaço ao

efetivo começo de um novo dia. Ogìyán2 (Oguian), o òrìsà3 (orixá) do nascer do dia, vem dando

início a nova jornada dos humanos. Amanheceu, vê-se no horizonte a sombra de Yewá4 (Euá),

a serpente que sustenta o mundo e a natureza começa a dar sinais de que a vida continua.

As movimentações em louvor ao novo ano já passaram, mas ainda não sabemos o que

o novo nos reserva. É dia de ir ao àse5 (axé), bater cabeça para os òrìsà (orixás) e saber deles

como será o novo ano. Os raios solares vão invadindo a casa, o vento de Oyá6 convida as

[1]

Divindade yorubana relacionada às águas. Considerada a mãe de todos. Apesar de na África estar vinculada ao rio Ogun, essa divindade ganha na diáspora o domínio sobre o mar.

[2] Face juvenil da divindade considerada o grande pai de todos, Oxalá. Nessa perspectiva, trata-se de um jovem guerreiro da paz,

ligado ao nascer do dia, a guerra e a paz. Ao equilíbrio.

[3] Fragmentos do Deus supremo. Diz-se das forças superiores encantadas na própria natureza cultuadas nos candomblés.

[4] Divindade feminina. Segundo a mitologia a grande cobra que segura o mundo mantendo-o em unidade. Na natureza, além da

própria cobra pode mostrar-se na neblina que se observa ao horizonte.

[5] Força vital, boas energias, uma confirmação ou como nesse caso uma referência ao próprio terreiro.

[6] Orixá feminino que domina os ventos e os raios. Senhora das tempestades é considerada uma mulher brava e guerreira.

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árvores a bailarem sem saírem do chão, as águas da fonte de Òsun7 (Oxum) continuam a rolar

pelas pedras, deixando soar bem próximo a casa do senhor do fogo o movimento das águas.

Omi ooo (Salve as águas). A areia do solo de Àfonjá8 começa a ser marcada pelas pegadas

dos filhos do Ilé Àse Opo Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá)9, que se encaminham para a casa do Obá

(rei). Aguardemos a ìyálórìsà (Ialorixá – mãe de santo), em breve ela chegará para revelar o

que o oráculo tem a dizer.

- Sure fun mi ìyá!10

- Sure fun o!

A mãe de santo chegou à imponente casa de rei de Oyó11, na pequena África criada por

mãe Aninha na cidade de Salvador. Enquanto se encaminha ao quarto de Sàngó (Xangô), o

dono do terreiro, para inúmeras vezes, a fim de abençoar seus filhos que se curvam diante

dela, e entre dobale12 e ika13 lhe pedem a benção.

- Oba nisé kawo kabiensile14!

Ouve-se o som do sere15 (xeré) e todos saúdam ao patrono da casa, Não se pode

passar diante do rei, estar em sua casa sem saudá-lo. Entoam-se cantos de louvores a ele.

Aqui o som é fundamental para o encontro com o sagrado.

A ìyá16 (iá) se dirige a sua cadeira, posicionando-se diante da mesa na qual fará o jogo

dos búzios, pronta a revelar através do sagrado oráculo o òrìsà (orixá) responsável por esse

ano. Os omo òrìsà (filhos de santo) se acomodam pelo chão, ocupando todo o espaço, desde

os pés da mãe de santo até a porta da casa de Sàngó (Xangô).

O silêncio é absoluto. Caderno e lápis na mão. Em poucos minutos os mistérios do ano

serão desvendados pela sábia sacerdotisa que mediará o contato entre as forças da natureza e

os humanos que se colocam sobre a proteção delas.

[7]

Considerada a mais bela das mulheres domina os rios e cachoeiras. Orixá vinculado à fecundidade, maternidade, ao amor e ao ouro. Grande dama do candomblé, possui encanto e sutileza.

[8] Uma das faces do orixá Xangô, divindade vinculada no Brasil a justiça. Patrono do terreiro de candomblé no qual se deu essa

pesquisa.

[9] Terreiro de candomblé fundado em 1910, na cidade de Salvador, Bahia, por Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha, Obá Biy.

[10] Maneira tradicionalmente utilizada pelas (os) filhas (os) do axé Opô Afonjá para pedirem a benção à ìyálòrìsà. A frase que

segue trata-se da resposta da mãe de santo.

[11] Cidade africana consagrada ao orixá Xangô.

[12] Forma como as filhas (os) de orixás masculinos saúdam a ìyálòrìsà, as anciãs (ãos) da casa e sobretudo os orixás.

[13] Forma como as filhas (os) de orixás femininos saúdam a ìyálòrìsà, as anciãs (ãos) da casa e sobretudo os orixás.

[14] Saudação a Xangô.

[15] Instrumento sonoro vinculado ao culto de Xangô. Assemelha-se a uma chocalho.

[16] Literalmente, mãe.

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Depois de muito movimentar os búzios e observar as quedas, a ìyálòrìsà faz menção de

que irá se pronunciar. Outros tantos olhares atentos se direcionam a ela. E com um misto de

firmeza e suavidade ela afirma:

- O ano é de Ósóòsí17 ( Oxóssi)!

E todos os presentes louvam ao òrìsà (orixá) que se apresenta como patrono deste ano:

- Oke Aró18! (Okê Arô)!

Os filhos do caçador levam as mãos ao solo e trazem a cabeça, reverenciando a

energia que habita dentro deles e sobretudo buscam na terra a força sagrada desse ancestral

que é soberano entre os Ketu.

Movimentando mais uma vez os búzios, em busca da confirmação dos caminhos pelos

quais vem Òsóòsí (Oxóssi), neste ano, a mãe de santo chega à conclusão exata a respeito dos

direcionamentos que as forças da natureza oferecem para uma relação harmônica com as

energias que regem e, consequentemente, movimentam o tempo que se inicia. Òsóòsí

(Oxóssi), o grande caçador yorubá, contará à sacerdotisa por meio de um Itan (mito), que é

indicado a partir do oráculo, como devemos proceder durante esse ciclo para melhor

conduzirmos o nosso ano.

- Certa vez em uma família houve um grande transtorno, afirma a ìyálòrìsà, que inicia uma

contação de história.

- Por conversas vindas de fora, um casal entra em conflitos dentro de sua própria casa. A

confusão vai tomando uma proporção, de maneira que fica impossível a convivência.

Chegando ao extremo do descontrole, a mulher resolve por fim a vida do marido para que

possa viver então, em paz, com seu filho.

Os ouvintes começam a fazer suas anotações.

- Para matá-lo ela resolve por veneno em sua comida. No momento em que fazia isso, foi

surpreendida pela presença do filho! A criança vê e entende o que a mãe pretende e corre para

contar ao pai, para que ele possa se livrar da armadilha.

- Vixe19! Comentam as filhas de santo, surpresas pelo rumo da história e ainda mais por tudo

que isso pode significar para o tempo em questão.

[17]

Divindade considerada rei de Ketu. O grande caçador yorubá. Ligado a caça, as matas e a prosperidade. O provedor da aldeia.

Sobre Ketu, trata-se de um território atualmente dizimado. Localizava-se dentro do que hoje se conhece como Nigéria. Pode-se dizer que seria o centro da cultura yoruba que chega ao Brasil. É também o nome que identifica um determinado grupo étnico-cultural entre os vários candomblés, que são diferenciados também por sua origem cultural. Nesse sentido além do candomblé Ketu podemos fazer referência aos candomblés: Angola, Jêje, Nagô e Efan, como diferentes faces desse culto.

[18] Saudação a Oxóssi.

[19] Expressão informal, popular e regionalista com a ideia de espanto.

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- Ao encontrar o pai, a criança leva um susto! Seu pai também estava pondo veneno na comida

que seria entregue à mãe. Desconsertada, a criança dá ao pai a notícia que trazia e volta para

contar o mãe o que acabava de descobrir.

Os olhares se mantêm atentos às palavras da mãe de santo.

- Todos foram parar na polícia. Tomaram um “carão”20 e voltaram para casa. Conseguiram se

acertar. Por fim, a criança conseguiu evitar aquela tragédia e salvou sua família.

Encerrando a história, a ìyálórìsà traz a cena valores morais e práticos para a vida

social da comunidade a partir da história que o òrìsà (orixá) trouxe para a reflexão. Nesse

intento, assim ela afirma:

- Tenham cuidado com vizinhança. Não queiram ter confidentes e se esforcem para não

permitirem que pessoas de fora participem da intimidade de sua casa. Tomem bastante

cuidado com os amigos e falsidade. O bom é andar correto e não falar demais! O negativo

desse ano está no ouvir aqui e contar ali. Cuidado com o que falam. Estejam atentos às falas

das crianças. Façam tudo com bastante discrição. Tenham confiança no companheiro ou na

companheira de vocês.

Dessa maneira ela chama a atenção da comunidade para as tendências que o ano oferece e

concluindo as reflexões afirma:

- Para despachar o negativo, toda primeira quinta-feira do mês passem milho de galinha

torrado no corpo, isso livra de falsidade.

E assim, mais uma vez, as histórias ancestrais dos yorubás, por intermédio do jogo dos búzios,

revelam e apontam os caminhos do povo de candomblé.

Essa história é desassociada de uma realidade factual, apreendida no cotidiano da

comunidade em questão, todavia sua trama constitui-se com bases na vivência habitual dos

terreiros de candomblé, tendo assim a potencialidade de adequar-se a qualquer templo

candomblecista. Trata-se de uma história atemporal, uma vez que poderia se dar em qualquer

momento da história dos candomblés, afinal de contas a contação de histórias exerce função

social e ritual há muitos anos nessas comunidades, desde sua formação no Brasil. Essa

tradição embasada na oralidade atravessa o tempo e vem dos ancestrais africanos do povo

negro brasileiro, que chegaram traficados e escravizados ao Brasil e se repete a mais de um

século no Ilé Àse Opo Àfonjá, cenário religioso dessa pesquisa, assim como em tantos outros

espaços religiosos de preservação e resistência espalhados pela diáspora.

Foi a partir da observação da explanação desses mitos em comunidades religiosas

afrodescendentes, em especial no Àse Opo Àfonjá, que surgiu meu interesse pela magia e

influência dessas narrativas nos direcionamentos sociais, morais, pessoais e religiosos

daqueles que creem nesses relatos. É justamente a profundidade que se observa na relação

[20]

Expressão popular com sentido de bronca, repreensão.

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desta casa de candomblé com a vivência mitológica dos yorubás e ainda o olhar voltado a

educação que se percebe a partir das enunciações de sua atual líder e demais ações do àse

(axé) que motivam a escolha desse território para que se construa a análise decorrente dessa

pesquisa. No que tange ao referido cenário da pesquisa, trata-se de uma casa de culto afro-

brasileiro que já ultrapassa um século de existência. O tradicional terreiro de candomblé que

atende pelo nome de Ilé Àse Opo Àfonjá foi fundado em 1910, em Salvador - Bahia, por uma

mulher negra, descendente, no que se refere a sua construção religiosa, da Casa Branca do

Engenho Velho, Ilé Ìyá Nasó Oka, (Ilê iá Nassô Oká) e genealogicamente com antepassados

grunci21. Mãe Aninha, Ìyá Oba Biy é a pedra fundamental desse lugar.

Nosso objeto de estudo constrói-se na figura dos mitos yorubás, da construção da

identidade e reconstrução de valores que ele pode promover através da literatura. Ainda que a

maior parte dos estudos acadêmicos acerca da África e afro-brasilidade estejam restritos aos

países lusófonos, a referência aos mitos yorubás torna-se viável, ao considerar-se a influência

e difusão dessa mitologia no Brasil, por meio da religiosidade, ganhando espaço na cultura

nacional, vide o culto a Yemoja (Iemanjá), o òrìsà (orixá) feminino das águas salgadas, que é

louvado nos finais de ano, recebendo flores que são lançadas ao mar, em diversas praias do

país, por indivíduos que muitas vezes não são de Candomblé, mas reconhecem esse hábito

como tradição; e até mesmo pela Literatura Infantil e Juvenil, sem desprezar toda a carga

cultural que esses relatos trazem consigo. Nesse sentido, torna-se possível visualizar a face

transformadora da Literatura, sob o aspecto de agente formadora de novos conceitos,

alterando de alguma maneira construções do imaginário popular, deturpado por uma visão

eurocêntrica das manifestações culturais africanas.

Esta pesquisa faz-se, inicialmente, ao se pensar, com base no que as práticas do

candomblé evidenciam no que se refere à utilização da palavra; a importância em considerar-

se a oralidade, em seus múltiplos aspectos, como literatura verbal, rica em significados,

tradições e essencialmente como memória viva de uma ancestralidade, que pode servir de

pano de fundo para o reconhecimento de manifestações da cultura afro-brasileira, através da

educação, agente emancipatório e descolonizador de mentes. Segundo, a pesquisa propõe-se

a caracterizar a Literatura como um meio de preservação e propagação cultural, que pode

exercer função social, quebrando paradigmas preconceituosos no que se refere à religiosidade

e cultura africana. Além disso, a pesquisa guarda como valor a análise da Literatura infantil e

juvenil na formação do imaginário popular. Propomos também o reconhecimento da

importância e influência do Candomblé como um complexo cultural afro-brasileiro, que reflete

na formação cultural afrodescendente. [21] De acordo com o que nos afirma Mãe Stella em seu livro Meu tempo é agora, assim como nos afirmou em conversas durante a pesquisa de campo, Mãe Aninha descendia de africanos da etnia grunci e por essa razão, apesar de iniciada no culto às divindades dos yorubás manteve no Opo Àfonjá o culto a divindades cultuadas por sua família, tendo estas uma ritualística a parte.

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A pesquisa pensa a oralidade, memória e a construção de identidades a partir das

narrativas mitológicas de origem yorubá, que circulam em espaços religiosos afro-brasileiros,

no caso as casas de candomblé, além da interação dessas narrativas com a literatura de cunho

infantil e juvenil, considerando-a como possibilidade na produção de subsídios para o

cumprimento da proposta da lei 10.639/03. Na esteira dessa proposta, abordamos a presença

e força dos mitos nas sociedades africanas; analisamos a manifestação cultural e religiosa dos

povos denominados Ketu em terras brasileiras, através da estruturação da religiosidade afro-

descendente, especificamente o Candomblé; discutimos a literariedade da oralidade e as

adaptações ao novo território (Brasil) e as novas propostas de perpetuação da tradição e

cultura oral; analisamos como essas histórias sobrevivem na memória coletiva de

determinadas sociedades; identificamos a influência dessas narrativas na construção da

identidade de crianças que, a partir de uma religiosidade de matriz africana, tomam essa

mitologia como um dos alicerces para construí-la e a relação dessas crianças com a escola

que tem em seu bojo um caráter eurocêntrico que vem negar a riqueza dessas tradições;

mostramos a manifestação da religiosidade de matriz africana na Literatura infantil e juvenil

brasileira; analisamos a função social dessa Literatura na reconstrução de conceitos acerca da

cultura africana e afro-brasileira e, sobretudo, evidenciamos a importância da educação em

uma possível releitura de mundo, que parta da consideração da diversidade cultural, étnica e

religiosa observada no intercâmbio gerado no eixo África-Brasil, como uma riqueza

incomensurável que se faz presente nessa terra híbrida, que é o Brasil.

Como mostramos a partir da narrativa de apresentação, para a sociedade do

candomblé, os mitos são constituintes de uma memória coletiva, que embasa os rituais e a

vivência cotidiana dos adeptos dessa religiosidade, uma vez que transmitem valores,

conhecimentos e justificativas para todos os aspectos da vida dos descendentes da

ancestralidade africana que creem em seus relatos. A percepção dessa cultura pelo viés

literário, diante de um trabalho pertinente, pode ser um sólido caminho de desconstrução de

visões pejorativas das sociedades africanas. Consequentemente, o referido trabalho oferece a

potencialidade de auxiliar o cumprimento da lei 10.639/03, sancionada pelo presidente Luís

Inácio Lula da Silva, pela qual fica determinada a obrigatoriedade dos estudos da história e

cultura africana nas escolas, em toda extensão territorial do Brasil. Além de garantir o direito e

igualdade de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos os brasileiros. Pensando a

educação das relações étnico-raciais, a partir dessa análise, se almeja, também, pensar a

construção da identidade das crianças de terreiro e sua relação com a escola, em um sistema

simultâneo de valorização e negação dos mesmos atributos.

O desenrolar da pesquisa deu-se a partir do trabalho com a história oral e a análise de

textos literários. Por meio de extensa pesquisa bibliográfica, solidificou-se a escolha do

embasamento teórico para o desenvolvimento da proposta, contando ainda com uma breve

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análise de livros para crianças e jovens. As obras analisadas, são: Ifá, o adivinho; Xangô, o

trovão e Oxumarê, o arco-íris, de Reginaldo Prandi e Epé Laiyé – Terra viva, de Maria Stella de

Azevedo Santos. A análise contou com a visitação, que muito enriqueceu esse trabalho e se

estruturou por meio de observação/entrevistas ao Ilé Àse Opó Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá), em

Salvador, liderado por Mãe Stella de Ósóòsí (Oxóssi). Almejou-se a obtenção máxima possível

de aspectos da tradição oral africana, que se faz tão presente nos complexos culturais afro-

brasileiros que são os Candomblés, além de considerar-se a influência da literatura oral,

mítica/religiosa, na formação identitária e do cotidiano das crianças ligadas às comunidades de

terreiro.

Os mitos yorubás se constituem como a base da construção de uma religiosidade no

Brasil, a partir da ressignificação de um culto semelhante, de origem africana. Vale ressaltar

que aqui os mitos não são pensados em uma analogia com inverdades. São, no entanto,

narrativas associadas à realidade, romanceadas e marcadas por um maravilhoso, em diálogo

constante com metáforas. Essas narrativas dão conta de justificar os rituais que se

desenvolvem nas casas de Candomblé, a dança dos òrìsà (orixás), a existência dessas

divindades no mundo e a própria existência humana. Como essas narrativas contribuem na

construção da identidade daqueles que se inserem nos grupos yorubás recriados no Brasil,

nesse sentido, fala-se dos Candomblés Ketu; especialmente, na identidade das crianças e

jovens desses terreiros? Acredita-se na ação da literatura na construção do imaginário social.

Seria possível, por intermédio dessa ferramenta, recriar valores sociais referentes às práticas

culturais e religiosas afro-descendentes e possibilitar a auto-afirmação da identidade das

crianças e jovens que se inserem nas categorias candomblecista/estudante? Essas perguntas

serão respondidas ao longo da viagem que propomos pelas vozes e letras africanas, que

chegam ao Brasil com muitos antepassados do povo brasileiro e sobrevivem até a

contemporaneidade.

Diante do que foi dito, pode-se considerar que a proposta da pesquisa é envolta por

uma realidade bastante atual, na qual se propõe a alteração de antigas visões e construções

do imaginário popular, decorrentes do desconhecimento das raízes culturais que justificam as

manifestações da religiosidade e cultura africana. Tais questões, tendo como suporte uma

releitura por meio das redes educativas pode render bons frutos para a sociedade como um

todo, sendo uma relevante contribuição para os estudos referentes às relações étnico-raciais.

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O histórico processo de formação da sociedade brasileira e, até mesmo, o

desenvolvimento estrutural da construção do país, e da cultura nacional, guarda nas tradições

e demais heranças culturais vindas de África, assim como nas de origem indígena, uma

parcela de seus alicerces. Nessa perspectiva, é comum que as culturas a que se refere,

ocupem, diante das heranças européias e de suas relações no meio social, o mesmo espaço.

Considerando o relevante momento sócio-cultural brasileiro que estamos vivendo e a

valorização das manifestações africanas e afro-brasileiras, que se tornam cada vez mais

perceptíveis no país, podemos dizer que a temática africana vem ganhando campo e

promovendo cada vez mais discussões.

Ainda assim, a escola brasileira há muito tempo carrega em seu âmago um caráter

eurocêntrico. Essa postura não está atrelada somente a uma caracterização institucional, tem

origem em reflexos das construções estabelecidas pelas diretrizes da sociedade brasileira. É a

escola um aparelho que serve a uma ideologia que dá sustentação a uma sociedade

intensamente marcada por silenciamentos. Tal afirmação se embasa na premissa de uma

sociedade híbrida, que, por muito tempo, privilegiou um grupo étnico, considerado modelo,

invisibilizando outras participações ativas na efetiva estruturação desse país. Desse modo, ao

passo que a branquitude serve de modelo para essa sociedade, as participações negras e

indígenas são inferiorizadas, a ponto de estes serem colocados, quando muito, como

coadjuvantes, ao invés de ocuparem um espaço de equivalência, uma vez que participaram

tanto quanto os demais na estruturação da sociedade e da cultura brasileira.

A lei 10.639/03, fruto de intensa luta dos movimentos sociais, em especial do

movimento negro, vem fortalecer as iniciativas de enfretamento às desigualdades e

preconceitos, que era travado há algum tempo por estes mesmos grupos. Além disso, garante,

como propõem as diretrizes curriculares nacionais, o direito e igualdade de acesso às

diferentes fontes da cultura nacional a todos os brasileiros, e o faz por intermédio da

valorização dessa face histórico-cultural dos afro-brasileiros e dos africanos, abrindo espaço

nos meios educacionais que apontem para um maior comprometimento com a educação de

relações étnico-raciais.

Esta pesquisa visa à análise da presença das divindades yorubanas (òrìsà/orixás) e da

religiosidade que as envolve, na Literatura infantil e juvenil brasileira, através da transcrição da

mitologia que os cerca, atrelada ao panorama cultural de África e de afrobrasilidade que os

mesmos apresentam. Como é comum a toda manifestação mitológica, as histórias ancestrais

da cultura africana têm base na tradição oral, entretanto, atualmente, de forma gradativa, vem

sendo escritas e divulgadas com o intuito de perpetuar a cultura ancestral das chamadas

comunidades tradicionais africanas, e do candomblé Ketu, espaço de resistência religiosa e

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cultural de povos africanos e suas respectivas comunidades no Brasil, além de grupo afro-

brasileiro central nessa pesquisa.

Frente a uma releitura dos hábitos da sociedade brasileira, no que concerne à postura

dispensada a figura do culturalmente afro-descendente, a reflexão norteada pelo mito,

oralidade e, a partir daí, o desenrolar de uma outra perspectiva no olhar para a religiosidade

afro-brasileira e toda a riqueza cultural que ela traz consigo são relevantes possibilidades para

a reconstrução do imaginário.

O alicerce para as reflexões acerca das manifestações da afro-brasilidade, na Literatura

e na educação como um todo, é a lei 10.639/03, as diretrizes curriculares nacionais da

educação das relações étnico-raciais, e os PCNs. A proposta da pesquisa é, inicialmente,

investigar a manifestação dos mitos religiosos africanos que chegaram ao Brasil com mais

intensidade (yorubás), através da Literatura Infantil e Juvenil. Posteriormente pensa-se a

relação mito yorubá - construção de identidades de crianças de candomblé, considerando o

mito no papel de narrativa apresentada a elas pelas vias da literatura oral. E, a partir daí,

observamos como a literatura pode colaborar, no sentido de apresentar os aspectos culturais

de povos que compuseram, de alguma maneira, a estruturação do que reconhecemos hoje

como povo brasileiro. Partindo da figura da criança, retrato do futuro, repensaremos as

relações entre: cultura afro-brasileira, memória, religiosidade, construção da identidade e a

escola.

O primeiro capítulo sugere reflexões sobre as imagens de África na educação brasileira,

assim como discussões referentes à lei 10.639/03 e considerações sobre o paralelo:

religiosidade, educação e cultura, pensando nesse sentido a educação nas vias do

multiculturalismo. Consideramos ainda a cultura da discriminação, que se mostra bastante

recorrente no âmbito da educação, além de questionar-se a estrutura do sistema educacional

brasileiro, pensando nessa via seu projeto e intenção, apontando nesse sentido para a

inexistência de uma discência afro-brasileira nesse lugar. Ao pensarmos a ideia naturalizada da

ausência do negro nos bancos escolares brasileiros, somos obrigados a refletir sobre racismo,

a farsa da democracia racial e as relações entre escola, cultura e sociedade. Para tal,

tomaremos como embasamento teorias de NILMA LINO GOMES (2005), ANTONIO

GUIMARÃES (2002), MOREIRA & CANDAU (2005), ALBERT MEMMI (1977), ABDIAS DO

NASCIMENTO (1978), MARIA NAZARETH FONSECA (2001), PAULO FREIRE (1996),

KABENGELE MUNANGA (2010), MIA COUTO (2005), SILVA & BRANDIM (2008), VERA

MARIA CANDAU (2005), CANNEN (2007). Além dessas reflexões, buscaremos nos dedicar a

pensar a religião dos orixás. Se observarmos o candomblé de forma panorâmica, poderemos

concluir que, de alguma maneira, são complexos africanos no Brasil, já que nesses ambientes

mostram-se claramente manifestações da cultura afro-brasileira. Diante da relação que a

pesquisa tem com o candomblé, e nesse momento se faz um recorte nesse amplo espaço dos

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candomblés, restringindo-se o foco de análise especificamente para os candomblés Ketu;

julga-se relevante considerar, ainda que suscintamente, a formação dessas comunidades

religiosas no Brasil, o processo de ressignificação a que elas tiveram que se submeter, a forma

como os itan (mitos) chegam e sobrevivem a realidade do novo espaço, sendo a memória a

ponte para que através deles se recriem Áfricas no Brasil. Trataremos ainda das faces do ser

negro na literatura infantil e juvenil, questionando o lugar da personagem negra nas histórias

para crianças e jovens. Para esse processo, iremos nos dedicar no que nos apresenta entre

outros, VANDA MACHADO (2006), LAURA PADILHA (2007), MUNIZ SODRÉ (2006),

REGINALDO PRANDI (1995), RAUL LODY(2011)

O segundo capítulo pensará o entrelugar (voz e letra) dos mitos yorubás,

compreendidos como uma expressão étnico-cultural. Pensaremos a potência da palavra nas

sociedades africanas e a preservação desse pressuposto nas casas de candomblé.

Considerando a contação de histórias e o sistema de transmissão e construção de

conhecimentos, buscaremos refletir sobre a significação da voz e da letra nesses espaços,

além de percebermos a travessia desses saberes no âmbito da oratura à letra, no caminho

para a Literatura destinada a crianças e jovens. Nesse sentido, teremos como referenciais

principais as análises de JOSÉ FLÁVIO PESSOA DE BARROS(2006/2009), AMADOU

HAMPATÉ BA (1993), REGINALDO PRANDI (2001), JOSÉ BENISTE (2008), MÃE STELLA

DE ÒSÓSI (2006), LAURA PADILHA (2007), KABWASA (1982), VANDA MACHADO (2006).

Considerando a complexa relação que se desenvolve entre as práticas culturais negras

e a sociedade brasileira, em decorrência de um racismo profundamente enraizado, a ponto de

ser invisibilizado pela sombra da naturalização da negação de valores identitários afro-

descendentes, no terceiro capítulo pretende-se pensar a construção da identidade das crianças

de terreiro a partir da relação que elas estabelecem com a casa de Candomblé e suas práticas,

incluindo a contação de histórias dos òrìsà (orixás), considerando ainda a relação dessas

crianças que vivem no espaço do candomblé um processo de valoração de uma identidade

negra, afro-brasileira e muitas vezes tem essa mesma identidade sufocada no espaço

educacional, repensando o valor da Literatura no processo de afirmação da identidade dessas

crianças e da casa de Candomblé diante do enfrentamento pertinente a lógica de

desconstrução dos estigmas colocados sobre o negro e consequentemente na formação

cultural afro-descendente. Além disso, há a proposta de investigar a possibilidade de se

enxergar a Literatura como um meio de preservação e propagação cultural, que pode agir na

construção do imaginário, exercendo função social, desconstruindo paradigmas

preconceituosos no que se refere à religiosidade e cultura africana, promovendo dessa forma

uma recriação de conceitos e valores já solidificados na sociedade, em decorrência do

preconceito e racismo contra os negros, construído ao longo da história desse país.

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Pretende-se ainda considerar o espaço da heroína/herói negro(a), apontando na figura

dos òrìsà (orixás) possíveis heróis negros que chegam à cena literária pela Literatura infanto-

juvenil, alcançando aí, uma das principais questões que se pretende levantar nessa pesquisa

que é a presença da cultura afro-brasileira na face das divindades e do candomblé, na

Literatura, através das narrativas religiosas de origem yorubá.

Fotografando a tradição matriarcal dos candomblés no Brasil, almeja-se também pensar

a figura das ìyálòrìsà (ialorixás) como intelectuais orgânicas, a partir da função/ação dessas

mulheres nas comunidades de sua responsabilidade. Para pensar os intelectuais orgânicos,

nos debruçaremos sobre a teoria cunhada por ANTONIO GRAMISCI(1982). Sabemos que

essa última temática se insere na questão da hegemonia e sociedade civil, por isso faremos

uma releitura do apontamento, para se pensar as referidas sacerdotisas sobre essa

perspectiva. Para as demais questões dessa reflexão, lançaremos mão do depoimento da

ìyálórìsà (ialorixá) responsável pelo templo que se insere a pesquisa, além das reflexões

provocadas por JOSÉ FLÁVIO PESSOA DE BARROS (2005), MICHAEL POLLAK (1992),

STUART HALL (2000), MUNIZ SODRÉ (2006), JACQUES LE GOFF (1996), NILMA LINO

GOMES (2005), ORACY NOGUEIRA(2006), KABENGELE MUNANGA (2010).

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Capítulo I - A África no contexto educacional brasi leiro

“Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros” Che Guevara

Considerando o processo de releitura de valores estigmatizantes que alimentam os

preconceitos, em especial o racismo, grande mal na sociedade brasileira, sabe-se que muitos

esforços se fazem necessários. Dessa forma, a união dos inconformados e inquietos com a

realidade que o racismo e demais preconceitos à brasileira nos apresentam é trivial para a

desconstrução efetiva desses movimentos destrutivos.

Faraimará, assim diz um verso de origem yorubá que conclama a união. A expressão

que compõe uma conhecida cantiga dos Candomblés, identificados como Ketu na diáspora,

sugere a união como instrumento ou possibilidade de resistência. Simultaneamente ao soar da

referida cantiga, acompanhada dos instrumentos musicais próprios das orquestras sagradas

afro-brasileiras, o povo do Candomblé se abraça, considerando o abraço como símbolo de

união, o que dialogará diretamente com o pressuposto de que “unidos, ninguém poderá contra

nós”, o que pode ser compreendido como uma resposta a todas as tentativas de sufocamento

e/ou silenciamento. Um brado contra a repressão e opressões, as quais as manifestações

culturais e religiosas negras foram e são submetidas.

Entendendo os movimentos sociais como ações de uma coletividade para o benefício de

um grupo, compreende-se que para além de uma lei a 10.639/03 pode ser percebida, também,

como descendente dessa essência do referido verso yorubano. É a partir da união de grupos

sociais, em decorrência da inconformidade frente ao sufocamento da cultura e tradição afro-

brasileira nas construções educacionais e sociais, que a citada lei insurge. Vale ressaltar a

grande relevância e engajamento do movimento negro, assim como de intelectuais, nessa

conquista em prol do combate ao racismo.

I.1 A lei 10.639: uma década para além de somente u ma lei

“ O branco inventou que o negro/ Quando não suja na entrada/Vai sujar na saída, ê/Imagina só/ (...) Mesmo depois de abolida a escravidão/ Negra é a mão/ De quem faz a limpeza/ Lavando a roupa encardida, esfregando o chão/ Negra é a mão/ É a mão da pureza/ Negra é a vida consumida ao pé do fogão/ Negra é a mão/ Nos preparando a mesa/ Limpando as manchas do mundo com água e sabão/ Negra é a mão/ De imaculada nobreza/ Na verdade a mão escrava/ Passava a vida limpando/ O que o branco sujava, ê/ Imagina só” Chico Buarque & Gilberto Gil

É impossível pensar uma nação sem considerar sua formação sócio-cultural. Nesse

sentido, para que se possa refletir sobre as inquietudes que sobrevivem no imaginário de

brasileiros marginalizados, faz-se necessário que reflitamos com cautela sobre o cenário social

do país e, sobretudo, os lugares pré-determinados pelo racismo e uma série de outras

manifestações preconceituosas. É preciso, para isso, que pensemos os efeitos sociais e

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psicológicos da marginalização contínua, fazendo nessa perspectiva referência às reticências

desse processo na construção do imaginário sobre si mesmo, pensando atentamente a

colonização dos povos, em especial a colonização do pensamento que segue essa trilha.

Pensando o racismo, NILMA LINO GOMES (2005) o define de uma maneira que nos

parece bastante ampla. De acordo com o que é afirmado, dialogamos com a mesma, quando

ela nos afirma que:

“O racismo é, por um lado, um comportamento, uma ação resultante da aversão, por vezes, do ódio, em relação a pessoas que possuem um pertencimento racial observável por meio de sinais, tais como: cor da pele, tipo de cabelo, etc. Ele é por outro lado um conjunto de idéias e imagens referente aos grupos humanos que acreditam na existência de raças superiores e inferiores. O racismo também resulta da vontade de se impor uma verdade ou uma crença particular como única e verdadeira.” (GOMES, 2005, p.52)

Considerando que a dominação impôs modelos e silenciamentos, partindo de um

repensar de valores que permeiam a sociedade brasileira, em decorrência do engajamento de

movimentos sociais como o movimento negro, desde o ano de 2003 o Brasil carrega em sua

história uma lei que obriga o estudo da história e cultura africana e afro-brasileira. Entendemos

que as leis 10.639/03, já referenciada, e a 11.645/08, que traz à cena educacional as culturas

indígenas, entendendo-as como participantes tanto quanto a africana da estruturação desse

país, são propostas de reparação dos danos causados à memória e a história de povos de

ação fundamental na construção física e social do que reconhecemos como Brasil e cultura

brasileira, além do que se evidenciam como passos rumo à equidade. Trata-se de um caminho

de avanços gradativos, mas não inerte.

Ao completar sua primeira década, ainda que aparentando ter estimulado apenas

pequenos avanços, ao contrário do que sugere em um primeiro momento, a lei 10.639/03 vem

semeando pelo país diversas reflexões no que se refere aos valores culturais africanos e afro-

brasileiros na diáspora. Os resultados perdem a caracterização de tímidos, à medida que se

pensa na gênese de todas as discussões a respeito da equidade, igualdade e/ou, ao menos,

respeito à diversidade que perpassam os debates no âmbito das relações raciais. Estamos

falando do racismo, considerando assim sua existência. Ressalta-se aqui o que é óbvio nas

reflexões sobre a temática étnico-racial, ou seja, a sobrevivência do racismo, tendo em vista

que esse entendimento não está posto para toda a sociedade. Ainda é possível que se ouçam

discursos que afirmam a inexistência do racismo no Brasil, assim como se pode também

observar uma certa tendência a abrandar as marcas que ele, o racismo, provoca. É a

propagação desse discurso que apontará para a ideia de uma democracia racial, grande

farsa22.

[22]

A respeito da referida farsa é comum que se refira a ela por meio da expressão mito da democracia racial. Sobre o sentido do

vocábulo mito nessa construção é valido que se afirme que, nesse sentido ele faz referência a uma tentativa de falsear uma

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Segundo Guimarães (2002):

“A idéia de que o Brasil era uma sociedade sem “linha de cor”, ou seja, uma sociedade sem barreiras legais que impedissem a ascensão social de pessoas de cor a cargos oficiais ou a posições de riqueza ou prestígio, era já uma idéia bastante difundida no mundo, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, bem antes do nascimento da sociologia. Tal idéia, no Brasil moderno, deu lugar à construção mítica de uma sociedade sem preconceitos e discriminações raciais. Mais ainda: a escravidão mesma, cuja sobrevivência manchava a consciência de liberais como Nabuco, era tida pelos abolicionistas americanos, europeus e brasileiros, como mais humana e suportável, no Brasil, justamente pela ausência dessa linha de cor.” (GUIMARÃES, 2002, p. 34)

Dialogando com o que nos afirma o referido autor, pode-se compreender de maneira

bastante objetiva o cenário sócio-racial a que se fez referência. Considerando a invisibilidade

ou negação da existência do racismo como pratica comum na sociedade brasileira, admitir que,

ainda que paulatinamente, ele de fato existe é tão fundamental quanto a busca de meios para

desestruturá-lo. E desestruturá-lo é uma atividade intimamente ligada a um rompimento com o

mito da democracia racial, já que este fortalece o discurso da inexistência do racismo no Brasil.

Como nos afirma GOMES (2005):

“O mito da democracia racial pode ser compreendido, então, como uma corrente ideológica que pretende negar a desigualdade racial entre brancos e negros no Brasil como fruto do racismo, afirmando que existe entre estes dois grupos raciais uma situação de igualdade de oportunidade e de tratamento. Esse mito pretende, de um lado, negar a discriminação racial contra os negros no Brasil, e, de outro lado, perpetuar estereótipos, preconceitos e discriminações construídos sobre esse grupo racial. Se seguirmos a lógica desse mito, ou seja, de que todas as raças e/ou etnias existentes no Brasil estão em pé de igualdade sócio-racial e que tiveram as mesmas oportunidades desde o início da formação do Brasil, poderemos ser levados a pensar que as desiguais posições hierárquicas existentes entre elas devem-se a uma incapacidade inerente aos grupos raciais que estão em desvantagem, como os negros e os indígenas. Dessa forma, o mito da democracia racial atua como um campo fértil para a perpetuação de estereótipos sobre os negros, negando o racismo no Brasil, mas, simultaneamente, reforçando as discriminações e desigualdades raciais.” (GOMES, 2005, p.57)

O primeiro grande desafio das políticas e reflexões sociais referentes às relações étnico-

raciais é provar a existência do racismo e isso está sendo feito, gradativamente a partir de

diversos movimentos políticos e sociais. Para além de uma lei, que não surpreendentemente

no Brasil não tem o seu cumprimento efetivo como consequência de sua aprovação, a

10.639/03, independentemente de estar ou não sendo cumprida em todos os espaços

pertinentes a essa prática, abre brechas, somente por existir, para uma série de realidade, tendo assim uma conotação pontuada pela ilusão, diferentemente do entendimento de mito que utilizamos em outros aspectos dessa pesquisa, quando falamos em mitos yorubás nos reportando às narrativas orais do povo yorubá, compreendidas com um distanciamento no que se refere à mentira. Acredita-se que são narrativas romanceadas e submersas em um universo maravilhoso, mas que não configuram inverdades.

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questionamentos no âmbito social, em especial no que se refere às lutas negras, além de

produzir outros tantos reflexos como a lei 11.645/08.

Ainda assim, para que ela, a lei 10.639/03, alcance o que almejamos é preciso também

que nos esforcemos e façamos pressão, frente ao governo, seguindo o exemplo dos

movimentos negro e antirracista e intelectuais negros; para que as brechas deixadas, que

podem de alguma forma colaborar para o não cumprimente efetivo da mesma, sejam fechadas.

Seria de grande valia, por exemplo, que a obrigatoriedade desses estudos rompesse a barreira

do ensino regular, atingindo o ensino superior, promovendo assim um diálogo com a afro-

brasilidade23 em todos os âmbitos da educação brasileira, além de se formar,

consequentemente, gerações de licenciados que discutam essa temática antes mesmo do

contato com a sala de aula e as diversidades abrigadas por ela.

Indiscutivelmente tem-se observado com frequência um crescente processo de

construção e desenvolvimento de políticas e ações governamentais e /ou sociais no que se

refere à diversidade, seja ela de cunho cultural ou referente às tantas outras pluralidades que

ganham visibilidade na contemporaneidade. As relações étnico-raciais se apresentam em tom

de constância nos mais variados âmbitos de nossa realidade; trataremos aqui especificamente

de espaços que formam um único pilar, podendo este ser considerado central, à medida que

ambos, direta ou indiretamente, promoverão ação indispensável na construção dos sujeitos. A

escola e a educação são esses espaços de reflexão.

De acordo com MOREIRA & CANDAU (2005):

“A escola é uma instituição construída historicamente no contexto da modernidade, considerada como mediação privilegiada para desenvolver uma função social fundamental: transmitir cultura, oferecer às novas gerações o que de mais significativo culturalmente produziu a humanidade.” (MOREIRA; CANDAU, 2005, p.43)

Pensada como espaço de construção e socialização, a escola se afirma como agente

promotor de valores pertinentes à cultura dominante, ou ao menos a aquela que se entende

e/ou é colocada como tal. Considerando a perspectiva do colonizador e, historicamente, a

investida de impor seus valores sobre os trazidos pelos colonizados, nos é possível

compreender que mesmo pensada como espaço de construção e socialização, a escola não foi

projetada para o acesso dos marginalizados.

Refletindo a tentativa de apagamento das heranças sócio-culturais não eleitas como

primordiais e/ou modelos, dentre elas a negra e a indígena, torna-se possível um dialogo com

ALBERT MEMMI (1977), quando este se propõe a pensar a escola do colonizado. Na esteira

de seu pensamento, podemos dizer que o colonizado é ensinado a se negar. Rotineiramente

[23]

Nesse sentido, compreende-se afro-brasilidade como referência a tudo aquilo que se dá ou se faz no âmbito do afro-brasiliero

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induzido a se rejeitar, por vezes de forma inconsciente, à medida que permite a reinvenção tão

somente pelo pressuposto cultural, que sugere a valorização de um em detrimento de outro. A

auto-negação marca profundamente o percurso de sua existência, uma vez que “a memória

que lhe formam não é a de seu povo. A história que lhe ensinam não é a sua.” ( p.95)

Inicialmente a escola servia a uma elite e, por assim ser, promovia os valores que lhe

eram pertinentes. Dessa maneira ela segue um modelo engessado, que se estrutura mediante

um olhar hierarquizado da sociedade que exclui toda e qualquer diferença ao modelo eleito

como diretriz.

“A discriminação pode adquirir múltiplos rostos, referindo-se tanto a caráter étnico e caráter social, como a gênero, orientação sexual, etapas da vida, regiões geográficas de origem, características físicas e relacionadas a aparência, grupos culturais específicos ( os funkeiros, os nerds etc.). Talvez seja possível afirmar que estejamos imersos a uma cultura da discriminação, na qual a demarcação entre “nós” e “os outros” é uma prática social permanente que se manifesta pelo não reconhecimento dos que consideramos não somente diferentes, mas, em muitos casos, “inferiores”, por diferentes características identitárias e comportamentos.” (MOREIRA; CANDAU, 2005, p. 50)

Pensando sobre a perspectiva da referida cultura da discriminação, nos é possível notar

o quanto se faz necessária a desconstrução do processo de reprodução contínua desses

valores. Como bem nos sinaliza GOMES (2005): “Enquanto o racismo e o preconceito

encontram-se no âmbito das doutrinas e dos julgamentos, das concepções de mundo e das

crenças, a discriminação é a adoção de práticas que os efetivam.”(GOMES, 2005, p.55). Seria

portanto, como está posto, a discriminação uma forma de ação do racismo e do preconceito,

não sendo objetivamente seu produto direto. A discriminação ganha uma roupagem que lhe

confere um aspecto natural, mascarando, algumas vezes, a perversidade desta ação.

O negro, seus valores culturais, religiosos, além das demais atribuições referentes à

construção, promoção ou desenvolvimento de identidades negras, desde sempre, entendendo

o processo de continuidade que o vocábulo sugere, a partir de um processo de leitura da

história sócio-cultural desse país, esteve no espaço das margens.

O centro, âmbito do modelo eleito, ou seja: masculino, branco, cristão, heterossexual e

elitizado, naturalizou-se como privilegiado, hierarquizando bravamente a sociedade, podendo

ainda lidar com a discriminação de maneira interseccional, ou seja, utilizando como argumento

diferentes condições e/ou características, nesse sentido em um dado sistema de oposição, no

que se refere ao referido modelo.

Como nos afirma ABDIAS DO NASCIMENTO (1978):

“O sistema educacional [brasileiro] é usado como aparelhamento de controle nesta estrutura de discriminação cultural. Em todos os níveis do ensino brasileiro – elementar, secundário, universitário – o elenco das matérias ensinadas, como se se executasse o que havia predito a frase de Sílvio Romero4, constitui um ritual da formalidade e da ostentação da Europa, e, mais recentemente, dos Estados Unidos. Se consciência é memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte

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inalienável da consciência brasileira? Onde e quando a história da África, o desenvolvimento de suas culturas e civilizações, as características, do seu povo, foram ou são ensinadas nas escolas brasileiras? Quando há alguma referência ao africano ou negro, é no sentido do afastamento e da alienação da identidade negra. Tampouco na universidade brasileira o mundo negro-africano tem acesso. O modelo europeu ou norte-americano se repete, e as populações afro-brasileiras são tangidas para longe do chão universitário como gado leproso. Falar em identidade negra numa universidade do país é o mesmo que provocar todas as iras do inferno, e constitui um difícil desafio aos raros universitários afro-brasileiros.” (NASCIMENTO,1978, p. 95)

Refletindo sobre a educação no processo de interação com a sociedade a quem ela

serve, ou ao menos deveria servir, apoiados pela lei 10.639/03, considerando os efeitos e

dramas que o racismo provoca, além da necessidade de se ouvir as diversas vozes

responsáveis pela estruturação dessa nação, que sobreviveram no sufocamento por séculos, é

possível perceber a urgência em conduzir aos currículos escolares a temática racial, atrelada a

cultural no que se refere às questões sociais.

Nas palavras de MOREIRA & CANDAU:

“A problemática das relações entre escola e cultura é inerente a todo processo educativo. Não há educação que não esteja imersa na cultura da humanidade e, particularmente, do momento histórico em que se situa. A reflexão sobre esta temática é co-extensiva ao próprio desenvolvimento do pensamento pedagógico. Não se pode conceber uma experiência pedagógica “desculturizada”, em que a referência cultural não esteja presente.” (MOREIRA; CANDAU, 2005, p.43)

Esta se constitui em atitude bastante relevante no processo de releitura e/ou reconstrução dos

valores estruturantes da sociedade brasileira. Trata-se de perceber, não de maneira inerte,

mas com desejo de mudança, a brutalidade de não permitir a tantos brasileiros o auto-

reconhecimento.

Ao negro, colocado entre os referenciais menores em vários momentos da história

universal, da negação à igualdade de acesso à educação é que decorrem dificuldades na

inclusão e mobilidade em diferentes setores da vida. Ademais de um paralelo com a memória

coletiva, que marca por estereótipos a cultura, identidade e história afrodescendente,

compreende-se a existência da relação entre os problemas sócio-econômicos e a comunidade

negra. Todavia, antes de dilemas de cunho social e financeiro, a questão está pautada em

relações raciais, que em uma sociedade preconceituosa são relações de poder. O problema

econômico atravessa o racial, mas não se sobrepõe a ele. É portanto consequência. Como nos

afirma MARIA NAZARETH FONSECA (2001):

“A cor da pobreza é, no Brasil, majoritariamente negra (...), mas, mesmo nos segmentos de predominância de não brancos, circulam traços de diferenciadores dos quais não se é possível fugir, porque são construídos por um discurso legitimado como verdadeiro demarcador de lugares que devem ser preservados pela sociedade como um todo.” (FONSECA, 2001, p.94)

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Entende-se que a naturalização é o grande empecilho na desconstrução do racismo. O

mesmo encontra-se tão bem acomodado e profundamente enraizado no seio da sociedade,

que desfazê-lo torna-se bastante complexo.

Nesse sentido é preciso que se ressignifique o que está no senso comum e isso exige

um contínuo processo de reafirmação de posturas e percepções que desconstruam de maneira

eficaz alicerces que se solidificam a partir de mais de cinco séculos de negação, a medida que

diante de toda a história desse país temos apenas cento e vinte e cinco anos de história no

pós-abolição, sendo relevante considerar ainda que, a dita abolição é mais bela no discurso

que se constrói ao redor dela afim de enaltecê-la do que em vias práticas de reflexão, já que é

sabido por todos que em verdade foi dado ao negro escravizado a condição de liberto sem no

entanto oferecer-lhe a possibilidade de sobrevivência nessa posição. O processo de inserção

do negro nessa sociedade é muito mais recente e ainda assim deixa brechas quanto ao

princípio de igualdade.

É impraticável uma educação colonizada nos dias de hoje. A educação deve romper com

os grilhões da senzala da submissão que nos acorrenta a uma lógica de eternos colonizados.

Deve-se reinventar as estratégias e caminhos da educação sempre que a sociedade demandar

esse esforço. Uma educação repressora e autoritária já esta há muito ultrapassada. O mundo

moderno clama por uma educação que ofereça aos educandos uma ampla visão de mundo,

que ofereça o reconhecimento das pluralidades na relação entre o ser e o mundo,

possibilitando um efetivo direito de escolha nos posicionamentos relativos às demandas.

Em suma, dialogando com ANTONIO MOREIRA & VERA CANDAU pensamos que:

“A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização. No entanto, abrir espaços para a diversidade, a diferença, e para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que está chamada a enfrentar.” (MOREIRA; CANDAU, 2005, p. 45)

Com efeito PAULO FREIRE (1996) pensa a educação sob um aspecto bastante autêntico

que deve ser reforçado constantemente. Ele nos fala da educação como uma forma de intervir

no mundo. Crendo nessa possível intervenção, para agirmos nos valores que estruturam essa

sociedade e não condizem com a realidade plural da mesma, faz-se necessário que utilizemos

a educação como arma para o enfrentamento às desigualdades. É isso que os movimentos

contemporâneos vem sugerindo para que os historicamente marginalizados simultaneamente

sejam ouvidos e ganhem espaço.

Na esteira do pensamento de PAULO FREIRE (1996), seguindo a lógica de

descolonização do pensamento, podemos dialogar com KABENGELE MUNANGA (2010)

quando ele assim nos afirma: “(...) somos desafiados a construir uma Pedagogia do oprimido.

No entanto, a questão racial nos ajuda a racializar ainda mais essa proposta. Somos levados a

construir uma Pedagogia de Diversidade.”(MUNANGA, 2010, p.45). Temos nossos corpos

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negros alforriados, o que ainda se tem como necessidade é a efetiva descolonização das

mentes.

Ademais das referidas propostas é pertinente também considerarmos o que nos aponta

a pesquisadora VANDA MACHADO (2006) ao pensar a educação e o terreiro de candomblé. A

partir de suas reflexões, ela proporá uma pedagogia nagô, o que em certa medida dialoga com

o que essa pesquisa propõe, além de possibilitar confluência com o que os teóricos

referenciados afirmam.

A proposta que serve de interseção para nossas análises é a educação a partir da

cultura. Creio que essa proposta se afina ainda mais com nosso percurso reflexivo. É preciso

que se pense uma descolonização que não só retire o oprimido desse lugar que lhe foi imposto

como, também, que se considere a diversidade que a interação entre os sujeitos sugere, para

que harmonicamente esses grupos, anteriormente hierarquizados, possam enfim se olhar

como iguais. Colocando o negro como centro dessa discussão, podemos dialogar, nesse

momento, com NILMA LINO GOMES (2005), quando ela assim nos diz e questiona:

“Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo é um desafio enfrentado pelos negros e pelas negras brasileiros(as). Será que, na escola, estamos atentos a essa questão? Será que incorporamos essa realidade de maneira séria e responsável, quando discutimos, nos processos de formação de professores(as), sobre a importância da diversidade cultural?” (GOMES, 2005, p.43)

A respeito do termo negra(o), creio que seja pertinente fazer algumas considerações.

Tomando por base classificações que a biologia eurocentrada impôs, compreende-se que o

termo negro se faz inicialmente como referência a uma raça inferior. Posteriormente, em nossa

história nacional como em tantas outras, a referida expressão fará alusão ao escravizado.

Talvez nessa perspectiva resida um dos argumentos que promovem a negação do termo, à

medida que se vincula a ele um suposto peso que tem relações com o simbólico, com a

construção do imaginário no que se refere ao ser negro. Tornou-se comum que se encontre

pessoas receosas diante da possibilidade de se referir às outras como negro ou negra,

considerando um possível desconforto, à medida que as mesmas podem se sentir ofendidas

pelo emprego do vocábulo. Tão lamentável quanto essa perspectiva é o fato de muitas vezes

não se perceber a base racista que há nessa negação.

Penso que a expressão afrodescendente, tal qual o morena(o), mulata(o) são meios de

negar o ser negra(o), considerando, nesse sentido, pesos e medidas. Tal afirmação torna-se

possível ao se considerar que o histórico das expressões morena(o), mulata(o) tem uma

origem pontuada em premissas racistas, enquanto o termo afrodescendente vem, de alguma

forma, identificar o negro(a) sem efetivamente dizer que de fato o é. A expressão em questão

surge em uma proposta contemporânea que almeja apontar para o “politicamente correto”,

desconsiderando os prós e contras dessas substituições de palavras. É como se as referidas

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expressões “suavizassem” o peso que decorre do fato de se ter a pele mais pigmentada. Há de

se considerar também que o entendimento do africano e de seus descentes como negro, não

surge em terras Africanas. É pela diáspora que o termo será utilizado para se referir a eles,

correndo o risco de sugerir uma unidade em África. Desconsiderando a pluralidade do

continente, negando por exemplo a existência da chamada África branca.

A respeito do olhar construído sobre África, o que invisibiliza, muitas vezes, a pluralidade

do continente, agindo de maneira reducionista, no que se refere às percepções de cultura,

assim nos afirma o escritor moçambicano MIA COUTO (2005):

“A África vive uma tripla condição restritiva: prisioneira de um passado inventado por outros, amarrada a um presente imposto pelo exterior e, ainda, refém de metas que lhe foram construídas por instituições internacionais que comandam a economia. A esses mal entendidos se somou outra armadilha: a assimilação da identidade por razões de raça. Alguns africanos morderam essa isca. A afirmação afrocentrista sofre, afinal, do mesmo erro básico do racismo branco: acreditar que os africanos são uma coisa simples, uma categoria uniforme, capaz de ser reduzida a uma cor de pele. Ambos os racismos partilham do mesmo equívoco básico. Ambos se entreajudaram numa ação redutora e simplificadora da enorme diversidade e complexidade do continente. Ambos sugerem que o ‘ser africano’ não deriva da história, mas da genética. E no lugar da cultura tomou posse a biologia.” (COUTO, 2005. p. 11).

No pós abolição, o termo negro passa a ser sinônimo de um grupo populacional

específico, os ex-escravos. Ainda nos dias de hoje o termo acaba por apresentar

correspondência com uma ideia de identidade. Tal qual a expressão raça, o negro ganha

sentido político. Em decorrência de mobilização do Movimento Negro no Brasil, considerar-se

negro vai além de uma questão fenotípica, tem relação com uma ideia de afirmação identitária

e resistência, enfatizando uma luta de cunho político-social.

Retomando a reflexão sobre diversidade, que se trata de uma ideia bastante coerente

com as perspectivas contemporâneas de mundo, que recorre ao reconhecimento da

pluralidade, a fim de afastar progressivamente a sombra das discriminações, reconhecer e

pensar tal diversidade como realidade valorosa é essencial para desencadear sólidos

encontros e diálogos entre culturas e os saberes que elas carregam consigo. Nas palavras de

KABENGLE MUNANGA (2010): “Sem o reconhecimento da diversidade das culturas, a ideia de

recomposição do mundo arrisca cair na armadilha de um novo universalismo. Mas sem essa

busca de recomposição, a diversidade cultural só pode levar à guerra das culturas.” (2010,

p.42)

Na perspectiva do reconhecimento das pluralidades em confluência com as

considerações referentes à educação, podemos recorrer ao que propõe a corrente do

multiculturalismo. Pensando a reconstrução de conceitos frente à construção das identidades

entende-se o multiculturalismo como uma possibilidade de repensar a existência de modelos,

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eleitos e admitidos em um lugar inabalável, por meio de uma educação que considera e avalia

a diversidade, valorizando a existência das diferenças.

I.2 Encontros e saberes: por uma educação multicul tural

“Não há saber mais ou saber menos. Há saberes diferentes.” Paulo

Freire

Como já afirmamos anteriormente, a ótica unilateral não é mais suficiente para dar

conta dos rumos da sociedade brasileira, que vem se movimentando cada vez mais, em favor

de reivindicações que apontem para a equidade. A contemporaneidade exige, naturalmente,

uma releitura dos hábitos e valores.

“Culturalmente, com o vertiginoso avanço da tecnologia, media, informática e a diluição de fronteiras geográficas, tem-se acelerado o intercâmbio cultural. O mundo assume, definitivamente, as feições e as marcas da multiculturalidade, da diversidade cultural, fazendo-nos crer que estamos “condenados” a pensar a unidade humana na base de sua diversidade cultural e nos desafiando a desenvolver a capacidade de conviver com as diferenças.” (SILVA; BRANDÍN, 2008)

O prefixo “re” está cada vez mais em alta, afinal de contas propõe direta ou indiretamente

novos olhares ou ações sobre o que já está posto. Direta ou indiretamente, considerando que

ele inicialmente nos indicará um retorno a algo pré-estabelecido, o que independe de

alterações. Os novos olhares que se refletem na expansão do prefixo são consequências da

crítica ao prontamente estabelecido. Diversidade é a palavra de ordem para esse espaço social

tão enriquecido por variadas contribuições, daí a expansão do “re”, uma vez que a película que

sugeria uma uniformização começa a ser desarticulada, de maneira que as diferenças passam

a ser percebidas com normalidade, não mais como degenerescência. “Nunca se falou tanto da

diversidade e da identidade como no atual quadro do desenvolvimento mundial dominado pela

globalização da economia, das técnicas e dos meios de comunicação” (MUNANGA, 2010,

p.47). Nessa perspectiva, considerando a diversidade e as identidades, em uma vertente

educacional, objetivamente nos deparamos com a temática multicultural, compreendendo-a

como um trabalho proveitoso para o diálogo entre culturas, com possibilidade de forte

contribuição para a reavaliação de valores pertencentes aos âmbitos social e cultural.

Podemos pensar novamente na cultura da discriminação (CANDAU, 2005), que tanto

atravessa os espaços de construção de valores, entre nós e os outros, e partirá sempre de um

reconhecimento ou desconhecimento. A atribuição de diferente, no que se refere a

características identitárias e comportamentos, será argumento intensamente utilizado com a

pretensão de hierarquizar. O diferente estará diretamente vinculado ao inferior. Nessa

perspectiva nos é possível compreender, com maior abrangência, a intensidade ou ainda

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profundidade do trabalho educacional, a partir da multiculturalidade. Acredita-se que esta deva

tomar como pressuposto, justamente, a desigualdade:

“levar em conta a pluralidade cultural no âmbito da educação implica pensar formas de reconhecer, valorizar e incorporar as identidades plurais em políticas e práticas curriculares. Significa, ainda, refletir sobre mecanismos discriminatórios que tanto negam voz a diferentes identidades culturais, silenciando manifestações e conflitos culturais, bem como buscando homogeneíza-las numa perspectiva monocultural.” (SILVA; BRANDÍN, 2008)

A cultura da discriminação pré-determina lugares, que somente poderão ser questionados,

senão efetivamente abalados, diante da percepção crítica dos paradigmas que ela impõe.

Ao reconhecer-se pontualmente o mal que se fez ao longo da história da humanidade,

sobretudo no que se refere às construções das identidades e autoestima de grupos étnicos,

culturais e sociais; de grupos marginalizados sobre vendas ou de maneira desvelada, é que se

poderá promover uma releitura eficiente de mundo. A educação, que deve ser libertadora, à

medida que nos afasta da sombra da ignorância, de variadas maneiras vem colaborando,

talvez indiretamente, com a reafirmação de paradigmas segregadores. Muitas vezes, tal fato se

dá em decorrência de uma naturalização da cultura da discriminação. Acredita-se que a

educação vinha prestando esse desserviço, à medida que se mantinha inerte frente às

repressões, ademais de reproduzir hábitos e ideias que reafirmam o ideal de sobreposição. O

processo de reinserção e valorização da diversidade na sociedade, pelas vias da educação

exige um trabalho de base multicultural bastante engajado, com a proposta de promoção da

releitura de mundo, as várias vertentes.

É válido frisar que ao falarmos em multiculturalismo estamos pensando-o de acordo com

o que será chamado de multiculturalismo crítico, ou ainda de perspectiva intercultural crítica

(CANEN, 2007). Nesse sentido, nossa avaliação valoriza uma prática que está diretamente

vinculada com uma proposta que tem como discussão central o questionamento da construção

dos preconceitos, das diferenças e da hierarquização cultural. Não pensamos o

multiculturalismo a partir de uma abordagem liberal ou ainda chamada de folclórica, segundo

CANEN (2007). Esta outra face da proposta multicultural, apesar de valorizar a pluralidade

cultural, desvalida ou esvazia seu discurso, em nosso entendimento, à medida que desenvolve

tal valorização mediante o reducionismo de sua metodologia de ação a “aspectos exóticos,

folclóricos e pontuais, como receitas típicas, festas, dias especiais – dia do Índio, por exemplo”

(CANEN, 2007, p.93)

A respeito dos valores que embasam o multiculturalismo, SILVA & BRANDÍN (2008), o

definem de forma bastante objetiva e em comunhão com nossa percepção dele, dizendo que:

“o multiculturalismo é uma estratégia política de reconhecimento e representação da diversidade cultural, não podendo ser concebido dissociado dos contextos das lutas dos grupos culturalmente oprimidos. Politicamente, o movimento reflete sobre a necessidade de redefinir conceitos como cidadania e democracia, relacionando-os à afirmação e

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à representação política das identidades culturais subordinadas. Como corpo teórico questiona os conhecimentos produzidos e transmitidos pelas instituições escolares, evidenciando etnocentrismos e estereótipos criados pelos grupos sociais dominantes, silenciadores de outras visões de mundo. Busca, ainda, construir e conquistar espaços para que essas vozes se manifestem, recuperando histórias e desafiando a lógica dos discursos culturais hegemônicos. Os estudos sobre os fenômenos culturais partem da necessidade de compreensão dos mecanismos de poder que regulam e autorizam certos discursos e outros não, contribuindo para fortalecer certas identidades culturais em detrimento de outras.” (SILVA; BARDÍN, 2008, p. 60-61)

Ao pensar-se em Brasil, estamos falando de um país em que a diversidade étnica é uma

atribuição bastante objetiva. Tal atributo, como qualquer marcador de identidades, deve ser

bem analisado para que se crie caminhos harmônicos para a condução dos rumos sociais.

Nesse sentido, o harmônico faz referência não ao que agrada a todos, mas ao que não agride

ou privilegia a ninguém. Esse é o pressuposto da igualdade no trato com as diversas temáticas

que perpassam os itinerários do trabalho educacional. Ainda a respeito da questão étnica, não

se deve perder de vista que se trata de um argumento para a hierarquização criada na

sociedade, o que tem relação direta com as bases da cultura da discriminação. O

multiculturalismo se mostra, então, teoricamente um interessante mecanismo para as

complexas vivências que atravessam o espaço educacional.

“Ao lidar com o múltiplo, o diverso e o plural, o multiculturalismo encara as identidades plurais como a base de constituição das sociedades. Leva em consideração a pluralidade de raças, gêneros, religiões, saberes, culturas, linguagens e outras características identitárias para sugerir que a sociedade é múltipla e que tal multiplicidade deve ser incorporada em currículos e práticas pedagógicas.” (CANEN, 2007, p. 94)

Nesse sentido, é possível perceber-se a intrínseca relação, que não pode ser

desprezada, entre educação e apreensão da realidade, tal qual nos afirma o educador PAULO

FREIRE (1996). Na esteira da fala do referido teórico, podemos considerar que seja a

capacidade de aprender não somente um meio para a adaptação a realidade em que estamos

inseridos, mas sobretudo como forma de intervenção. Deve-se pensar a educação em um

diálogo constante com a realidade, inclusive no que se refere ao seu aspecto cultural, para que

o processo de ensino-aprendizagem esteja efetivamente atrelado às construções e

reconstruções.

Levando em conta a relação entre educação e cultura, fazendo um recorte referente ao

espaço nacional brasileiro, seguindo o pressuposto a que fazemos referência, torna-se

necessária uma investigação acerca da cultura brasileira. Ao pensa-la, crendo no que nos

propõe o multiculturalismo, avaliamos a estrutura sócio-cultural em um rumo contrário ao

comumente observado. Não pensamos do centro para a margem, mas da margem para o

centro. É nosso interesse desarticular o berçário dos preconceitos, considerando teorias que o

embasam e suas práticas cotidianas, a partir de reconstruções no imaginário das crianças e

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jovens. As identidades são também pontos de observação. Em reflexões posteriores,

pensaremos a construção das identidades destes, destacando a comunidade de terreiro; assim

como os conflitos decorrentes dos choques de valores nessas construções.

Pensando as estruturas sociais de poder, assim nos afirma MUNANGA (2010):

“Os estudos feministas, na mesma direção que os estudos sobre relações raciais, já demonstraram suficientemente como as mulheres e os negros foram as categorias sociais naturalizadas na história da humanidade com os objetivos de exclusão da participação nas relações e estruturas de poder.” (MUNANGA, 2010, p.45)

Almejando desarticular a lógica excludente, que parte rotineiramente do âmbito central,

voltando o olhar para os marginalizados, se faz necessário compreender a realidade na qual se

inserem as diversas etnias e culturas, sobretudo as inscrições da racialidade no pensamento

social brasileiro. Tal processo coloca-se em caráter de fundamentação para a construção de

caminhos para encontros harmônicos que desfaçam as hierarquizações decorrentes de

diferenças no que se refere a culturas e manifestações das identidades.

“A multiplicidade de culturas e a pluralidade de identidades, em face de relações de poder assimétricas, geram a necessidade de questionar e desafiar práticas silenciadoras de identidades culturais. Particularmente, as questões de racismos, machismos, preconceitos e discriminações, tão importantes para a escola e o currículo, só podem ser analisadas produtivamente sob uma perspectiva que leve em conta as contribuições dos Estudos Culturais.” ( SILVA; BRANDÍN, 2008, p. 62)

Nesse sentido, nossa proposta é de uma convergência reflexiva sobre o negro e o que se pode

reconhecer como afro-brasileiro, focando: o ser negro, a educação e a religiosidade afro-

brasileira.

Ao se considerar a educação pelas vias do multiculturalismo, deve-se fazer a ressalva de

que não se objetiva um pluralismo desenfreado, contudo um diálogo entre grupos diferentes,

que mesmo marcados pela diversidade identitária, consigam estabelecer relações pacíficas e

desvinculadas do pressuposto de sobreposições e demais ideias decorrentes do entendimento

de superioridade e inferioridade. No lugar de compreender-se as relações com as culturas a

partir de um sistema de oposições, considerando binômios como igualdade-diferença/

superioridade-inferioridade, cremos em uma maior validade na construção do respeito às

identidades diversas. O reconhecimento das especificidades de grupos, sem o entendimento

de um problema nas especificidades é parte das maiores relevâncias desse projeto de

educação.

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I.3 O ser negro e a Literatura para crianças e jove ns

“Um dos saberes fundamentais para a prática dos educadores é a

certeza de que mudar é difícil, mas é possível.” Paulo Freire

Tomando a tríade que dá corpo a essa pesquisa como centro, no caso o negro, a

educação e a cultura afro-brasileira, o que se almeja é a retirada desses referenciais do espaço

da subalternidade, no âmbito educacional, considerando seus vários aspectos como práticas,

livros didáticos e etc; e consequentemente dos âmbitos social e cultural. Faz-se tal afirmativa, à

medida que se tem como norte a assertiva de que a educação é a fonte primeira para o

processo de desarticulação e erradicação do racismo.

Para que se alcance o intento, ou seja, a referida retirada, pretende-se colaborar por

meio da investigação/sugestão de uma parceria entre a educação, apoiada na lei 10.639/03 em

laços com a literatura para crianças e jovens; e as narrativas que dão sustentação a práticas

religiosas, além de valores morais e éticos afro-brasileiros. A lei 10.639/03 configura-se no

cenário nacional como uma grande oportunidade que gera uma série de brechas para o

enfrentamento dos discursos e ações racistas que sobrevivem no seio da sociedade. No que

se refere às brechas, ela incentiva indiretamente ao multiculturalismo, uma vez que se

pensarmos um princípio de igualdade, ainda que a referida lei aponte para um grupo étnico

específico, insurgem desejos de contemplar demais grupos. Na esteira dessa lógica é que

surgem as demais leis que enriquecerão os debates e conflitos em prol das necessárias

reconstituições.

Partindo do reconhecimento da ação negra enquanto participante e não somente

contribuinte na construção física e social do que percebemos hoje como Brasil, a referida lei

torna possível a interação entre manifestações culturais duramente negadas e reprimidas ao

longo dos séculos e a cultura dominante, já enraizada no cenário social. Atrelando essa ideia à

proposta de parceria entre educação, cultura e religião afro-brasileira, pode-se pensar a

eficiência da literatura no desenrolar desse processo. Não escapa a nossa compreensão as

dificuldades de implementação da proposta de trabalho com o que se conhece como mitos

yorubás. Todavia, cremos que o momento social que se vive, considerando ser este

intensamente marcado pelas releituras e enfrentamento das desigualdades, seja o momento

ideal para a execução desse tipo de tarefa. O que deve ser destacado, inclusive é que, nesse

sentido, as referidas narrativas dão corpo a uma face do que se chamará de cultura afro-

brasileira, considerando, então, todo o valor simbólico que carregam consigo. Dessa maneira,

estas não devem ser pensadas sob a ótica religiosa, que de certo será uma perspectiva

utilizadas para negar e desconstruir, ancorados no preconceito, a proposta em questão. Não se

pretende uma apologia ao candomblé, mas a valorização de uma cultura que de maneira nobre

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sobrevive nessa religião. Além disso, consideramos o processo de afirmação de identidades

negras que se dá nas casas de candomblé, com intervenção ou auxílio dessas narrativas,

tomando-o como exemplo para que se intervenha na realidade do estudante negro que é

ensinado a negar essas mesmas identidades, em sociedade e até mesmo na escola.

A literatura e, por sua vez, as faculdades de letras, convivem, em geral, com um espaço

identificado em um modelo clássico de propostas e práticas pertinentes ao desenvolvimento

dessa arte no país. Como país colonizado, o Brasil inicia sua carreira literária e segue, por

longo tempo, o que lhe é apontado como modelo, no caso, uma literatura européia. Por mais

que em dados momentos da história literária, como por exemplo o período que chamaremos de

romantismo, pertinente ao século XIX, além do modernismo (século XX); se tenha fases de

louvação ao negro, em meio a busca por uma identidade nacional, identificaremos somente há

cerca de trinta anos movimentos de afirmação e valorização da negritude. Há de se considerar

também, que trata-se de um curto espaço de tempo para se retratar, de maneira eficaz, um

efetivo rompimento com o sufocamento e negação por tanto tempo cultivada.

Foi somente ao redor da década de 70, que se pode perceber alterações referentes aos

valores divulgados pela literatura. Pretendendo alterações em uma abordagem social que haja

em favor da desarticulação dos preconceitos, movimentos como o antirracista, entre outros,

sugerem uma releitura de valores. Nesse percurso promove-se um processo de enfrentamento,

sobretudo, à estigmatização de parcelas da sociedade e aos demais preconceitos, almejando

maior liberdade para o conhecimento e interpretação da realidade, ademais da aceitação das

diferenças. Observa-se então o desabrochar de uma literatura de caráter mais flexível, no que

se refere a temáticas e discussões a serem abordadas. Questionamentos surgem e fazem

despontar debates antes impensáveis, frente às premissas sociais da época, como questões

de gênero, tal qual considerações a respeito do poder masculino no âmbito familiar e as

diferenças entre meninos e meninas.

No que tange ao ser negro e a literatura, podemos afirmar quem talvez, mais do que o

momento do romantismo, o modernismo seja um período de intenso movimento sobre a

questão. No período do século XIX, no qual a questão do negro foi levantada por personagens

como Castro Alves, conhecido como poeta dos escravos e grande destaque nesse momento

literário no combate a escravidão; teve a insurgência dessa questão um caráter de crítica

social, em um movimento pela abolição da escravatura. Entretanto, “No século XX, a literatura

dá contornos bem delineados às questões específicas do negro brasileiro. Porém, essas

questões já são tratadas, ainda que sem tanta força e destaque, em alguns textos literários

produzidos anteriormente.” (FONSECA, 2006,p.36). É válido ressaltar que a temática do negro

no Brasil, no que refere-se a literatura não está restrita ao romantismo e modernismo. Esses

períodos são citados como momentos de maior destaque para essa questão, todavia é

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possível encontrar-se na literatura, algumas referências em outros momentos, o que não

compõe nosso objeto de apreciação e/ou investigação aqui.

Observando a literatura brasileira, sem restrições ao público a que se destina, podemos

afirmar, ainda no que se refere ao modernismo brasileiro, que incidência da personagem negra

em suas tramas ainda se mostra pouco intensa. E desprovida de caráter de valoração. “O

Modernismo, no início do século XX, ao lutar pela valorização dos elementos “étnicos

primitivos”, dera certa importância aos motivos inspirados na cultura africana, embora tenha

acolhido com mais vigor a figura do índio.”(FONSECA, 2006,p.36). O negro se manteve no

lugar dos referenciais menores. Entre outros, a esse âmbito pertence o universo negro em

aspectos gerais, considerando então suas faces sócio-cultural, profissional, ético-moral entre

outras. As relações étnico-raciais, vivenciadas cotidianamente pela sociedade, não são

problematizadas.

Acredita-se na literatura destacando, sobretudo, seu caráter engajado, apostando na

potencialidade desta no desempenho de uma função social. Cremos em sua força de recriar

perspectivas, conceitos e/ou valores no imaginário, da mesma forma que cremos no imaginário

como gênese de uma série de posicionamentos. Nesse sentido, atribuímos a literatura para

crianças e jovens uma grande relevância. A literatura em questão, assim como o campo

literário em um perspectiva panorâmica, vem concebendo, dentre outros motivos, em

decorrência das movimentações no cenário nacional, novas percepções no que se refere às

temáticas culturais e sociais, sendo estas apoiadas em concepções vinculadas à diversidade.

Na atualidade, se percebe de maneira muito mais expressiva a valorização de identidades das

populações negras.

Compreendemos a literatura para crianças e jovens como agente de grande influência

na construção do imaginário e daí a crença no seu caráter de reconstruir valores. Se durante

séculos a personagem negra, tal qual sua cultura foram invisibilizados ou subalternizados, da

mesma maneira em que ocorreu na sociedade; alimentando o paradigma da inferioridade do

negro, trazer a cena essa temática oferecendo a esse trabalho um caráter de problematização,

no que se refere às relações étnico-raciais, ou de apresentação e valorização de uma cultura,

como pretendemos com a abordagem da mitologia afro-descendente, nos parece uma

proposta bastante adequada e eficaz. Para desarticular o racismo é preciso que se

desconstrua visões estigmatizadas e simultaneamente se reconstrua valores. As narrativas que

se conhece como mitos yorubás podem cativar ouvintes/leitores de todas as idades e como

sabemos podem promover intensos reflexos, afinal de contas, muitos de nós, ainda nos

recordamos de histórias que ouvimos na infância e elas podem exercer influência em nossas

construções pessoais.

Pensando ainda o ser negro e as possibilidades de construção do imaginário, nos é

possível considerar ainda outro aspecto. Considerando a baixa incidência da personagem

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negra na literatura, podemos questionar o lugar do herói e da heroína negra. Onde eles estão?

Sabemos o quanto essas figuras são relevantes para as crianças. São estas alvo de admiração

dos pequenos. Personagens admirados e com os quais se busca uma identificação.

Costumeiramente podemos observar esses personagens com características brancas. Ora,

como uma criança negra poderá fortalecer suas identidades negras, tendo como referencial um

mundo que só reconhece heróis e heroínas brancos e brancas, que em nada se parecem com

elas? Frente a esse dilema que envolve além da afirmação das identidades negras, a auto-

estima dessas crianças, as personagens negras das histórias afro-descendentes podem

ocupar esse lugar. E, ao mesmo tempo, lhes contar uma história do povo negro muito diferente

da que eles estão acostumados a ouvir. Não se trata mais de uma população subalternizada,

composta por escravos que sobrevivem à submissão, condição naturalmente oferecida a eles

nesse país. Mas agora de nobres personagens, envolvidos em narrativas romanceadas, que

revelam um olhar sobre a história do mundo, que tem o negro como centro. Uma série de

narrativas que apresentam valores yorubanos relacionados à ética, moral, relações humanas,

valores culturais e religiosos, entre diversas outras temáticas.

Observou-se, a partir da pesquisa de campo que as crianças de candomblé, tem muitas

vezes nos òrìsà (orixás) seus heróis e heroínas negros e negras. Eles, os orixás, suprem a

necessidade dessas crianças de interação com imagens da negritude que colaborem com o

fortalecimento de suas identidades. Da mesma maneira, essas nobres personagens negras

podem interagir através das referidas narrativas, oferecendo a elas a possibilidade de

reconhecimento de heroínas e heróis negras e negros.

I.4 Religiosidade, educação e cultura: os mitos yor ubás para além das bases de uma

religião

“Nós não temos bíblia, não temos o alcorão, não tínhamos tantas coisas

aí. Tínhamos o quê? Nós aprendemos através das historias, dos mitos”

Mãe Stella de Oxóssi

Pensando os mitos yorubás na literatura para crianças e jovens, podemos afirmar que

tais histórias por muito tempo sobreviveram na literatura oral e há algum tempo vem

conseguindo espaço na literatura escrita, em sua vertente infantil e juvenil, mas não se

restringem a esse público. Em favor da tradição da oralidade, tão cultivada nos candomblés,

houve enorme resistência na travessia dessas narrativas do espaço da voz para o das letras.

Reconhecendo a estrutura desses textos, devemos considerar, ainda, que não se trata

efetivamente da travessia de uma condição a outra, uma vez que tais narrativas sobrevivem

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em um espaço intervalar, no qual voz e letra coexistem. O que se quer dizer é que os traços da

oralidade se mantém na transcrição dessas histórias.

Render-se a tradição ocidental de valorização da escrita foi necessário, diante de um

pressuposto de preservação. Ocorre, nessa situação, algo que, como nos afirma LAURA

PADILHA(2007), vem acontecendo intensamente com o texto moderno, tornando-o “uma

espécie de falescrita ou , como em vários outros tempos e lugares afirmei, um espaço híbrido,

intervalar, que se sustenta na fronteira gozosa onde a voz se encontra com a letra. (PADILHA,

2007, p. 279 ). Ao nos depararmos com histórias da mitologia dos yorubás na literatura para

crianças e jovens, nos confrontamos com um espaço híbrido, já que nele escrita e oralidade

convivem em harmonia, dispensando processos de sobreposição.

Considerando a formação sócio-cultural do país, nos é possível afirmar

categoricamente, que as tradições e demais heranças culturais de origem africana e indígena

se mostram alicerces na estruturação da mesma. Partindo dessa premissa seria natural que

essas culturas ocupassem, na esfera social e /ou cultural, um espaço de equivalência ao que a

cultura colocada como centro, no caso a europeia, ocupa. Em diálogo com o que nos afirma

MUNANGA (2010) podemos dizer que:

“(...) essas heranças constituem a memória coletiva do Brasil, uma memória plural e não mestiça ou unitária. Uma memória a ser cultivada e conservada por meio das memórias familiares e do sistema educacional, pois um povo sem memória é como um povo sem história.” (MUNANGA, 2010, p.50)

Na esteira dessa lógica, o intento das leis 10.639/03 e 11.645/08 é garantir que a referida

memória coletiva seja perpetuada, negando o sistema de sufocamento que o modelo

educacional vinha sugerindo. Seguindo a proposta dessa pesquisa, vamos nos atentar para a

vertente negra, afro-brasileira dessa discussão, que se constrói a partir da lei 10.639/03.

Pensando as heranças que constituem a memória coletiva Brasil, fotografando a face da

afro-descendência, há de se fazer referência ao tráfico negreiro. É por meio desse nefasto

capítulo da história nacional que os referenciais negros principiam sua interação com as bases

da sociedade brasileira. Desde o princípio da organização social desse país, coube a

população negra, por força da hierarquização imposta, a marginalização. Nesse momento

específico, por mais que não se considerasse negras e negros como parte da sociedade, já

que se destinava a eles a atribuição de peça, coisa, já havia uma participação efetiva desse

grupo étnico. A mão de obra que ergue esse país é negra, mas não somente o espaço da

subserviência deve ser destacado. Uma gama de valores são apresentados ao Brasil indígena-

europeu em decorrência do diálogo com a cultura negra. E, na atualidade, muitos dos mesmos

exercem intensa atividade na movimentação e visualização cultural do país. Em meio aos

referidos agentes culturais, que participam da formação identitária dessa nação estão as

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religiões afro-brasileiras. A respeito da temática explorada nesta recente explanação, assim

afirma MUNIZ SODRÉ(2006):

“(...) é fundamental a memória da contribuição africana em termos de estética, música, culinária e religiosidade para as formas de vida atuantes entre as classes subalternas no país. Não foi uma contribuição aleatória e anárquica, mas um verdadeiro processo civilizatório, que comporta mesmo a categoria “elite”, a propósito das movimentações sociais dos africanos e seus descendentes. As categorias litúrgicas matriarcais, aquelas que deram origem à profusão e à popularização dos cultos afro-brasileiros, foram resultado de uma aglutinação de elite, caracterizada pela participação fundacional de altos dignatários e sacerdotes do milenar culto aos orixás, trazidos ao Brasil na condição de escravos, em conseqüência das guerras interétnicas e das incursões guerreiras dos escravagistas no continente africano.” (SODRÉ, 2006, p.12)

Ainda que escravizados, culturalmente sufocados, desumanamente tratados, negros e

negras trazidos para o Brasil, pouco depois do achamento dessas terras, conseguem fincar

raízes nesse lugar, perpetuando e por que não imortalizando aqui, tradições de lá. Mesmo

diante do todo o sofrimento a que foram submetidos, os referidos escravizados carregam a

essência de sua fé e religiosidade. Valendo-se de mecanismos de defesa ou talvez

enfretamento, como o sincretismo religioso com a igreja católica, que deixa até a

contemporaneidade rastros no senso comum; o choque cultural é superado e a tradição

religiosa mantida, obviamente com as devidas adaptações ao novo mundo.

É no século XIX que a religiosidade em questão adquire uma estrutura sólida. Nesse

rumo se alicerça o que reconhecemos como Candomblé, que pode ser compreendido como

complexos africanos no Brasil, considerando que são estes ambientes espaços de objetivas

manifestações da cultura afro-brasileira. Pensando o afro-brasileiro, o entendemos como o

fruto de diálogo entra África e Brasil.

No que tange a construção das estruturas das religiões de matriz africana no Brasil,

REGINALDO PRANDI (1995) afirma que:

“Desde sua formação em solo brasileiro, as religiões de origem negra têm sido tributárias ao catolicismo. Embora o negro, escravo ou liberto, tenha sido capaz de manter no Brasil dos séculos XVIII e XIX, e até hoje, muito de suas tradições religiosas, é fato que sua religião enfrentou-se desde logo com uma séria contradição: as próprias estruturas social e familiar às quais a religião dava sentido aqui nunca se reproduziram. As religiões de culto aos ancestrais, que se fundam nas famílias e suas linhagens.” (PRANDI, 1995, p.115)

Refletindo o apontamento em questão, podemos direcionar a análise no sentido de um

processo de colonização das religiões afro-brasileiras. A religião que surge enquanto estrutura

religiosa no Brasil, passando a ser chamada de Candomblé, mas tem sua gênese em terras

africanas. Essa religião pode ser chamada de sincrética se considerarmos as trocas

pertinentes a sua permanência no novo mundo. Uma série de ressignificações foram

fundamentais para que essa forma de culto sobrevivesse a travessia forçada. O sincretismo

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com o catolicismo, instrumento de enfrentamento e/ou resistência às investidas de apagamento

do escravizador, foi de grande importância para a sobrevivência dessa fé, mas hoje não possui

mais sentido de ser. Como afirmou Mãe Stella em nossa entrevista24:

Observando o Candomblé, sua comunidade religiosa e hábitos, podemos compreender

que a referida religião é capaz de fortalecer em seus devotos a afirmação/construção de uma

identidade negra, africana, afro-brasileira. Pelas vias da memória, a religião de orixás recupera

práticas de origem ancestral. Trataremos dessa temática em outro momento da análise. Em

contrapartida, percebemos ainda que a cultura do dominador mantém sem reflexos na cultura

afro-brasileira. A afirmação da fé afrodescendente, por si só, já condenaria o escravizado e os

sobreviventes desse processo à invisibilidade.

Invariavelmente, apenas após uma suposta rendição, os negros e negras,

marginalizados(as) em decorrência da etnicidade, conseguiram infimamente uma inserção na

sociedade. Se é que podemos considerar a experiência desencadeada no pós-abolição como

inserção. Até os dias de hoje ainda é possível o questionamento a cerca do lugar que negros e

negras ocupam nessa sociedade. E é também em decorrência disso que as relações étnico-

raciais seguem em pesquisa. Não se aceita a condição desigual e excludente da sociedade.

Atendo-nos, nesse momento, a sobrevivência da religião afrodescendente a travessia África-

Brasil e a relação sincrética que se desenvolveu com o catolicismo, para a plenitude desse

processo, assim nos afirma REGINALDO PRANDI(1995), considerando não somente a relação

entre as formas de religião, mas também a questão das identidades e do sentimento de

pertença que se faz necessário para essa ruptura necessária.

“Somente muito recentemente – quando a sociedade brasileira não precisa mais do catolicismo como a grande e única fonte de transcendência que possa legitimá-la e fornecer os controles valorativos da vida social, as religiões de origem negra começaram a se desligar do catolicismo. Mas isso é um projeto de mudança de identidade que mal começou e que exige, antes, outras experiências de situar-se no mundo com mais liberdade e direitos de pertencimento” (PRANDI,1995,p.116)

No que tange a citada experiência de situar-se no mundo, tal qual a necessidade de se

vivenciar plenamente a liberdade, ademais de direitos de pertencimento, cabe nessa proposta,

focando questões educacionais, uma reflexão sobre multiculturalidade. Seria ela, a

multiculturalidade, uma forma de provocar análises sobre as várias formas de se situar no

mundo, além da multiplicidade de maneiras de se compreendê-lo. Tomando como princípio as

leis 10.639/03 e 11.645/08, podemos afirmar que almeja-se uma educação que promova a

integração entre os diferentes grupos culturais que dão corpo a sociedade brasileira. Cremos

que por meio dos possíveis diálogos que esse meio de educar pode promover, trazer a cena

[24]

Ao longo do texto, diversas vezes se fará referência a falas de Mãe Stella com relação a nossa entrevista. Trata-se de

fragmentos da entrevista concedida por ela durante a pesquisa de campo.

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educacional valores afro-brasileiros é propor a inclusão frente às diferenças cultuadas

rotineiramente.

De acordo com a leitura que propomos desse processo de inclusão, nos é possível

afirmar que a partir dos perceptíveis encontros entre cultura e religião, em parceria com a

proposta multicultural, a diversidade, tal qual a desigualdade é reconhecida e posta em

confronto na proposta de uma reconstrução inclusiva. Em reflexão sobre a gama de

possibilidades de análise provenientes do referido encontro, pensando a afirmação de

identidades negras, tal qual na desconstrução de olhares inferiorizantes a cerca da

afrobrasilidade por vias educacionais, considera-se a apropriação da mitologia dos yorubás,

que exercem relevante papel no desenvolvimento da cultura africana que nos chega de

maneira mais intensa, como possível objeto ou instrumento para a reconstrução de

paradigmas.

Frente às práticas do candomblé, a mitologia, além de explicar dadas posturas, justifica,

a media que dá sentido a todos os atos realizados. Nesse sentido, o mito enquanto gênese do

ritual participa da estruturação dele além de se colocar como roteiro ou cenário da ação. O

candomblé insere em sua ritualística, como tantas outras crenças uma (re)vivência mitológica.

Esse processo se desenvolve inclusive nas cantigas e danças que embalam os rituais.

Considerando a rica carga cultural que essa mitologia carrega consigo, é possível

investigá-la como alternativa para uma releitura das tradições, religião e propriamente da

cultura africana e afro-brasileira em si. Ressalta-se que em um trabalho com tal mitologia o

que se pretende é (re) apresentá-la ao educando, por uma via dissonante da voz corrente que

insiste em estigmatiza-la.

Em suma, reconstruir imagens deturpadas no imaginário social, referentes às culturas,

tradições e religiões afro-brasileiras exige uma releitura desse universo. Na busca pela citada

releitura é preciso que se compreenda a diversidade centro de uma educação para as relações

étnico-raciais. O que se conclui é que por muito tempo a ignorância se sobrepôs a razão. A

afrobrasilidade se construiu de maneira encoberta pela repressão e se mantém nos dias hoje,

muitas vezes ainda escondida no mistério que o véu do desconhecimento provoca. Pensar os

mitos para além das bases de uma religião é reconhecer neles grande profundidade, o que

possibilita a necessária (re) apresentação. Intentando desarticular as percepções provenientes

da ignorância, oferecendo a luz do conhecimento efetivo dos pressupostos que norteiam a

lógica comportamental e ritualística desses grupos, um trabalho educacional apoiado no tripé

oralidade-mitologia-religiosidade se constitui, em nossa perspectiva, uma relevante

contribuição. É preciso negar os paradigmas que marcam negativamente a história e

representação do negro na história, literatura e educação brasileira.

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Capítulo II – Literatura, oralidade e saberes: uma abordagem sobre a força das

palavras e da contação de histórias no candomblé

Ao nos depararmos com uma sucinta investigação, no que tange ao mundo das

palavras em interação com o desenrolar da vida humana, é possível notar-se o quanto ela é

intensa diante estrutura de sociedade que desenvolvemos. Nesse sentido, situo a palavra,

sobretudo, como motor da linguagem verbal, seja em sua face oral ou escrita. Obviamente não

são desprezados, enquanto linguagem, o valor dos símbolos e códigos que constituirão a

linguagem não verbal. Entretanto, frente ao que nos propomos a refletir, a palavra passa a

ocupar espaço de destaque. Na centralidade, prendo-me bastante ao seu potencial. Refiro-me

ao poder criador da palavra. A respeito disso traça-se, imediatamente, um paralelo entre

palavra e construção do imaginário. Dessa forma, seria então a palavra responsável por

desenvolver em nós uma série de noções e sensações. A relação significante - significado é

profunda e tem o poder de provocar a partir da relação enunciador – ouvinte uma série de

paradigmas. O que almejamos destacar aqui é a influência dos discursos que atravessam o ser

nas construções de si.

Se pensamos em literatura, é comum que se pense na face canônica que nos é

apresentada no âmbito escolar e acadêmico. E nesse cânone não se incluem as vozes

populares, não se abraçam as vozes desprendidas de letras escritas. Compomos uma

sociedade que valoriza o escrito e em favor disso, a fala, muitas vezes, perde a legitimidade

pela fragilidade que a fluidez lhe oferece. Todavia para além dessa concepção de literatura, no

caso a canônica, podemos fazer referência a uma literatura que se apoia na oralidade. Trata-se

de uma literatura intitulada Oral.

Considerada como aspecto fundamental no desenrolar da história da humanidade, à

medida que o ser humano evidencia grande aptidão para a linguagem verbal, como

possibilidade de transmitir e construir valores, a literatura oral consiste na arte de se valer

unicamente da oralidade para instituir valores, estabelecer pontes. Ainda que a denominação

concreta do termo tenha se dado posteriormente, o termo literatura oral foi cunhado por Paul

Sébillot em 1881. Inicialmente vinculada somente aos provérbios, contos, adivinhações,

orações, cantos populares e tradicionais, entre outros, a sobrevivência da oralidade,

atravessando marcas de temporalidade, oferece a literatura oral uma maior abrangência.

No decorrer do tempo, a literatura oral vem sendo naturalmente utilizada com a

finalidade de explicar, justificar e sobretudo promover o entretenimento. Nesse sentido, a essa

última funcionalidade citada, pode-se fazer alusão, por exemplo, à relação da infância e

construção do imaginário infantil em diálogo com a palavra falada e até mesmo a construção

dos conhecimentos, independente da fase da vida, uma vez que o imaginário é algo que tem

durabilidade vital.

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Sabe-se que antes da inserção no mundo da escrita, ou seja, antes mesmo de se

conhecer e traduzir os códigos pertinentes à linguagem escrita, o mundo é norteado por sons e

imagens. Em dado instante do desenrolar da vida, parte desses sons poderão ser convertidos

em código linguístico. Transformados em palavras escritas, admitem uma outra roupagem sem

perder, no entanto, sua relação com o som. É a intrínseca relação entre voz e letra. São duas

faces de uma mesma moeda. A palavra tem nas letras seu corpo e no som, sua voz. Oriunda

dos leitores ou contadores de histórias, que muitas vezes não recorrerão ao texto escrito,

utilizando-se nesse momento da memória para enunciar, os rumos da literatura oral se

constroem.

Sobrevivente a partir da ação de duas tendências bastante divergentes, a literatura em

questão se faz ainda na contemporaneidade. Se por um lado, talvez o mais tradicional, sua

manutenção se ancore em uma base exclusivamente oral, atendo-se às lendas, anedotas,

adivinhações e as mais diversas canções, outra se vale de produções que, apesar de seu

caráter escrito tenham gênese voltada para a oralidade. Seja por meio da declamação, do

canto ou ainda outras vias. A esse segundo grupo, especificamente, se inserem livros

europeus com fábulas, temas próprios da época, autos populares, entre outros.

A essa literatura pode-se também fazer a atribuição de uma literatura folclórica. Para

tanto, faz-se necessário que seja esse conceito utilizado em perspectivas que destoam do

senso comum. Tal qual o vocábulo mito, ao folclore se atribui a ideia de inverdade. No entanto

não é esse o sentido que se aponta, quando se fala de uma literatura folclórica.

Independentemente da noção de veracidade, até mesmo porque a verdade também é um

conceito, a literatura folclórica possui uma série de características que a evidenciam. No

entendimento de CÂMARA CASCUDO (1984), a manifestação folclórica se instaura à medida

que além de popular é fruto de uma sobrevivência. Nesse sentido folclore e memória coletiva

seguem a mesma via, podendo inclusive ser o primeiro descendente do segundo. Como

elementos de caracterização do folclore, pode-se citar: a oralidade e tradicionalidade, ligadas

respectivamente à propagação pela palavra falada e a um processo que se dá de geração em

geração; aceitação coletiva, anonimato, espontaneidade e sobretudo funcionalidade. Na esteira

dessa lógica, as narrativas afro-brasileiras conhecidas nos candomblés como mitos yorubás,

ou ainda itan, seriam a partir da percepção de CASCUDO(1984), manifestações folclóricas ao

passo que são retratos da literatura oral.

Considerando o peso do senso comum no significado que comumente se atribui às

palavras, não trabalharemos com a terminologia literatura folclórica. Almejamos assim evitar

ruídos na comunicação, além de tratá-la como ela é mais profundamente conhecida. Tendo em

vista a incoerência de tratar da temática literatura oral desconsiderando a enorme contribuição

de CÂMARA CASCUDO(1984), citamos a terminologia por ele apontada por julgar necessário,

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até mesmo para que esta nomenclatura não seja utilizada, frente ao objeto desta análise de

maneira errônea. No caso das narrativas do candomblé, a profundidade dessas histórias é

bastante superior às que popularmente circulam pelo senso comum, uma vez que são as

referidas histórias bases de um culto religioso, o que não ocorre com as ditas literaturas

folclóricas. Para que essas diferenças sejam respeitadas priorizaremos pela utilização do termo

que comumente circula nas casas de candomblé. Dessa forma trataremos as narrativas em

questão por meio do vocábulo itan.

II.1. Ìtan Atowodowó: história imemorial 25 - mitos yorubás, oralidade e literatura

“Reforçar a importância da tradição oral não significa, de modo algum, querer dizer que os povos africanos fossem ágrafos, mas apenas reiterar a importância da voz como a caixa de ressonância e/ou de ampliação que fez com que a memória do local da cultura resistisse aos canhões contra ela disparados.” (PADILHA, 2007, p.279)

Observando a cultura e tradição africana, é incontestável a percepção da manifestação

das tradições orais. A palavra para os africanos traz em si mesma toda a magia e uma grande

força. A prática da transmissão oral de conhecimentos é algo, para os nativos da referida

cultura, que estabelece uma ligação, senão uma relação com os antepassados e toda a

ancestralidade que exerce grande influência no cotidiano de África. “A palavra ocupa um lugar

especial nas comunidades, a ela é atribuída o poder de animar a vida e colocar em movimento

o axé contido na natureza”(BARROS, 2009, p.40). É a palavra responsável por fazer acontecer.

Ela carrega consigo a potencialidade de impulsionar ou retrair, incentivar ou impedir, abençoar

ou desconstruir a validade ou relevância de qualquer situação. A palavra é um instrumento de

poder, “a palavra é por excelência o grande agente ativo da magia africana.” (HAMPATÉ BA,

1993, p.17)

O mito africano, fruto da oralidade, tem em sua simbologia uma intensa relevância, a

partir do instante que através dele é que se faz a ligação entre o passado e o presente. Esse

elo formado entre os tempos, permite de alguma maneira, a perpetuação das tradições e da

religiosidade que se instaura a partir das memórias decorrentes dessas tradições, da mesma

forma que oferece bases para a formação dos princípios morais e éticos, direcionando os

caminhos do cotidiano e orientando os seres humanos a partir das experiências dos orixás,

ancestrais divinizados, seres encantados na própria natureza, que foram descritos por

VERGER (1981) assim:

[25]

A expressão “Ìtan Atowodowó: história imemorial”, utilizada aqui para dar título a seção é originalmente título de um capítulo do

livro Meu Tempo é agora, de Mãe Stella.

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“Um babalaô me contou: ‘Antigamente, os orixás eram homens. Homens que se tornaram orixás por causa dos seus poderes. Homens que se tornaram orixás por causa de sua sabedoria. Eles eram respeitados por causa de sua força. Eles eram venerados por causa de suas virtudes. Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram. Foi assim que esses homens tornaram-se orixás. Os homens eram numerosos sobre a terra. Antigamente, como hoje. Muitos deles não eram valentes nem sábios. A memória destes não se perpetuou. Eles foram completamente esquecidos. Não se tornaram orixás. Em cada vila, um culto se estabeleceu sobre a lembrança de um ancestral de prestígio e lendas foram transmitidas de geração em geração, para render-lhes homenagem.” (VERGER, 1981, p.9)

No que tange as referidas lendas, como também são chamadas as histórias dos òrìsà (orixás),

as quais chamaremos de itán ou mitos, o sociólogo REGINALDO PRANDI (2001) considera

que:

“Os mitos dos orixás originalmente fazem parte dos poemas oraculares cultivados pelos babalaôs. Falam da criação do mundo e de como ele foi repartido entre os orixás. Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses e os homens, os animais e as plantas, elementos da natureza e da vida em sociedade.(...) Na diáspora africana, os mitos iorubás reproduziram-se na América, especialmente cultivados pelos seguidores das religiões dos orixás no Brasil e em Cuba. A partir do século XIX, primeiramente estudiosos estrangeiros, sobretudo europeus, e mais tarde letrados iorubas iniciaram a compilação desse vasto patrimônio.” (PRANDI, 2001, p.24)

Na literatura mítica, a natureza é humanizada e, através dela, são geradas críticas à

cultura humana e aos valores morais que a cercam. “O que deve ser entendido é que sempre

há um mito, um exemplo capaz de justificar qualquer teoria e qualquer prática, e que não deve

ser interpretado como curiosidade científica, mas sim como o reviver de uma mentalidade

primordial.” (BENISTE, 2006, p.14)

É a partir do momento que o homem começa a buscar respostas a seus

questionamentos, a respeito de sua existência nesse mundo e tudo que tem relação com a

vida, que os mitos começam a ser utilizados e admitidos como lógicos. “Nossos dogmas não

foram ditados por um Deus distante, eles são aprendidos na interação homem/divindade

através da natureza.” (ÒSÓSI, 2006, p.11)

Os mitos podem ser entendidos como a expressão cultural de um povo. Da mesma

forma que acontece em qualquer sociedade, para os yorubás, sociedade africana em foco

nesse trabalho, os primórdios têm muita relevância. O mito é o registro de grandes

acontecimentos, considerados agentes de formação de situações posteriores e, dessa forma,

serve para justificá-las. A mitologia yorubá surge da necessidade de um povo, com uma

tradição embasada na oralidade, registrar sua história. Através dele, o mito, o comportamento

das pessoas diante da vida e da sociedade é influenciado, como consequência da influência do

sagrado na vida dos africanos.

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Como nos afirma a professora LAURA PADILHA (2007):

“A oralidade, ou oratura, como também alguns a denominam, se faz assim, a base de sustentação cultural africana e como que contamina o texto literário moderno, tornando-o uma espécie de falescrita ou , como em vários outros tempos e lugares afirmei, um espaço híbrido, intervalar, que se sustenta na fronteira gozosa onde a voz se encontra com a letra.” (PADILHA, 2007, p. 279)

O mito é sobretudo uma revelação desenvolvida para sustentar a crença religiosa, que é

algo de suma importância para os africanos, já que compõe um dos alicerces da construção da

estrutura social do continente, que se compõe a partir de uma mescla de religiosidade, política

e cultura.

MIRCEA ELIADE26 considera cinco aspectos fundamentais dos mitos: 1° - O mito constitui a história das ações de Entes Sobrenaturais; 2° - O mito coloca essa história como absolutamente verdadeira e sagrada; 3° - O mito dá sempre um sentido de criação para as coisas, ou seja, como vieram a existir ou como um comportamento, uma instituição, uma maneira de trabalhar foi inicialmente estabelecida; 4° - O mito é uma revelação: conhecendo-o, conhecemos a origem das coisas e, com isso, podemos dominá-las e submetê-las à nossa vontade. Esse conhecimento é “vivido” ritualmente, seja por narrativa ou repetição constante do mito em sua forma ritual; 5° - De uma ou outra maneira, o mito é vivido por sermos tomados pelo poder sagrado que engrandece os acontecimentos rememorados e reatualizados.

Em meio aos rituais candomblecistas, os mitos, além de explicar, dão sentido a todos os atos realizados. Algumas vezes, o mito não fica somente na construção da estrutura dos rituais ele passa a participar ativamente do ritual. Essa participação se dá entre outros momentos, mediante a presença da mitologia nas cantigas sagradas.

Segundo Mãe STELLA DE ÒSÓSI (2006): “Considerados como a mais perfeita manifestação da linguagem simbólica, os mitos justificam os ritos. Desse modo, podemos conceber os mitos e ritos como instrumentos capazes de fomentar a interação entre o universo pessoal do indivíduo e o universo como um todo.” (Òsósi, 2006, p.15)

O candomblé, uma religião com estrutura bastante dinâmica, tem em seu ritual a presença

constante dos cantos e das danças. “Na África Ocidental, as tradições orais possuem uma forte

relação com o canto e a música (...)ambas quando associadas formam um imenso repertório

que fala da vida política e social das populações ali encontradas”(BARROS, 2009, p.89).

Quando o mito se faz presente em cantos rituais, a dança pertinente a dada cantiga reconta

através de gestos a história que é louvada. Tais gestos acompanhados dos sons do sagrado

permitem uma comunhão com o divino.

[26]

Mircea Eliade apud José Beniste, 2006, p.12

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“O cantar e o dançar imitando os gestos divinos integram o ser ao mito, e este a divindade. É a recriação do mundo e de toda a realidade que ocorre nessa celebração. A divindade, a natureza e o homem voltam a reencontrar-se. Há o objetivo de o homem tornar-se um òrìsà, sendo este parte do processo.” (BENISTE, 2006, p.16 )

Trata-se da antropologia dos corpos e nessa trilha se pensará as construções e

representações que se dão tendo o corpo como objeto de ação. Nesse sentido, pode-se

afirmar que nos candomblés os corpos são indumentados por uma série de marcadores

simbólicos que dialogam com a construção das identidades de seus membros, da mesma

maneira que se relacionam com uma série de posturas próprias dos rituais, que vão desde

detalhes de suas vestes e posicionamentos frente a dadas situações ritualísticas, até as

diferentes maneiras de saudar o sagrado “batendo cabeça” como costumeiramente se fala nas

casas de culto aos orixás. Esse encontro entre divindade, natureza e homem acontece por

meio da ação que a palavra provoca e se traduz em gestos e cantos que se constituem em

linguagem.

II.2 A palavra nas sociedades africanas

“As histórias dos mais velhos, muitas vezes, cumprem a função de preparar para a vida em sociedade, não há métodos pré-concebidos, não há verdades absolutas, são apenas histórias de vidas que confluem para possibilidades de aprendizado frente às situações corriqueiras do cotidiano” Fernando Santos

Os mais velhos, tanto em terras africanas, como nas comunidades negras afro-

brasileiras, e nesse sentido fala-se dos Candomblés, são considerados os responsáveis pelo

ritual de transmitir a toda a comunidade o poder que o circular da palavra exerce. É preciso que

se compreenda as diferentes percepções das fases da vida, de acordo com a cultura em que

se pensa essa questão. Embora estejamos inseridos em uma cultura ocidental, na qual a figura

do idoso ocupe o entendimento de período de descanso, final de vida, em uma perspectiva

africana não é desta forma que a velhice é caracterizada. Como nos afirma o africano

Kabwasa, escritor e especialista da Unesco em programas voltados para a educação:

“A cada uma das três idades do homem corresponde uma função particular. Assim a infância é um período de aprendizagem, um período muito físico durante o qual o desenvolvimento espiritual está em gestação. A maturidade é um período produtivo no qual o homem alcança o equilíbrio físico e espiritual. A velhice é a idade da sabedoria, do ensinamento e não do descanso, pois “mesmo que o corpo dos velhos desfaleça, seu espírito não descansa”. Ao contrário é o momento em que a vida do espírito se intensifica. Os velhos continuam a assumir funções importantes na sociedade, funções que apelam para seus conhecimentos da tradição em vários domínios: jurídico, religioso, médico-mágico, educacional e econômico. Detentores do saber tradicional, é no momento da iniciação que

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transmitem oralmente e de maneira ritual sua experiência prática as novas gerações.” (KABWASA,1982, p.14)

Nessa perspectiva, a velhice é uma fase da vida a que todos aspiram. De acordo com

essa visão de mundo que é perpassada por uma noção de força vital, o que chamaremos nas

religiões afro-brasileiras de axé, a velhice é respeitada e valorizada. Ápice da existência

humana, é nesta fase da vida, tal qual nos mitos, que se encontra a sabedoria que permite

transformar-se em uma ponte que liga o passado ao presente, apontando ainda os caminhos

do futuro. Dessa maneira, aquele que tem consigo o poder da palavra, traz também, em uma

perspectiva simbólica, a potencialidade de manipular forças no mundo. “Quem põe a palavra

em circulação ascende a um nível de poder maior, pois intervém no real, quase sempre com

um impulso de modificá-lo, dada a força cosmogônica da palavra que faz circular.” (PADILHA,

2007,p.275) Ao afirmar que “mesmo que seu corpo desfaleça, seu espírito não descansa”,

KABWASA (1982) nos sugere uma função desempenhada pelos espíritos dos anciãos, que nas

ressignificações afro-brasileiras se diluiu, de alguma maneira, na travessia África-Brasil. O culto

aos antepassados se configura como uma das mais relevantes relações com a ancestralidade

em uma perspectiva africana, afinal de contas seria dos ancestrais do povoado, e nesse

momento se faz referência aos mortos, a responsabilidade de zelar por dada comunidade,

mantendo a ordem e punindo aos transgressores.

A palavra é dotada de força à medida que estabelece relações com o movimento

contínuo da vida. “Assim, uma vez que a palavra é a exteriorização das vibrações das forças,

toda manifestação de força, não importa em que forma, será considerada sua palavra. Por isso

no universo tudo fala, tudo é palavra que tomou corpo e forma.” ( BA, 1993, p.16). A potência

da palavra, nessa perspectiva cultural, faz dela o grande agente não só da magia, mas o

grande agente da vida. Se tudo é palavra que tomou corpo e forma, todo o movimento da vida

e do mundo é consequência da ação da palavra.

Sendo assim, como podemos observar, as histórias ancestrais e seus contadores são de

extrema relevância no espaço cultural africano, da mesma forma que na construção cultural

dos candomblés, evidenciando a magia da oralidade. A esse respeito, assim nos fala VANDA

MACHADO (2006):

“O contador de história, nessa tradição, é um mestre, um iniciador da criança, do jovem e até do adulto. Trata-se de uma iniciação para a vida. As histórias míticas são contadas e recontadas e funcionam como mapas que encaminham os sujeitos nas suas possibilidades de convivência, sem prescrever conselhos, fazendo valer o arbítrio e o jeito de ser de cada um. Ou seja, os conhecimentos produzidos nessas culturas e seu aprendizado sempre podem favorecer a convivência ou uma utilização prática”. (MACHADO,2006, p.79)

As divindades são as personagens principais da mitologia yorubá, apesar de muitas

vezes contarmos com a presença de uma natureza humanizada para a explanação dos mitos.

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Diante do que a mitologia nos conta, percebe-se no orixá características que, muitas vezes,

podem nos parecer incoerentes com a natureza divina dos mesmos, já que têm atitudes,

virtudes e defeitos tão humanos. “Os orixás alegram-se e sofrem, vencem e perdem,

conquistam e são conquistados, amam e odeiam. Os humanos são apenas cópias esmaecidas

dos orixás dos quais descendem.”(PRANDI, 2001, p.24). Essa maneira das divindades se

apresentarem promoveu uma grande aproximação entre o humano e o sagrado. “Os mitos não

criam esses deuses, revelam-nos juntamente com seus desejos e vontades. É essa a função

dominadora dos mitos que fixam modelos quase humanos às divindades, estabelecendo

desejos e determinados arquétipos a seus seguidores.” (BENISTE, 2006, p.29) Essa intrínseca

relação entre os humanos e o sagrado, aprofundada e embasada pelo mito, confere à

oralidade um lugar de destaque na formação sócio-cultural dos grupos étnico-religiosos

norteados por ela. Como nos afirma VANDA MACHADO (2006):

“Nas culturas africanas, principalmente hoje, compreende-se a história a partir da compreensão da oralidade. É através da oralidade, da voz do/s narrador/narradores que os mitos e os modos de organização dos rituais são transmitidos. Os mitos são constituídos de palavras organizadoras dos caminhos e vivências de cada um, em particular, e da comunidade.” (MACHADO, 2006, p. 80)

De alguma forma o mito admite, sobretudo, um caráter civilizatório, à medida que é dele

que partirão os valores que nortearão os rumos da sociedade submetida às intervenções do

mesmo. Nesse sentido a oralidade para as culturas em questão, no caso os candomblés,

assume o mesmo valor que as leis nas sociedades ocidentais que são legitimadas por

documentos escritos. Acontece na tradição religiosa yorubá e nos referidos espaços de

resistência, como pensamos os candomblés, uma documentação a partir da memória. Esses

mitos ditarão leis que devem ser absorvidas pela comunidade, sem no entanto recorrer às

escrituras alheias a memória dos anciãos, que são os responsáveis pela reconstrução dos

valores promovidos pela oralidade nas gerações que os seguem.

II.3 Percursos da palavra: entre heranças africana s e ressignificações na religiosidade

afro-brasileira

Toda essa cultura chega até nós por meio da memória e resistência dos negros

escravizados que superaram as barreiras da escravidão e conseqüentemente da repressão

impostas para o sufocamento de sua fé e cultura, trazendo através da oralidade até a

contemporaneidade a religiosidade hoje entendida como afro-brasileira. O complexo cultural

jêje-nagô é introduzido no Brasil, no século XVIII, pelos caminhos do Nordeste, principalmente

na Bahia, Pernambuco e Maranhão. Em decorrência da destruição de Ketu, atualmente no

Benin e Oyó, atualmente na Nigéria, os yorubás se sobrepuseram quantitativamente aos jêje.

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Nas palavras do professor JOSÉ FLÁVIO PESSOA DE BARROS (2006):

“A introdução contínua de africanos de uma mesma procedência étnica no meio urbano foi fator relevante para a viabilização de uma resistência maior ao colonizador e possibilitou a agregação e formação de núcleos ligados a preservação de sua cultura.” (Barros, 2006, p.23)

A força da tradição mantida há anos nas casas de Candomblé e o pulso forte das

ìyálórìsà (ialorixás), que reafirmaram no Brasil essa religiosidade e construção como uma

religião de resistência, possibilitaram, de alguma maneira, uma maior visibilidade ao culto de

òrìsà (orixá). Partindo de meados dos anos 30, pesquisadores e escritores passam a registrar

parte dessa oralidade que movimenta o dia a dia das casas de Candomblé. Dentre os referidos

estudiosos, podemos citar o antropólogo Artur Ramos, assim como o também antropólogo Julio

Braga, o sociólogo francês Reger Bastide e o africano Wande Abimbola. Não se pode deixar de

fazer referência ao fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger, que, em visita ao Brasil,

conhece o candomblé e o adere como religião, ganhando até em África, onde se inicia, um

novo nome, Fatumbi, passando a chamar-se Pierre Fatumbi Verger.

De acordo com REGINALDO PRANDI (2001):

“Pesquisadores brasileiros comentam a existência de cadernos mantidos secretamente pelo povo-de-santo como meio de preservar e passar adiante o conhecimento mítico, mágico e ritual cultivado nos terreiros brasileiros, mas isso é raro e recente, considerando o triste fato de que, até bem pouco tempo atrás, a maioria dos dirigentes dos terreiros e demais iniciados era analfabeta.” (PRANDI, 2001,p.25)

Em terras brasileiras, o professor Agenor Miranda Rocha, membro do Ilé Àse Opó Àfonjá

(Ilê Axé Opô Afonjá), terreiro da Bahia, em que se mantiveram as tradições divinatórias de

acordo com os métodos dos antigos babàlawó (babalaôs) é referência de uma grande fonte

das referidas memórias dos mitos de orixá. O caderno escrito por ele traz registros dos

aprendizados e práticas do candomblé e ìyálórìsà (ialorixás) da Bahia.

Durante muitos anos, as ìyálórìsà e babalórìsà (babalorixás) optaram pelo silenciamento

diante da sociedade, impendido confrontos com a cultura eurocentrada, mantendo dessa

maneira suas tradições e cultura restritas ao espaço demarcado pelos muros de suas

comunidades religiosas. A intolerância, o desrespeito e a repressão contribuíram para

intensificar o clima de mistério, digo intensificar considerando que o processo de transmissão

de conhecimento e o reconhecimento de particularidades e detalhes do culto são

tradicionalmente apresentados gradativamente, de mães/pais para filhos, de mais velhos para

mais novos, sempre seguindo uma ordem hierárquica, o que já sugere um tom de mistério aos

olhos e ouvidos leigos nas atividades religiosas.

Com o passar do tempo, a questão do silenciamento começa a ser repensada pelas

autoridades do candomblé brasileiro. Mantendo a proposta de uma resistência religiosa e

cultural, a sacerdotisa Maria Stella de Azevêdo Santos, Mãe Stella de Òsóòsí (Oxossi),

conhecida também pelo nome de Ode Kayode (Odé Caiodê), sacerdotisa do Ilé Àse Opó

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Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá), dá um brado de alerta a toda a sociedade do Candomblé,

almejando despertar o povo-de-santo, com o exemplo que traz a cena religiosa, com seu livro

Meu tempo é agora (1993), reeditado recentemente. Em seus pensamentos, Mãe Stella afirma:

“O que não se registra, o vento leva”. E, nessa perspectiva, se levanta a questão de se

registrar, por meio da escrita, sem perder a essência da oralidade, registros da memória, nas

casas de candomblé. Desde então, a mãe de santo vem escrevendo sobre a religião de òrìsà

(orixá). Há pouco, a renomada sacerdotisa escreveu o livro infantil Epé Laiyé: terra viva, no

qual estabelecendo uma relação entre òrìsà (orixás) e natureza, escreve em favor da

preservação do meio ambiente. Assim como ela, outras sacerdotisas e sacerdotes tomam a

iniciativa de escrever sobre questões que atravessam a temática religiosa, além do ritual e da

religião em si. Dentre essas referências, podemos citar a ìyálórìsà (ialorixá) Beatriz Moreira

Costa, conhecida popularmente pelo nome de Mãe Beata de Yemoja (Iemanjá), iniciada no

centenário terreiro baiano do Alaketu, atualmente responsável pelo terreiro Ilê Axé Omi Oju

Arô, em Miguel Couto, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, que publicou o livro Caroço de

dendê – A sabedoria dos terreiros (1997); Gisele Cossard, antropóloga e escritora francesa que

se tornou ìyálórìsà (ialorixá). Iniciada pelo babàlórìsà (babalorixá) Joãozinho da Goméia.

Omindarewá, como é conhecida no ègbé (comunidade) do Candomblé, é autora de diversos

livros dos quais podemos citar sua mais recente obra, o livro Awô, o mistério dos orixás (2007).

Através da escrita, o acesso a essa memória contribui na construção de parcelas do que

se reconhece como cultura brasileira. O movimento de valoração da cultura, tradição e

religiosidade afro-brasileira, travado pelos movimentos sociais, oferecendo-se destaque, no

víeis dessa pesquisa, aos movimentos negros, religiosos e a iniciativa de autoafirmação da

comunidade afro-descendente, diante da sociedade brasileira, culmina com o favorecimento de

diversos grupos étnico-religiosos por intermédio da lei que propõe e obriga a inserção da

temática africana e afro-descente nas escolas. O que é de fato um grande avanço, uma vez

que evidencia a aceitação da proposta de novos olhares, a partir do governo, seguido de toda a

sociedade, no que se refere às questões étnico-religiosa-social.

II.4 Entre voz e letra: os mitos yorubás e a litera tura para crianças e jovens

Na contemporaneidade, podemos encontrar na literatura para crianças e jovens uma

certa reflexão sobre preocupações étnicas e sociais. Atualmente a visibilidade referente à

afirmação da identidade de populações negras, na literatura para crianças e jovens, é muito

maior, estabelecendo uma contraposição com o caráter dessa face literária, em períodos que

antecedem os anos 70. Em breve trataremos desse percurso temático da literatura infantil e

juvenil brasileira.

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Para exemplificarmos a presença dessa literatura etnocentrista, como pensamos a

literatura que traz a cena às temáticas e dilemas referentes a questões étnicas; podemos fazer

referência em um primeiro momento, a trilogia infanto-juvenil de Reginaldo Prandi. O professor,

escritor, pesquisador e sociólogo das religiões, anteriormente escrevia para o público adulto,

entretanto, a partir de sua obra para adultos, intitulada Mitologia dos Orixás, em decorrência do

incentivo de amigos, como afirma no primeiro volume da trilogia, o autor decide escrever

também para crianças e jovens. Dessa forma, entre 2002 e 2004, anualmente foram lançados

respectivamente os livros: Ifá, o adivinho; Xangô, o trovão e Oxumarê, o arco-íris.

Baseados pela caracterização dessa forma de escrever e descrever culturas,

objetivamente percebe-se a construção de uma linguagem verbal e não verbal, localizando

essa segunda linguagem nas imagens e símbolos que são trazidos ao texto; que oferece aos

leitores iniciantes uma parcela da enorme dimensão cultural do candomblé e da afro-

descendência na literatura. Através dessa linguagem literária, gradativamente são

apresentados os pressupostos culturais das referidas tradições e, de alguma maneira, começa-

se também o processo de desconstrução de estereótipos e paradigmas solidificados no

imaginário popular que desmerecem e menosprezam o negro, sua cultura religiosa e os

aspectos das sociedades afro-descendentes no Brasil. Essa literatura, pautada em uma

proposta engajamento, por meio de sua face reconstrutora de conceitos, é fundamental para

uma ressignificação da cultura afro-brasileira, além da construção do respeito às diferenças

culturais que são também partes da formação cultural do país. Sobretudo, devemos considerar,

como propõe PAULO FREIRE (1996), a educação como uma forma de intervir no mundo,

reconhecendo-a como ideológica.

Com a proposta de apresentar a trilogia infanto-juvenil de PRANDI, devemos considerar

que esta é constituída por mais de trinta contos, uma vez que cada livro apresenta um pouco

mais de dez. Nessas histórias apresentam-se inúmeros aspectos da tradição cultural e religiosa

dos povos yorubás, intimamente relacionados com o Candomblé brasileiro de ascendência

Ketu. Além disso, como não poderia deixar de ser, ao se tratar de religiosidade afro-brasileira,

esses contos promovem um retorno histórico, ao fazerem referências a um passado, a um

tempo em que essa cultura era apenas um marco da africanidade, de alguma maneira

reconstruída no Brasil, por meio de que conhecemos hoje como Candomblé, um espaço de

preservação e resistência.

Em toda a trilogia, há uma dedicação à proposta de trazer à cena a questão histórica da

escravidão e, em decorrência disso, também fazer alusão a alguns aspectos sociais, religiosos

e culturais. Há referências aos costumes, tradições, religiosidade e consequentemente Deuses

africanos, chamados de òrìsà (orixás). Apesar de estar submersa na temática da religiosidade,

que se entrelaça com a cultura, não há referências à religião no contexto africano. A

religiosidade é referenciada sobretudo a partir da relação de fé, devoção e afeto que os negros

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escravizados estabelecem com a figura e força dos òrìsà (orixás). Entretanto, encontram-se

também referências à gênese dessas divindades, suas raízes culturais e espaço consagrado

entre outras coisas. Dessa maneira, o autor localiza o público leitor a respeito da origem, e do

espaço primeiro de ação dessas narrativas, além de caracterizar e situar seus personagens na

construção cultural desses povos e até mesmo na própria natureza. As ilustrações colaboram

com a absorção da noção de afro-brasilidade que se pretende estabelecer, à medida que se

pauta em personagens negras, contrariando uma imagem que muitas vezes se faz de

divindades brancas, por questões sociais, tais como o embranquecimento da imagem de

Yemoja (Iemanjá), que, de ninfa das águas do rio Ogun e negra, torna-se rainha do mar e

branca, ressaltando nessa relação o embranquecimento dela, já que a travessia rio-mar tem

relação com a diáspora.

Apesar das três obras em questão serem nomeadas com a identificação de òrìsà

(orixás) específicos, os conteúdos não são restritos. Ao longo da história que norteia a

caracterização e culto dos òrìsà (orixás) referenciados, narrativas que nos trazem histórias de

outras divindades interagem, dialogando ou não com a história que dá início às produções. No

primeiro livro da série, Ifá, o senhor da sabedoria e todo o conhecimento, é apresentado como

sabedor de todas as histórias que circulam pela vida. Por intermédio do conhecimento das

diversas histórias que circulam pela humanidade, é possível a ele revelar com objetividade e

segurança os caminhos para a resolução das situações de conflito. Este personagem surge em

quatro histórias. Na primeira delas, vem fugindo da morte. Em meio à fuga, acaba sendo salvo

por Iyewa (Euá), com quem interage, podendo surgir dessa interação, na perspectiva do autor,

uma possível paternidade para os gêmeos, crianças conhecidas como Ibéji (ibêji), estes

mesmos òrìsà (orixás) infantis. Posteriormente, aparecem em uma história, na qual sua mãe,

Iyewa (Euá), que com auxílio de Olórum (Olorum), o Deus supremo, transforma-se em um rio,

almejando saciar a sede de seus filhos, que se perderam na mata; e ainda em outra história, na

qual tomadas pela versatilidade e inteligência que lhes é peculiar, espantam a morte da aldeia

de Ifá . Ainda no princípio da trama, o adivinho contracena com Èsù (Exú), o mensageiro,

senhor do movimento. Por estar sempre circulando, viajando, Èsù (Exú) é aquele que tudo

sabe da vida humana, tendo assim propriedade para informar a Ifá das mais diversas

situações. Nesse contexto, as histórias da vida começam a ser colecionadas, trazendo

referências do passado que são o presente e serão o futuro, uma vez que de acordo com os

princípios yorubás, o tempo, os acontecimentos são cíclicos. Tudo que acontece um dia já

aconteceu, da mesma forma que um dia se repetirá. Por ser conhecedor de tudo, Ifá ganha o

título de adivinho e é considerado o senhor do conhecimento, da sabedoria, aquele que pode

dar bons conselhos. Considerando a relevância do òrìsà (orixá) Rei de Ketu para os povos

yorubás, além de interessante, torna-se digno de referência, nesse mesmo volume, o conto em

que Òsóòsí (Oxóssi), o grande caçador de uma flecha só, mostra-se como o herói que com

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uma única flecha livra o reino Ketu do grande pássaro das Ia mi Oxorongá, as feiticeiras, que

atormentavam a região.

Sendo assim, retomando falas anteriores, além de citar Ifá, a obra em questão

caracteriza e, através dessa iniciativa, apresenta alguns outros orixás ao público leitor, como os

já citados Èsù (Exú), Iyewa (Euá) e Ibéji (Ibeji), além de Òsun (Oxum).

No segundo livro da trilogia, o autor dá continuidade à proposta do primeiro. Nessa obra,

o ponto central da trama envolveria os òrisà Òsàlà (orixás Oxalá) e Odudua, no que tange a

função desempenhada por eles, os mitos nos trazem que estes seriam os responsáveis,

respectivamente, pela criação dos seres humanos e do mundo. Os òrìsà (orixás) já citados

estariam se reconciliando com a intervenção de Ifá, pelo conflito instaurado entre eles no

momento da criação do mundo, que deveria ter sido feita por Òsàlà (Oxalá), entretanto diante

do não cumprimento de uma regra básica determinada por Olórum, o Deus supremo, que

seriam as reverências a Èsù (Exú), ele acaba por embebedar-se dando, assim, oportunidade a

Odudua para realizar a obra que deveria ser fruto dele. Nessa via, as histórias chegam ao òrìsà

(orixá) título, no caso, Sàngó (Xangô), o senhor do trovão, do fogo, òrìsà (orixá) reconhecido no

Brasil como o Deus da justiça, o grande rei do Candomblé. O título de rei do Candomblé

brasileiro deve-se ao fato das africanas que deram início ao culto do Candomblé Ketu serem

consagradas a esse òrìsà (orixá). Por isso a casa é de Sàngó (Xangô), e sendo ele o dono da

primeira casa de àse (axé) Ketu, fica sendo junto a Òsóòsí (Oxossi), dono das terras onde foi

fundada a primeira casa, os fundadores desse culto. Nesse volume são apresentados além de

Òsàlà (Oxalá), o grande pai, o senhor das vestes brancas; Òsàgiyán (Oxaguian), o jovem orixá

das estratégias, que tem predileção pelo inhame pilado, aquele que faz a guerra acontecer

para que as coisas mudem; Iansã, mulher valente, senhora das ventanias; Irókò (Iroko), o

òrìsà (orixá) que habita a gameleira branca e finalmente Yemoja(Yemanjá), a grande mãe,

senhora dos mares e de todas as cabeças, que no conto surge irada pelos maus tratos que os

humanos vem dando às águas.

Na última obra da trilogia, a temática da construção do mundo se mantém, mas, dessa

vez, trabalhada sob outro aspecto. Nesse momento, se tratará da divisão do mundo, da

natureza que o cerca e de tudo criado nele entre os orixás. Cada orixá ocupará seu espaço na

grande criação dos Deuses. Mais uma vez outros orixás são acrescentados a lista dos

apresentados por Prandi às crianças. Nesse caso tratar-se-á de Nàná (Nanã), a mais velha dos

orixás, a sábia senhora; Omolu, o senhor da terra; Òsányín (Ossaim), o senhor das ervas e da

cura, aquele que dá aos homens os remédios para seus males; Erinlé, um grande caçador e

Ajalá, aquele que forma a cabeça dos seres humanos.

Mesmo que de forma sucinta, por meio desses mitos, se dá uma introdução ao

conhecimento de algumas das tradições e manifestações culturais africanas trazidas e

ressignificadas no Brasil, direcionadas pelas histórias dos òrìsà (orixás). Esses relatos são de

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grande valia para o trabalho com as culturas afro-descendentes, em meios nos quais ela é

quase que totalmente desconhecida. Nesse momento, refiro-me às escolas, que no momento

político-social em que vivemos são obrigadas a introduzirem a história e cultura africana e afro-

brasileira em seus currículos, apesar de não reconhecerem, de fato, sólidos caminhos para a

construção de meios naturais, práticos e eficazes de se trabalhar essa cultura.

De alguma maneira, com os mitos yorubás apresentados às crianças e jovens, abre-se

um leque de possibilidades de trabalhos no âmbito escolar. Por meio de obras como essas de

que se fala, pode-se levantar questões a respeito da cultura africana, por exemplo no que se

refere ao culto à ancestralidade e à oralidade, à figura do babálawó27 (babalaô) e à origem dos

òrìsà (orixás). Além disso, pode-se falar também de afro-brasilidade, considerando de que

maneira essa cultura e tradições se fazem tão presente no desenrolar do que hoje

reconhecemos como cultura brasileira, sem desconsiderar o processo de reconfiguração

cultural sofrida pela cultura negra, para que ela se firmasse na nova terra, sem deixar de lado a

escravidão, ponto de partida para toda a história que segue. Nessa esteira, é possível que se

promova intensamente o reconhecimento das origens e o valor histórico-cultural dessas

manifestações.

A relevância do trabalho desenvolvido através dessas obras não se estrutura na

apreciação delas, mas no trabalho de esmiuçar a obra e estabelecer paralelos com a nossa

cultura, pensando em aspectos coletivos, enquanto cultura brasileira, e aspectos específicos,

pensando nesse sentido no processo de auto afirmação dos herdeiros desses valores.

Desconstruir imagens estigmatizadas do negro e suas manifestações culturais e

religiosas é fundamental para a promoção de um sentimento de igualdade, em perspectivas

raciais. Ainda que tenha como aspecto central narrativas que são bases de uma tradição

religiosa, a proposta não dialoga com um ideal de conversão em massa. Vai, no entanto, ao

encontro de ideias apoiadas na construção de caminhos para o desenvolvimento do respeito

mútuo no âmbito social brasileiro, desestruturando a hipocrisia dos preconceitos velados e

fundados na ignorância.

Ao se desenvolver o trabalho educacional com as referidas narrativas, ele deve se dar

tendo a percepção destas, como manifestações culturais. Bastante anterior ao que se conhece

na diáspora como candomblé são os itan. Pode-se afirmar que a funcionalidade deles, hoje nos

candomblés é resquício da ação dos mesmos na sociedade yorubá, ainda em terra africana.

Digo resquício uma vez que, atualmente não são esses valores que regem a sociedade,

estando estes restritos a comunidade do candomblé, que para além dos direcionamentos

religiosos que eles apontam, pretendem se ater, sobretudo, aos valores éticos, morais e porque

não civilizatórios, que a sabedoria ancestral dos yorubás sugere como direcionamento de vida.

[27]

Sacerdote do culto de Ifá. Literalmente o pai do segredo.

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Vindo por meio de outra construção, pode-se citar outro trabalho literário, esse de autoria

de uma mãe de santo que, através de sua obra infanto-juvenil, busca atingir seu público e

provocar nele por meio de um discurso que mescla religião e meio ambiente uma reflexão que

nos parece bastante interessante. Refiro-me a Maria Stella de Azevedo Santos, Mãe Stella de

Òsóòsí (Oxossi), é assim que o povo do Candomblé a conhece. A ìyálórìsà (ialorixá)

responsável pela liderança de um centenário terreiro da Bahia, o Ilé Àse Opó Àfonjá (Ilê Axé

Opô Afonjá), há muito tempo vem trabalhando, por meio de palavras, com suas obras, atitudes

e ações sociais, em favor do reconhecimento e respeito do Candomblé como religião. Sua luta

se caracteriza principalmente pelo brado contra o sincretismo religioso que, de alguma

maneira, age como uma sombra a fim de camuflar as verdades do patrimônio cultural que é a

religião de òrìsà (orixá).

Mãe Stella tem uma série de publicações a respeito da religiosidade afro-brasileira e da

cultura que a cerca. Como destaques dentre os muitos livros que escreveu ou participou sem

deixar de lado os artigos, podemos citar o de 1983 onde o “Candomblé diz não ao sincretismo”.

Artigo esse assinado também por outras ìyálórìsà (ialorixás), a exemplo, Mãe Menininha do

Gantois e Olga do Alaketu .

Dos livros da referida sacerdotisa, podemos citar: Meu tempo é agora (1993), Òsósi - O

caçador de alegrias (2006); Owé, provérbios(2007) e Epé laiyé: terra viva(2009), além de

Opinião(2012) e Ofun(2013). Vamos nos deter a obra de 2009, que é a primeira infanto- juvenil

da autora.

Epé Laiyé é o nome dado a uma árvore, personagem principal da trama. Essa árvore é

plantada por um menino de dez anos, chamado Fernando. Pensando os problemas do mundo,

mesmo diante da imensidão desse espaço, ele decide por fazer o seu mínimo. “Ouvir o

coração é uma arte e ser artista, um privilégio.”(2009, p.12) E aí começa a magia dessa obra.

Ele planta Epé Laiyé e a arvorezinha cresce com os desejos de colaborar com a resolução dos

problemas do mundo, apontando para reflexões sobre a questão ambiental. Uma vez que não

há marcação de espaço físico, nos é oferecida a possibilidade de adequarmos essa história a

qualquer lugar possível em um tempo não determinado, apesar de se entender como uma

época de crise.

Sendo o Candomblé uma religião de culto à natureza, uma vez que suas divindades

estão encantadas nela, Mãe Stella começa a fazer através de Epé Laiyé, a arvorezinha

plantada pelo menino, um percurso por toda a natureza, apresentada por meio de ricas

imagens, apresentando os òrìsà (orixás) e suas forças, além de inserir parte da cultura

lingüística yorubá. A ilustração do livro, fica por conta de fotos da vegetação do próprio terreiro,

ressaltando a valorização do ambiente natural.

Por muitas vezes, são referenciadas algumas expressões em yorubá, que

posteriormente são traduzidas para a língua materna, o que, com grande sensibilidade é uma

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forma de resistência e preservação. “ Ìbà àjè o ìbà. Ìbà àjè o ìbà Òsun ( Saudações a você,

Oxum).”(2009, p.29) Tendo a importância que a língua yorubá tem no contexto religioso do

Candomblé, valorizá-la e preservá-la é um instrumento de manutenção da tradição. Dessa

forma, apresentar palavras em yorubá para o público infantil é auxiliar na criação de uma nova

perspectiva a cerca da africanidade em terras brasileiras. Pode-se fazer tal afirmação

considerando que apresentar uma língua yorubá significa dizer que não se trata de um povo

ágrafo. E dessa maneira desconstrói-se previamente uma imagem pejorativa, que possa ser

alicerçada tendo como referencia a inexistência de algo que lhes pareça tão próprio da

civilização, no caso, a língua.

É comum que se fale de África considerando como referenciais a savana, a miséria, de

maneira que os desavisados possam chegar a construir a imagem de uma África selvagem.

Nesse sentido, crê-se que a ausência de uma língua colaboraria com essa perspectiva

errônea. Daí o fato de considerarmos bastante relevante apresentar, ainda que de maneira

sucinta, a língua nativa. Ainda que se trate de uma língua arcaica e não mais utilizada com a

mesma abrangência na contemporaneidade.

Considerando o nome que possui, Terra Viva, que seria a tradução do nome que a

árvore recebeu, ela sai em busca de auxílio de outros frutos da terra, sem no entanto obter

sucesso. Após ser encantada por Osaniyn (Ossain) para que pudesse se locomover, com

apoio de Ésú (Exú), o primeiro Deus a ser encontrado na caminhada, Epé acaba sendo guiada

pelos caminhos que a conduzirão aos orixás. Percebendo a ira dos Deuses diante dos maus

tratos que a natureza vinha recebendo, ela pensa em desistir. E, nesse momento, encontra Ésú

(Exú), acompanhado de Nando e de todos os outros òrìsà (orixás) que ainda não tinham

surgido na trama, que iriam se reunir para acertar como poderiam consertar os danos

causados ao mundo. “Epê Laiê, ao ouvir as palavras de Exú e visualizar a chegada das

divindades, percebeu que nunca esteve só e que sua peregrinação foi necessária para

descobrir a sua capacidade de acreditar nos outros.”(2009, p.48)

Compreende-se que a grande proposta da obra é uma reflexão sobre a relação entre o

ser humano e o meio ambiente. Nada mais coerente para alguém que dedica a vida ao òrìsà

(orixá), falar dessa energia, tendo como tema/cenário a natureza, uma vez que òrìsà (orixá) é

natureza. E assim, de maneira simples, porém de grande alcance, essa produção apresenta ao

público leitor diversos atributos da cultura africana, através da língua yorubá e das divindades,

hoje afro-brasileiras, que são apresentadas em aspectos filosóficos, que aponta para uma

relação intrínseca com a natureza, a qual será apresentada com o título de sagrada, à medida

que os òrìsà (orixás) não são apresentados como habitantes da natureza, mas como a

personificação dela mesma. Trata-se de uma olhar que falará de uma natureza divinizada.

Além de propor a ação individual em propósito da preservação da natureza.

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E, nesse sentido, o candomblé se destaca como uma religião que ao contrário do que já

se disse em algum momento do passado, mostra-se muito distante de valores primitivos.

Evidencia-se como religião com olhar voltado ao futuro, uma vez que sempre trouxe consigo,

de maneira inerente, a noção de preservação à medida que sempre apreciou a natureza a

partir de uma noção de sagrado. Entendendo a natureza como divina, como a materialização

das próprias divindades, e se pode fazer tal afirmação à medida que compreende-se, por

exemplo, que Òsun (Oxum), divindade ligada às águas doces, não está no rio sendo ela,

verdadeiramente, o próprio rio; compreende-se que ao par natureza – candomblé, o conceito

mais abrangente é cumplicidade.

Um renomado verso yorubá, de grande circulação nas casas de candomblé diz: “Kosi

ewe kosi òrìsà”, traduzido ele afirma: Sem folha, não há orixá. Com tais palavras ao passo que

se afirma a intrínseca relação que há entre o culto a òrìsà (orixá) e as ervas, evidenciando, de

alguma forma uma relação de completude entre esses personagens, essa fala também aponta

para a necessidade de preservação. É o candomblé altamente dependente dessa natureza

representada no provérbio em questão. Não se pode dizer, todavia, que os adeptos da religião,

em sua totalidade, sempre tiveram noções de preservação que hoje circulam nos terreiros, o

que é fruto de um amadurecimento da fé.

Diante do que observamos, é possível que investiguemos algumas formas de trabalhar a

cultura, religiosidade, línguas e tradição africana e afro-brasileira usando como alicerce a

literatura que vem se reconfigurando, oferecendo espaço e enaltecendo voz do sujeito negro,

permitindo-lhe a auto-afirmação de sua identidade cultural. Valendo-nos desse instrumento

ideológico que é a literatura, o que se pretende é reconstruir conceitos no imaginário dessa e

das próximas gerações, por meio de um trabalho gradativo que oferece possibilidades de bons

frutos, superando o preconceito, desdém e as visões pejorativas do negro e de suas

manifestações culturais como marcas de um passado surpreendido pela superação.

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Capítulo III - Crianças de terreiro e a contação de histórias: a construção/fortalecimento

de identidades

Pensando a infância e a juventude a partir da casa de Candomblé é, possível que se

questione a influência da memória na construção das identidades que compõem essa

juventude. É comum que se ouça o relato de jovens pertencentes à religião de òrìsà (orixás),

sobre a dificuldade de assumir ou evidenciar no âmbito escolar sua religiosidade28. De alguma

forma, esses jovens vivem no limiar entre dois mundos, compreendendo-se um referente à sua

vida pessoal, no qual sua religião é professada sem máscaras, e outro que apontará para o

âmbito escolar, espaço de socialização tal qual o terreiro, que por pressupostos decorrentes do

que será entendido como senso-comum, e nesse sentido se pensará nos tabus que o

preconceito e o racismo impõem; as identidades religiosas são silenciadas. Nessa perspectiva,

objetivamente as identidades se constroem mediante uma faixa de tensão, na qual os referidos

mundos coexistem. Por esta abordagem, podemos perceber as identidades como resultantes

de tensões, construções e reconstruções.

Inicialmente iremos nos ater às reflexões a cerca de memória e construção de

identidades, para que posteriormente, já apoiados pelo discurso da Ìyálórìsà (ialorixá) Stella de

Ósóòsí (Oxóssi) possamos mesclar a percepção que as teorias nos oferecem a respeito da

construção das identidades pelas vias da memória, em diálogo com a prática cotidiana dos

terreiros de Candomblé.

Tomando como alicerce as memórias ancestrais chegadas ao Brasil, a partir do

processo de travessia29 a que os negros escravizados foram obrigados e se submeter, o

Candomblé se estrutura nesse novo mundo, entre os século XVIII e XIX. Para uma

compreensão mais ampla, além de uma reflexão melhor pautada é válido que se marque,

objetivamente, o recorte referente à face do grande grupo entendido como Candomblé

brasileiro ao qual se pretende refletir, no caso se fará exclusivamente referência ao que se

reconhece como Candomblé Ketu. Ao se falar da estruturação do Candomblé nas terras do

Brasil, tal qual por toda a diáspora africana, não se pode perder de vista que estamos tratando

de um grupo étnico-religioso que, partindo da ressignificação de uma matriz religiosa africana,

se constrói nas Américas. Dessa forma, o que se almeja afirmar é que o Candomblé, tal qual

se reconhece no Brasil, não se traduz como religião africana transportada para outros

[28]

No que tange a investigação sobre a relação entre o âmbito escolar e a religiosidade ressaltamos a pesquisa de Stella Guedes

Caputo, intitulada Educação nos terreiros, que trata essencialmente da relação dos discentes com a religião que professam e escola, no que se refere as aulas de ensino religioso. Dessa maneira, trata-se de uma outra perspectiva, já que o nosso olhar está voltado a literatura.

[29] Ao falar-se em travessia, fazemos alusão ao processo de atravessamento dos negros escravizados de África para o Brasil.

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continentes. Trata-se de uma religião construída com bases no culto de òrìsà (orixás), que se

estruturará mediante a interação com as realidades de outros espaços.

Como religião de tradição pautada na oralidade é nas redes da memória que sobrevivem

as sustentações desse culto secular. De acordo com o que nos afirma o antropólogo JOSÉ

FLÁVIO PESSOA DE BARROS (2005), acredita-se que o complexo cultural jeje-nagô se faz no

Brasil por volta do século XVIII, tendo como caminho principal o Nordeste, sendo seus

principais espaços de desenvolvimento: Bahia, Pernambuco e Maranhão. Em consequência da

destruição da cidade de Ketu, que atualmente, no que tange a uma divisão geográfica é

compreendida como os espaços referentes ao Benin e a Oyó, ambas localizadas na Nigéria, o

fluxo de escravizados dessa etnia foi bastante intenso.

Segundo BARROS (2005): “A introdução contínua de africanos de uma mesma

procedência étnica no meio urbano foi fator relevante para a viabilização de uma resistência

maior ao colonizador e possibilitou a agregação e formação de núcleos ligados a preservação

de sua cultura”. Dentre os referidos núcleos ligados a preservação da cultura, ainda que se

deva fazer referência mais intensa às irmandades negras por serem pioneiras no processo de

preservação no pós-travessia, podemos fazer também referência à construção das casas de

Candomblé.

No que se refere à proposta das irmandades negras, durante a entrevista MÃE STELLA

nos afirmou que: “Para se assegurar era necessário pertencer a igreja católica. A maior parte

delas (as negras de candomblé) fazia parte da irmandade nossa senhora do Rosário. Todas

elas vinham sempre abrindo a abrindo procissão.” Com isso a Ìyálórìsà (ialorixá) deixa evidente

que para além de uma perspectiva religiosa de assimilação da crença do dominador, eram as

irmandades meios de preservação da própria cultura afrodescendente. À medida que estas

asseguravam a(o) negra(o) escravizada(o) um outro olhar em decorrência de uma suposta

submissão aos valores europeus, as irmandades, algumas vezes, tinham função inclusiva. Em

diálogo com as propostas do sincretismo com a igreja católica, de maneira híbrida, as

irmandades fortaleciam as identidades negras, ainda que com máscaras que apontassem,

talvez, para um catolicismo africanizado.

Considerando a relação do Candomblé e o sincretismo com a igreja católica, Mãe

Stella, que tem sua trajetória como líder religiosa marcada pelo enfrentamento ao mesmo,

teceu diversas considerações sobre a desarticulação do mesmo. A respeito desse movimento

de ruptura com os valores sincréticos, vale ressaltar a marcante iniciativa da Ìyá (mãe), quando

em 1983, apoiada por outras sacerdotisas de renome escreve uma carta de repúdio ao

sincretismo religioso.

Durante a entrevista concedida para essa pesquisa, Mãe Stella, em sua fala, sinaliza,

ainda, outra questão bastante relevante para nossas reflexões. Tal questão refere-se ao que

ela chama de vício da escravidão, referindo-se nessa instante a colonização das mentes. Um

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dos objetivos da luta antirracista é descolonizar as mentes. Se hoje sabemos que nossos

negros corpos já estão livres, ainda temos que provar a nós mesmos que nossas mentes

também estão. Na construção dos pressupostos da sociedade brasileira, o processo da

escravatura foi crudelíssimo ao tentar apagar a humanidade dos escravizados. Esse processo

deixa marcantes cicatrizes na história nacional.

Pensando o processo de construção da memória e a faixa de tensão na qual

identidades infanto-juvenis se constituirão, nesse sentindo estabelecendo-se um recorte nas

crianças e jovens negros(as) e de Candomblé e tomando como base as reflexões propostas

por MICHAEL POLLAK (1992), podemos refletir sobre as influências culturais do berço da face

candomblecista que se observa. Nesse sentido, a reflexão se pontua a partir da referência a

cidade de Ketu, na memória das crianças e jovens negros(as) que interagem com o

candomblé e tem como referência a matriz africana citada anteriormente, além dos demais

adeptos da religião. Fala-se na cidade de Ketu como berço do referido candomblé à medida

que se considera que o culto aos òrìsà (orixás), forças divinas encantadas na natureza, está

pautado nas referências religiosas originárias nesse lugar. Ao pesar na relação dos

candomblecistas em questão, com este lugar, que geograficamente está tão distante, enquanto

pelas vias da memória e da cultura que se estabelece em decorrência da mesma está tão

próximo da realidade cotidiana dessas comunidades religiosas; é possível dialogar com

POLLAK (1992), quando ele nos afirma que:

“Locais muito longínquos, fora do espaço tempo da vida de uma pessoa, podem constituir lugar importante para a memória do grupo e por conseguinte da própria pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento a esse grupo. [...] A memória da África, seja dos Camarões ou do Congo, pode fazer parte da herança da família com tanta força que se transforma praticamente em sentimento de pertencimento.” (POLLAK,1992, p.202)

É exatamente essa a relação que os integrantes do Candomblé Ketu, em especial a

comunidade do Ilé Àse Opo Àfonjá ( Ilê Axé Opô Afonjá), espaço de observação dessa

pesquisa, desenvolvem com a cidade de mesmo nome. Trata-se de um lugar longínquo, fora

do espaço tempo da vida de grande parte dos adeptos da religião dos òrìsà (orixás), além de já

ter sido totalmente destruída. Entretanto, constitui um lugar de grande relevância na memória,

assim como para as identidades desse grupo étnico-religioso e consequentemente para os

indivíduos que o compõe.

Ao que parece, mediante a observação dessas comunidades religiosas, é o sentimento

de pertença a esse grupo um item que participa ativamente, a partir da memória, da construção

das identidades dessas pessoas. Vale lembrar que esse sentimento de pertença torna-se ainda

mais viável ao considerar-se a ancestralidade como elo que estabelece essa ligação. No que

tange às identidades, devemos considerar ainda que “à medida em que os sistemas de

significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma

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multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais

poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.” (HALL, 2000, p.13), portanto,

devemos pensar no plural, ao se pensar em identidades.

Nessa perspectiva, a ancestralidade estaria relacionada não somente aos

antepassados consanguíneos, mas também aos órísá (orixás), de quem os religiosos se

entendem direta ou indiretamente descendentes. “É perfeitamente possível que por meio da

socialização política, ou da socialização histórica ocorra um fenômeno de projeção ou de

identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar de uma memória herdada”

(POLLAK, 1992, p.201). Dessa forma, seriam as referências africanas no Candomblé

constituintes de uma herança que se desloca através do tempo, da mesma forma que se

mantém viva por meio da memória. São os mitos yorubás, histórias ancestrais dessa

comunidade étnico-religiosa, responsáveis pelo repassar das informações do passado para o

presente, constituído em decorrência deste. Entre os religiosos do candomblé há um

sentimento de pertencimento, consequente da identificação com o passado vivido em terras

africanas por seus ancestrais, da mesma forma que acontece com a memória de vivências do

passado já em solo brasileiro. Os itans (histórias dos orixás) que sobrevivem na memória

coletiva do candomblé relatam episódios que vão desde a fundação do mundo até a transição

dos òrìsà (orixás) para esse novo mundo. A socialização histórica dos religiosos com a

realidade da travessia e da reconstrução da história de seus antepassados promovem o

referido fenômeno de projeção ou de identificação com esse passado, construindo o que se

chamará de memória herdada.

De acordo com o pensamento de POLLAK (1992), a memória pode ser constituída por

acontecimentos vividos individualmente e também vividos por uma coletividade, à qual o

indivíduo se sente pertencer. Além disso ocorre também na relação com pessoas,

independente da relação dessas figuras com o espaço tempo do sujeito. Dando ênfase, nesse

momento, a última consideração referente ao processo de constituição da memória, pode-se

pensar as emblemáticas figuras das referências matriarcais que participam e são responsáveis

pela sobrevivência do culto aos òrìsà (orixás). Mesmo diante de todas as tentativas de

sufocamento e desconstrução, que surgem como represálias aos cultos religiosos negros em

terras colonizadas e com lógicas naturalmente judaico-cristãs e ocidentais, a ação de

determinadas mulheres, herdeiras do àse (axé), são fundamentais para sua manutenção.

Dessa forma, podemos pensar na relevante função das ìyálórìsà (ialorixás) nesse processo de

desenvolvimento de identidades a partir da memória.

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III.1 Ìyálórìsà 30: intelectuais orgânicas em uma religiosidade matri linear

"A tradição no candomblé é tão dinâmica quanto a noção de mudança. É como se pudéssemos pensar que alguma coisa fosse capaz de mudar, permanecendo". Júlio Braga

Debruçando-se a pensar a sociedade e as classes sociais, o cientista social ANTONIO

GRAMSCI ganha destaque pela relevância de suas análises, que até os dias de hoje geram

reflexões. Pensando a estruturação social, entre outras questões, ele apontará para figuras que

chama de intelectuais. A esses indivíduos será atribuído, de alguma forma, o caráter de agente

de coesão dos grupos a que se dirigem. Dessa maneira, duas categorias de intelectuais se

destacarão. Trata-se dos tradicionais e dos orgânicos.

Dos intelectuais tradicionais, diz-se que são personagens que se vinculam a um dado

grupo social, corporação ou ainda instituição, expressando os interesses particulares do grupo

que o compõe. Já aos intelectuais orgânicos atribui-se a imagem de um sujeito que pertence

originalmente a classe a que representa, não vindo a integrar-se a ela posteriormente, e que

sobretudo mantém seu vinculo, desempenhando o papel de porta-voz da ideologia e interesse

de sua classe.

Àqueles que representam a classe dominante têm como pressuposto a produção e

reprodução de uma ideologia, almejando a hegemonia dos valores sócio-culturais, ademais de

uma percepção de mundo, que contribuirá fortemente na definição de paradigmas referentes

ao pensar e agir. Seria essa uma metodologia pertinente à proposta de garantir a integridade

dos interesses da classe dominante. No caso das análises de GRAMSCI(1982), ao referir-se a

dita classe, faz-se uma alusão a burguesia. No que se refere à ação dos que representam as

classes subalternas, agiriam estes em uma contrapartida, frente ao ideal dos representantes da

classe dominante. A pretensão destes se dirige rumo ao rompimento com a hegemonia.

Admitindo os questionamentos e críticas sociais como suporte, os representantes da classe

subalterna pretendem desarticular a ideologia dominante e estruturar uma ideologia outra, mais

favorável aos seus valores.

No que tange a essas reflexões de GRAMSCI(1982), o que nos interessa, nessa

pesquisa, é a figura do intelectual orgânico. Seriam esses, agentes libertadores, que se

dedicam a criação e defesa da ideologia de um dado grupo. Os intelectuais orgânicos dialogam

com o novo. Buscam, em geral, releituras referentes à concepção de mundo e valores culturais

e sociais. São eles distanciados da inércia social que mantém inabalável os valores que não

estabelecem relações harmônicas com as perspectivas que têm da sociedade. Na

caracterização deste intelectual, talvez o adjetivo mais relevante para esta análise seja o de

[30]

Apesar do termo em questão ao ser traduzido ir para o plural, ou seja ialorixás, por estar escrito em yorubá sua forma se

mantém idêntica, seja para o singular ou plural.

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porta-voz dos interesses de seu grupo. Será ele responsável por veicular o discurso que irá ao

encontro das necessidades de seus componentes. A figura em reflexão, no caso os intelectuais

orgânicos, pode estabelecer, a partir deste recorte, relevantes diálogos com grupos em análise

nessa investigação acadêmica.

Diante dos candomblés, espaços de visitação dessa pesquisa, em especial o Ilé Àse

Opo Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá – Casa de força sustentada por Xangô), localizada à Rua

Direta de São Gonçalo, 557. São Gonçalo, Salvador – BA, nos é possível considerar a

incidência dessa personagem nesses ambientes. Sem desconsiderar a ação política de

diversos outros membros dessas comunidades, mas sobretudo reconhecendo a função política

e social que esses redutos afro-brasileiros e suas lideranças podem exercer, podemos

considerar, pelo histórico dessa religiosidade, que muitas vezes estas são dirigidas por

intelectuais orgânicos. Não escapa a nossa compreensão que a análise de GRAMSCI (1982)

abrange essencialmente uma abordagem a cerca da sociedade a partir das classes sociais.

Todavia, salvo o objeto central que gera a reflexão do cientista social, cremos que a partir da

ressalva da substituição do pressuposto de classe social, para considerar então grupos

diversos que compõem a sociedade, independentemente da hierarquização econômica desta,

seja possível a apropriação destes conceitos referentes ao intelectual para se pensar outras

questões como o negro, o candomblé e o lugar destes nessa sociedade.

Tomando como especificidade o centenário terreiro de Sàngó (Xangô) que nos serve de

ambiente para reflexão, consideremos inicialmente sua atual ìyálórìsà (ialorixá), Mãe Stella de

Ósóòsí (Oxóssi). A mãe de santo, como popularmente se conhece as dirigentes das casas de

culto aos òrìsà (orixás), pertence a uma das mais puras linhagens de herdeiras do axé.

Descendente de africanos, como nos afirmou na entrevista, está há trinta e sete anos a frente

do àse (axé). Atravessada por diversas identidades, como: mulher, negra, omorode (filha de

Ósóòsì – Oxóssi), ìyálórìsà (ialorixá), escritora, entre tantas outras que a compõe; Maria Stella

de Azevedo Santos desempenha no âmbito do candomblé a função de intelectual orgânica. E

nesse sentido ela rompe as barreiras geográficas do terreiro no qual reina soberana, atingindo

a toda tradição religiosa de culto aos òrìsà (orixás). Desde sua posse como líder da

comunidade, Mãe Stella luta frente aos valores naturalizados nessa sociedade pela valorização

e direitos do povo de candomblé, propondo, de alguma maneira, uma quebras nos valores

hegemônicos.

Como representante de grupos subalternizados, já que é mulher, negra e de

candomblé, o que a faz, comumente nessa sociedade preconceituosa e racista, vítima de um

olhar subalternizado de caráter interseccional. Mãe Stella em suas investidas evidencia a

pretensão de desmontar a ideologia dominante, que coloca o candomblé e o negro entre os

referenciais menores, desenvolvendo assim outra percepção acerca da religião dos òrìsà

(orixás) e toda a riqueza cultural que ela carrega consigo.

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Desfrutando da roupagem de intelectual orgânica, Ode Kayode (Odé Caiodê)31 interage

com o novo ao propor releituras, sem no entanto quebrar as tradições da religião. Dentre as

alterações com as quais ela colaborou fortemente, está a desconstrução da ideia do

sincretismo com a igreja católica como algo necessário a religião e parte de uma tradição.

Como ela mesma afirma a respeito da referida ruptura, durante a entrevista:

“A separação é simplesmente consequência da evolução. Nós e os òrìsà (orixás) temos conhecimento e somos independentes. Sabemos que a nossa crença, a nossa prática religiosa é uma religião. Porque, se você for procurar lugares em que se fala sobre isso com propriedade, quando é que uma crença passa a ser religião? Quais são as características que tem? Vimos que não tinha necessidade de ter sincretismo. O que continua como sincretismo é vício da escravidão que não conseguiu se libertar. Nós temos a nossa teologia, nós temos a nossa sabedoria, nossos dogmas, tudo isso caracteriza qualquer crença como religião. Se você for pesquisar vai ver que nós temos tudo isso. E se você for descobrir, se for reparar, os sincretismo são duas crenças diferentes que se misturam nos procedimentos, de fazeres que, no fundo, agrada mas não satisfaz a ninguém.”

Outra proposta da mãe de santo que ganhou bastante espaço na manutenção do

candomblé, como religião independente, deslocada da imagem de culto primitivo que se

construiu em torno dela, diz respeito ao conflito entre a oralidade e a escrita. Mãe Stella

destacou-se por ser a primeira ìyálórìsà (ialorixá) de uma linhagem tradicional a render-se a

escrita. Afirmando que “O que não se registra, o vento leva”, a sacerdotisa que recebeu o título

de Doutor Honoris Causa pela Universidade do Estado da Bahia, em 2010, e foi eleita por

unanimidade como imortal da Academia Baiana de Letras, em 2013, afirma a necessidade de

romper com a negação à escrita em favor da oralidade. Ao tomar essa posição, ela assume a

fragilidade da oralidade nessa sociedade que tende a valorizar o escrito. Por mais que esse

culto tenha sobrevivido a todas as investidas de sufocamento por parte do dominador,

ancorados na potencia da oralidade, sabe-se que o registro escrito colabora, perpetuando

efetivamente o que se pretende preservar e propagar. A escrita livra esse culto da traição das

memórias, considerando nesse momento a memória como lembrança. Acerca da travessia das

temáticas do candomblé, do campo da oralidade para a escrita, Mãe Stella assim comentou, na

entrevista:

“Quando eu escrevi meu primeiro livro, pedi para o meu amigo fazer o prefácio. Ele: “Mãe Stella a senhora está escrevendo um livro e a tradição do Candomblé não é oral?” Eu disse: é rapaz, mas eu já descobri que o que a gente não registra o vento leva. Que quem conta um conto aumenta um ponto. Então o que está registrado ali é verdade, porque o que eu passo para você, você deduz de outra forma e já passa. Você está gravando tudo aí direitinho, mas quando perguntarem cadê o produto vão ver que é a minha voz e que fui eu quem falei tudo direitinho. Não é invenção, nem você ouviu uma voz e disse que era de outra.”

[31]

Nome de orixá concedido a Mãe Stella no momento da iniciação. Dentro dos terreiros chama-se essa nomenclatura de orukó.

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Nesse sentido, mais uma vez de maneira ousada, a mãe de santo se vale da autoridade

que sua experiência de vida lhe oferece para desmontar um valor religioso com aparência que

sugere inalterabilidade. Enquanto no passado os anciãos, em favor da preservação das

tradições religiosas valorizavam o mistério, e para isso priorizavam como fonte somente a

memória, Mãe Stella, em seu lugar de agba(abá)32 e yalode33 (ialodê), percorre o caminho

contrário em favor da mesma lógica. O que se pretende afirmar aqui é que: ocupando o lugar

que cabe a uma mais velha, nessas tradições, e sobretudo sendo ela uma mulher com posição

de destaque, de poder, no egbe34 (ebé), na comunidade, na sociedade do candomblé é

legítimo o contra discurso que desenvolve.

É uma personagem com tanta representatividade quanto seus antepassados que dirige

essa fala à comunidade. No entanto, sua postura não vem quebrando tradições, mas

intentando mantê-las. O que Mãe Stella propõe é a alteração nos costumes. Para melhor

compreensão é preciso que se estabeleça as diferenças no que tange aos conceitos de

tradição e costume. Os referidos termos dialogam e podem, inclusive, se completar, entretanto

tem pressupostos distintos. Considera-se aqui, apoiados em ERIC HOBSBAWM (1977), a

tradição como algo invariável. Seria ela referente a práticas fixas. No entanto, o costume tem

caráter mutável.

Considerando ainda o trabalho que a ìyálórìsà (ialorixá) vem desenvolvendo, podemos

citar, como outra interessante temática que Mãe Stella aborda, a relação entre candomblé e

ecologia. Considerando questões altamente contemporâneas, como a preservação da natureza

e sustentabilidade, a ìyálórìsà (ialorixá) também se pronuncia. Tratando dessa temática, ela,

inclusive, publicou um livro intitulado: Epé Laiyé - terra viva, dedicado a crianças e jovens. A

relação do candomblé com o meio ambiente também se inseriu na entrevista. E nesse

momento ela afirmou:

“Eu soube ontem que vai acontecer um seminário aí, um congresso sobre ecologia. Nada mais prático do que pensar o òrìsà (orixá), que está presente na natureza. É a própria ecologia. Se você quer evocar Oxum, quer dar um presente a ela, você põe no rio. Agora o que ocorre é que tudo em excesso, prejudica. Então se todo mundo quer dar um presente a Oxum e põe garrafas de bebidas, de perfumes, né? Compra cristais, que Oxum gosta, medalha de ouro e tal e tal, então o material palpável, vidro, plástico, são coisas que no fundo, a natureza não consome. A terra não consome o vidro. Fica acumulando e no final o fundo do rio está poluído. Então é isso que a gente tem recomendado muito, que se você for dar oferenda para Oxum, que você não jogue o vidro na água, que são milhares de vidros. O liquido evapora, mas o vidro fica ali.”

[32]

Idosos. Anciãos da comunidade.

[33] Mulher de grande representatividade na sociedade.

[34] Comunidade, socidade.

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Sobretudo, Mãe Stella dá continuidade aos pressupostos de suas antecessoras, em

especial Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha, Oba Biyi, a fundadora do terreiro. O referido

terreiro de candomblé é o único do país que conta com a presença de uma escola em seu

terreno. A Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, fundada em 1998, fruto da creche Mini

Comunidade Oba Biyi, fundada em 1978. Crendo que a creche fundada por ela não supria as

necessidades da comunidade, Mãe Stella cria a escola, em 1986, tornando-se somente em

1998 uma instituição municipal. Sobre a municipalização da escola, um interessante relato de

Mãe Stella é que:

“quando era nomeado pela prefeitura ou pelo estado, quem vinha via a referencia de àse (axé) mas antes de começar queriam rezar “Pai Nosso que estás no Céu”. Eu disse: Perai, perai! Não! Você não vai ensinar candomblé, mas não vai enfatizar uma religião que é contra a nossa, nossa prática. Então não faça nada. Aí pergunta: Mas faz o que? Não faça nada! Mas agora já cantam o hino do àse (axé), faz teatrinho com os mitos... O mestre Didi deixou muitos mitos para eles, que ele gostava muito dessas coisas. Ficaram muitos mitos dele aí. E professores que transformaram tudo isso em livro, teatro, peça. Agora eles escolhem o mito para a peça, para o social mesmo da coisa.”

Todo o processo desenvolvido pela ìyálórìsà (ialorixá) se constitui como reticência das

propostas de Mãe Aninha. Com olhar voltado para o crescimento pessoal da comunidade em

geral, a fundadora do Ilé Àse Opo Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá), pensava com admiração na

educação. Tinha a pretensão de que seus filhos tivessem acesso à educação, que como já

sabemos, não era e ainda não é, privilégio de todos. Sobre esse projeto de Mãe Aninha,

durante a entrevista assim nos afirmou Mãe Stella:

“O Candomblé felizmente está muito evoluído. Antigamente, dizia que o Candomblé era como uma universidade. Aqui se aprende de tudo. Aqui é um Candomblé pobre, tem é muita gente. Gente sempre aumenta. Não é pobre. Não é tão pobre assim, porque nós temos a graça de òrìsà (orixá), mas não temos riquezas do mundo. Mãe Aninha se interessava muito pela educação. Ela botava a gente para ensinar aos mais novos, às vezes, ela mesma parava para ensinar. Ensinava como partia obi, essas coisas ela mesma ensinava e assim foi levando. Ela tinha uma coisa que dizia e que todo mundo reproduziu. Ela dizia que ainda ia ver o candomblé todo, servindo a Xangô com anel no dedo. Ela queria que todo mundo evoluísse e isso tem acontecido. Não vê você, que vai ser doutor, aí. (risos) «...» Quando ela criou aqui, uma mulher que era costureira era o máximo. Costureira! Hoje em dia é estilista, não é? Naquele tempo era costureira. Tinha as outras pessoas que estudavam e ela sempre incentivava isso.”

Dessa maneira percebemos que o Ilé Àse Opo Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá) se furta ao

direito de se colocar na sociedade brasileira somente como uma casa de culto religioso afro-

descendente, à medida que desempenha função social. De acordo com nossa reflexão, Mãe

Stella evidencia todos os pressupostos necessários para agregar às atribuições que já possui,

a de intelectual orgânica. Podemos dizer também que seja ela descendente de uma linhagem

de intelectuais orgânicas. Iniciada por Mãe Senhora, que por sua vez foi iniciada por Mãe

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Aninha, seria ela, Mãe Stella, pertencente a uma terceira geração de intelectuais orgânicas.

Mãe Aninha e Mãe Senhora, que são integrantes da linha matrilinear do terreiro em questão,

com suas trajetórias de vida também se mostram intelectuais orgânicas. São elas a gênese da

trajetória de Mãe Stella. Além dessas mulheres, uma série de outras referências atravessam o

cenário do candomblé brasileiro.

Como nos afirmou Mãe Stella, durante a entrevista:

“Antes, no passado, antes do século XX, as mulheres é que tomavam na realidade a frente, o cuidado com os òrìsà (orixás). Porque os homens iam para as fazendas, para a roça. Era a profissão dos alforriados. Iam fazer cada um sua função. E as mulheres ficavam em casa, iam ser babás, mãe de família, mas tudo em casa mesmo. Então uma babá, uma mãe, uma cozinheira, tinha muito mais tempo de cuidar das coisas de òrìsà (orixá), de cuidar das coisas do que é sagrado. Foi o que aconteceu. Tanto que até que se tem de informações de como começou o candomblé, em Salvador, tem três referências, três senhoras da África chamadas Iyakalá, Iyanasso e Iyadetá. Todas lá do Reino de Oyó. Vieram para o Brasil e aqui nesse vai e vem tinha um lugarzinho onde elas atendiam as pessoas, era tudo muito velado, muito escondido ali, então elas três cuidavam das pessoas. Mas foi juntando tanto, porque esse pessoal tem a característica de se unir. Eles se uniram tanto que até abriram um pequeno candomblé. Não podia chamar candomblé, porque até então faziam todos os rituais numa casa distante. Mas como a cidade cresceu eles saíram de lá. Foram da Barroquinha para o Rio Vermelho, onde até hoje funciona a Casa Branca. E lá foi ficando. E o Candomblé foi crescendo, e quando cresceu, outros iniciados tiveram necessidade de abrir a sua casa. Já tinha a Casa Branca, surgiu o Gantois e depois o nosso axé, aqui, e outros.”

Como fica evidente a partir das falas de Mãe Stella e de estudos na área, o candomblé

brasileiro nasce no ventre de uma matrilinearidade afro-descendente. São essas intelectuais

orgânicas que promoveram com auxílio de alguns homens a sobrevivência do culto de òrìsà

(orixás) no Brasil. Como nos afirmou Mãe Stella durante a entrevista: “ Eles eram auxiliares.

Foram mestres. As vezes o filho passa o mestre.”

Desempenhando também a função de contadoras de história, elas dão sustentação ao

candomblé a partir da oralidade e, na contemporaneidade, são fortes referências para a auto-

afirmação de uma série de negras e negros. Por mais que em África o culto de òrìsà (orixá) não

seja feminino, tendo os babalaôs35 relevante função, na travessia desse culto de África para o

Brasil, as mulheres assumiram aqui relevante posição, o que nos dias de hoje parece

intransferível.

Compreendidas como herança encarnada de uma africanidade ou afrobrasilidade, a

partir da legitimidade que as origens parecem atribuir, mulheres encontradas no decorrer da

[35]

Literalmente: O pai do segredo. São sacerdotes do culto dedicado a Ifá, divindade da adivinhação. Nesta forma de culto o

poder se concentra nas mãos dos homens, sendo os eleitos como sacerdotes, entre outras coisas, responsáveis pela adivinhação a partir do jogo que nesse sentido não é feito com búzios, mas como metades de caroços de dendê que formam algo semelhante a um colar.

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vida de muitos adeptos estabelecem ou exercem influência na construção pessoal de inúmeros

religiosos. Ainda que sejam personagens conhecidas indiretamente, a partir do status de

referência que ocuparam ao longo de suas histórias, mulheres como Ìyá Detá, Ìyá Kalá, Ìyá

Naso, Mãe Aninha, Mãe Senhora e tantas outras personagens da história do candomblé

brasileiro se relacionam ideologicamente com diferentes gerações. Tal relação se processa a

ponto dessas mulheres, que hoje são ancestrais, se tornarem altamente conhecidas por

pessoas que não partilharam de seu espaço-tempo.

São essas nobres senhoras de Candomblé, também responsáveis pela travessia das

memórias ancestrais africanas. Faz-se tal atribuição, considerando que as narrativas mítico-

religiosas, que justificarão os rituais e a organização das casas de òrìsà (orixás) são também

memórias herdadas dos ancestrais ligados àquela raiz religiosa/cultural. A respeito do que se

reflete sobre as referidas senhoras, em diálogo com o processo histórico do espaço de

observação dessa pesquisa, deve-se fazer referência às ìyálórìsà (ialorixás) do terreiro Opo

Àfonjá (Opô Afonjá). Em ordem cronológica, estamos nos referindo a: Mãe Aninha de Afonjá,

Obá Biyi36; Mãe Bada de Osala (Oxalá), Olufan Deiyi; Mãe Senhora de Òsun (Oxum), Òsun

Muiwà; Mãe Ondina de Osala ou Mãezinha, Iwin Tona. Mãe Stella de Òsóòsí (Oxóssi), Ode

Kayode³, atual lider da comunidade é, de alguma maneira, reflexo das demais.

Com exceção de Mãe Stella, que permanece na direção do àse (axé), as mães de santo

citadas não interagiram, por exemplo, com a geração contemporânea do terreiro, entretanto,

todas se tornam próximas do espaço-tempo de toda a comunidade à medida que vivem na

memória coletiva desse lugar, sendo ainda fonte de inspiração para algumas atividades que se

desenvolvem no terreiro.

Como afirmou Ode Kayode em seu discurso, por ocasião de sua posse, na Academia

Baiana de Letras:

"Se a cabeça de Mãe Aninha foi consagrada; sua língua ganhou axé, ganhou força. Sua fala é uma sentença que seus filhos espirituais procuram obedecer e cumprir, como manda a sabedoria ancestral. Foi isso que também eu fiz, tanto que hoje me encontro aqui, na ilustre Academia de Letras da Bahia para ser empossada na cadeira 33. A sentença de mãe Aninha é mais profunda do que normalmente se costuma interpretar: receber um anel é símbolo de aceitação de um compromisso. A vanguardista senhora desejava que seus descendentes se comprometessem com as causas sociais e espirituais. Desejo de Mãe Aninha que se tornou de todas as iyálorixá que a sucederam. Esse também é meu desejo: comprometer-me com tudo que assumo, seja no âmbito social, seja no âmbito espiritual."

A exemplo, pode-se sinalizar Mãe Aninha como a grande inspiração para o olhar

voltado ao âmbito educacional, que esta casa de Candomblé possui. E, dessa maneira,

podemos pensar também na relação desses espaços religiosos com a construção e [36]

Esse e todos os nomes em língua yorubá que seguem os nomes ocidentais das referidas ìyálòrìsà são os ditos oruko, sobre os

quais já falamos anteriormente em nota.

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posicionamento político-social dos adeptos dessa religiosidade. A respeito desse pensamento,

MUNIZ SODRÉ (2006) nos diz que:

“A comunidade liturgica afro-brasileira ou terreiro implica, antes de mais nada, a ideia de um corpo grupal forte o suficiente para dar proteção contra as adversidades, contra o estrangeiro hostil. É o que expressa um antigo canto de celebração: “Kosi mi fara alejo/ Ara wara kon mi fara...” (“Nada há que possa contra mim nem mesmo quando parte dos estrangeiros/ Todos unidos num mesmo corpo, não há no mundo que possa contra mim”). A liturgia não deixa, assim, de “vestir” ou exprimir uma prática política bastante clara.” (SODRÉ, ,p.170)

Como nos afirma JACQUES LE GOFF (1996, p.429), a respeito da manutenção da

memória, salvo as questões de gênero, que em nosso contexto favorece ao lado feminino, ao

contrário do relato do teórico que contempla um olhar masculino para essas relações de poder:

“Nestas sociedades em escrita há especialistas da memória, homens-memória: “genealogistas”, guardiões dos códices reais, historiadores da corte, “tradicionalistas”, dos quais Blandier [1974, p.207] diz que são ‘a memória da sociedade’ e que são simultaneamente os depositários da história ‘objetiva’ e da história ‘ideológica’, para retomar o vocabulário de Nadel. Mas também ‘chefes de família idosos, bardos, sacerdotes’, segundo a lista de Leroi- Gourhan que reconhece esses personagens ‘na humildade tradicional, o importantíssimo papel de manter a coesão do grupo’” ( LE GOFF, 1964-65, p.66)

No caso dos Cadomblés, esses idosos e sacerdotes, dos quais se pode dizer que sejam a

memória da sociedade são as agbás, as(os) antigas(os) egbon37, Ogan38 e ekedji39, as anciãs

e anciãos do Candomblé.

O histórico de repressão, sufocamento e silenciamentos sofridos pelos grupos e

tradições negro-brasileiros, compõem acontecimentos vividos por uma coletividade que atinge

diretamente ao negro na sociedade brasileira e estende-se a suas manifestações de cunho

religioso/cultural, entre outras que tragam em sua estrutura traços negroides. Esse atingir age,

inclusive, na construção da autoestima desses grupos, assim como é muitas vezes um forte

colaborador no desenrolar das auto-negações.

Nessa perspectiva, a memória desse lugar longínquo, no caso as terras de Ketu, a ação

das sacerdotisas que através de seus exemplos de vida e falas sustentadas pela oralidade,

frente à realidade da religião de matriz africana no Brasil, se relacionam através dos tempos

com sujeitos deslocados de seu espaço-tempo e o histórico de repressão e silenciamentos que

[37]

Todo iniciado que já cumpriu sua obrigação de sete anos, tornando-se assim um mais velho.

[38] Condição especificamente masculina, referente a aqueles que não entram em transe e são escolhidos pelos orixás para

desempenharem determinadas funções dentro das casas de candomblé relacionadas ao sacrifício, toque dos atabaques entre outras questões. Podem se tornar grandes mestres dentro das referidas comunidades, dependendo somente de sua atuação enquanto religioso.

[39] Condição especificamente feminina, referente a aquelas que não entram em transe e são escolhidas pelos orixás para

desempenharem na casa de candomblé funções em geral administrativas. São mulheres escolhidas para zelar pelos orixás e auxiliarem no bom andamento das atividades.

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marcam a memória coletiva dos negros, assim como dos demais adeptos da religião dos òrìsà

(orixás), ademais do próprio espaço do terreiro, considerando suas relações e a socialização

decorrente, configuram-se como agentes de intensa atuação no processo de construção das

identidades dessas crianças e jovens de terreiro.

Sobre a comunidade religiosa, como espaço, diz SODRÉ(2006):

“A comunidade –terreiro é, assim, repositório e núcleo reinterpretativo de um patrimônio simbólico explicitado em mitos, ritos, valores, crenças, formas de poder, culinária, técnicas corporais, saberes, cânticos, ludismos, língua litúrgica (o irorubá) e outras práticas sempre suscetíveis de recriação histórica, capazes de implementar um laço atrativo de natureza intercultural (negros de etnias diferentes) e transcultural ( negros com brancos)” (SODRÉ, 2006, p.170-171)

Dessa maneira, pode-se compreender o terreiro, ambiente de resistência e preservação de

uma cultura afro-descendente, também como espaço de construções que se refletirão na

dinâmica social dos submetidos às suas relações frente ao mundo ocidental, que propagará

percepções e valores diversos, que, muitas vezes, não estarão em harmonia com os

pressupostos mantidos por esse lugar e suas políticas, à medida que se trata de um

direcionamento indicado por referências de mesma matriz da religiosidade citada, que, como já

é sabido, trata-se de algo comumente desconsiderado, ainda que em suas entrelinhas existam

referências absolutamente atuais, como, por exemplo o intento da preservação ambiental, tema

recorrente diante das falas contempladas pela sustentabilidade, e, ao mesmo tempo, pertinente

e costumeira em meio às comunidades de terreiro, diante da compreensão da natureza como

manifestação da própria divindade e não somente como criação divina.

Pensando as memórias, podemos considerar que elas tenham uma íntima relação com o

sentimento de identidades. Como nos sugere POLLAK (1992):

“a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. [...] A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com os outros.” (POLLAK,1992, p.204)

Dessa maneira, talvez nos seja possível compreender a memória como um espaço de

encontro entre tempos, à medida que a ela também se atribui o status de mantenedora de um

sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou grupo, na (re)construção de si.

Ela é a encarregada de promover esses encontros que possibilitarão a fluidez e construção de

novas identidades.

A respeito do conceito de identidade, as análises de STUART HALL (2000) sugerem,

pensando a contemporaneidade, que “naquilo que é descrito, algumas vezes, como nosso

mundo pós-moderno, nós somos também “pós” relativamente a qualquer concepção

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essencialista ou fixa de identidade”(2000, p.10) e dessa forma ele faz referência a fluidez do

processo de definição e construções identitárias. Dessa maneira, entendemos que “A

identidade torna-se uma ‘celebração móvel’ formada e transformada continuamente em relação

às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos

rodeiam” (HALL, 1987).

A memória que inicialmente pode ser pensada como algo relativamente íntimo,

individual, abre possibilidade para um entendimento, tal qual o referente às identidades, que

apontam para um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações e mudanças.

Refletindo ainda sobre a memória, na perspectiva que se propõe, JACQUES LE GOFF

(1996) trará ao debate o conceito de memória étnica, reservando e relacionando aos povos

sem escrita a construção da memória coletiva, que seria uma história ideológica, que descreve

e ordena fatos estabelecidos com base em critérios objetivos de acordo com certas tradições.

LE GOFF (1996) pensará o que ele denomina memória étnica, entendendo memória “como

propriedade de conservar certas informações” (LE GOFF,1996, p.423), seria essa memória a

efetiva responsável por assegurar “a reprodução dos comportamentos nas sociedades

humanas.”(p.425)

III.2 Entre a louvação e a negação - ser de candomb lé na escola: uma abordagem

“A carne mais barata do mercado é a carne negra/Que vai de graça pro presídio/E para debaixo de plástico/Que vai de graça pro subemprego/E pros hospitais psiquiátricos/A carne mais barata do mercado é a carne negra/Que fez e faz história/Segurando esse país no braço/O cabra aqui não se sente revoltado/Porque o revólver já está engatilhado/E o vingador é lento/Mas muito bem intencionado/E esse país/Vai deixando todo mundo preto/E o cabelo esticado/Mas mesmo assim/Ainda guardo o direito/De algum antepassado da cor/Brigar sutilmente por respeito/Brigar bravamente por respeito/Brigar por justiça e por respeito/De algum antepassado da cor/Brigar, brigar, brigar”

Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette

Considerando o olhar de LE GOFF (1996) a cerca da memória, na face em que ele a

contempla, nos é possível compreender frente à realidade observada nos grupos religiosos

afro-brasileiros, especificamente os Candomblés, enquanto coletividade, e consequentemente

no que se refere aos seus adeptos, em uma abordagem individualizada, fotografando nesse

sentido as crianças e jovens negros(as), um sentimento de continuidade, de preservação e por

que não de resistência, que segue na esteira do sentimento de pertença a essas tradições.

A respeito das identidades, NILMA LINO GOMES (2005) tece uma definição que nos

parece bastante adequada ao nosso percurso reflexivo acerca dela:

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“A identidade não é algo inato. Ela se refere a um modo de ser no mundo e com os outros. É um fator importante na criação das redes de relações e de referências culturais dos grupos sociais. Indica traços culturais que se expressam através de práticas lingüísticas, festivas, rituais, comportamentos alimentares e tradições populares referências civilizatórias que marcam a condição humana. Portanto, a identidade não se prende apenas ao nível da cultura. Ela envolve, também, os níveis sócio-político e histórico em cada sociedade. Assim, a identidade vista de uma forma mais ampla e genérica é invocada quando “um grupo reivindica uma maior visibilidade social face ao apagamento a que foi, historicamente, submetido” (NOVAES,1993: 25).” (GOMES, 2005, p. 41)

Pensando ainda a construção das identidades como um fenômeno que se realiza a partir

das relações diretas com o outro e as negociações, no que se refere aos critérios de

credibilidade, aceitação e admissibilidade, como nos sugere POLLAK(1992), compreende-se

que mesmo diante de todo referencial que a memória étnica/ coletiva dos grupos religiosos

negro-brasileiros oferece a essas crianças e jovens, a interação com a escola e os valores que

ela propaga podem abalar as estruturas deste. Não podemos perder de vista que tratamos de

um espaço escolar que majoritariamente serve a uma sociedade elitizada, que promove o

racismo, vindo a negar às várias manifestações/construções que se distanciem do modelo

branco, masculino, machista, cristão e heteronormativo, que a sociedade elegeu como modelo.

“A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros ( identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc.” (MUNANGA, 1994, 177-178).

Essas identidades, construídas nesse espaço de conflitos desconstrutivos se dividem entre o

ethos40 do enfrentamento e da resistência, que seria o ideal, e o ethos da negação, em

decorrência do já citado processo de negociação que oferece ainda mais subsídios para a

ampliação do sistema racista que sobrevive em práticas sociais, à medida que os estereótipos

são naturalizados.

Para a criança negra, afirmar suas identidades afro-descendentes é um processo

complexo. O racismo fere diariamente a população negra, sobretudo aos negros de pele mais

pigmentada. Tal particularização pode ser feita, à medida que compreende-se que o

preconceito de marca, como nos afirma ORACY NOGUEIRA (2006), é o que prevalece em

questões raciais no Brasil. Esmiuçando a questão, trata-se de um preconceito que se faz pela

cor da pele e aparência. Essa face do preconceito se difere do que o mesmo autor chamará de

preconceito de origem, compreendido como o que se destaca nos Estados Unidos. Esta outra

[40]

Conjunto de hábitos ou crenças que definem uma comunidade ou nação. Traços comportamentais que distinguem um povo.

Pode ainda, como no contexto em que trazemos fazer referência as características morais, sociais e afetivas que definem o

comportamento de uma determinada pessoa ou cultura.

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face do racismo tem como pressuposto a suposta ascendência de um dado grupo étnico. De

acordo com NOGUEIRA (2006), nos espaços em que ocorre o preconceito racial de marca, a

discriminação pode ser abrandada por qualificações que o sujeito venha a apresentar. Em

contrapartida nos espaços em que é recorrente o preconceito de origem, a discriminação se

manterá independentemente de qualquer qualificação do indivíduo.

Nessa discussão é válido que se faça referência à dificuldade da definição de quem é

ou não negro, no senso comum. Sabemos que, de acordo com KABENGELE MUNANGA

(2006), hoje a compreensão do conceito de raça e do que é ser negro está intimamente ligada

a uma questão política, sobrepondo-se, dessa forma, a cor da pele. Entendida inicialmente a

partir de um conceito biológico, determinado pela autoridade científica europeia, raça foi um

conceito usado para classificar seres por espécies. No que se refere à humanidade ela, a raça,

foi argumento hierarquizador. Norteada, sobretudo por fenótipos, a hierarquização proveniente

das supostas diferenças raciais atribuiu aos mesmos noções de: intelectualidade, valores

morais, culturais, estéticos e até mesmo civilidade.

O entendimento de raça em uma vertente biológica se dissolve, muito oportunamente,

quando se pensa a humanidade. Ao se compreender a unidade da raça que a humanidade por

si só nos sugere, fazendo-nos apenas raça humana, a usualidade do termo no que se refere a

uma questão fenotípica se esvazia de sentido. Dessa forma a noção de raça passa a vincular-

se a uma questão sócio-política que tem como princípio o enfrentamento ou combate às

desigualdades.

Marcar a questão da raça é também um meio de resistência e enfrentamento, à medida

que está vinculado à afirmação da existência do racismo. A mesma nomenclatura

anteriormente utilizada como indicadora de hierarquização, hoje ecoa com conotação libertária.

Não estamos presos a um conceito biológico, mas a uma causa política, marcada pelo

significado preconceituoso oferecido ao significante raça. Diz-se preconceituoso considerando

que foi ele o pressuposto que embasava valores pertinentes ao entendimento de

superioridade-inferioridade.

Partindo das classificações que a biologia eurocentrada instaura, o significante negro

adquire como significado, raça inferior. Posteriormente, em nossa história nacional, da mesma

maneira que acontecerá em tantas outras, o termo será usado de maneira que torna-se

sinônimo de escravo. Talvez aí resida um dos argumentos que promovem a negação do

entendimento e auto-afirmação da própria negritude à medida que é historicamente vinculada a

ela um suposto peso que tem relações com o simbólico, com a construção do imaginário no

que se refere às identidades negras.

Ainda hoje, receosas de ofender pela utilização do vocábulo negro, uma gama de

pessoas substitui essa expressão por tantas outras, tais quais moreno, mulato, escurinho, de

cor, entre outras, considerando, então, que seja agressivo utilizá-la. Tão grave quanto a

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negação do significante pelos referidos argumentos é não notar-se a existência do racismo

nessa negação.

Ora, se trata-se de uma população na qual uma considerável parte ainda teme utilizar

uma palavra, em decorrência da carga simbólica de caráter pejorativo que se construiu sobre

ela e anda não se conseguiu desarticular por inteiro, como poderemos pensar a auto-afirmação

de identidades vinculadas a esse mesmo pressuposto? Enquanto sobreviver o receio na auto-

identificação como negra(o), preta(o) e ainda mais na afirmação das identidades negras que

nos atravessam e nos constroem, o racismo sobreviverá no âmago de cada um desses

sujeitos.

Dessa maneira, compreende-se que o processo de desarticulação do racismo tem

intrínseca relação com construções do imaginário. Ao se tratar de crianças e jovens, temos em

vista que a afirmação dessas identidades é tarefa bastante densa, à medida que como já

consideramos, a escola não foi estruturada para receber crianças distante do padrão idealizado

pelo modelo eurocêntrico.

Como já sabemos, dentre o que se reconhece como riqueza cultural do Brasil, no senso

comum, e por assim ser nos representa no mundo, chega até nós como contribuição africana.

Em decorrência do pós-travessia e dos hibridismos que o sucede o afro-brasileiro se dá. Em

momento posterior ao tráfico negreiro, aspectos até então não reconhecidos pelo Brasil

indígena-europeu, sutilmente se estabelecem. Tais aspectos, ao longo do tempo vem

exercendo profunda atividade na movimentação cultural do país. Entre esses agentes culturais,

colaboradores da construção identitária dessa nação encontram-se as religiões afro-brasileiras.

Como nos afirma MUNIZ SODRÉ (2006):

“(...) é fundamental a memória da contribuição africana em termos de estética, música, culinária e religiosidade para as formas de vida atuantes entre as classes subalternas no país. Não foi uma contribuição aleatória e anárquica, mas um verdadeiro processo civilizatório, que comporta mesmo a categoria “elite”, a propósito das manifestações sociais dos africanos e seus descendentes. As categorias litúrgicas matriarcais, aquelas que deram origem à profusão e a popularização dos cultos afro-brasileiros, foram resultado de uma aglutinação de elite, caracterizada pela participação fundacional de altos dignatários e sacerdotes do milenar cultos aos orixás, trazidos ao Brasil na condição de escravos, em consequência das guerras interétnicas e das incursões guerreiras dos escravagistas no continente africano.” (SODRÉ, 2006, p.12)

O histórico de formação cultural desse país, tal qual a estruturação social e física do

mesmo, guardam em seus alicerces traços africanos e indígenas. Nesse sentido, ainda que

negadas com tanta intensidade, essas culturas exercem atividade na construção das memórias

desse lugar. Como nos afirma MUNANGA (2010):

“(...) essas heranças constituem a memória coletiva do Brasil, uma memória plural e não mestiça ou unitária. Uma memória a ser cultivada e conservada por meio das memórias familiares e do sistema

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educacional, pois um povo sem memória é como um povo sem história.” (MUNANGA, 2010, p.50)

Na esteira dessa lógica é natural que as mesma desempenhem, sobretudo no âmbito

educacional, o mesmo processo de interação que ocorre com as europeias. Talvez, o que seja

mais curioso em todo esse processo seja defender o óbvio, mas se isso ocorre é porque o

óbvio é negado e se o fazem, algo de errado acontece nessa sociedade.

Considerando a criança e fazendo aí um novo recorte, pensando as crianças de terreiro,

um novo dilema se instaura. A questão religiosa é bastante polêmica e não pode ser

desconsiderada. Há quem questione o valor das discussões que envolvem religião e

sociedade, considerando muitas vezes o fato de sermos, ao menos teoricamente, um estado

laico. Todavia, crê-se que a legitimidade da discussão consista na influência do fator religioso

na construção do modelo de sociedade e seus reflexos na mesma. Um estado laico não propõe

a invisibilidade das religiões, mas o não privilégio de nenhuma. Entretanto, não é isso que

percebemos.

A criança negra terá dificuldade em afirmar suas identidades no âmbito escolar, tal qual

as crianças não negras que são de candomblé. Embora ambas sejam atravessadas pelo

preconceito, objetivamente a criança negra e de candomblé vivenciará o preconceito de forma

intereseccional.41 De qualquer maneira, as crianças e jovens de candomblé negras ou não

negras serão marcadas por um preconceito decorrente da gênese da religião dos òrìsà

(orixás).

Como qualquer manifestação de origem negra, o candomblé por sua ascendência já

tem voltado para si olhares preconceituosos. Além de somar-se ao preconceito em questão, a

discriminação por conta da forma de religiosidade não cristã. Nesse sentido o candomblé é

marcado pelo preconceito racial de marca e pelo preconceito de cunho religioso, assim como

parte de seus adeptos. Discriminado porque é considerado “coisa de preto” e por não ser

cristão.

A criança de candomblé interage de maneira bastante significativa com a cultura afro-

brasileira. A respeito dessa interação, pensando não somente essas fases específicas do

desenvolvimento humano, mas todos os adeptos, assim nos afirma MUNIZ SODRÉ (2006):

“Quanto ao fiéis, cultuam e incorporam as tendências ou possibilidades simbolizadas por cada um dos princípios-deuses, isto é, pelo poder dinâmico de movimentação e criação. Entre os humanos e essas entidades múltiplas, existe uma diferença de potência, já que são estas ultimas não-mortais e mais poderosas. Entretanto, ocupam todos o mesmo universo e pertencem a um mesmo plano de discurso – não se acham num “além”.” (SODRÉ, 2006, p.175)

[41]

Nesse sentido o conceito faz atribuição aos diversos indicadores étnicos ou culturais que serão utilizados como argumentos

para o preconceito. No caso das crianças negras de candomblé, elas sofrerão o preconceito de marca, decorrente de seus traços fenotípicos, além do preconceito decorrente da cultura e religiosidade na qual está submersa.

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Com tal afirmação, SODRÉ (2006), de alguma forma faz referência ao que pensamos quando

consideramos a relação dos mitos que fundam e movimentam o candomblé, com a construção

das identidades de seus adeptos. Dessa maneira, pretende-se acentuar a profundidade da

negação a que essas crianças e jovens são submetidos. A interação dos adeptos com essa

forma de religião se dá, sobretudo, por meio dessas narrativas romanceadas que já

investigamos em capitulo anterior.

Enquanto no espaço familiar e do terreiro as crianças e jovens de candomblé louvam

suas identidades negras, como herdeiros de uma afro-brasilidade que seus ancestrais lhes

deixaram, na escola, em geral, esses mesmos valores são absolutamente negados. É contra

esse entre-lugar, o espaço da louvação e da negação, que o movimento negro e outros

movimentos sociais travam suas lutas, quando se trata de educação. Pensa-se um currículo

que seja mais democrático para as culturas que se apoiam para construir efetivamente a

cultura brasileira. No processo de (re)pensar o currículo e as relações da instituição escolar

com a construção das identidades dos discentes, deve-se considerar sobretudo o quanto as

desconstruções que decorrem do não reconhecimento efetivo da diversidade como algo

valorável prestam um desserviço à sociedade brasileira.

A relação entre escola e sociedade é inegável, uma vez que a primeira serve a segunda.

A instituição educacional é espaço de construção enquanto a sociedade e seus rumos podem

ser entendidos como o reflexo de valores construídos. Ressalta-se que o âmbito escolar

também partilha dessa última atribuição. Dessa maneira, considero que escola tem suas bases

ancoradas na sociedade a quem ela serve, da mesma maneira que é mais coerente aos

pressupostos dessa sociedade que a escola se mantenha com as características que lhe

convém.

A lei 10.639/03 pretende estreitar os laços entre as culturas africana e afro-brasileira e a

pratica educacional. Compreendemos que, algumas vezes, as leis surgem para negar questões

que frente ao bom senso seriam óbvias. Descremos que a mudança da sociedade, no que

tange ao racismo se dê em decorrência de leis. Acredita-se, no entanto, na contribuição destas

para o desenrolar das ações antirracistas, mas sobretudo consideramos que o caminho

verdadeiramente eficaz para a desarticulação do racismo seja o conhecimento das frágeis

bases que o sustentam.

Ao garantir, como propõem as diretrizes curriculares nacionais, o direito e igualdade de

acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos os cidadãos, por meio da valorização

da face histórico-cultural dos afro-brasileiros e dos africanos, o processo educacional brasileiro

tem a primeira grande oportunidade de comprometer-se com a educação das relações étnico-

raciais.

É necessário que o racismo seja desarticulado e que as várias culturas sejam

contempladas no espaço âmbito da educação, para que sejam possíveis as reconstruções do

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imaginário da sociedade. A infância e a juventude são a personificação do futuro e, dessa

forma, mostram-se a esperança de uma efetiva reconstrução nos valores dessa sociedade.

Oportunizar condições para que esse estreitamento, seguido de releitura de valores, seja

possível é o que pretendemos que a escola em uma nova abordagem possa promover.

Coibir a prática do racismo no espaço escolar exige da comunidade docente um amplo

trabalho, decorrente de muitas reflexões, obviamente apoiadas pelo governo, acompanhada do

pressuposto de uma sociedade democrática e a consciência de um estado laico. Como

percebemos o racismo vez por outra se acomoda no seio da sociedade, tal qual o faz dentro da

escola. Apropriando-me dos ditos populares, podemos dizer que este lobo veste-se com a pele

de cordeiro da naturalidade.

Não se mostra interessante, para os valores excludentes e homogeneizantes que a

sociedade propõe, a formação de uma camada crítica desses valores. Nesse sentido, seria a

escola e a sociedade uma via de mão dupla, dando a suas estruturações um caráter de

dependência mútua. Simultaneamente elas dialogam e legitimam a existência de seus valores.

Ao dizer que a escola é espaço de construção, sugerimos que independente de quais

referenciais norteiem suas práticas, o papel de desenvolver a possibilidade de construção será

desempenhado. Para o bem ou para o mal, a escola sempre contribuirá com as construções.

Cabe a escola não invisibilizar o racismo, como se tentou fazer por muito tempo na

sociedade brasileira. Enquanto espaço de construção, pode ser a escola também um espaço

de desconstrução, à medida que se permite discutir o racismo, assumir sua existência, expor

seus danos e propor sua desarticulação. Em uma proposta de sociedade antirracista romper

com o modelo homogeneizante que se mantém vinculado a ela, promovendo a diversidade.

Dessa maneira, muitas histórias serão reescritas. Ao coagir o racismo, identidades antes

negadas poderão ser então afirmadas. Dessa maneira a reconstrução dos imaginários se dará

naturalmente.

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Conclusão

Reconhecendo as mazelas sociais do país, em nossa análise, optamos por fazer um

recorte em um dos grandes males da sociedade brasileira, ou seja, o racismo. Compreendido

como repulsa e até mesmo ódio direcionado a pessoas marcadas por indícios de um dado

pertencimento racial, o racismo configura-se também como um aparato de ideias e imagens

que pretendem estabelecer uma hierarquização dos grupos humanos a partir de referenciais de

suposta superioridade e inferioridade.

A lei 10.639/03, almejando intervir e combater à realidade social brasileira que é

assombrada pelo racismo, vem pelas vias da educação, propondo, indiretamente, o repensar

de dadas ideias, no que tange à compreensão da história, e sobretudo da cultura africana e

afro-brasileira. Todavia, como nos parece evidente a partir de um olhar panorâmico sobre os

rumos sociais observáveis, é muitas vezes embarreirada por noções que circulam muito

naturalmente, em decorrência de pressupostos que habitam o senso comum e pensam o Brasil

a partir de uma lógica que aponta para uma sociedade sem o que se chama de uma linha de

cor. Ou seja, à medida que se observa essa sociedade, considerando não haver empecilhos

legais que impeçam a ascensão social por questões étnicas/raciais, se incute uma suposta

democracia racial, que será tratada como mito, não estando este vocábulo em consonância

com a noção de mito que observamos enquanto narrativas orais. Nesse sentido atribui-se ao

referencial a perspectiva de mentira. Constituído como corrente ideológica que nega a

desigualdade a partir de um pressuposto racial, crendo-se então que há igualdade entre negros

e brancos no que tange a oportunidades e tratamentos na sociedade, o mito da democracia

racial mostra-se um dos principais responsáveis pela sobrevivência do preconceito racial no

Brasil.

A partir da observação da construção de conhecimento e identidades no âmbito do

terreiro de candomblé, pensamos a escola enquanto espaço para construções de natureza

semelhante. Construída inicialmente em prol de uma elite, já que o acesso a ela se restringia

ao referido grupo social, essa instituição que exerce a função social de difundir a cultura, além

de retomar e apresentar às gerações mais recentes os grandes feitos da humanidade, muito

oportunamente parece anular, por vezes, uma história de glórias encenada por personagens

negros, estando os mesmos sempre entre os ditos referencias menores.

Como pretendíamos no capítulo primeiro, pensando as imagens e referenciais africanos

e afro-brasileiros na educação, refletimos acerca de África e da afrobrasilidade na escola e os

reflexos que se produz a partir de então. Como já foi constatado por outras análises,

evidenciou-se a deficiência curricular. É apresentada à população negra uma história que não a

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insere. Trata-se de uma memória que forma a partir da negação, uma vez que a história

ensinada insistentemente nos faz referência ao negro ocupando o local dos coadjuvantes.

Observando, sem a necessidade de minúcias, comprova-se facilmente que, nos diferentes

estágios da escala do processo educacional no Brasil a ode aos valores sociais e culturais da

Europa e dos Estados Unidos da América assume espaço central. Histórias das Áfricas, suas

tradições e culturas são, quando não abominadas, reduzidas a estereótipos, oferecendo-lhes

uma face esdrúxula. Não é possível que se pense a educação desvinculando-a da cultura e da

observação crítica da história que a constrói, assim como a sociedade na qual ela se insere. Na

atualidade, não mais nos cabe o exercício de uma educação colonizada. Diante destas

percepções e valendo-nos da ideia que se faz centro dessa pesquisa, na busca de soluções

para o conflito concluímos que as vias do multiculturalismo mostram-se relevantes alternativas

de desarticulação da cultura da discriminação. Nesse sentido a discriminação admite o caráter

de normalidade. O sistema de oposição entre nós e os outros, sendo o âmbito do “nós”

ocupado por aqueles que em uma escala hierárquica acabam por se sobrepor aos “outros”, a

partir de um modelo eleito como padrão, torna-se frequente e intenso, equilibrando-se no não

reconhecimento da diversidade, podendo ainda se pautar em uma hierarquização que aponta

sempre o outro como inferior, à medida que manifestam-se nele dadas identidades,

posicionamentos e posturas. Em face de naturalização, a crueldade decorrente da segregação

que os atos discriminatórios provocam são invisibilizados.

Ao reconhecermos efetivamente a dificuldade da escola em interagir com a pluralidade,

justifica-se a tendência a silenciar as diferenças e consequentemente o enorme conforto da

instituição escolar diante da homogeneização. Dessa forma, mostra-se a valoração do

homogêneo como grande responsável pela cultura da discriminação, conceito trazido por

CANDAU (2005), uma vez que tudo que se constitui de maneira oposta ao padrão estabelecido

é negado. Nesse sentido, a construção de caminhos sólidos para que a noção de diversidade,

em todos os sentidos, seja, de fato, desempenhada entre os valores cultuados pelos discentes

é o grande desafio que a escola brasileira é convidada a enfrentar no momento sócio-cultural

que a contemporaneidade nos apresenta.

Compreendendo o multiculturalismo, dando ênfase a sua face crítica, como uma

corrente, além de estratégia, que almeja o reconhecimento e representação da diversidade

cultural a partir dos questionamentos das construções dos preconceitos, estereótipos e dos

conceitos de diferença a partir do pressuposto de inferiorização, concluímos que seja ele de

grande eficiência no processo de reorganização que compreendemos ser necessário ao

sistema educacional brasileiro. Considerando o desafio de construção de caminhos sólidos

para que se desempenhe plenamente a noção de diversidade e fotografando o recorte étnico-

racial, que essa pesquisa se propôs, em aliança com a noção de multiculturalismo, nos

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afinamos com a ideia de uma pedagogia da diversidade, ideia que MUNANGA (2010) nos traz.

No que tange a diversidade, ressaltamos a compreensão dela em comunhão com a

perspectiva de pluralidade, entretanto não construída em tom desenfreado, mas como o

reconhecimento das diferenças desapegado de hierarquizações decorrentes disso. Tomando

como centro a questão racial, percebemos a emergência da descolonização das mentes.

Com base nos direcionamentos que a pedagogia da diversidade nos sugere, assim

como na esteira da compreensão que temos de multiculturalismo, reafirmamos a necessidade

de uma literatura para crianças e jovens que traga a cena personagens e principalmente

figuras que ocupem o referencial de heróis negros, dada a importância dessas personagens na

construção do imaginário infantil e juvenil. Nesse sentido em decorrência do percurso que

fizemos no capítulo segundo, se conclui que como vínhamos supondo, as narrativas africanas

ou afro-brasileiras que se encontram na gama de histórias denominadas mitos yorubás são

capazes de suprir essa carência. O ponto central dessa pesquisa foi, justamente, o encontro

entre educação e cultura. Crendo no sucesso desse encontro para a reafirmação das

identidades negras, que por tantas vezes foram negadas na história desse país e

consequentemente na construção de uma sociedade mais igualitária, partimos para o alcance

do intento, da arma que se crê para o estabelecimento de mudanças, no caso, a educação.

Investigamos e concluímos que as narrativas orais africanas e afro-brasileiras, uma vez que

alguns mitos são referentes a questões diaspóricas, são grandes responsáveis pela construção

de identidades a partir de nobres valores de comunidades africanas recriadas no Brasil, a partir

dos candomblés.

No que tange à literatura oral, podemos fazer referência a sua funcionalidade, pautada

na finalidade de explicar, justificar e entreter. Nesse sentido, o recorte principal, de acordo com

a pretensão dessa pesquisa, é feito a partir da construção do imaginário infantil em interação

com a palavra falada. Fruto da memória, o mito yorubá em dada instância age também como

base de sustentação de uma dada cultura e modelo de sociedade. No encontro entre voz e

letra do ato de contar, ele deixa indícios de sua potencialidade nessa sociedade que prima pela

escrita. É nessa potencialidade que apostamos, crendo no sucesso da investida na instituição

escolar após observar o quanto ela é frutífera nos terreiros de candomblé, que são também

espaços de construção de saberes.

Crendo-se terreiro como espaço de construção e vislumbrando o potencial da contação

de histórias nesses âmbitos, é valido ressaltar a função das contadoras e contadores de

histórias nessas comunidades. Comprovamos, a partir da comunidade do Ilé Àse Opo Àfonjá

(Ilê Axé Opô Afonjá), que são eles verdadeiros mestres que auxiliam intensamente no processo

de iniciação e ou inserção de crianças, jovens e adultos na lógica desses grupos. O ato de

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contar e recontar as histórias daqueles que a partir dali são apresentados como seus

ancestrais são meios de nortear os indivíduos nos caminhos que a vida venha a lhes

proporcionar. Como referenciais dessa função, na comunidade afro-brasileira citada, podemos

citar a entrevistada, Mãe Stella, que foi uma criança de candomblé e atualmente ocupa o lugar

da sábia anciã norteadora e da recentemente falecida ebomi Detinha de Sàngó (Xangô), que

muito colaborou com essa pesquisa, a partir de conversas informais durante a visitação ao

terreiro. Ebomi Detinha carregava consigo a marca da maestria na contação de histórias e da

sabedoria evidenciada através delas. Sendo, também, essas mulheres, como apontamos no

terceiro capítulo, intelectuais orgânicas. A respeito das apontadas narrativas, a memória

herdada, como se chamará essa memória que se estrutura a partir da socialização dos

religiosos com o histórico dessas etnias, assim como do processo de travessia e de

reconstrução da história de seus antepassados, promove um processo de identificação com

uma ancestralidade negra, digna de valoração, como não se percebe nas histórias ocidentais.

E é nesse conjunto que reside a grandiosidade do trabalho com esse material nos terreiros de

candomblé e, de acordo com nosso desejo, nas salas de aula desse país.

A observação da comunidade do Ilé Àse Opo Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá) e da interação

de todo o grupo, em especial das crianças e jovens com a oralidade, reconhecendo a força da

palavra nos candomblés, considerando o poder de gerar e desconstruir que lhes são

conferidos; a mitologia yorubá que veicula e se sustenta nas nuances da oralidade e a

revivência dessas histórias no âmbito do terreiro e indiretamente em suas vidas foi fundamental

na constatação da eficácia dessas narrativas na construção de um imaginário, de uma visão de

mundo que se difere daquela que a cultura da discriminação e a escola com seu caráter ainda

excludente propõem de maneira direta ou indireta. Dessa maneira concluímos que as

narrativas yorubás em questão podem colaborar intensamente com a desconstrução de

paradigmas preconceituosos e excludentes que circulam rotineiramente pela sociedade, à

medida que oferecem uma série de noções de civilidade, ética, caráter, bom senso, entre

tantas outras de grande relevância para a construção de uma sociedade mais igualitária. Além

do que, de acordo com o que foi observado, podemos dizer que a experiência com a palavra e

a contação de histórias, tal qual as comunidades de terreiro costumam experimentar, soma

profundamente com a construção de uma pedagogia da diversidade, ao descentralizar as

noções ocidentais que comumente são propagadas pelos contos, fábulas e demais narrativas

direcionadas às crianças e jovens. Ao oferecer um olhar construtivo e relevante advindo de

matrizes africanas, automaticamente se propaga um olhar que propõe um enfrentamento a

uma concepção degradante da cultura e tradição africana e afro-brasileira, assim como se

reconhece também o valor dessas narrativas que são responsáveis pela construção de tantos

imaginários.

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A respeito das obras de literatura para crianças e jovens, considerando-as no entre-

lugar de voz e letra, esse espaço de interseção mostra-nos exigir apenas um trabalho

responsável, compromissado, para que se alcance o intento. Como já foi dito anteriormente, o

processo em questão não consiste na apreciação aleatória das obras, mas sobretudo o

estabelecimento de pontes que promovam paralelos com questões culturais considerando

inclusive paralelos com a cultura brasileira, raciais e sociais, possibilitando assim a auto-

afirmação dos negros e negras herdeiros desses valores e o reconhecimento do valor dessas

tradições culturais por toda a sociedade, independente da relação de pertença que se

desenvolva. Dessa maneira, constata-se que ao se considerar o projeto de uma educação

plural que vise transformações a longo prazo, a partir de uma visão outra, de mundo e de

sociedade, além da auto-afirmação cultural de negras e negros, quebrando a lógica da

negação como naturalidade, essas narrativas cumprem com êxito a missão que se pretende.

Considerando as identidades como pretendemos no terceiro capítulo, entende-se que o

conflito, no caso que trouxemos, consiste nas contendas decorrentes do embate entre

louvação e negação de identidades negras, estando a escola no campo que nega. Nesse

sentido, a linhagem da pesquisa que acaba por se constituir como uma proposta de trabalho

pretende libertar a construção advinda da escola das marcas do sistema racista que se veste

de natural e sobrevive por meio de inúmeras práticas em seu seio. A instituição escolar ainda

não se mostra acolhedora para uma verdadeira manifestação de identidades negras, entretanto

reflexões como as propostas por essa pesquisa insurgem para corroborar com a desarticulação

do racismo, que como percebemos está intimamente ligado a construções do imaginário, que

podem ser desfeitas de maneira gradativa.

Atravessadas, em dados momentos, por um preconceito interseccional, no caso sendo

essa interseccionalidade estabelecida a partir do ser negra(o) e pertencer a uma religião de

matriz africana e por isso serem induzidas a se negarem duplamente, as crianças e jovens

negros e negras sofrem, por vezes, de maneira invisível aos olhos menos treinados, a

marginalização que a ausência de referencias negros provoca. São crianças que desde o

nascimento convivem com a sombra de discursos racistas que funcionam como demarcadores

de lugares, diante de toda a pressão que é inerente ao sistema imposto pelo racismo.

Almejando meios para se solidificar uma ruptura incisiva com os estereótipos que insistem em

colocar o negro, suas tradições e culturas entre os referencias menores, considerando nesse

sentindo o menor numa perspectiva de submissão a uma elite branca, os recursos pontuados

nessa análise, tais como: o multiculturalismo crítico em parceria com a literatura para crianças

e jovens, comprovam-se como atalhos bastante interessantes.

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Sendo assim, exalta-se aqui a memória, a contação de história e a leitura, de maneira

engajada almejando a desarticulação do racismo, o que não se configura em tarefa fácil, mas

tampouco impossível. Crendo na educação como maior arma para mudar o mundo e crendo

ainda nessa mudança como o resultado de uma série de processos, sugerimos a literatura,

nessas vias como forma de intervir na realidade, por vezes dura e cruel dessa juventude, com

a finalidade de promover a reconstrução de uma série de valores, o que se mostra uma nobre

possibilidade a partir da experiência apreciada nos terreiros de candomblé. Para descolonizar

as mentes é preciso que se repense a maneira como as lógicas se estruturam e reconstruir o

imaginário que se estruturou sobre a afrobrasilidade é uma questão de honra a todos os

antepassados negros que semearam o que na atualidade floresce como herança cultural afro-

brasileira. Frente a tudo que expomos no decorrer dessa pesquisa, e nesse sentido juntam-se

reflexões teóricas e observação em campo, podemos afirmar que a magia de contar e recontar

histórias ancestrais, que já se evidenciava desde o princípio das reflexões como geradora de

valores no âmbito dos terreiros de candomblé, é também uma grande possibilidade de recriar

valores em tantos outros espaços dessa sociedade. Podemos considerar que, por meio das

obras citadas, se tem possibilidades interessantes de trabalho, seguindo o traçado lógico que

estabelecemos no decorrer da pesquisa. Questões que vão desde a língua, passando por

cultura, religiosidade, história, tradição e literatura podem se tornar alvo de debates e motores

para a criação de novos valores referentes à cultura afro-brasileira, além de enaltecer vozes

negras e permitir a auto-afirmação de identidades culturais.

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APÊNDICE

Entrevista Ìyá Stella de Oxóssi – Ilé Àse Opo Àfonjá - BA

1)Jorge: Como a senhora começa a ter contato com as tradições africanas?

Ìyá Stella: Minha vó toda vida desde nova tinha muita entrada lá no Gantois, não tinha dia nem

hora para chegar e sair. Eu era menininha mesmo, então este contato já veio, ele já veio da minha vó. E a minha vó Maria Theodora era filha de africano. E como naquele tempo o africano quando o povo que ia pra lá pegar, pra pegar o dinheiro pra vender, como pra vender os africanos, então essa turma pegava os africanos e traziam pra vender no novo mundo. Europa, Brasil. Pra vender como material. E a minha vó chamava-se Maria vivia nessas condições ela estava lá, ela era adolescente e então alguém mandou que ela fosse ao cais do porto, chegou no cais do porto pra levar um pacote ela quis sair e não deixaram mais, falaram que ela estava vendida falaram: “você agora é nossa.” Então ela veio assim, veio pro Brasil, vendida. Aqui ficou e aqui produziu a família dela. Teve um marido chamado Konibabe e o nome o nome da minha bisavó era Maria de Konibabe. Então ela ficou ai fez a família dela. A minha vó tinha mais dois irmãos a minha avó Maria Theodora, uma chamada Damiana, outra Joana outro Joaquim e tem outro que eu não lembro bem o nome que ficou pelo Rio de Janeiro os outros ficaram aqui em Salvador.

2)Jorge: E como a senhora chegou no Afonjá?

Ìyá Stella: Caminho. Isso aí é uma história toda a ser contada né, porque eu ficava ouvindo dos historiadores a nossa história ser contada apenas pela boca dos outros. Quando chegou o branco que teve acesso a leitura chegou sabia essa história isso sempre me incomodou muito. O orixá nos ajudou a termos acesso a todas as informações até temos condições de voltar a África, de ver nossa história verdadeira. Eu sou descendente de africana como todo descendente de africano então qualquer doença, qualquer coisa anormal que aparecia era visita para o orixá. Então fui pra casa de santo para buscar a cura por lá com remédio com banho, com erva, com ebó, com tudo isso. Minha mãe faleceu eu estava com sete anos de idade, nisso a minha tia Arcanja de Xangô ficou tomando conta de mim e dos meus irmãos todos. Quando eu estava com uns 10 anos mais ou menos eu era diferente, não era normal de uma criança do meu tempo, tinha visões, conversava sozinha, era diferente. Então, além de me levar para o psiquiatra, pro médico que atende né, o psiquiatra, me levou também para o Gantois que era a casa de Mãe Menininha que era muito amiga da minha vó, da minha tia. Mãe Menininha chamava a minha tia de xará porque se chamava Menininha também. E lá Mãe Menininha cuidou muito de mim. (e começamos lá) passava dias com a minha tia tudo mais e a amizade foi crescendo. Mas as vezes não é o que queremos, as vezes tem um tratado lá de cima. Meu tratado era que eu cuidaria sempre do orixá e que não seria pelo Gantois que era casa de amizade e de família. Porque (...)[silêncio] meu próprio orixá me trouxe para São Gonçalo, Tia Aninha era madrinha da minha tia Arcanja, ela já tinha essa amizade de madrinha e afilhada eu fiquei aqui e aqui no ano de 1939 eu fui iniciada por Mãe Senhora estou até a data de hoje aqui. Todo meu contato já vinha, todo meu contato já era de herança de família

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mas depois meu orisà me trouxe para São Gonçalo. Aqui fui iniciada e agora estou na direção da casa.

3)Jorge: Então a senhora conviveu com o Axé desde a época de Mãe Aninha ou a senhora conheceu mãe Aninha, mas só veio a ter contato com o axé já na época de Mãe senhora?

Ìyá Stella: Eu vi Mãe Aninha duas vezes na vida. O primeiro Natal que eu estive aqui, eu era

garota e ela cuidava de minha tia. Eu vim aqui, conversei com Mãe Aninha e tem uma história que ela me deu uma maçã do pé do santo de presente. Eu parecia que estava com um troféu. (eu ficava) com aquela maça e depois de um certo tempo eu estava no Gantois. nesse tempo também. Eu me cuidei espiritualmente no Gantois depois que eu vim pra cá. Eu a conheci no Gantois depois ela faleceu. Ela faleceu em 38 e eu vim, me iniciei com Mãe Senhora.

4)Jorge: No percurso dos seus primeiros contatos com o Candomblé até a sua iniciação e mesmo posterior a sua iniciação, sempre foram presentes referências femininas. Grandes mulheres que estavam liderando um grupo. E elas foram referência para a senhora.

Ìyá Stella: Perfeitamente. Antes, no passado, antes do século XX as mulheres é que tomavam na realidade a frente o cuidado com os orixás porque os homens iam para as fazendas, para a roça, era a profissão dos alforriados iam fazer cada um sua função. E as mulheres ficavam em casa, iam ser babás, mãe de família, mas tudo em casa mesmo. Então uma babá, uma mãe, uma cozinheira tinha muito mais tempo de cuidar das coisas de orixá, de cuidar das coisas do que é sagrado. Foi o que aconteceu. Tanto que até que o que se tem de informações de como começou o candomblé, em Salvador, tem três referências, três senhoras da África chamadas Iyakalá Iyanasso Iyadetá. Todas lá do Reino de Oyó. Vieram para o Brasil e aqui nesse vai e vem tinha um lugarzinho onde elas atendiam as pessoas, era tudo muito velado, muito escondido ali, então elas três cuidavam das pessoas. Mas foi juntando tanto porque esse pessoal tem a característica de se unir. Eles se uniram tanto que até abriram um pequeno candomblé, não podia chamar candomblé porque até então faziam todos os rituais numa casa distante. Mas como a cidade cresceu eles saíram de lá da Barroquinha (e foram) para o Rio Vermelho, onde até hoje funciona a Casa Branca. E lá foi ficando e o Candomblé foi crescendo, e quando cresceu, outros iniciados tiveram necessidade de abrir a sua casa. Já tinha a casa Branca, surgiu o Gantois e depois o nosso axé, aqui, e outros.

5)Jorge: Nessa questão do movimento das mulheres negras nesse pós-escravidão, já que o negro estava tão marginalizado, foi nesse movimento de aproximação que surgiram as irmandades e confrarias religiosas? Como foi a relação das irmandades com as casas de candomblé?

Ìyá Stella: (Também, também, que) Para se assegurar era necessário pertencer a igreja católica. A maior parte delas (as negras de candomblé) fazia parte da irmandade nossa senhora do Rosário. Todas elas vinham sempre abrindo a abrindo procissão.

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6)Jorge: Neste percurso de afirmação do candomblé, em um dado momento o sincretismo era

necessário, entretanto depois se processou o rompimento com essas ideias?

Ìyá Stella: Isso. Sim, sim. A separação é simplesmente consequência da evolução nós e os orixás temos conhecimento e somos independentes. Sabemos que a nossa crença, a nossa prática religiosa é uma religião porque se você for procurar lugares que se fala sobre isso com propriedade, quando é que uma crença passa a ser religião? Quais são as características que tem? Vimos que não tinha necessidade de ter sincretismo. O que continua como sincretismo é vício da escravidão que não conseguiu se libertar. Nós temos a nossa teologia, nós temos a nossa sabedoria, nossos dogmas, tudo isso caracteriza qualquer crença como religião. Se você for pesquisar vai ver que nós temos tudo isso. E se você for descobrir, se for reparar, os sincretismo são duas crenças diferentes que se misturam nos procedimentos, de fazeres que no fundo agrada mas não satisfaz a ninguém, porque se você for ver a religião católica tem aquela pessoa que depois que passou por sacrifícios e que depois de santificaram, beatificaram enquanto que os orixás são comparados com os elementos naturais com a água, o fogo, com o trovão, com tudo isso aí que é vivo, é energia. Então orixá é energia. Então quando você vê a imagem de Xangô as características de Xangô que é algo tão profundo é caracterizado por um ocutá, otá que é a pedra de raio e se você for comparar ele com são Pedro é diferente. E aí tentar aprender profundamente sobre a nossa religião, ai sim, você podia pegar e ensinar a teologia da nossa religião. E ao entrar no currículo, vai longe também. Então SE pode falar com propriedade daquilo que é seu. Procurou, foi lá fundo no baú e descobriu com veracidade.

7)Jorge: A senhora se iniciou com 14 anos?

Ìyá Stella: Sim

8)Jorge: Então a senhora foi uma adolescente que viveu no Candomblé?

Ìyá Stella: Com 14 anos, naquela época, era criança ainda.

9)Jorge: era uma criança de candomblé, né? Fora dos muros do terreiro outras crianças sabiam que a senhora era de candomblé?

Ìyá Stella: Nem se falava nisso, o padre dizia que quem era de candomblé nem deveria ir a igreja, que ele não aceitava. Que quem era de candomblé era do diabo. Essas coisas foram tocando em mim e eu fui crescendo com esse sentimento de que meu orixá não é diabo. Eu comecei com 14 anos e aos 17 ouvi isso então eu não fiz guerra nem desmereci ninguém, mas a gente luta com as armas que tem, vê a nossa fé, a nossa força a nossa essência e mostra que é coisa boa. Que estamos lutando até hoje pra dizer que é coisa bela. O que eu sempre disse a eles quando tinha essa questão é que eu acreditava nos mais novos. Que o mais novo é sempre cheio de ideia os mais novos é que estão falando e dizendo o que quer. O mais novo é o que está na atualidade sabe o que é bom. Com os mais novos não tem mais aquele negócio de missa no dia de ogum, missa para santo Antônio. No próprio dia de São Jorge, no

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Rio de Janeiro, eu mesma saia daqui porque eu gostava da fofoca. Eu ia lá para o Rio de Janeiro para sair na procissão. Ogunhê! Falando Ogunhê. Aqui mesmo em Salvador, no dia de santa Bárbara o pessoal “Eparrei!” então imagina uma coisa dessas. Então Ogum é diferente, Iansã não é santa Bárbara é diferente, São Jorge é outro. Então podemos falar cada qual no seu momento. A fé tem que ser única e exclusiva.

10)Jorge: Com a lei 10.639/2003 as questões de estudos africanos, da cultura e tradição ganham destaque...

Ìyá Stella: Faz parte do currículo. Vou dizer pra você, meu filho, essa questão aí é recente, mas não começou agora não. Em 1930 Mãe Aninha saiu aqui de Salvador através de um secretário de Getúlio Vargas e conseguiu a libertação de cultos de matriz africana. Agora chama matriz africana para ficar mais leve, mas antigamente era chamado apenas de candomblé. Tinha o candomblé e a religião católica que era a considerada normal, né?

11)Jorge: Então se a gente pensar na questão da casa do Candomblé, nos hábitos, de uma

maneira geral, se pode pensar na oralidade, na contação das histórias do orixá...

Ìyá Stella: A oralidade é uma coisa! Eu agora me tornei escritora. Sempre gostei de escrever e anotar as coisas para não esquecer, e não sei se é ironia ou se é sorte, SEI me puseram na academia baiana de letras, tanto que eu já posso contar que é tradição escrita e tradição oral. No meu livro consta a pesquisa, como foram feitas. No meu tempo era oral, quando eu era garota. Depois quando eu cresci que a gente passava para a escrita. Quando eu escrevi meu primeiro livro, pedi para o meu amigo fazer o prefácio ele “Mãe Stella a senhora está escrevendo um livro e a tradição do Candomblé não é oral?” eu disse é rapaz, mas eu já descobri que o que a gente não registra o vento leva. Que quem conta um conto aumenta um ponto. Então o que está registrado ali é verdade, porque o que eu passo para você, você deduz de outra forma e já passa. Você está gravando tudo aí direitinho, mas quando perguntarem cadê o produto vão ver que é a minha voz e que fui eu quem falei tudo direitinho. Não é invenção, nem você ouviu uma voz e disse que era de outra.

12)Jorge: Então a palavra é um agente muito intenso no candomblé. É um agente de força.

Ìyá Stella: É, tudo que sabemos aqui... Nós não temos bíblia, não temos o alcorão, não tínhamos tantas coisas aí. Tínhamos o que? Nós aprendemos através das historias, dos mitos, as histórias de Xangô, os mitos de Xangô, tem cada coisa tão verdadeira que parece que você está vivendo, de Ogum também, de todos os orixás.

13)Jorge: Então o mito, ao contrário das outras percepções que pensam o mito como alguma mentira, no candomblé o mito não é uma historinha qualquer, o mito para o candomblé não é uma mentira, não é uma história sem fundo de verdade, ela tem um fundo moral, ela tem uma série de valores.

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Ìyá Stella: Perfeitamente. Os mitos (de) são histórias que você vai escrever depois dessas

historias que você aprendeu com sua tia, com sua avó e tudo mais. Então a diferença de um e outro é que História é o que se viveu e deduz (silêncio) presta atenção para não colocar coisa errada (risos)e o mito é a verdade verdadeira de tudo. Porque ele vem falar sobre a historia da fundação do mundo

14)Jorge: Crendo na proposta do mito e nas palavras essa pesquisa vem tentando avaliar, refletir justamente sobre a capacidade, a potencialidade do mito enquanto narrativa, de chegar a escola e oferecer ao jovem a criança, ao adolescente e porque não ao adulto, histórias. Contatos com essas historias africanas que vão além de uma fábula, de uma história simples, são histórias que vão além de um valor moral, ético, religioso. Então pela pratica do candomblé, pela sua vivência e contato com o mito com a tradição da oralidade a senhora entende o mito como uma forma de construção também? Como uma forma de aprendizado?

Ìyá Stella: Perfeitamente. Posso dizer que o mito é uma construção verdadeira que surge no

tempo que não se tinha registro das coisas.

16)Jorge: Então o mito que a senhora conta hoje foram contados por um mais velho?

Ìyá Stella: Sim, o mito é contado a pessoa iniciada. A mãe de Santo depois de viver a vida toda ali, conta um mito para explicar aquilo com que ela está lidando. Tem quizila de abóbora, por isso que a Iansã tátátá átátátá. A pessoa que ela tava rezando era proibido cantar quando a polícia chegou ela ficou tão assustada que a fortaleza da energia dela começou a transformar as pessoas em abóbora. Ai ela disse que não estava fazendo nada e “estou aqui com as minhas abóboras”. Risos. Então virou... risos... (não*) comer abóbora em homenagem a tudo isso.

17)Jorge: Então essas histórias com fundo moral e religioso vão construindo todo um imaginário das crianças de candomblé? Dos jovens de candomblé?

Ìyá Stella: Com certeza.

18)Jorge: A medida que se conta a historia que o mito está interagindo com as pessoas a medida que a criança sabe quem é o orixá e escuta história desses orixás essas histórias acabam de alguma maneira dialogando com a vida delas?

Ìyá Stella: Com certeza, você vai ver que tem uma comparativa com a gente. Ah, eu sou de

Oxossi e Oxossi era caçador ou eu sou de Ogum e você vai vendo o arquétipo, pelos arquétipos da pessoa de acordo com o mito de determinado orixá.

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19)Jorge: Então a senhora falava que os mitos em relação com a vida desses iniciados dessas

crianças que vão interagindo com o candomblé eles vão dialogando e sabendo o mito tem relação com o arquétipo. Como é que se processa?

Ìyá Stella: Veja bem, o grande mito de Oyá. Iansã é guerreira. ela se identifica com o raio, com o fogo, com a luz, o vento. Por isso então a gente remete ao arquétipo de Oya pessoas vivas, alegres, quentes. Quentes de natureza, capazes de dar uma resposta rápida. São pessoas rápidas também talvez se pode confundir com o próprio vento, tanto que Oyá em Iorubá quer dizer rápido. Por que o nome dela é Oyá? Porque o nome dela quer dizer vento e o vento sempre é rápido. Desde uma pequena brisa até um tufão, alguma coisa é rápido e difícil de se pegar, ninguém apalpa o vento. Se você faz a comparação de Oxum que é a deusa da beleza, da riqueza, da alegria, do amor. Sobre as pessoas de Oxum sempre dizem “ah, dengosa, essa é de Oxum”. O arquétipo das pessoas de Oxum são pessoas delicadas, dengosas, que gostam de fazer boas maneiras com os outros, que gostam de carinhar, acariciar, ser amorosa. São pessoas amorosas. Até uma coisa interessante, quanto os Ibejis. Temos Ibejis, né? São a representação dos gêmeos, os gêmeos são representados por crianças toda criança é inquieta né? Eles têm atos irresponsáveis a pessoa tamém quando está com a irradiação de Ibeji muda até o tipo da fala, de falar... Tudo isso são pessoas com o arquétipo de Ibeji que são responsáveis pela cabeça. São pessoas assim meio inconsequentes, assim meio abobalhadas, alegres assim como criança mesmo.

20)Jorge: A senhora falou algo que esta o tempo todo ligado a religiosidade, com orixá, com as práticas religiosas, que é a questão da natureza. Iansã com o vento, Oxum com a água. Quando se trata das questões do orixá, se trata, se pensa que se fala que se cultua, essas energias estamos falando de uma energia que é viva no mundo enquanto natureza.

Ìyá Stella: Natureza principalmente, o que vira nuvem o que é trovão. O encontro de uma nuvem na outra faz aquele estrondo né? A nuvem é um elemento da natureza cujo encontro dá aquele choque né e causa o fenômeno que é o choque dá aquele som. E quando Xangô a trovoada e o ronco da trovoada o choque Iansã fala o relâmpago abre de repente vem o som é como se fosse a própria voz do orixá falando. São essas coisas, você vê a batida de um ferro no outro você evoca logo Ogum pápápápápá e por aí a fora. Outra coisa é Ossãe, se você está no mato e se perdeu, se você está fazendo uma trilha e se perde você fala “Ossãe, meu Pai me leve, me rege Ewe o! Ewe o! Me bote no caminho certo.” Aí e a ver com a própria energia da natureza. Eu sou de Oxóssi quando eu entro no mato fechado firme eu sinto uma coisa diferente. Eu sinto aquela energia ali perto de mim.

21)Jorge: Então a gente pode pensar também que os caminhos da natureza como referência né de analise da natureza. É um outro caminho viável para que as questões das tradições africanas cheguem na escola, cheguem na educação? E aí se a gente vai pensar em algo sobre meio ambiente, sustentabilidade...

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Ìyá Stella: Perfeitamente, olha e veja bem. Eu soube ontem que vai acontecer um seminário

aí, um congresso sobre ecologia. Nada mais prático do que pensar o orixá que está presente na natureza. É a própria ecologia. Se você quer evocar Oxum quer dar um presente a ela você põe no rio. Agora o que ocorre é que tudo em excesso prejudica. Então se todo mundo quer dar um presente a Oxum e põe garrafas de bebidas, de perfumes né? Compra cristais que Oxum gosta, medalha de ouro e tal e tal então o material palpável, vidro, plástico, são coisas que no fundo a natureza não consome. A terra não consome o vidro. Fica acumulando e no final o fundo do rio está poluído. Então é isso que a gente tem recomendado muito que se você for dar oferenda para Oxum que você não jogue o vidro na água que são milhares de vidros o liquido evapora, mas o vidro fica ali. Então se você quiser oferecer bebida boa, perfume, a comida o próprio fundo do mar decompõe a natureza consome. E aí é comida para os peixinhos.

E o que mais que a gente pode fazer... Se você quer dar um presente a Xangô é interessante é que Xangô é representado além do trovão como por uma pedra fria um mineral ali está todo calor de Xangô. Às vezes a pedra é efeito de um vulcão que houve que surgiu a pedra de fogo, caiu esfriou e virou pedra ou quando o raio cai da terra que se chama eduará é a pedra de Xangô. Então é nessas coisas que se vê que fundamento tem que não é uma coisa aleatória. Não é de dedução são coisas verdadeiras que aqueles que negros que deixaram essa crença no Aye, na terra né, são pessoas que pensavam que tinham visão, com inteligência discernimento, a visão de passar para nós que ficou essa herança maravilhosa das coisas nascidas na África.

22)Jorge: Sobe essa questão da transição África-Brasil, aí pensando a questão do axé, Mãe Aninha fundou o axé sozinha? Era ela com outras mulheres? Existia algum homem? Alguma influencia masculina?

Ìyá Stella: Tem um livro chamado histórias de Odu, são mitos como Mãe aninha por exemplo,

fundadora daqui do Ilê Axé Opô Afonjá é descendente, como eu te falei, da Casa Branca que é o Ilê Axé Ia Nassô Oká. Que por sua vez é continuação do (candomblé) que eu te falei que era na Barroquinha e que depois saiu de lá. Então nesse tempo candomblé era uma coisa muito fechada muito secreto ne? E que ninguém tinha capacidade de dizer “eu vou abrir meu candomblé” dizia que era herança. Minha vó deixou, minha mãe deixou, pode ter uns casos desse. O que aconteceu também é que Mãe Aninha, filha de africano que era, foi fazer a obrigação de iniciação dela na casa Branca. E lá encontrou as senhoras africanas. E de lá morreu a Mãe de Santo de Mãe Aninha. (e de lá) teve a substituição. Quando a casa não é de família, através do jogo o orixá determina quem vai ficar no lugar daquele que faleceu. Nessa ocasião foi escolhida uma senhora que não era da simpatia, do amor de todo mundo, então o candomblé de dividiu. A Casa Branca se dividiu em 3 porções. A própria que ficou e mais duas que seguiram o Gantois. Mãe Nazaré... eu não me lembro mais... Mãe menininha tinha não sei quem mais antes dela. Saíram da Casa Branca e foram montar o Gantois. E lá surgiu essa casa, que tem nome francês né? Então ficou como o Candomblé do Gantois. E tinha o Candomblé de São Gonçalo. São Gonçalo era uma rua aqui. Aqui era muito parecido com a África, cheio de roça e Mãe Aninha conseguiu comprar esse terreno aqui pra fazer também a

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roça dela. Mas antes dela vir parar aqui, ela se afastou da casa de Candomblé dela que era a Casa Branca e foi para a casa de Tio Joaquim que era um negro também descendente de africano que acolheu. Como sempre, alguém sempre acolhe o outro e de lá levou para um lugar chamado Camarão que é lá perto mesmo. Depois ficou de um lugar a outro, na Barroquinha e depois ela comprou então essa roça (então) deixou de... quando não tem uma parada certa... é itinerante. Deixou de ser itinerante. Como era muito amiga de um senhor de Oxóssi descendente de africano, muito inteligente que veio da África pra o Brasil ficou aqui e se tornou brasileiro e aprendeu a falar o inglês ensinava até na faculdade. Ele tinha os alunos dele e os da feitiçaria dos búzios tinha um rapaz daqui que foi discípulo dele que jogava búzios ele ensinava também. Ensinou muita coisa da cultura africana aqui como era muito amigo de Mãe Aninha falou, vamos fazer como se fosse a África. Na África sabemos que cada orixá tem a sua tribo a sua cidade, tem Oyó, tem outras também e ele também quis fazer assim. Porque no dia da festa de Ogum, é na terra de Ogum que se faz a festa, de Xangô é a mesma coisa, Oxalá a mesma coisa. Como o lugar era grande ela dividiu muito bem desde a casa de Exu até a casa de Oxalá e até o culto aos mortos. Então cada orixá ela botou um pedacinho tudo na proporção tanto você vê que aqui nós temos três ciclos de festa. Temos o ciclo de festa que é de janeiro até março, depois o carnaval, depois o descanso. Temos de junho até julho e depois de setembro em diante até novembro então cada orixá tem seu tempo e templo diferente. Agora nós estamos no tempo de Xangô. São doze dias. Então tem as oferendas, tudo para Xangô. É como se fosse a história do próprio orixá que nós vamos desmanchando em atitudes, durante esse tempo aí com rituais. A de Oxalá é a mesma coisa são domingos em o primeiro das Águas de Oxalá, é uma replica do artigo que levaram ele como ladrão e que depois que descobriram que ele estava preso e que a cidade não andava mais, evolução, as árvores não davam mais frutos as mulheres sem parir sem nada foram fazer o jogo ninguém sabia que Oxalá estava preso então a cidade toda decaindo. Foi por isso toda cidade de juntou num dia para lavar Oxalá dar um banho nele uma coisa bem simbólica e isso vai ter Ogum, vai ter outras festas que Mãe Aninha fez.

23)Jorge: Então ela teve diálogo com outros homens como tio Joaquim?

Ìyá Stella: Com certeza, mas ela foi sempre a cabeça.

24)Jorge: Era ela quem tomava a frente?

Ìyá Stella: Eles eram auxiliares foram mestres. As vezes o filho passa o mestre superou bastante teve a vez dela abriu sem candomblé esse pedaço aqui nessa casa aqui especialmente tem cem anos, só este em são Gonçalo. Por isso que o candomblé evoluiu porque neste tempo onde as pessoas iam ajudar. Se tem algo na casa de outra pessoa eu digo que vou na casa de fulano ajudar. Levava até comida também, levava os animais para se comer, levava feijão e tudo era carroça não enchia a carroça e dizia “ah, eu vou levar para a casa de minha irmã”. De lá passava dias também ajudando e trabalhava, ajudava nas obrigações nesses dias todos e aí foi evoluindo que agora você vê uma casa como essa os homens aqui tem mais coragem para levantar casa de candomblé que as mulheres. As mulheres daqui quase não saem para abrir casa. Os homens, aqui tem muito Ogã, muitos

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cargos. O Ogã mesmo só pode ser homem. Mas tem a voz das mulheres, aqui é matriarcado. Então por isso Mãe Aninha criou aqui e nós estamos levando com fé em Deus e segurando a tradição na medida do possível, aqui na casa de candomblé não se fala em feitiço entendeu, que queimou, que como se diz “fulano que queimou minha filha” eu digo como é que queimou sua filha joga água (risos) Ele não tem porque queimar né? Se tem nosso protetor, nosso orixá que é da nossa cabeça por que eu vou ter medo de uma pessoa de má índole? E meu orixá deixar aquilo me atingir? Eu falo, você tá garoto e isso que você está é baixo astral, candomblé é uma religião e uma religião que não tem nada de mal. Magia ruim é uma droga. É você meter uma faca no outro. É você meter um revólver. É você roubar o outro. Entendeu? É deixar passar fome. Isso que é magia ruim. Mas eu chamar o nome do sagrado para estar fazendo mal para o outro é loucura. Ir para as drogas isso é queimação, maconha, crack... são essas coisas que não devem nem se pensadas numa casa de santo.

25)Jorge: Quando a senhora fala dessa divisão que Mãe aninha fez desses cultos isolados

esses cultos vão revivendo a historia de cada orixá de alguma maneira a cada celebração dessas é uma forma de vivência mitológica?

Ìyá Stella: Reprodução da mitologia africana é isso aí. No ciclo de Oxalá, nas águas de Oxalá, no final de setembro,tem as águas na sexta-feira, se faz oferenda para Oxalá, outro dia para Oxalufã no primeiro domingo oferecemos oferenda pra ele no segundo para os Orixás todos os Oxalás ali na palhoça como se tivessem na palhoça durante esse período ai botou água tudo limpinho né aí domingo fazemos oferendas a ele. No segundo domingo ele volta para casa no terceiro domingo é o dia do pilão. Então daí pra lá já vai partir para Exu então faz as oferendas para Exu depois vem a quarta-feira que é para Xangô dia do Ojá. Todos nós nos enrolamos no ojá, dentro do barracão. Deixa o Amalá no chão apanha o Amalá come todos juntos né, pedir união, né? E aí depois aí vem Ogum depois vem Omolu depois vem Papai Oxossi depois vem todas as Iabás depois vem a festa de Oxum separada, depois vem a festa de Iansã separada também. Iansã é bonita porque os homens ligados aos egun cantam fazem homenagem a ela. E quando vem a mulher que carrega mariô que ela misturada com egum e tudo. No dia de Oxum nós dividimos água, Oxum é mãe da água né? Então se canta e vai dando água pra todo mundo. Também é um ritual muito bonito. Omolu fazemos o Olubajé, nós fazemos tudo direitinho. Depois tem Iroko, todo candomblé tem um pé de Iroko e um pé de também ligado a Ia. No dia de Iansã, os homens pegam o Mariô entregam a Iansã cantam pra ela fazem uma homenagem porque ela é a única mulher que carrega o Mariô. Ela tem aquela relação com egun e o mariô é o que a gente usa para se livrar da irradiação. Então elas vão dançando com o mariô. Tem o dia de Oxum que é o dia que nós dividimos a água ela é mãe das águas. Omi torô omi omã ya comon fun moré. E então nós vamos dando água para todos no axé beberem da água de Oxum. É um ritual muito bonito faz parte da liturgia. Tem o dia de Omolu o ritual do Olubajé que é a segunda-feira seguinte de Oxum depois encerramos aqui com as festas de Iroko. Iroko sabemos que é outra nação, mas todo Candomblé de se preze tem um pé de Iroko e Apaoka que é coisa ligada as iás depois fazemos o presente das águas que é o presente de Iemanjá e aí encerra direitinho. No tempo que ainda existia sincretismo, tinha a missa hoje não há mais necessidade nossa missa é lá no mar e acabamos e vamos descansar até o próximo ano.

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26)Jorge: Mãe Aninha, além de pensar a recreação dessa pequena África aqui pensou

também a educação e a formação intelectual de seus filhos.

Ìyá Stella: O Candomblé felizmente está muito evoluído. Antigamente dizia que o Candomblé era como uma universidade. Aqui se aprende de tudo. Aqui é um Candomblé pobre, tem é muita gente. Gente sempre aumenta. Não é pobre não é tão pobre assim porque nós temos a graça de orixá. Mas não temos riquezas do mundo. Mãe Aninha se interessava muito pela educação. Ela botava a gente para ensinar aos mais novos, às vezes, ela mesma parava para ensinar. Ensinava como partia obi, essas coisas ela mesma ensinava e assim foi levando ela tinha uma coisa que dizia e que todo mundo reproduziu, ela dizia que ainda ia ver o Candomblé todo servindo a Xangô com anel no dedo, ela queria que todo mundo evoluísse e isso tem acontecido. Não vê você que é doutor aí. (risos)

27)Jorge: Então foi através do pensamento de Mãe Aninha que considerava além da questão religiosa o crescimento pessoal e intelectual dos seus filhos que se pensou aqui na comunidade aqui do Axé Opô Afonjá a questão da educação que deu origem a uma creche que levava o nome dela e que veio a se tornar hoje uma escola?

Ìyá Stella: Quando ela criou aqui uma mulher que era costureira era o máximo. Costureira. Hoje em dia é estilista, não é? Naquele tempo era costureira. Tinha as outras pessoas que estudavam e ela sempre incentivava isso. Ela sempre fazia isso para evoluir as pessoas. Aqui não tem muita gente desempregada, graças a Deus. Tem aqueles que não encontraram ainda trabalho de acordo com o caminho do que querem fazer de verdade, mas vagando não.

28)Jorge: E foi através dessa perspectiva dela de educação que se criou aqui a creche e a

escola?

Ìyá Stella: Foi, primeiro eu criei a creche, mas depois eu vi que não dava conta, era muita gente. Os pais tinham que sair para trabalhar e os meninos não tinham com quem ficar depois dos cinco anos tinha que sair da creche. Com quem as crianças iam ficar? Aí conseguimos criar a escola. Criamos essa escola aí que a princípio tinha convênio com o estado depois era estado e prefeitura, agora só prefeitura. Cada sala tem um nome de uma Mãe de Santo daqui conta uma historinha e tudo mais. Mãe Aninha era meu ídolo, eu adorava Mãe Aninha. Adorava as histórias que contavam dela era uma mulher de uma visão tão grande. Ela tinha uma barraca lá no centro histórico no Pelourinho ela ficava sentada e sempre vinha um e outro falar com Mãe Aninha, um dia ela viu passar dois homens carregando um caixão ela mandou parar perguntou o que era aquilo.

O que é isso rapaz? O que está acontecendo?

Eles responderam: Foi fulano que morreu.

E ela perguntou: Quem é fulano?

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- Um amigo nosso.

E ela disse:

- “Arreia” esse caixão aí e vamos providenciar um enterro decente para esse homem.

Mandou comprar flores, arranjar mais gente e conseguir alguma coisa para carregar o caixão até o cemitério. Foram da Baixa de Quintas a Barroquinha. Outra vez ela encontrou uma senhora que ela não conhecia a chorar no armazém do espanhol aquela discussão ela procurou saber o que era e a mulher dizendo que os filhos precisavam comer, mas não tinha dinheiro para pagar. E Mãe Aninha perguntou a ele porque ele não dava o pão a ela. E ele disse: Ela que tem os filhos dela que sustente não vou dar nada a ela não. Mãe Aninha tirou as argolas da orelha botou encima do balcão disse a ele:

-Segure para cobrar as despesas dela que amanha venho buscar o meu troco.

No dia seguinte ela voltou pagou o pão da mulher e levou as argolas de volta. Deixou as argolas como fiança. (risos)

Uma pessoa dessas não é qualquer pessoa. Pagava casa pra uns, quantas casas aqui nesse terreno foram doadas. Não tem onde ficar dá um pedacinho de terra. Aqui já foi refúgio de político no tempo que político tinha que fugir. Como aqui é mato, eles vinham e ficavam escondidos na casa de Oxum e de outros santos aí, para a polícia não dar encima. E eles confessam mesmo hoje alguns já morreram, mas outros ainda estão aí e dizem “Eu já me refugiei aqui”. Ela se deu ao cuidado de sair daqui através de Oswaldo Cruz, Jorge Amado era deputado, e um outro rapaz daqui Jorge e foi para o Rio de Janeiro atrás de Getúlio Vargas para pedir a ele que deixasse ela fazer o Candomblé dela em paz. O povo de Candomblé em paz. E aí ele baixou um decreto naquele tempo dando liberdade de culto. E aí outros foram tomando coragem e aí hoje nós temos secretaria disso e daquilo e as coisas foram evoluindo.

29)Jorge: Talvez não se perceba o quanto de influencia há dessa ìyálòrìsà nesse movimento

de combate a intolerância religiosa que vivemos hoje.

Ìyá Stella: Hoje já existem pessoas do ministério que são ligadas ao àse então cada um vai evoluindo de acordo com a sua crença cada um vai evoluindo com aquilo que tem. O chefe de polícia dizia assim: Fecha o Candomblé e fechava eu era garota e via no jornal as Mães de Santo com atabaque na cabeça para ir para a polícia. Eu agora que estou como ìyálòrìsà já vi movimentos para retirar peças de Candomblé que estão apreendidas com aberrações. O facão que matou não sei quem, a cabeça de Lampião e, felizmente, nós fomos tirando aos pouquinhos no início desse ano tiramos o restinho que sobrava. Tiramos de um Museu da faculdade de medicina e agora está no Museu do Negro. Tudo direitinho lá.

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30)Jorge: Outra questão é que Mãe Aninha mesmo não tendo contato físico, pessoal com toda a atual comunidade do Opo Àfonjá ela sobrevive na memória dessa comunidade.

Ìyá Stella: Ela é imortal, é uma referência.

31) Jorge: As coisas que ela dizia, os projetos que ela almejava, os direcionamentos tanto

religiosos como sociais dialogam com a vida das pessoas daqui?

Ìyá Stella: Com certeza. Por causa dela nessa relação com a memória é que temos aqui um museu com objetos dela: contas, saias, a cadeira que ela sentava. Eu mandei fazer uma réplica d fogão daquele tempo, panela de ferro e uma série de coisas está tudo lá no museu. Temos a biblioteca com alguns livros antigos, agora com internet quase ninguém mais usa a biblioteca, mas a nossa está aí como referência. (risos) temos essa escola e agora recente há uns dois anos ou três eu fiz a casa do Alaka. Alaka é o pano da costa africano. Temos o tear a filha do mestre que fazia isso veio aqui ensinar a fazer através do Mauá. Já tivemos aqui oficina de costura, agora todo mundo tá colocado na vitrine, tem casas só pra isso, mas antigamente aqui tinha a Prazeres que costurava. Eu fazia ela costurar, era uma forma dela ganhar dinheiro. Toda casa de candomblé tem uma costureira que ficava fazendo as roupinhas. Agora virou escola de desfile, cada obrigação é uma roupa nova. (risos)

32)Jorge: Então tudo isso que a senhora vem fazendo são reflexos de Mãe Aninha?

Ìyá Stella: Perfeito, são reflexos de Mãe Aninha. Mãe Senhora foi uma grande figura também filha de Mãe Aninha, mas tem a questão da evolução da cidade. Na época de Mãe Senhora a cidade tomava outro rumo. Mãe Senhora ficou trinta e tantos anos Mãezinha só teve tempo de ficar sete anos. Mãe Bada ficou um ano porque já era velhinha e eu tô aqui a trinta e tantos anos também, já estou ficando uma Mãe Senhora. (risos)

33)Jorge: Mãe Senhora foi filha de Mãe Aninha. Mãe Bada também?

Ìyá Stella: Foi, era irmã de dona Mira, que era irmã de santo de Mãe Aninha Tinha o cargo de

Bada Baro uma espécie de conselheira. Tanto que Mãe Aninha a chamava de Mãe. Interessante, né? Teve Ondina que foi a ìyákekeré da casa, Mãezinha, foi Iaquequere no tempo de Mãe Aninha. Foi a minha ìyákekeré ficou aí durante uns anos, ela tinha casa o Rio de Janeiro também. Foi embora e eu tomei conta do lugar. Mãe Senhora teve uma grande representatividade na questão intelectual do Asè. Aqui dava muito escritor. É uma casa de Xangô, não é? (risos) Dá muito escritor. Eles a levaram daqui para o Rio de Janeiro em um ano que eu não me lembro mais qual foi para ser Mãe Preta de lá. Tinha um busto dela lá em Campo grande, não sei se ainda tem, ou se já tiraram. Mãe Preta era referência também. Desde Mãe Aninha desde os filhos dela. Que ela queria ver os filhos formados, você vê aí tem médicos, doutores, tem tudo aí.

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34)Jorge: A escola é aberta a outras crianças que não a do Afonjá ou é fechada?

Ìyá Stella: De jeito nenhum, mas uma coisa que aconteceu quando era nomeado pela prefeitura ou pelo estado quem vinha via a referencia de axé mas antes de começar queriam rezar “Pai Nosso que estás no Céu”. Eu disse: Perai, perai não. Você não vai ensinar Candomblé, mas não vai enfatizar uma religião que é contra a nossa, nossa prática. Então não faça nada. Aí pergunta, mas faz o que? Não faça nada. Mas agora já cantam o hino de àse, faz teatrinho com os mitos. O mestre Didi deixou muitos mitos para eles, que ele gostava muito dessas coisas. Ficaram muitos mitos dele aí. E professores que transformaram tudo isso em livro, teatro, peça. Agora eles escolhem o mito para a peça, para a social mesmo da coisa.

35) Jorge: O mito também está ligado as danças, a alguns gestos e movimentos próprios dessas danças. Então o candomblé também tem o corpo como linguagem?

Ìyá Stella: Pois é. Desde iniciado se tem responsabilidade. O nosso corpo é um templo. E esse templo sente o que nós fazemos com ele e ele também é o veículo que vai e volta com nosso orixá. Então uma das formas que nós temos que homenagear nosso orixá é prezar nosso corpo. Se você ver um determinado cântico de Oxossi ele tem a intenção de que você vai caçar, se você vai cantar para Ogun, Oxalá a mesma forma, cada tempo desse é uma forma de cultuar nosso orixá, com o corpo, com as danças com a música e com as letras. Por isso é preciso aprender um pouco o mínimo de ioruba para saber o que está cantando para o orixá. Porque assim pode fazer uma troca de palavras e falar um palavrão para o orixá. Cantam: “ìyá abere, ìyá abere o” . Aberê é prostituta. Entendeu? Coitada de oxum. (risos) Então a dança é a mesma forma de cultuar. Até para os mortos você canta. O batizado você canta, depois é lindo. Você canta o nome. Coisa muito interessante. Tudo para nós é cantado. E no momento que o yawo é iniciado que ele recebe esse novo nome. Ele recebe junto com esse novo nome uma missão. Uma nova historia, um novo caminho.

Jorge: Obrigado. Benção Mãe Stella!

Ìyá Stella: Meu pai abençoe. Traga boas notícias. Quero o retorno de tudo isso que você pesquisou aqui.