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A MAGIA DO CONTAR E RECONTAR HISTÓRIAS ANCESTRAIS NA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA: RECRIANDO VALORES
Jorge Luiz Gomes Junior
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-raciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Relações Étnico-Raciais
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Luiz de Souza Costa
Rio de Janeiro Maio/2014
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A MAGIA DO CONTAR E RECONTAR HISTÓRIAS ANCESTRAIS NA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA: RECRIANDO VALORES
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações
Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Relações Étnico-Raciais
Jorge Luiz Gomes Junior
Aprovada por:
___________________________________________ Presidente, Prof. Sérgio Luiz de Souza Costa, Dr. (orientador),
___________________________________________ Prof. Maria Cristina Giorgi, Dr.
___________________________________________ Prof. Bruno Rêgo Deusdará Rodrigues, Dr. – (UERJ)
Rio de Janeiro
Maio/2014
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Ádupé (Agradecimentos) Agradeço inicialmente a Olorum (Deus) e aos òrìsà (orixás), em especial a Esu (Exu), princípio do movimento e da comunicação, a Osala (Oxalá) o sopro da vida, a Yemoja (Iemanjá) senhora das cabeças e a todos os òrìsà (orixás) e ancestrais que permitiram que esse trabalho, posicionado entre o sagrado e o científico, em prol de um uma sociedade mais democrática e pontuada com princípios da equidade, acontecesse. Aos meus pais, minha família e amigos, em especial a minha mãe, Tânia Regina, que desde sempre confiou em meu potencial, incentivou meus projetos e me auxiliou no trajeto deles. Ao professor Dr. Roberto Borges, que ao se permitir sonhar sem tirar os pés do chão, e sempre com muita atenção, cautela e dedicação a causa que gera todo esse movimento de enfrentamento ao racismo em um núcleo dentro desta instituição permitiu que cada de um de nós, discentes desse programa realizássemos um sonho pessoal. Ao professor Dr. Sergio Costa, meu orientador, pela atenção e dedicação dispensada à produção desse trabalho, colaborando sempre. À professora Dra. Cristina Giorgi que desde sua participação na banca de qualificação dessa pesquisa mostrou-se crente nessas ideias, incentivando o progresso desse estudo. À Mãe Stella e ao Àse Opó Àfonjá (Axé Opô Afonjá) pela acolhida e contribuição primordial para o desenrolar desse trabalho. Agradeço imensamente aos amigos e amigas que conquistei ao longo desse processo de pesquisa, com os quais as trocas foram fundamentais para o crescimento nessa área do conhecimento, em especial a Neidjane Gonçalves e Katia Silva, companheiras de todas as horas, pares para discussões bastante enriquecedoras e Patrícia Rodrigues, que, além da companhia e debates valorosos, foi uma ajuda imensa na transcrição da entrevista. Vocês não sabem como foram relevantes nesse processo.
v
Dedico esta pesquisa a todas as ìyálòrìsà (mães de santo)
do Brasil e a todas(os) aqueles(as) que reconhecem o
valor da contação de histórias nas casas de candomblé e
fazem dessa uma prática cotidiana. Em especial à Mãe
Stella de Òsóòsí (Oxóssi), um farol, no mar revolto das
complexidades da existência, sempre pronto a oferecer um
norte àqueles que chegam às terras de Sàngó (Xangô) que
foram entregues ao governo da estrela azul da Bahia.
vi
"A educação é a arma mais poderosa que você pode usar
para mudar o mundo." Nelson Mandela
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RESUMO
A MAGIA DO CONTAR E RECONTAR HISTÓRIAS ANCESTRAIS NA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA: RECRIANDO VALORES
Jorge Luiz Gomes Junior
Orientador: Sérgio Luiz de Souza Costa
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Relações Étnico-Raciais.
A pesquisa propõe uma reflexão acerca da presença e força dos mitos religiosos na sociedade africana, de cultura yorubá, e seus ecos na reconstrução desses valores, na promoção da afro-brasilidade, a partir do desenvolvimento da religiosidade de matriz africana, nesse sentido, o Candomblé. Considera-se ainda o espaço dessas narrativas de base oral e de origem ancestral na construção da identidade das crianças de terreiro, que, em decorrência da fé que professam, dialogam com essas narrativas em seu cotidiano, assim como, também, a presença desses textos que habitam no espaço híbrido que se constrói entre a voz e a letra, na literatura brasileira para crianças e jovens. Nessa perspectiva, compreende-se a referida literatura como um instrumento capaz de recriar conceitos referentes ao entendimento e percepção da cultura africana e afro-brasileira. Diante da necessidade de promover uma releitura das referências culturais do país, à medida que se começa a questionar os valores enraizados e propagados pela sociedade, (re)avaliando/considerando a noção de afro-brasilidade presente nela e apoiados pela lei 10.639/03, pensa-se na possibilidade de apropriação da oratura de temática africana, para se recriar conceitos solidificados no imaginário de parte considerável da sociedade, a respeito da cultura e religiosidade afro-brasileira, oferecendo bases para o trabalho com a educação em uma perspectiva étnico-racial, abarcando uma lógica multicultural, além de possibilitar a autoafirmação dos herdeiros do axé no âmbito educacional.
Palavras-chave:
Educação para as relações étnico-raciais; Oralidade; Candomblé
Rio de Janeiro Maio/2014
viii
ABSTRACT
THE MAGIC OF TELLING AND RETELLING ANCESTRAL STORIES IN BRAZILIAN CHILD AND JUVENILE LITERATURE: RECREATING MORAL VALUES
Jorge Luiz Gomes Junior
Advisor:
Sergio Luiz de Souza Costa
Abstract of dissertacion submitted to Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais (Etnic-racial Relations Program of Postgraduation) - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, as partial fulfillment of the requirements for the degree of the Master in Ethnic-racial relations.
This paper proposes a reflection about the religious myth’s presence and force in African society of Yoruba culture and its echoes on rebuilding these values, furthering the Afro-Brazilian way, whereof the development of the African religiosity – the Candomble. It also considers these oral and ancestral narratives on the construction of the identity of children from the Candomble yards that, because of their faith, deal with these narratives everyday just like this text’s presence in this hybrid space constructed between voice and word, in Brazilian Child and Juvenile Literature. On this perspective, we comprehend this Literature as a way to recreate concepts referring to the understanding and the perception of the African and Afro-Brazilian culture. Towards the need of promoting a review of the country’s culture references, as you begin to debate the rooted and spread values by society, (re)evaluating/considering the Afro-Brazilian way presence and supported by law 10.639/03, we think about the possibility of borrowing the African theme rhetoric, to recreate concepts settled on most of the society, about the Afro-Brazilian culture and religiosity, offering bases to education in an ethnic-racial perspective, on a multicultural logic view, and also enabling the self-affirmation of axé’s heirs in the educational range.
Keywords:
Education for ethnic-racial relations, orality, Candomble.
Rio de Janeiro May/2014
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Sumário
Apresentação 01
Considerações Iniciais 08
I A África no contexto educacional brasileiro 12
I.1 A lei 10.639: uma década para além de somente uma lei 12
I.2 Encontros e saberes: por uma educação multicultural 21
I.3 O ser negro e a Literatura para crianças e jovens 25
I.4. Religiosidade, educação e cultura: os mitos para além das bases
de uma religião 28
II Literatura, oralidade e saberes: uma abordagem sobre a força das palavras e da contação de histórias no candomblé 33
II. 1 Ìtan Atowodowó: história imemorial - mitos yorubás, oralidade e literatura 35
II.2 A palavra nas sociedades africanas 38
II.3 Percursos da palavra: entre heranças africanas e ressignificações na religiosidade afro-brasileira 40
II.4 Entre voz e letra: os mitos yorubás e a literatura para crianças e jovens 42
III Crianças de terreiro e a contação de história s: a construção/fortalecimento de
uma identidade 50
III.1 Ìyálòrìsà: intelectuais orgânicas em uma religiosidade matrilinear 54
III.2 Entre a louvação e a negação - ser de candomblé na escola: uma
abordagem 63
Conclusão 70
Referências Bibliográficas 76
Apêndice - Entrevista: Ìyá Stella de Òsóòsí 79
APRESENTAÇÃO
Feliz ano novo!!! É o que mais se ouve no período que antecede o encerramento do
ciclo de doze meses que determina a passagem do tempo, que nesse sentido denominamos
ano. O final do ano carrega consigo toda uma magia, uma reflexão, ainda que involuntária, e
sobretudo um desejo de superação de todas as mazelas que de alguma maneira se fizeram
presentes durante os mais recentes 365 dias. E por isso, no último dia do ano os religiosos, em
aliança com os dogmas de sua fé, entram em comunhão com Deus, ou com seus Deuses, em
busca de força, boas vibrações, bênçãos para que o novo ciclo que se iniciará.
Fogos, champanhe, alegria, músicas, lágrimas, roupas brancas, flores para Yemoja1
(Iemanjá), flores ao mar, espaço repleto de histórias que vão desde os mistérios religiosos até
o entendimento de travessia; essas e outras coisas compõem esse imaginário do final do ano.
Ao passo que um tempo se encerra outro se inicia e, a criança, prestes a nascer, estimula a
esperança. Talvez essa seja a palavra que melhor defina as sensações que surgem da magia
das comemorações do ano novo.
Primeiro de janeiro, o bebê nasceu. Um novo ciclo se inicia! Por mais doze meses
daremos um nome numérico a esse tempo. Todo tempo carrega consigo, ao menos para
aqueles que creem, uma energia e o povo de orixá sempre busca meios para se harmonizar
com as forças que o conduzirão e é Ifá, o senhor da adivinhação, que os orienta nas
caminhadas da vida.
O dia começa a nascer. O sol vai dissipando a escuridão da noite, abrindo espaço ao
efetivo começo de um novo dia. Ogìyán2 (Oguian), o òrìsà3 (orixá) do nascer do dia, vem dando
início a nova jornada dos humanos. Amanheceu, vê-se no horizonte a sombra de Yewá4 (Euá),
a serpente que sustenta o mundo e a natureza começa a dar sinais de que a vida continua.
As movimentações em louvor ao novo ano já passaram, mas ainda não sabemos o que
o novo nos reserva. É dia de ir ao àse5 (axé), bater cabeça para os òrìsà (orixás) e saber deles
como será o novo ano. Os raios solares vão invadindo a casa, o vento de Oyá6 convida as
[1]
Divindade yorubana relacionada às águas. Considerada a mãe de todos. Apesar de na África estar vinculada ao rio Ogun, essa divindade ganha na diáspora o domínio sobre o mar.
[2] Face juvenil da divindade considerada o grande pai de todos, Oxalá. Nessa perspectiva, trata-se de um jovem guerreiro da paz,
ligado ao nascer do dia, a guerra e a paz. Ao equilíbrio.
[3] Fragmentos do Deus supremo. Diz-se das forças superiores encantadas na própria natureza cultuadas nos candomblés.
[4] Divindade feminina. Segundo a mitologia a grande cobra que segura o mundo mantendo-o em unidade. Na natureza, além da
própria cobra pode mostrar-se na neblina que se observa ao horizonte.
[5] Força vital, boas energias, uma confirmação ou como nesse caso uma referência ao próprio terreiro.
[6] Orixá feminino que domina os ventos e os raios. Senhora das tempestades é considerada uma mulher brava e guerreira.
2
árvores a bailarem sem saírem do chão, as águas da fonte de Òsun7 (Oxum) continuam a rolar
pelas pedras, deixando soar bem próximo a casa do senhor do fogo o movimento das águas.
Omi ooo (Salve as águas). A areia do solo de Àfonjá8 começa a ser marcada pelas pegadas
dos filhos do Ilé Àse Opo Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá)9, que se encaminham para a casa do Obá
(rei). Aguardemos a ìyálórìsà (Ialorixá – mãe de santo), em breve ela chegará para revelar o
que o oráculo tem a dizer.
- Sure fun mi ìyá!10
- Sure fun o!
A mãe de santo chegou à imponente casa de rei de Oyó11, na pequena África criada por
mãe Aninha na cidade de Salvador. Enquanto se encaminha ao quarto de Sàngó (Xangô), o
dono do terreiro, para inúmeras vezes, a fim de abençoar seus filhos que se curvam diante
dela, e entre dobale12 e ika13 lhe pedem a benção.
- Oba nisé kawo kabiensile14!
Ouve-se o som do sere15 (xeré) e todos saúdam ao patrono da casa, Não se pode
passar diante do rei, estar em sua casa sem saudá-lo. Entoam-se cantos de louvores a ele.
Aqui o som é fundamental para o encontro com o sagrado.
A ìyá16 (iá) se dirige a sua cadeira, posicionando-se diante da mesa na qual fará o jogo
dos búzios, pronta a revelar através do sagrado oráculo o òrìsà (orixá) responsável por esse
ano. Os omo òrìsà (filhos de santo) se acomodam pelo chão, ocupando todo o espaço, desde
os pés da mãe de santo até a porta da casa de Sàngó (Xangô).
O silêncio é absoluto. Caderno e lápis na mão. Em poucos minutos os mistérios do ano
serão desvendados pela sábia sacerdotisa que mediará o contato entre as forças da natureza e
os humanos que se colocam sobre a proteção delas.
[7]
Considerada a mais bela das mulheres domina os rios e cachoeiras. Orixá vinculado à fecundidade, maternidade, ao amor e ao ouro. Grande dama do candomblé, possui encanto e sutileza.
[8] Uma das faces do orixá Xangô, divindade vinculada no Brasil a justiça. Patrono do terreiro de candomblé no qual se deu essa
pesquisa.
[9] Terreiro de candomblé fundado em 1910, na cidade de Salvador, Bahia, por Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha, Obá Biy.
[10] Maneira tradicionalmente utilizada pelas (os) filhas (os) do axé Opô Afonjá para pedirem a benção à ìyálòrìsà. A frase que
segue trata-se da resposta da mãe de santo.
[11] Cidade africana consagrada ao orixá Xangô.
[12] Forma como as filhas (os) de orixás masculinos saúdam a ìyálòrìsà, as anciãs (ãos) da casa e sobretudo os orixás.
[13] Forma como as filhas (os) de orixás femininos saúdam a ìyálòrìsà, as anciãs (ãos) da casa e sobretudo os orixás.
[14] Saudação a Xangô.
[15] Instrumento sonoro vinculado ao culto de Xangô. Assemelha-se a uma chocalho.
[16] Literalmente, mãe.
3
Depois de muito movimentar os búzios e observar as quedas, a ìyálòrìsà faz menção de
que irá se pronunciar. Outros tantos olhares atentos se direcionam a ela. E com um misto de
firmeza e suavidade ela afirma:
- O ano é de Ósóòsí17 ( Oxóssi)!
E todos os presentes louvam ao òrìsà (orixá) que se apresenta como patrono deste ano:
- Oke Aró18! (Okê Arô)!
Os filhos do caçador levam as mãos ao solo e trazem a cabeça, reverenciando a
energia que habita dentro deles e sobretudo buscam na terra a força sagrada desse ancestral
que é soberano entre os Ketu.
Movimentando mais uma vez os búzios, em busca da confirmação dos caminhos pelos
quais vem Òsóòsí (Oxóssi), neste ano, a mãe de santo chega à conclusão exata a respeito dos
direcionamentos que as forças da natureza oferecem para uma relação harmônica com as
energias que regem e, consequentemente, movimentam o tempo que se inicia. Òsóòsí
(Oxóssi), o grande caçador yorubá, contará à sacerdotisa por meio de um Itan (mito), que é
indicado a partir do oráculo, como devemos proceder durante esse ciclo para melhor
conduzirmos o nosso ano.
- Certa vez em uma família houve um grande transtorno, afirma a ìyálòrìsà, que inicia uma
contação de história.
- Por conversas vindas de fora, um casal entra em conflitos dentro de sua própria casa. A
confusão vai tomando uma proporção, de maneira que fica impossível a convivência.
Chegando ao extremo do descontrole, a mulher resolve por fim a vida do marido para que
possa viver então, em paz, com seu filho.
Os ouvintes começam a fazer suas anotações.
- Para matá-lo ela resolve por veneno em sua comida. No momento em que fazia isso, foi
surpreendida pela presença do filho! A criança vê e entende o que a mãe pretende e corre para
contar ao pai, para que ele possa se livrar da armadilha.
- Vixe19! Comentam as filhas de santo, surpresas pelo rumo da história e ainda mais por tudo
que isso pode significar para o tempo em questão.
[17]
Divindade considerada rei de Ketu. O grande caçador yorubá. Ligado a caça, as matas e a prosperidade. O provedor da aldeia.
Sobre Ketu, trata-se de um território atualmente dizimado. Localizava-se dentro do que hoje se conhece como Nigéria. Pode-se dizer que seria o centro da cultura yoruba que chega ao Brasil. É também o nome que identifica um determinado grupo étnico-cultural entre os vários candomblés, que são diferenciados também por sua origem cultural. Nesse sentido além do candomblé Ketu podemos fazer referência aos candomblés: Angola, Jêje, Nagô e Efan, como diferentes faces desse culto.
[18] Saudação a Oxóssi.
[19] Expressão informal, popular e regionalista com a ideia de espanto.
4
- Ao encontrar o pai, a criança leva um susto! Seu pai também estava pondo veneno na comida
que seria entregue à mãe. Desconsertada, a criança dá ao pai a notícia que trazia e volta para
contar o mãe o que acabava de descobrir.
Os olhares se mantêm atentos às palavras da mãe de santo.
- Todos foram parar na polícia. Tomaram um “carão”20 e voltaram para casa. Conseguiram se
acertar. Por fim, a criança conseguiu evitar aquela tragédia e salvou sua família.
Encerrando a história, a ìyálórìsà traz a cena valores morais e práticos para a vida
social da comunidade a partir da história que o òrìsà (orixá) trouxe para a reflexão. Nesse
intento, assim ela afirma:
- Tenham cuidado com vizinhança. Não queiram ter confidentes e se esforcem para não
permitirem que pessoas de fora participem da intimidade de sua casa. Tomem bastante
cuidado com os amigos e falsidade. O bom é andar correto e não falar demais! O negativo
desse ano está no ouvir aqui e contar ali. Cuidado com o que falam. Estejam atentos às falas
das crianças. Façam tudo com bastante discrição. Tenham confiança no companheiro ou na
companheira de vocês.
Dessa maneira ela chama a atenção da comunidade para as tendências que o ano oferece e
concluindo as reflexões afirma:
- Para despachar o negativo, toda primeira quinta-feira do mês passem milho de galinha
torrado no corpo, isso livra de falsidade.
E assim, mais uma vez, as histórias ancestrais dos yorubás, por intermédio do jogo dos búzios,
revelam e apontam os caminhos do povo de candomblé.
Essa história é desassociada de uma realidade factual, apreendida no cotidiano da
comunidade em questão, todavia sua trama constitui-se com bases na vivência habitual dos
terreiros de candomblé, tendo assim a potencialidade de adequar-se a qualquer templo
candomblecista. Trata-se de uma história atemporal, uma vez que poderia se dar em qualquer
momento da história dos candomblés, afinal de contas a contação de histórias exerce função
social e ritual há muitos anos nessas comunidades, desde sua formação no Brasil. Essa
tradição embasada na oralidade atravessa o tempo e vem dos ancestrais africanos do povo
negro brasileiro, que chegaram traficados e escravizados ao Brasil e se repete a mais de um
século no Ilé Àse Opo Àfonjá, cenário religioso dessa pesquisa, assim como em tantos outros
espaços religiosos de preservação e resistência espalhados pela diáspora.
Foi a partir da observação da explanação desses mitos em comunidades religiosas
afrodescendentes, em especial no Àse Opo Àfonjá, que surgiu meu interesse pela magia e
influência dessas narrativas nos direcionamentos sociais, morais, pessoais e religiosos
daqueles que creem nesses relatos. É justamente a profundidade que se observa na relação
[20]
Expressão popular com sentido de bronca, repreensão.
5
desta casa de candomblé com a vivência mitológica dos yorubás e ainda o olhar voltado a
educação que se percebe a partir das enunciações de sua atual líder e demais ações do àse
(axé) que motivam a escolha desse território para que se construa a análise decorrente dessa
pesquisa. No que tange ao referido cenário da pesquisa, trata-se de uma casa de culto afro-
brasileiro que já ultrapassa um século de existência. O tradicional terreiro de candomblé que
atende pelo nome de Ilé Àse Opo Àfonjá foi fundado em 1910, em Salvador - Bahia, por uma
mulher negra, descendente, no que se refere a sua construção religiosa, da Casa Branca do
Engenho Velho, Ilé Ìyá Nasó Oka, (Ilê iá Nassô Oká) e genealogicamente com antepassados
grunci21. Mãe Aninha, Ìyá Oba Biy é a pedra fundamental desse lugar.
Nosso objeto de estudo constrói-se na figura dos mitos yorubás, da construção da
identidade e reconstrução de valores que ele pode promover através da literatura. Ainda que a
maior parte dos estudos acadêmicos acerca da África e afro-brasilidade estejam restritos aos
países lusófonos, a referência aos mitos yorubás torna-se viável, ao considerar-se a influência
e difusão dessa mitologia no Brasil, por meio da religiosidade, ganhando espaço na cultura
nacional, vide o culto a Yemoja (Iemanjá), o òrìsà (orixá) feminino das águas salgadas, que é
louvado nos finais de ano, recebendo flores que são lançadas ao mar, em diversas praias do
país, por indivíduos que muitas vezes não são de Candomblé, mas reconhecem esse hábito
como tradição; e até mesmo pela Literatura Infantil e Juvenil, sem desprezar toda a carga
cultural que esses relatos trazem consigo. Nesse sentido, torna-se possível visualizar a face
transformadora da Literatura, sob o aspecto de agente formadora de novos conceitos,
alterando de alguma maneira construções do imaginário popular, deturpado por uma visão
eurocêntrica das manifestações culturais africanas.
Esta pesquisa faz-se, inicialmente, ao se pensar, com base no que as práticas do
candomblé evidenciam no que se refere à utilização da palavra; a importância em considerar-
se a oralidade, em seus múltiplos aspectos, como literatura verbal, rica em significados,
tradições e essencialmente como memória viva de uma ancestralidade, que pode servir de
pano de fundo para o reconhecimento de manifestações da cultura afro-brasileira, através da
educação, agente emancipatório e descolonizador de mentes. Segundo, a pesquisa propõe-se
a caracterizar a Literatura como um meio de preservação e propagação cultural, que pode
exercer função social, quebrando paradigmas preconceituosos no que se refere à religiosidade
e cultura africana. Além disso, a pesquisa guarda como valor a análise da Literatura infantil e
juvenil na formação do imaginário popular. Propomos também o reconhecimento da
importância e influência do Candomblé como um complexo cultural afro-brasileiro, que reflete
na formação cultural afrodescendente. [21] De acordo com o que nos afirma Mãe Stella em seu livro Meu tempo é agora, assim como nos afirmou em conversas durante a pesquisa de campo, Mãe Aninha descendia de africanos da etnia grunci e por essa razão, apesar de iniciada no culto às divindades dos yorubás manteve no Opo Àfonjá o culto a divindades cultuadas por sua família, tendo estas uma ritualística a parte.
6
A pesquisa pensa a oralidade, memória e a construção de identidades a partir das
narrativas mitológicas de origem yorubá, que circulam em espaços religiosos afro-brasileiros,
no caso as casas de candomblé, além da interação dessas narrativas com a literatura de cunho
infantil e juvenil, considerando-a como possibilidade na produção de subsídios para o
cumprimento da proposta da lei 10.639/03. Na esteira dessa proposta, abordamos a presença
e força dos mitos nas sociedades africanas; analisamos a manifestação cultural e religiosa dos
povos denominados Ketu em terras brasileiras, através da estruturação da religiosidade afro-
descendente, especificamente o Candomblé; discutimos a literariedade da oralidade e as
adaptações ao novo território (Brasil) e as novas propostas de perpetuação da tradição e
cultura oral; analisamos como essas histórias sobrevivem na memória coletiva de
determinadas sociedades; identificamos a influência dessas narrativas na construção da
identidade de crianças que, a partir de uma religiosidade de matriz africana, tomam essa
mitologia como um dos alicerces para construí-la e a relação dessas crianças com a escola
que tem em seu bojo um caráter eurocêntrico que vem negar a riqueza dessas tradições;
mostramos a manifestação da religiosidade de matriz africana na Literatura infantil e juvenil
brasileira; analisamos a função social dessa Literatura na reconstrução de conceitos acerca da
cultura africana e afro-brasileira e, sobretudo, evidenciamos a importância da educação em
uma possível releitura de mundo, que parta da consideração da diversidade cultural, étnica e
religiosa observada no intercâmbio gerado no eixo África-Brasil, como uma riqueza
incomensurável que se faz presente nessa terra híbrida, que é o Brasil.
Como mostramos a partir da narrativa de apresentação, para a sociedade do
candomblé, os mitos são constituintes de uma memória coletiva, que embasa os rituais e a
vivência cotidiana dos adeptos dessa religiosidade, uma vez que transmitem valores,
conhecimentos e justificativas para todos os aspectos da vida dos descendentes da
ancestralidade africana que creem em seus relatos. A percepção dessa cultura pelo viés
literário, diante de um trabalho pertinente, pode ser um sólido caminho de desconstrução de
visões pejorativas das sociedades africanas. Consequentemente, o referido trabalho oferece a
potencialidade de auxiliar o cumprimento da lei 10.639/03, sancionada pelo presidente Luís
Inácio Lula da Silva, pela qual fica determinada a obrigatoriedade dos estudos da história e
cultura africana nas escolas, em toda extensão territorial do Brasil. Além de garantir o direito e
igualdade de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos os brasileiros. Pensando a
educação das relações étnico-raciais, a partir dessa análise, se almeja, também, pensar a
construção da identidade das crianças de terreiro e sua relação com a escola, em um sistema
simultâneo de valorização e negação dos mesmos atributos.
O desenrolar da pesquisa deu-se a partir do trabalho com a história oral e a análise de
textos literários. Por meio de extensa pesquisa bibliográfica, solidificou-se a escolha do
embasamento teórico para o desenvolvimento da proposta, contando ainda com uma breve
7
análise de livros para crianças e jovens. As obras analisadas, são: Ifá, o adivinho; Xangô, o
trovão e Oxumarê, o arco-íris, de Reginaldo Prandi e Epé Laiyé – Terra viva, de Maria Stella de
Azevedo Santos. A análise contou com a visitação, que muito enriqueceu esse trabalho e se
estruturou por meio de observação/entrevistas ao Ilé Àse Opó Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá), em
Salvador, liderado por Mãe Stella de Ósóòsí (Oxóssi). Almejou-se a obtenção máxima possível
de aspectos da tradição oral africana, que se faz tão presente nos complexos culturais afro-
brasileiros que são os Candomblés, além de considerar-se a influência da literatura oral,
mítica/religiosa, na formação identitária e do cotidiano das crianças ligadas às comunidades de
terreiro.
Os mitos yorubás se constituem como a base da construção de uma religiosidade no
Brasil, a partir da ressignificação de um culto semelhante, de origem africana. Vale ressaltar
que aqui os mitos não são pensados em uma analogia com inverdades. São, no entanto,
narrativas associadas à realidade, romanceadas e marcadas por um maravilhoso, em diálogo
constante com metáforas. Essas narrativas dão conta de justificar os rituais que se
desenvolvem nas casas de Candomblé, a dança dos òrìsà (orixás), a existência dessas
divindades no mundo e a própria existência humana. Como essas narrativas contribuem na
construção da identidade daqueles que se inserem nos grupos yorubás recriados no Brasil,
nesse sentido, fala-se dos Candomblés Ketu; especialmente, na identidade das crianças e
jovens desses terreiros? Acredita-se na ação da literatura na construção do imaginário social.
Seria possível, por intermédio dessa ferramenta, recriar valores sociais referentes às práticas
culturais e religiosas afro-descendentes e possibilitar a auto-afirmação da identidade das
crianças e jovens que se inserem nas categorias candomblecista/estudante? Essas perguntas
serão respondidas ao longo da viagem que propomos pelas vozes e letras africanas, que
chegam ao Brasil com muitos antepassados do povo brasileiro e sobrevivem até a
contemporaneidade.
Diante do que foi dito, pode-se considerar que a proposta da pesquisa é envolta por
uma realidade bastante atual, na qual se propõe a alteração de antigas visões e construções
do imaginário popular, decorrentes do desconhecimento das raízes culturais que justificam as
manifestações da religiosidade e cultura africana. Tais questões, tendo como suporte uma
releitura por meio das redes educativas pode render bons frutos para a sociedade como um
todo, sendo uma relevante contribuição para os estudos referentes às relações étnico-raciais.
8
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O histórico processo de formação da sociedade brasileira e, até mesmo, o
desenvolvimento estrutural da construção do país, e da cultura nacional, guarda nas tradições
e demais heranças culturais vindas de África, assim como nas de origem indígena, uma
parcela de seus alicerces. Nessa perspectiva, é comum que as culturas a que se refere,
ocupem, diante das heranças européias e de suas relações no meio social, o mesmo espaço.
Considerando o relevante momento sócio-cultural brasileiro que estamos vivendo e a
valorização das manifestações africanas e afro-brasileiras, que se tornam cada vez mais
perceptíveis no país, podemos dizer que a temática africana vem ganhando campo e
promovendo cada vez mais discussões.
Ainda assim, a escola brasileira há muito tempo carrega em seu âmago um caráter
eurocêntrico. Essa postura não está atrelada somente a uma caracterização institucional, tem
origem em reflexos das construções estabelecidas pelas diretrizes da sociedade brasileira. É a
escola um aparelho que serve a uma ideologia que dá sustentação a uma sociedade
intensamente marcada por silenciamentos. Tal afirmação se embasa na premissa de uma
sociedade híbrida, que, por muito tempo, privilegiou um grupo étnico, considerado modelo,
invisibilizando outras participações ativas na efetiva estruturação desse país. Desse modo, ao
passo que a branquitude serve de modelo para essa sociedade, as participações negras e
indígenas são inferiorizadas, a ponto de estes serem colocados, quando muito, como
coadjuvantes, ao invés de ocuparem um espaço de equivalência, uma vez que participaram
tanto quanto os demais na estruturação da sociedade e da cultura brasileira.
A lei 10.639/03, fruto de intensa luta dos movimentos sociais, em especial do
movimento negro, vem fortalecer as iniciativas de enfretamento às desigualdades e
preconceitos, que era travado há algum tempo por estes mesmos grupos. Além disso, garante,
como propõem as diretrizes curriculares nacionais, o direito e igualdade de acesso às
diferentes fontes da cultura nacional a todos os brasileiros, e o faz por intermédio da
valorização dessa face histórico-cultural dos afro-brasileiros e dos africanos, abrindo espaço
nos meios educacionais que apontem para um maior comprometimento com a educação de
relações étnico-raciais.
Esta pesquisa visa à análise da presença das divindades yorubanas (òrìsà/orixás) e da
religiosidade que as envolve, na Literatura infantil e juvenil brasileira, através da transcrição da
mitologia que os cerca, atrelada ao panorama cultural de África e de afrobrasilidade que os
mesmos apresentam. Como é comum a toda manifestação mitológica, as histórias ancestrais
da cultura africana têm base na tradição oral, entretanto, atualmente, de forma gradativa, vem
sendo escritas e divulgadas com o intuito de perpetuar a cultura ancestral das chamadas
comunidades tradicionais africanas, e do candomblé Ketu, espaço de resistência religiosa e
9
cultural de povos africanos e suas respectivas comunidades no Brasil, além de grupo afro-
brasileiro central nessa pesquisa.
Frente a uma releitura dos hábitos da sociedade brasileira, no que concerne à postura
dispensada a figura do culturalmente afro-descendente, a reflexão norteada pelo mito,
oralidade e, a partir daí, o desenrolar de uma outra perspectiva no olhar para a religiosidade
afro-brasileira e toda a riqueza cultural que ela traz consigo são relevantes possibilidades para
a reconstrução do imaginário.
O alicerce para as reflexões acerca das manifestações da afro-brasilidade, na Literatura
e na educação como um todo, é a lei 10.639/03, as diretrizes curriculares nacionais da
educação das relações étnico-raciais, e os PCNs. A proposta da pesquisa é, inicialmente,
investigar a manifestação dos mitos religiosos africanos que chegaram ao Brasil com mais
intensidade (yorubás), através da Literatura Infantil e Juvenil. Posteriormente pensa-se a
relação mito yorubá - construção de identidades de crianças de candomblé, considerando o
mito no papel de narrativa apresentada a elas pelas vias da literatura oral. E, a partir daí,
observamos como a literatura pode colaborar, no sentido de apresentar os aspectos culturais
de povos que compuseram, de alguma maneira, a estruturação do que reconhecemos hoje
como povo brasileiro. Partindo da figura da criança, retrato do futuro, repensaremos as
relações entre: cultura afro-brasileira, memória, religiosidade, construção da identidade e a
escola.
O primeiro capítulo sugere reflexões sobre as imagens de África na educação brasileira,
assim como discussões referentes à lei 10.639/03 e considerações sobre o paralelo:
religiosidade, educação e cultura, pensando nesse sentido a educação nas vias do
multiculturalismo. Consideramos ainda a cultura da discriminação, que se mostra bastante
recorrente no âmbito da educação, além de questionar-se a estrutura do sistema educacional
brasileiro, pensando nessa via seu projeto e intenção, apontando nesse sentido para a
inexistência de uma discência afro-brasileira nesse lugar. Ao pensarmos a ideia naturalizada da
ausência do negro nos bancos escolares brasileiros, somos obrigados a refletir sobre racismo,
a farsa da democracia racial e as relações entre escola, cultura e sociedade. Para tal,
tomaremos como embasamento teorias de NILMA LINO GOMES (2005), ANTONIO
GUIMARÃES (2002), MOREIRA & CANDAU (2005), ALBERT MEMMI (1977), ABDIAS DO
NASCIMENTO (1978), MARIA NAZARETH FONSECA (2001), PAULO FREIRE (1996),
KABENGELE MUNANGA (2010), MIA COUTO (2005), SILVA & BRANDIM (2008), VERA
MARIA CANDAU (2005), CANNEN (2007). Além dessas reflexões, buscaremos nos dedicar a
pensar a religião dos orixás. Se observarmos o candomblé de forma panorâmica, poderemos
concluir que, de alguma maneira, são complexos africanos no Brasil, já que nesses ambientes
mostram-se claramente manifestações da cultura afro-brasileira. Diante da relação que a
pesquisa tem com o candomblé, e nesse momento se faz um recorte nesse amplo espaço dos
10
candomblés, restringindo-se o foco de análise especificamente para os candomblés Ketu;
julga-se relevante considerar, ainda que suscintamente, a formação dessas comunidades
religiosas no Brasil, o processo de ressignificação a que elas tiveram que se submeter, a forma
como os itan (mitos) chegam e sobrevivem a realidade do novo espaço, sendo a memória a
ponte para que através deles se recriem Áfricas no Brasil. Trataremos ainda das faces do ser
negro na literatura infantil e juvenil, questionando o lugar da personagem negra nas histórias
para crianças e jovens. Para esse processo, iremos nos dedicar no que nos apresenta entre
outros, VANDA MACHADO (2006), LAURA PADILHA (2007), MUNIZ SODRÉ (2006),
REGINALDO PRANDI (1995), RAUL LODY(2011)
O segundo capítulo pensará o entrelugar (voz e letra) dos mitos yorubás,
compreendidos como uma expressão étnico-cultural. Pensaremos a potência da palavra nas
sociedades africanas e a preservação desse pressuposto nas casas de candomblé.
Considerando a contação de histórias e o sistema de transmissão e construção de
conhecimentos, buscaremos refletir sobre a significação da voz e da letra nesses espaços,
além de percebermos a travessia desses saberes no âmbito da oratura à letra, no caminho
para a Literatura destinada a crianças e jovens. Nesse sentido, teremos como referenciais
principais as análises de JOSÉ FLÁVIO PESSOA DE BARROS(2006/2009), AMADOU
HAMPATÉ BA (1993), REGINALDO PRANDI (2001), JOSÉ BENISTE (2008), MÃE STELLA
DE ÒSÓSI (2006), LAURA PADILHA (2007), KABWASA (1982), VANDA MACHADO (2006).
Considerando a complexa relação que se desenvolve entre as práticas culturais negras
e a sociedade brasileira, em decorrência de um racismo profundamente enraizado, a ponto de
ser invisibilizado pela sombra da naturalização da negação de valores identitários afro-
descendentes, no terceiro capítulo pretende-se pensar a construção da identidade das crianças
de terreiro a partir da relação que elas estabelecem com a casa de Candomblé e suas práticas,
incluindo a contação de histórias dos òrìsà (orixás), considerando ainda a relação dessas
crianças que vivem no espaço do candomblé um processo de valoração de uma identidade
negra, afro-brasileira e muitas vezes tem essa mesma identidade sufocada no espaço
educacional, repensando o valor da Literatura no processo de afirmação da identidade dessas
crianças e da casa de Candomblé diante do enfrentamento pertinente a lógica de
desconstrução dos estigmas colocados sobre o negro e consequentemente na formação
cultural afro-descendente. Além disso, há a proposta de investigar a possibilidade de se
enxergar a Literatura como um meio de preservação e propagação cultural, que pode agir na
construção do imaginário, exercendo função social, desconstruindo paradigmas
preconceituosos no que se refere à religiosidade e cultura africana, promovendo dessa forma
uma recriação de conceitos e valores já solidificados na sociedade, em decorrência do
preconceito e racismo contra os negros, construído ao longo da história desse país.
11
Pretende-se ainda considerar o espaço da heroína/herói negro(a), apontando na figura
dos òrìsà (orixás) possíveis heróis negros que chegam à cena literária pela Literatura infanto-
juvenil, alcançando aí, uma das principais questões que se pretende levantar nessa pesquisa
que é a presença da cultura afro-brasileira na face das divindades e do candomblé, na
Literatura, através das narrativas religiosas de origem yorubá.
Fotografando a tradição matriarcal dos candomblés no Brasil, almeja-se também pensar
a figura das ìyálòrìsà (ialorixás) como intelectuais orgânicas, a partir da função/ação dessas
mulheres nas comunidades de sua responsabilidade. Para pensar os intelectuais orgânicos,
nos debruçaremos sobre a teoria cunhada por ANTONIO GRAMISCI(1982). Sabemos que
essa última temática se insere na questão da hegemonia e sociedade civil, por isso faremos
uma releitura do apontamento, para se pensar as referidas sacerdotisas sobre essa
perspectiva. Para as demais questões dessa reflexão, lançaremos mão do depoimento da
ìyálórìsà (ialorixá) responsável pelo templo que se insere a pesquisa, além das reflexões
provocadas por JOSÉ FLÁVIO PESSOA DE BARROS (2005), MICHAEL POLLAK (1992),
STUART HALL (2000), MUNIZ SODRÉ (2006), JACQUES LE GOFF (1996), NILMA LINO
GOMES (2005), ORACY NOGUEIRA(2006), KABENGELE MUNANGA (2010).
12
Capítulo I - A África no contexto educacional brasi leiro
“Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros” Che Guevara
Considerando o processo de releitura de valores estigmatizantes que alimentam os
preconceitos, em especial o racismo, grande mal na sociedade brasileira, sabe-se que muitos
esforços se fazem necessários. Dessa forma, a união dos inconformados e inquietos com a
realidade que o racismo e demais preconceitos à brasileira nos apresentam é trivial para a
desconstrução efetiva desses movimentos destrutivos.
Faraimará, assim diz um verso de origem yorubá que conclama a união. A expressão
que compõe uma conhecida cantiga dos Candomblés, identificados como Ketu na diáspora,
sugere a união como instrumento ou possibilidade de resistência. Simultaneamente ao soar da
referida cantiga, acompanhada dos instrumentos musicais próprios das orquestras sagradas
afro-brasileiras, o povo do Candomblé se abraça, considerando o abraço como símbolo de
união, o que dialogará diretamente com o pressuposto de que “unidos, ninguém poderá contra
nós”, o que pode ser compreendido como uma resposta a todas as tentativas de sufocamento
e/ou silenciamento. Um brado contra a repressão e opressões, as quais as manifestações
culturais e religiosas negras foram e são submetidas.
Entendendo os movimentos sociais como ações de uma coletividade para o benefício de
um grupo, compreende-se que para além de uma lei a 10.639/03 pode ser percebida, também,
como descendente dessa essência do referido verso yorubano. É a partir da união de grupos
sociais, em decorrência da inconformidade frente ao sufocamento da cultura e tradição afro-
brasileira nas construções educacionais e sociais, que a citada lei insurge. Vale ressaltar a
grande relevância e engajamento do movimento negro, assim como de intelectuais, nessa
conquista em prol do combate ao racismo.
I.1 A lei 10.639: uma década para além de somente u ma lei
“ O branco inventou que o negro/ Quando não suja na entrada/Vai sujar na saída, ê/Imagina só/ (...) Mesmo depois de abolida a escravidão/ Negra é a mão/ De quem faz a limpeza/ Lavando a roupa encardida, esfregando o chão/ Negra é a mão/ É a mão da pureza/ Negra é a vida consumida ao pé do fogão/ Negra é a mão/ Nos preparando a mesa/ Limpando as manchas do mundo com água e sabão/ Negra é a mão/ De imaculada nobreza/ Na verdade a mão escrava/ Passava a vida limpando/ O que o branco sujava, ê/ Imagina só” Chico Buarque & Gilberto Gil
É impossível pensar uma nação sem considerar sua formação sócio-cultural. Nesse
sentido, para que se possa refletir sobre as inquietudes que sobrevivem no imaginário de
brasileiros marginalizados, faz-se necessário que reflitamos com cautela sobre o cenário social
do país e, sobretudo, os lugares pré-determinados pelo racismo e uma série de outras
manifestações preconceituosas. É preciso, para isso, que pensemos os efeitos sociais e
13
psicológicos da marginalização contínua, fazendo nessa perspectiva referência às reticências
desse processo na construção do imaginário sobre si mesmo, pensando atentamente a
colonização dos povos, em especial a colonização do pensamento que segue essa trilha.
Pensando o racismo, NILMA LINO GOMES (2005) o define de uma maneira que nos
parece bastante ampla. De acordo com o que é afirmado, dialogamos com a mesma, quando
ela nos afirma que:
“O racismo é, por um lado, um comportamento, uma ação resultante da aversão, por vezes, do ódio, em relação a pessoas que possuem um pertencimento racial observável por meio de sinais, tais como: cor da pele, tipo de cabelo, etc. Ele é por outro lado um conjunto de idéias e imagens referente aos grupos humanos que acreditam na existência de raças superiores e inferiores. O racismo também resulta da vontade de se impor uma verdade ou uma crença particular como única e verdadeira.” (GOMES, 2005, p.52)
Considerando que a dominação impôs modelos e silenciamentos, partindo de um
repensar de valores que permeiam a sociedade brasileira, em decorrência do engajamento de
movimentos sociais como o movimento negro, desde o ano de 2003 o Brasil carrega em sua
história uma lei que obriga o estudo da história e cultura africana e afro-brasileira. Entendemos
que as leis 10.639/03, já referenciada, e a 11.645/08, que traz à cena educacional as culturas
indígenas, entendendo-as como participantes tanto quanto a africana da estruturação desse
país, são propostas de reparação dos danos causados à memória e a história de povos de
ação fundamental na construção física e social do que reconhecemos como Brasil e cultura
brasileira, além do que se evidenciam como passos rumo à equidade. Trata-se de um caminho
de avanços gradativos, mas não inerte.
Ao completar sua primeira década, ainda que aparentando ter estimulado apenas
pequenos avanços, ao contrário do que sugere em um primeiro momento, a lei 10.639/03 vem
semeando pelo país diversas reflexões no que se refere aos valores culturais africanos e afro-
brasileiros na diáspora. Os resultados perdem a caracterização de tímidos, à medida que se
pensa na gênese de todas as discussões a respeito da equidade, igualdade e/ou, ao menos,
respeito à diversidade que perpassam os debates no âmbito das relações raciais. Estamos
falando do racismo, considerando assim sua existência. Ressalta-se aqui o que é óbvio nas
reflexões sobre a temática étnico-racial, ou seja, a sobrevivência do racismo, tendo em vista
que esse entendimento não está posto para toda a sociedade. Ainda é possível que se ouçam
discursos que afirmam a inexistência do racismo no Brasil, assim como se pode também
observar uma certa tendência a abrandar as marcas que ele, o racismo, provoca. É a
propagação desse discurso que apontará para a ideia de uma democracia racial, grande
farsa22.
[22]
A respeito da referida farsa é comum que se refira a ela por meio da expressão mito da democracia racial. Sobre o sentido do
vocábulo mito nessa construção é valido que se afirme que, nesse sentido ele faz referência a uma tentativa de falsear uma
14
Segundo Guimarães (2002):
“A idéia de que o Brasil era uma sociedade sem “linha de cor”, ou seja, uma sociedade sem barreiras legais que impedissem a ascensão social de pessoas de cor a cargos oficiais ou a posições de riqueza ou prestígio, era já uma idéia bastante difundida no mundo, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, bem antes do nascimento da sociologia. Tal idéia, no Brasil moderno, deu lugar à construção mítica de uma sociedade sem preconceitos e discriminações raciais. Mais ainda: a escravidão mesma, cuja sobrevivência manchava a consciência de liberais como Nabuco, era tida pelos abolicionistas americanos, europeus e brasileiros, como mais humana e suportável, no Brasil, justamente pela ausência dessa linha de cor.” (GUIMARÃES, 2002, p. 34)
Dialogando com o que nos afirma o referido autor, pode-se compreender de maneira
bastante objetiva o cenário sócio-racial a que se fez referência. Considerando a invisibilidade
ou negação da existência do racismo como pratica comum na sociedade brasileira, admitir que,
ainda que paulatinamente, ele de fato existe é tão fundamental quanto a busca de meios para
desestruturá-lo. E desestruturá-lo é uma atividade intimamente ligada a um rompimento com o
mito da democracia racial, já que este fortalece o discurso da inexistência do racismo no Brasil.
Como nos afirma GOMES (2005):
“O mito da democracia racial pode ser compreendido, então, como uma corrente ideológica que pretende negar a desigualdade racial entre brancos e negros no Brasil como fruto do racismo, afirmando que existe entre estes dois grupos raciais uma situação de igualdade de oportunidade e de tratamento. Esse mito pretende, de um lado, negar a discriminação racial contra os negros no Brasil, e, de outro lado, perpetuar estereótipos, preconceitos e discriminações construídos sobre esse grupo racial. Se seguirmos a lógica desse mito, ou seja, de que todas as raças e/ou etnias existentes no Brasil estão em pé de igualdade sócio-racial e que tiveram as mesmas oportunidades desde o início da formação do Brasil, poderemos ser levados a pensar que as desiguais posições hierárquicas existentes entre elas devem-se a uma incapacidade inerente aos grupos raciais que estão em desvantagem, como os negros e os indígenas. Dessa forma, o mito da democracia racial atua como um campo fértil para a perpetuação de estereótipos sobre os negros, negando o racismo no Brasil, mas, simultaneamente, reforçando as discriminações e desigualdades raciais.” (GOMES, 2005, p.57)
O primeiro grande desafio das políticas e reflexões sociais referentes às relações étnico-
raciais é provar a existência do racismo e isso está sendo feito, gradativamente a partir de
diversos movimentos políticos e sociais. Para além de uma lei, que não surpreendentemente
no Brasil não tem o seu cumprimento efetivo como consequência de sua aprovação, a
10.639/03, independentemente de estar ou não sendo cumprida em todos os espaços
pertinentes a essa prática, abre brechas, somente por existir, para uma série de realidade, tendo assim uma conotação pontuada pela ilusão, diferentemente do entendimento de mito que utilizamos em outros aspectos dessa pesquisa, quando falamos em mitos yorubás nos reportando às narrativas orais do povo yorubá, compreendidas com um distanciamento no que se refere à mentira. Acredita-se que são narrativas romanceadas e submersas em um universo maravilhoso, mas que não configuram inverdades.
15
questionamentos no âmbito social, em especial no que se refere às lutas negras, além de
produzir outros tantos reflexos como a lei 11.645/08.
Ainda assim, para que ela, a lei 10.639/03, alcance o que almejamos é preciso também
que nos esforcemos e façamos pressão, frente ao governo, seguindo o exemplo dos
movimentos negro e antirracista e intelectuais negros; para que as brechas deixadas, que
podem de alguma forma colaborar para o não cumprimente efetivo da mesma, sejam fechadas.
Seria de grande valia, por exemplo, que a obrigatoriedade desses estudos rompesse a barreira
do ensino regular, atingindo o ensino superior, promovendo assim um diálogo com a afro-
brasilidade23 em todos os âmbitos da educação brasileira, além de se formar,
consequentemente, gerações de licenciados que discutam essa temática antes mesmo do
contato com a sala de aula e as diversidades abrigadas por ela.
Indiscutivelmente tem-se observado com frequência um crescente processo de
construção e desenvolvimento de políticas e ações governamentais e /ou sociais no que se
refere à diversidade, seja ela de cunho cultural ou referente às tantas outras pluralidades que
ganham visibilidade na contemporaneidade. As relações étnico-raciais se apresentam em tom
de constância nos mais variados âmbitos de nossa realidade; trataremos aqui especificamente
de espaços que formam um único pilar, podendo este ser considerado central, à medida que
ambos, direta ou indiretamente, promoverão ação indispensável na construção dos sujeitos. A
escola e a educação são esses espaços de reflexão.
De acordo com MOREIRA & CANDAU (2005):
“A escola é uma instituição construída historicamente no contexto da modernidade, considerada como mediação privilegiada para desenvolver uma função social fundamental: transmitir cultura, oferecer às novas gerações o que de mais significativo culturalmente produziu a humanidade.” (MOREIRA; CANDAU, 2005, p.43)
Pensada como espaço de construção e socialização, a escola se afirma como agente
promotor de valores pertinentes à cultura dominante, ou ao menos a aquela que se entende
e/ou é colocada como tal. Considerando a perspectiva do colonizador e, historicamente, a
investida de impor seus valores sobre os trazidos pelos colonizados, nos é possível
compreender que mesmo pensada como espaço de construção e socialização, a escola não foi
projetada para o acesso dos marginalizados.
Refletindo a tentativa de apagamento das heranças sócio-culturais não eleitas como
primordiais e/ou modelos, dentre elas a negra e a indígena, torna-se possível um dialogo com
ALBERT MEMMI (1977), quando este se propõe a pensar a escola do colonizado. Na esteira
de seu pensamento, podemos dizer que o colonizado é ensinado a se negar. Rotineiramente
[23]
Nesse sentido, compreende-se afro-brasilidade como referência a tudo aquilo que se dá ou se faz no âmbito do afro-brasiliero
16
induzido a se rejeitar, por vezes de forma inconsciente, à medida que permite a reinvenção tão
somente pelo pressuposto cultural, que sugere a valorização de um em detrimento de outro. A
auto-negação marca profundamente o percurso de sua existência, uma vez que “a memória
que lhe formam não é a de seu povo. A história que lhe ensinam não é a sua.” ( p.95)
Inicialmente a escola servia a uma elite e, por assim ser, promovia os valores que lhe
eram pertinentes. Dessa maneira ela segue um modelo engessado, que se estrutura mediante
um olhar hierarquizado da sociedade que exclui toda e qualquer diferença ao modelo eleito
como diretriz.
“A discriminação pode adquirir múltiplos rostos, referindo-se tanto a caráter étnico e caráter social, como a gênero, orientação sexual, etapas da vida, regiões geográficas de origem, características físicas e relacionadas a aparência, grupos culturais específicos ( os funkeiros, os nerds etc.). Talvez seja possível afirmar que estejamos imersos a uma cultura da discriminação, na qual a demarcação entre “nós” e “os outros” é uma prática social permanente que se manifesta pelo não reconhecimento dos que consideramos não somente diferentes, mas, em muitos casos, “inferiores”, por diferentes características identitárias e comportamentos.” (MOREIRA; CANDAU, 2005, p. 50)
Pensando sobre a perspectiva da referida cultura da discriminação, nos é possível notar
o quanto se faz necessária a desconstrução do processo de reprodução contínua desses
valores. Como bem nos sinaliza GOMES (2005): “Enquanto o racismo e o preconceito
encontram-se no âmbito das doutrinas e dos julgamentos, das concepções de mundo e das
crenças, a discriminação é a adoção de práticas que os efetivam.”(GOMES, 2005, p.55). Seria
portanto, como está posto, a discriminação uma forma de ação do racismo e do preconceito,
não sendo objetivamente seu produto direto. A discriminação ganha uma roupagem que lhe
confere um aspecto natural, mascarando, algumas vezes, a perversidade desta ação.
O negro, seus valores culturais, religiosos, além das demais atribuições referentes à
construção, promoção ou desenvolvimento de identidades negras, desde sempre, entendendo
o processo de continuidade que o vocábulo sugere, a partir de um processo de leitura da
história sócio-cultural desse país, esteve no espaço das margens.
O centro, âmbito do modelo eleito, ou seja: masculino, branco, cristão, heterossexual e
elitizado, naturalizou-se como privilegiado, hierarquizando bravamente a sociedade, podendo
ainda lidar com a discriminação de maneira interseccional, ou seja, utilizando como argumento
diferentes condições e/ou características, nesse sentido em um dado sistema de oposição, no
que se refere ao referido modelo.
Como nos afirma ABDIAS DO NASCIMENTO (1978):
“O sistema educacional [brasileiro] é usado como aparelhamento de controle nesta estrutura de discriminação cultural. Em todos os níveis do ensino brasileiro – elementar, secundário, universitário – o elenco das matérias ensinadas, como se se executasse o que havia predito a frase de Sílvio Romero4, constitui um ritual da formalidade e da ostentação da Europa, e, mais recentemente, dos Estados Unidos. Se consciência é memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte
17
inalienável da consciência brasileira? Onde e quando a história da África, o desenvolvimento de suas culturas e civilizações, as características, do seu povo, foram ou são ensinadas nas escolas brasileiras? Quando há alguma referência ao africano ou negro, é no sentido do afastamento e da alienação da identidade negra. Tampouco na universidade brasileira o mundo negro-africano tem acesso. O modelo europeu ou norte-americano se repete, e as populações afro-brasileiras são tangidas para longe do chão universitário como gado leproso. Falar em identidade negra numa universidade do país é o mesmo que provocar todas as iras do inferno, e constitui um difícil desafio aos raros universitários afro-brasileiros.” (NASCIMENTO,1978, p. 95)
Refletindo sobre a educação no processo de interação com a sociedade a quem ela
serve, ou ao menos deveria servir, apoiados pela lei 10.639/03, considerando os efeitos e
dramas que o racismo provoca, além da necessidade de se ouvir as diversas vozes
responsáveis pela estruturação dessa nação, que sobreviveram no sufocamento por séculos, é
possível perceber a urgência em conduzir aos currículos escolares a temática racial, atrelada a
cultural no que se refere às questões sociais.
Nas palavras de MOREIRA & CANDAU:
“A problemática das relações entre escola e cultura é inerente a todo processo educativo. Não há educação que não esteja imersa na cultura da humanidade e, particularmente, do momento histórico em que se situa. A reflexão sobre esta temática é co-extensiva ao próprio desenvolvimento do pensamento pedagógico. Não se pode conceber uma experiência pedagógica “desculturizada”, em que a referência cultural não esteja presente.” (MOREIRA; CANDAU, 2005, p.43)
Esta se constitui em atitude bastante relevante no processo de releitura e/ou reconstrução dos
valores estruturantes da sociedade brasileira. Trata-se de perceber, não de maneira inerte,
mas com desejo de mudança, a brutalidade de não permitir a tantos brasileiros o auto-
reconhecimento.
Ao negro, colocado entre os referenciais menores em vários momentos da história
universal, da negação à igualdade de acesso à educação é que decorrem dificuldades na
inclusão e mobilidade em diferentes setores da vida. Ademais de um paralelo com a memória
coletiva, que marca por estereótipos a cultura, identidade e história afrodescendente,
compreende-se a existência da relação entre os problemas sócio-econômicos e a comunidade
negra. Todavia, antes de dilemas de cunho social e financeiro, a questão está pautada em
relações raciais, que em uma sociedade preconceituosa são relações de poder. O problema
econômico atravessa o racial, mas não se sobrepõe a ele. É portanto consequência. Como nos
afirma MARIA NAZARETH FONSECA (2001):
“A cor da pobreza é, no Brasil, majoritariamente negra (...), mas, mesmo nos segmentos de predominância de não brancos, circulam traços de diferenciadores dos quais não se é possível fugir, porque são construídos por um discurso legitimado como verdadeiro demarcador de lugares que devem ser preservados pela sociedade como um todo.” (FONSECA, 2001, p.94)
18
Entende-se que a naturalização é o grande empecilho na desconstrução do racismo. O
mesmo encontra-se tão bem acomodado e profundamente enraizado no seio da sociedade,
que desfazê-lo torna-se bastante complexo.
Nesse sentido é preciso que se ressignifique o que está no senso comum e isso exige
um contínuo processo de reafirmação de posturas e percepções que desconstruam de maneira
eficaz alicerces que se solidificam a partir de mais de cinco séculos de negação, a medida que
diante de toda a história desse país temos apenas cento e vinte e cinco anos de história no
pós-abolição, sendo relevante considerar ainda que, a dita abolição é mais bela no discurso
que se constrói ao redor dela afim de enaltecê-la do que em vias práticas de reflexão, já que é
sabido por todos que em verdade foi dado ao negro escravizado a condição de liberto sem no
entanto oferecer-lhe a possibilidade de sobrevivência nessa posição. O processo de inserção
do negro nessa sociedade é muito mais recente e ainda assim deixa brechas quanto ao
princípio de igualdade.
É impraticável uma educação colonizada nos dias de hoje. A educação deve romper com
os grilhões da senzala da submissão que nos acorrenta a uma lógica de eternos colonizados.
Deve-se reinventar as estratégias e caminhos da educação sempre que a sociedade demandar
esse esforço. Uma educação repressora e autoritária já esta há muito ultrapassada. O mundo
moderno clama por uma educação que ofereça aos educandos uma ampla visão de mundo,
que ofereça o reconhecimento das pluralidades na relação entre o ser e o mundo,
possibilitando um efetivo direito de escolha nos posicionamentos relativos às demandas.
Em suma, dialogando com ANTONIO MOREIRA & VERA CANDAU pensamos que:
“A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização. No entanto, abrir espaços para a diversidade, a diferença, e para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que está chamada a enfrentar.” (MOREIRA; CANDAU, 2005, p. 45)
Com efeito PAULO FREIRE (1996) pensa a educação sob um aspecto bastante autêntico
que deve ser reforçado constantemente. Ele nos fala da educação como uma forma de intervir
no mundo. Crendo nessa possível intervenção, para agirmos nos valores que estruturam essa
sociedade e não condizem com a realidade plural da mesma, faz-se necessário que utilizemos
a educação como arma para o enfrentamento às desigualdades. É isso que os movimentos
contemporâneos vem sugerindo para que os historicamente marginalizados simultaneamente
sejam ouvidos e ganhem espaço.
Na esteira do pensamento de PAULO FREIRE (1996), seguindo a lógica de
descolonização do pensamento, podemos dialogar com KABENGELE MUNANGA (2010)
quando ele assim nos afirma: “(...) somos desafiados a construir uma Pedagogia do oprimido.
No entanto, a questão racial nos ajuda a racializar ainda mais essa proposta. Somos levados a
construir uma Pedagogia de Diversidade.”(MUNANGA, 2010, p.45). Temos nossos corpos
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negros alforriados, o que ainda se tem como necessidade é a efetiva descolonização das
mentes.
Ademais das referidas propostas é pertinente também considerarmos o que nos aponta
a pesquisadora VANDA MACHADO (2006) ao pensar a educação e o terreiro de candomblé. A
partir de suas reflexões, ela proporá uma pedagogia nagô, o que em certa medida dialoga com
o que essa pesquisa propõe, além de possibilitar confluência com o que os teóricos
referenciados afirmam.
A proposta que serve de interseção para nossas análises é a educação a partir da
cultura. Creio que essa proposta se afina ainda mais com nosso percurso reflexivo. É preciso
que se pense uma descolonização que não só retire o oprimido desse lugar que lhe foi imposto
como, também, que se considere a diversidade que a interação entre os sujeitos sugere, para
que harmonicamente esses grupos, anteriormente hierarquizados, possam enfim se olhar
como iguais. Colocando o negro como centro dessa discussão, podemos dialogar, nesse
momento, com NILMA LINO GOMES (2005), quando ela assim nos diz e questiona:
“Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo é um desafio enfrentado pelos negros e pelas negras brasileiros(as). Será que, na escola, estamos atentos a essa questão? Será que incorporamos essa realidade de maneira séria e responsável, quando discutimos, nos processos de formação de professores(as), sobre a importância da diversidade cultural?” (GOMES, 2005, p.43)
A respeito do termo negra(o), creio que seja pertinente fazer algumas considerações.
Tomando por base classificações que a biologia eurocentrada impôs, compreende-se que o
termo negro se faz inicialmente como referência a uma raça inferior. Posteriormente, em nossa
história nacional como em tantas outras, a referida expressão fará alusão ao escravizado.
Talvez nessa perspectiva resida um dos argumentos que promovem a negação do termo, à
medida que se vincula a ele um suposto peso que tem relações com o simbólico, com a
construção do imaginário no que se refere ao ser negro. Tornou-se comum que se encontre
pessoas receosas diante da possibilidade de se referir às outras como negro ou negra,
considerando um possível desconforto, à medida que as mesmas podem se sentir ofendidas
pelo emprego do vocábulo. Tão lamentável quanto essa perspectiva é o fato de muitas vezes
não se perceber a base racista que há nessa negação.
Penso que a expressão afrodescendente, tal qual o morena(o), mulata(o) são meios de
negar o ser negra(o), considerando, nesse sentido, pesos e medidas. Tal afirmação torna-se
possível ao se considerar que o histórico das expressões morena(o), mulata(o) tem uma
origem pontuada em premissas racistas, enquanto o termo afrodescendente vem, de alguma
forma, identificar o negro(a) sem efetivamente dizer que de fato o é. A expressão em questão
surge em uma proposta contemporânea que almeja apontar para o “politicamente correto”,
desconsiderando os prós e contras dessas substituições de palavras. É como se as referidas
20
expressões “suavizassem” o peso que decorre do fato de se ter a pele mais pigmentada. Há de
se considerar também que o entendimento do africano e de seus descentes como negro, não
surge em terras Africanas. É pela diáspora que o termo será utilizado para se referir a eles,
correndo o risco de sugerir uma unidade em África. Desconsiderando a pluralidade do
continente, negando por exemplo a existência da chamada África branca.
A respeito do olhar construído sobre África, o que invisibiliza, muitas vezes, a pluralidade
do continente, agindo de maneira reducionista, no que se refere às percepções de cultura,
assim nos afirma o escritor moçambicano MIA COUTO (2005):
“A África vive uma tripla condição restritiva: prisioneira de um passado inventado por outros, amarrada a um presente imposto pelo exterior e, ainda, refém de metas que lhe foram construídas por instituições internacionais que comandam a economia. A esses mal entendidos se somou outra armadilha: a assimilação da identidade por razões de raça. Alguns africanos morderam essa isca. A afirmação afrocentrista sofre, afinal, do mesmo erro básico do racismo branco: acreditar que os africanos são uma coisa simples, uma categoria uniforme, capaz de ser reduzida a uma cor de pele. Ambos os racismos partilham do mesmo equívoco básico. Ambos se entreajudaram numa ação redutora e simplificadora da enorme diversidade e complexidade do continente. Ambos sugerem que o ‘ser africano’ não deriva da história, mas da genética. E no lugar da cultura tomou posse a biologia.” (COUTO, 2005. p. 11).
No pós abolição, o termo negro passa a ser sinônimo de um grupo populacional
específico, os ex-escravos. Ainda nos dias de hoje o termo acaba por apresentar
correspondência com uma ideia de identidade. Tal qual a expressão raça, o negro ganha
sentido político. Em decorrência de mobilização do Movimento Negro no Brasil, considerar-se
negro vai além de uma questão fenotípica, tem relação com uma ideia de afirmação identitária
e resistência, enfatizando uma luta de cunho político-social.
Retomando a reflexão sobre diversidade, que se trata de uma ideia bastante coerente
com as perspectivas contemporâneas de mundo, que recorre ao reconhecimento da
pluralidade, a fim de afastar progressivamente a sombra das discriminações, reconhecer e
pensar tal diversidade como realidade valorosa é essencial para desencadear sólidos
encontros e diálogos entre culturas e os saberes que elas carregam consigo. Nas palavras de
KABENGLE MUNANGA (2010): “Sem o reconhecimento da diversidade das culturas, a ideia de
recomposição do mundo arrisca cair na armadilha de um novo universalismo. Mas sem essa
busca de recomposição, a diversidade cultural só pode levar à guerra das culturas.” (2010,
p.42)
Na perspectiva do reconhecimento das pluralidades em confluência com as
considerações referentes à educação, podemos recorrer ao que propõe a corrente do
multiculturalismo. Pensando a reconstrução de conceitos frente à construção das identidades
entende-se o multiculturalismo como uma possibilidade de repensar a existência de modelos,
21
eleitos e admitidos em um lugar inabalável, por meio de uma educação que considera e avalia
a diversidade, valorizando a existência das diferenças.
I.2 Encontros e saberes: por uma educação multicul tural
“Não há saber mais ou saber menos. Há saberes diferentes.” Paulo
Freire
Como já afirmamos anteriormente, a ótica unilateral não é mais suficiente para dar
conta dos rumos da sociedade brasileira, que vem se movimentando cada vez mais, em favor
de reivindicações que apontem para a equidade. A contemporaneidade exige, naturalmente,
uma releitura dos hábitos e valores.
“Culturalmente, com o vertiginoso avanço da tecnologia, media, informática e a diluição de fronteiras geográficas, tem-se acelerado o intercâmbio cultural. O mundo assume, definitivamente, as feições e as marcas da multiculturalidade, da diversidade cultural, fazendo-nos crer que estamos “condenados” a pensar a unidade humana na base de sua diversidade cultural e nos desafiando a desenvolver a capacidade de conviver com as diferenças.” (SILVA; BRANDÍN, 2008)
O prefixo “re” está cada vez mais em alta, afinal de contas propõe direta ou indiretamente
novos olhares ou ações sobre o que já está posto. Direta ou indiretamente, considerando que
ele inicialmente nos indicará um retorno a algo pré-estabelecido, o que independe de
alterações. Os novos olhares que se refletem na expansão do prefixo são consequências da
crítica ao prontamente estabelecido. Diversidade é a palavra de ordem para esse espaço social
tão enriquecido por variadas contribuições, daí a expansão do “re”, uma vez que a película que
sugeria uma uniformização começa a ser desarticulada, de maneira que as diferenças passam
a ser percebidas com normalidade, não mais como degenerescência. “Nunca se falou tanto da
diversidade e da identidade como no atual quadro do desenvolvimento mundial dominado pela
globalização da economia, das técnicas e dos meios de comunicação” (MUNANGA, 2010,
p.47). Nessa perspectiva, considerando a diversidade e as identidades, em uma vertente
educacional, objetivamente nos deparamos com a temática multicultural, compreendendo-a
como um trabalho proveitoso para o diálogo entre culturas, com possibilidade de forte
contribuição para a reavaliação de valores pertencentes aos âmbitos social e cultural.
Podemos pensar novamente na cultura da discriminação (CANDAU, 2005), que tanto
atravessa os espaços de construção de valores, entre nós e os outros, e partirá sempre de um
reconhecimento ou desconhecimento. A atribuição de diferente, no que se refere a
características identitárias e comportamentos, será argumento intensamente utilizado com a
pretensão de hierarquizar. O diferente estará diretamente vinculado ao inferior. Nessa
perspectiva nos é possível compreender, com maior abrangência, a intensidade ou ainda
22
profundidade do trabalho educacional, a partir da multiculturalidade. Acredita-se que esta deva
tomar como pressuposto, justamente, a desigualdade:
“levar em conta a pluralidade cultural no âmbito da educação implica pensar formas de reconhecer, valorizar e incorporar as identidades plurais em políticas e práticas curriculares. Significa, ainda, refletir sobre mecanismos discriminatórios que tanto negam voz a diferentes identidades culturais, silenciando manifestações e conflitos culturais, bem como buscando homogeneíza-las numa perspectiva monocultural.” (SILVA; BRANDÍN, 2008)
A cultura da discriminação pré-determina lugares, que somente poderão ser questionados,
senão efetivamente abalados, diante da percepção crítica dos paradigmas que ela impõe.
Ao reconhecer-se pontualmente o mal que se fez ao longo da história da humanidade,
sobretudo no que se refere às construções das identidades e autoestima de grupos étnicos,
culturais e sociais; de grupos marginalizados sobre vendas ou de maneira desvelada, é que se
poderá promover uma releitura eficiente de mundo. A educação, que deve ser libertadora, à
medida que nos afasta da sombra da ignorância, de variadas maneiras vem colaborando,
talvez indiretamente, com a reafirmação de paradigmas segregadores. Muitas vezes, tal fato se
dá em decorrência de uma naturalização da cultura da discriminação. Acredita-se que a
educação vinha prestando esse desserviço, à medida que se mantinha inerte frente às
repressões, ademais de reproduzir hábitos e ideias que reafirmam o ideal de sobreposição. O
processo de reinserção e valorização da diversidade na sociedade, pelas vias da educação
exige um trabalho de base multicultural bastante engajado, com a proposta de promoção da
releitura de mundo, as várias vertentes.
É válido frisar que ao falarmos em multiculturalismo estamos pensando-o de acordo com
o que será chamado de multiculturalismo crítico, ou ainda de perspectiva intercultural crítica
(CANEN, 2007). Nesse sentido, nossa avaliação valoriza uma prática que está diretamente
vinculada com uma proposta que tem como discussão central o questionamento da construção
dos preconceitos, das diferenças e da hierarquização cultural. Não pensamos o
multiculturalismo a partir de uma abordagem liberal ou ainda chamada de folclórica, segundo
CANEN (2007). Esta outra face da proposta multicultural, apesar de valorizar a pluralidade
cultural, desvalida ou esvazia seu discurso, em nosso entendimento, à medida que desenvolve
tal valorização mediante o reducionismo de sua metodologia de ação a “aspectos exóticos,
folclóricos e pontuais, como receitas típicas, festas, dias especiais – dia do Índio, por exemplo”
(CANEN, 2007, p.93)
A respeito dos valores que embasam o multiculturalismo, SILVA & BRANDÍN (2008), o
definem de forma bastante objetiva e em comunhão com nossa percepção dele, dizendo que:
“o multiculturalismo é uma estratégia política de reconhecimento e representação da diversidade cultural, não podendo ser concebido dissociado dos contextos das lutas dos grupos culturalmente oprimidos. Politicamente, o movimento reflete sobre a necessidade de redefinir conceitos como cidadania e democracia, relacionando-os à afirmação e
23
à representação política das identidades culturais subordinadas. Como corpo teórico questiona os conhecimentos produzidos e transmitidos pelas instituições escolares, evidenciando etnocentrismos e estereótipos criados pelos grupos sociais dominantes, silenciadores de outras visões de mundo. Busca, ainda, construir e conquistar espaços para que essas vozes se manifestem, recuperando histórias e desafiando a lógica dos discursos culturais hegemônicos. Os estudos sobre os fenômenos culturais partem da necessidade de compreensão dos mecanismos de poder que regulam e autorizam certos discursos e outros não, contribuindo para fortalecer certas identidades culturais em detrimento de outras.” (SILVA; BARDÍN, 2008, p. 60-61)
Ao pensar-se em Brasil, estamos falando de um país em que a diversidade étnica é uma
atribuição bastante objetiva. Tal atributo, como qualquer marcador de identidades, deve ser
bem analisado para que se crie caminhos harmônicos para a condução dos rumos sociais.
Nesse sentido, o harmônico faz referência não ao que agrada a todos, mas ao que não agride
ou privilegia a ninguém. Esse é o pressuposto da igualdade no trato com as diversas temáticas
que perpassam os itinerários do trabalho educacional. Ainda a respeito da questão étnica, não
se deve perder de vista que se trata de um argumento para a hierarquização criada na
sociedade, o que tem relação direta com as bases da cultura da discriminação. O
multiculturalismo se mostra, então, teoricamente um interessante mecanismo para as
complexas vivências que atravessam o espaço educacional.
“Ao lidar com o múltiplo, o diverso e o plural, o multiculturalismo encara as identidades plurais como a base de constituição das sociedades. Leva em consideração a pluralidade de raças, gêneros, religiões, saberes, culturas, linguagens e outras características identitárias para sugerir que a sociedade é múltipla e que tal multiplicidade deve ser incorporada em currículos e práticas pedagógicas.” (CANEN, 2007, p. 94)
Nesse sentido, é possível perceber-se a intrínseca relação, que não pode ser
desprezada, entre educação e apreensão da realidade, tal qual nos afirma o educador PAULO
FREIRE (1996). Na esteira da fala do referido teórico, podemos considerar que seja a
capacidade de aprender não somente um meio para a adaptação a realidade em que estamos
inseridos, mas sobretudo como forma de intervenção. Deve-se pensar a educação em um
diálogo constante com a realidade, inclusive no que se refere ao seu aspecto cultural, para que
o processo de ensino-aprendizagem esteja efetivamente atrelado às construções e
reconstruções.
Levando em conta a relação entre educação e cultura, fazendo um recorte referente ao
espaço nacional brasileiro, seguindo o pressuposto a que fazemos referência, torna-se
necessária uma investigação acerca da cultura brasileira. Ao pensa-la, crendo no que nos
propõe o multiculturalismo, avaliamos a estrutura sócio-cultural em um rumo contrário ao
comumente observado. Não pensamos do centro para a margem, mas da margem para o
centro. É nosso interesse desarticular o berçário dos preconceitos, considerando teorias que o
embasam e suas práticas cotidianas, a partir de reconstruções no imaginário das crianças e
24
jovens. As identidades são também pontos de observação. Em reflexões posteriores,
pensaremos a construção das identidades destes, destacando a comunidade de terreiro; assim
como os conflitos decorrentes dos choques de valores nessas construções.
Pensando as estruturas sociais de poder, assim nos afirma MUNANGA (2010):
“Os estudos feministas, na mesma direção que os estudos sobre relações raciais, já demonstraram suficientemente como as mulheres e os negros foram as categorias sociais naturalizadas na história da humanidade com os objetivos de exclusão da participação nas relações e estruturas de poder.” (MUNANGA, 2010, p.45)
Almejando desarticular a lógica excludente, que parte rotineiramente do âmbito central,
voltando o olhar para os marginalizados, se faz necessário compreender a realidade na qual se
inserem as diversas etnias e culturas, sobretudo as inscrições da racialidade no pensamento
social brasileiro. Tal processo coloca-se em caráter de fundamentação para a construção de
caminhos para encontros harmônicos que desfaçam as hierarquizações decorrentes de
diferenças no que se refere a culturas e manifestações das identidades.
“A multiplicidade de culturas e a pluralidade de identidades, em face de relações de poder assimétricas, geram a necessidade de questionar e desafiar práticas silenciadoras de identidades culturais. Particularmente, as questões de racismos, machismos, preconceitos e discriminações, tão importantes para a escola e o currículo, só podem ser analisadas produtivamente sob uma perspectiva que leve em conta as contribuições dos Estudos Culturais.” ( SILVA; BRANDÍN, 2008, p. 62)
Nesse sentido, nossa proposta é de uma convergência reflexiva sobre o negro e o que se pode
reconhecer como afro-brasileiro, focando: o ser negro, a educação e a religiosidade afro-
brasileira.
Ao se considerar a educação pelas vias do multiculturalismo, deve-se fazer a ressalva de
que não se objetiva um pluralismo desenfreado, contudo um diálogo entre grupos diferentes,
que mesmo marcados pela diversidade identitária, consigam estabelecer relações pacíficas e
desvinculadas do pressuposto de sobreposições e demais ideias decorrentes do entendimento
de superioridade e inferioridade. No lugar de compreender-se as relações com as culturas a
partir de um sistema de oposições, considerando binômios como igualdade-diferença/
superioridade-inferioridade, cremos em uma maior validade na construção do respeito às
identidades diversas. O reconhecimento das especificidades de grupos, sem o entendimento
de um problema nas especificidades é parte das maiores relevâncias desse projeto de
educação.
25
I.3 O ser negro e a Literatura para crianças e jove ns
“Um dos saberes fundamentais para a prática dos educadores é a
certeza de que mudar é difícil, mas é possível.” Paulo Freire
Tomando a tríade que dá corpo a essa pesquisa como centro, no caso o negro, a
educação e a cultura afro-brasileira, o que se almeja é a retirada desses referenciais do espaço
da subalternidade, no âmbito educacional, considerando seus vários aspectos como práticas,
livros didáticos e etc; e consequentemente dos âmbitos social e cultural. Faz-se tal afirmativa, à
medida que se tem como norte a assertiva de que a educação é a fonte primeira para o
processo de desarticulação e erradicação do racismo.
Para que se alcance o intento, ou seja, a referida retirada, pretende-se colaborar por
meio da investigação/sugestão de uma parceria entre a educação, apoiada na lei 10.639/03 em
laços com a literatura para crianças e jovens; e as narrativas que dão sustentação a práticas
religiosas, além de valores morais e éticos afro-brasileiros. A lei 10.639/03 configura-se no
cenário nacional como uma grande oportunidade que gera uma série de brechas para o
enfrentamento dos discursos e ações racistas que sobrevivem no seio da sociedade. No que
se refere às brechas, ela incentiva indiretamente ao multiculturalismo, uma vez que se
pensarmos um princípio de igualdade, ainda que a referida lei aponte para um grupo étnico
específico, insurgem desejos de contemplar demais grupos. Na esteira dessa lógica é que
surgem as demais leis que enriquecerão os debates e conflitos em prol das necessárias
reconstituições.
Partindo do reconhecimento da ação negra enquanto participante e não somente
contribuinte na construção física e social do que percebemos hoje como Brasil, a referida lei
torna possível a interação entre manifestações culturais duramente negadas e reprimidas ao
longo dos séculos e a cultura dominante, já enraizada no cenário social. Atrelando essa ideia à
proposta de parceria entre educação, cultura e religião afro-brasileira, pode-se pensar a
eficiência da literatura no desenrolar desse processo. Não escapa a nossa compreensão as
dificuldades de implementação da proposta de trabalho com o que se conhece como mitos
yorubás. Todavia, cremos que o momento social que se vive, considerando ser este
intensamente marcado pelas releituras e enfrentamento das desigualdades, seja o momento
ideal para a execução desse tipo de tarefa. O que deve ser destacado, inclusive é que, nesse
sentido, as referidas narrativas dão corpo a uma face do que se chamará de cultura afro-
brasileira, considerando, então, todo o valor simbólico que carregam consigo. Dessa maneira,
estas não devem ser pensadas sob a ótica religiosa, que de certo será uma perspectiva
utilizadas para negar e desconstruir, ancorados no preconceito, a proposta em questão. Não se
pretende uma apologia ao candomblé, mas a valorização de uma cultura que de maneira nobre
26
sobrevive nessa religião. Além disso, consideramos o processo de afirmação de identidades
negras que se dá nas casas de candomblé, com intervenção ou auxílio dessas narrativas,
tomando-o como exemplo para que se intervenha na realidade do estudante negro que é
ensinado a negar essas mesmas identidades, em sociedade e até mesmo na escola.
A literatura e, por sua vez, as faculdades de letras, convivem, em geral, com um espaço
identificado em um modelo clássico de propostas e práticas pertinentes ao desenvolvimento
dessa arte no país. Como país colonizado, o Brasil inicia sua carreira literária e segue, por
longo tempo, o que lhe é apontado como modelo, no caso, uma literatura européia. Por mais
que em dados momentos da história literária, como por exemplo o período que chamaremos de
romantismo, pertinente ao século XIX, além do modernismo (século XX); se tenha fases de
louvação ao negro, em meio a busca por uma identidade nacional, identificaremos somente há
cerca de trinta anos movimentos de afirmação e valorização da negritude. Há de se considerar
também, que trata-se de um curto espaço de tempo para se retratar, de maneira eficaz, um
efetivo rompimento com o sufocamento e negação por tanto tempo cultivada.
Foi somente ao redor da década de 70, que se pode perceber alterações referentes aos
valores divulgados pela literatura. Pretendendo alterações em uma abordagem social que haja
em favor da desarticulação dos preconceitos, movimentos como o antirracista, entre outros,
sugerem uma releitura de valores. Nesse percurso promove-se um processo de enfrentamento,
sobretudo, à estigmatização de parcelas da sociedade e aos demais preconceitos, almejando
maior liberdade para o conhecimento e interpretação da realidade, ademais da aceitação das
diferenças. Observa-se então o desabrochar de uma literatura de caráter mais flexível, no que
se refere a temáticas e discussões a serem abordadas. Questionamentos surgem e fazem
despontar debates antes impensáveis, frente às premissas sociais da época, como questões
de gênero, tal qual considerações a respeito do poder masculino no âmbito familiar e as
diferenças entre meninos e meninas.
No que tange ao ser negro e a literatura, podemos afirmar quem talvez, mais do que o
momento do romantismo, o modernismo seja um período de intenso movimento sobre a
questão. No período do século XIX, no qual a questão do negro foi levantada por personagens
como Castro Alves, conhecido como poeta dos escravos e grande destaque nesse momento
literário no combate a escravidão; teve a insurgência dessa questão um caráter de crítica
social, em um movimento pela abolição da escravatura. Entretanto, “No século XX, a literatura
dá contornos bem delineados às questões específicas do negro brasileiro. Porém, essas
questões já são tratadas, ainda que sem tanta força e destaque, em alguns textos literários
produzidos anteriormente.” (FONSECA, 2006,p.36). É válido ressaltar que a temática do negro
no Brasil, no que refere-se a literatura não está restrita ao romantismo e modernismo. Esses
períodos são citados como momentos de maior destaque para essa questão, todavia é
27
possível encontrar-se na literatura, algumas referências em outros momentos, o que não
compõe nosso objeto de apreciação e/ou investigação aqui.
Observando a literatura brasileira, sem restrições ao público a que se destina, podemos
afirmar, ainda no que se refere ao modernismo brasileiro, que incidência da personagem negra
em suas tramas ainda se mostra pouco intensa. E desprovida de caráter de valoração. “O
Modernismo, no início do século XX, ao lutar pela valorização dos elementos “étnicos
primitivos”, dera certa importância aos motivos inspirados na cultura africana, embora tenha
acolhido com mais vigor a figura do índio.”(FONSECA, 2006,p.36). O negro se manteve no
lugar dos referenciais menores. Entre outros, a esse âmbito pertence o universo negro em
aspectos gerais, considerando então suas faces sócio-cultural, profissional, ético-moral entre
outras. As relações étnico-raciais, vivenciadas cotidianamente pela sociedade, não são
problematizadas.
Acredita-se na literatura destacando, sobretudo, seu caráter engajado, apostando na
potencialidade desta no desempenho de uma função social. Cremos em sua força de recriar
perspectivas, conceitos e/ou valores no imaginário, da mesma forma que cremos no imaginário
como gênese de uma série de posicionamentos. Nesse sentido, atribuímos a literatura para
crianças e jovens uma grande relevância. A literatura em questão, assim como o campo
literário em um perspectiva panorâmica, vem concebendo, dentre outros motivos, em
decorrência das movimentações no cenário nacional, novas percepções no que se refere às
temáticas culturais e sociais, sendo estas apoiadas em concepções vinculadas à diversidade.
Na atualidade, se percebe de maneira muito mais expressiva a valorização de identidades das
populações negras.
Compreendemos a literatura para crianças e jovens como agente de grande influência
na construção do imaginário e daí a crença no seu caráter de reconstruir valores. Se durante
séculos a personagem negra, tal qual sua cultura foram invisibilizados ou subalternizados, da
mesma maneira em que ocorreu na sociedade; alimentando o paradigma da inferioridade do
negro, trazer a cena essa temática oferecendo a esse trabalho um caráter de problematização,
no que se refere às relações étnico-raciais, ou de apresentação e valorização de uma cultura,
como pretendemos com a abordagem da mitologia afro-descendente, nos parece uma
proposta bastante adequada e eficaz. Para desarticular o racismo é preciso que se
desconstrua visões estigmatizadas e simultaneamente se reconstrua valores. As narrativas que
se conhece como mitos yorubás podem cativar ouvintes/leitores de todas as idades e como
sabemos podem promover intensos reflexos, afinal de contas, muitos de nós, ainda nos
recordamos de histórias que ouvimos na infância e elas podem exercer influência em nossas
construções pessoais.
Pensando ainda o ser negro e as possibilidades de construção do imaginário, nos é
possível considerar ainda outro aspecto. Considerando a baixa incidência da personagem
28
negra na literatura, podemos questionar o lugar do herói e da heroína negra. Onde eles estão?
Sabemos o quanto essas figuras são relevantes para as crianças. São estas alvo de admiração
dos pequenos. Personagens admirados e com os quais se busca uma identificação.
Costumeiramente podemos observar esses personagens com características brancas. Ora,
como uma criança negra poderá fortalecer suas identidades negras, tendo como referencial um
mundo que só reconhece heróis e heroínas brancos e brancas, que em nada se parecem com
elas? Frente a esse dilema que envolve além da afirmação das identidades negras, a auto-
estima dessas crianças, as personagens negras das histórias afro-descendentes podem
ocupar esse lugar. E, ao mesmo tempo, lhes contar uma história do povo negro muito diferente
da que eles estão acostumados a ouvir. Não se trata mais de uma população subalternizada,
composta por escravos que sobrevivem à submissão, condição naturalmente oferecida a eles
nesse país. Mas agora de nobres personagens, envolvidos em narrativas romanceadas, que
revelam um olhar sobre a história do mundo, que tem o negro como centro. Uma série de
narrativas que apresentam valores yorubanos relacionados à ética, moral, relações humanas,
valores culturais e religiosos, entre diversas outras temáticas.
Observou-se, a partir da pesquisa de campo que as crianças de candomblé, tem muitas
vezes nos òrìsà (orixás) seus heróis e heroínas negros e negras. Eles, os orixás, suprem a
necessidade dessas crianças de interação com imagens da negritude que colaborem com o
fortalecimento de suas identidades. Da mesma maneira, essas nobres personagens negras
podem interagir através das referidas narrativas, oferecendo a elas a possibilidade de
reconhecimento de heroínas e heróis negras e negros.
I.4 Religiosidade, educação e cultura: os mitos yor ubás para além das bases de uma
religião
“Nós não temos bíblia, não temos o alcorão, não tínhamos tantas coisas
aí. Tínhamos o quê? Nós aprendemos através das historias, dos mitos”
Mãe Stella de Oxóssi
Pensando os mitos yorubás na literatura para crianças e jovens, podemos afirmar que
tais histórias por muito tempo sobreviveram na literatura oral e há algum tempo vem
conseguindo espaço na literatura escrita, em sua vertente infantil e juvenil, mas não se
restringem a esse público. Em favor da tradição da oralidade, tão cultivada nos candomblés,
houve enorme resistência na travessia dessas narrativas do espaço da voz para o das letras.
Reconhecendo a estrutura desses textos, devemos considerar, ainda, que não se trata
efetivamente da travessia de uma condição a outra, uma vez que tais narrativas sobrevivem
29
em um espaço intervalar, no qual voz e letra coexistem. O que se quer dizer é que os traços da
oralidade se mantém na transcrição dessas histórias.
Render-se a tradição ocidental de valorização da escrita foi necessário, diante de um
pressuposto de preservação. Ocorre, nessa situação, algo que, como nos afirma LAURA
PADILHA(2007), vem acontecendo intensamente com o texto moderno, tornando-o “uma
espécie de falescrita ou , como em vários outros tempos e lugares afirmei, um espaço híbrido,
intervalar, que se sustenta na fronteira gozosa onde a voz se encontra com a letra. (PADILHA,
2007, p. 279 ). Ao nos depararmos com histórias da mitologia dos yorubás na literatura para
crianças e jovens, nos confrontamos com um espaço híbrido, já que nele escrita e oralidade
convivem em harmonia, dispensando processos de sobreposição.
Considerando a formação sócio-cultural do país, nos é possível afirmar
categoricamente, que as tradições e demais heranças culturais de origem africana e indígena
se mostram alicerces na estruturação da mesma. Partindo dessa premissa seria natural que
essas culturas ocupassem, na esfera social e /ou cultural, um espaço de equivalência ao que a
cultura colocada como centro, no caso a europeia, ocupa. Em diálogo com o que nos afirma
MUNANGA (2010) podemos dizer que:
“(...) essas heranças constituem a memória coletiva do Brasil, uma memória plural e não mestiça ou unitária. Uma memória a ser cultivada e conservada por meio das memórias familiares e do sistema educacional, pois um povo sem memória é como um povo sem história.” (MUNANGA, 2010, p.50)
Na esteira dessa lógica, o intento das leis 10.639/03 e 11.645/08 é garantir que a referida
memória coletiva seja perpetuada, negando o sistema de sufocamento que o modelo
educacional vinha sugerindo. Seguindo a proposta dessa pesquisa, vamos nos atentar para a
vertente negra, afro-brasileira dessa discussão, que se constrói a partir da lei 10.639/03.
Pensando as heranças que constituem a memória coletiva Brasil, fotografando a face da
afro-descendência, há de se fazer referência ao tráfico negreiro. É por meio desse nefasto
capítulo da história nacional que os referenciais negros principiam sua interação com as bases
da sociedade brasileira. Desde o princípio da organização social desse país, coube a
população negra, por força da hierarquização imposta, a marginalização. Nesse momento
específico, por mais que não se considerasse negras e negros como parte da sociedade, já
que se destinava a eles a atribuição de peça, coisa, já havia uma participação efetiva desse
grupo étnico. A mão de obra que ergue esse país é negra, mas não somente o espaço da
subserviência deve ser destacado. Uma gama de valores são apresentados ao Brasil indígena-
europeu em decorrência do diálogo com a cultura negra. E, na atualidade, muitos dos mesmos
exercem intensa atividade na movimentação e visualização cultural do país. Em meio aos
referidos agentes culturais, que participam da formação identitária dessa nação estão as
30
religiões afro-brasileiras. A respeito da temática explorada nesta recente explanação, assim
afirma MUNIZ SODRÉ(2006):
“(...) é fundamental a memória da contribuição africana em termos de estética, música, culinária e religiosidade para as formas de vida atuantes entre as classes subalternas no país. Não foi uma contribuição aleatória e anárquica, mas um verdadeiro processo civilizatório, que comporta mesmo a categoria “elite”, a propósito das movimentações sociais dos africanos e seus descendentes. As categorias litúrgicas matriarcais, aquelas que deram origem à profusão e à popularização dos cultos afro-brasileiros, foram resultado de uma aglutinação de elite, caracterizada pela participação fundacional de altos dignatários e sacerdotes do milenar culto aos orixás, trazidos ao Brasil na condição de escravos, em conseqüência das guerras interétnicas e das incursões guerreiras dos escravagistas no continente africano.” (SODRÉ, 2006, p.12)
Ainda que escravizados, culturalmente sufocados, desumanamente tratados, negros e
negras trazidos para o Brasil, pouco depois do achamento dessas terras, conseguem fincar
raízes nesse lugar, perpetuando e por que não imortalizando aqui, tradições de lá. Mesmo
diante do todo o sofrimento a que foram submetidos, os referidos escravizados carregam a
essência de sua fé e religiosidade. Valendo-se de mecanismos de defesa ou talvez
enfretamento, como o sincretismo religioso com a igreja católica, que deixa até a
contemporaneidade rastros no senso comum; o choque cultural é superado e a tradição
religiosa mantida, obviamente com as devidas adaptações ao novo mundo.
É no século XIX que a religiosidade em questão adquire uma estrutura sólida. Nesse
rumo se alicerça o que reconhecemos como Candomblé, que pode ser compreendido como
complexos africanos no Brasil, considerando que são estes ambientes espaços de objetivas
manifestações da cultura afro-brasileira. Pensando o afro-brasileiro, o entendemos como o
fruto de diálogo entra África e Brasil.
No que tange a construção das estruturas das religiões de matriz africana no Brasil,
REGINALDO PRANDI (1995) afirma que:
“Desde sua formação em solo brasileiro, as religiões de origem negra têm sido tributárias ao catolicismo. Embora o negro, escravo ou liberto, tenha sido capaz de manter no Brasil dos séculos XVIII e XIX, e até hoje, muito de suas tradições religiosas, é fato que sua religião enfrentou-se desde logo com uma séria contradição: as próprias estruturas social e familiar às quais a religião dava sentido aqui nunca se reproduziram. As religiões de culto aos ancestrais, que se fundam nas famílias e suas linhagens.” (PRANDI, 1995, p.115)
Refletindo o apontamento em questão, podemos direcionar a análise no sentido de um
processo de colonização das religiões afro-brasileiras. A religião que surge enquanto estrutura
religiosa no Brasil, passando a ser chamada de Candomblé, mas tem sua gênese em terras
africanas. Essa religião pode ser chamada de sincrética se considerarmos as trocas
pertinentes a sua permanência no novo mundo. Uma série de ressignificações foram
fundamentais para que essa forma de culto sobrevivesse a travessia forçada. O sincretismo
31
com o catolicismo, instrumento de enfrentamento e/ou resistência às investidas de apagamento
do escravizador, foi de grande importância para a sobrevivência dessa fé, mas hoje não possui
mais sentido de ser. Como afirmou Mãe Stella em nossa entrevista24:
Observando o Candomblé, sua comunidade religiosa e hábitos, podemos compreender
que a referida religião é capaz de fortalecer em seus devotos a afirmação/construção de uma
identidade negra, africana, afro-brasileira. Pelas vias da memória, a religião de orixás recupera
práticas de origem ancestral. Trataremos dessa temática em outro momento da análise. Em
contrapartida, percebemos ainda que a cultura do dominador mantém sem reflexos na cultura
afro-brasileira. A afirmação da fé afrodescendente, por si só, já condenaria o escravizado e os
sobreviventes desse processo à invisibilidade.
Invariavelmente, apenas após uma suposta rendição, os negros e negras,
marginalizados(as) em decorrência da etnicidade, conseguiram infimamente uma inserção na
sociedade. Se é que podemos considerar a experiência desencadeada no pós-abolição como
inserção. Até os dias de hoje ainda é possível o questionamento a cerca do lugar que negros e
negras ocupam nessa sociedade. E é também em decorrência disso que as relações étnico-
raciais seguem em pesquisa. Não se aceita a condição desigual e excludente da sociedade.
Atendo-nos, nesse momento, a sobrevivência da religião afrodescendente a travessia África-
Brasil e a relação sincrética que se desenvolveu com o catolicismo, para a plenitude desse
processo, assim nos afirma REGINALDO PRANDI(1995), considerando não somente a relação
entre as formas de religião, mas também a questão das identidades e do sentimento de
pertença que se faz necessário para essa ruptura necessária.
“Somente muito recentemente – quando a sociedade brasileira não precisa mais do catolicismo como a grande e única fonte de transcendência que possa legitimá-la e fornecer os controles valorativos da vida social, as religiões de origem negra começaram a se desligar do catolicismo. Mas isso é um projeto de mudança de identidade que mal começou e que exige, antes, outras experiências de situar-se no mundo com mais liberdade e direitos de pertencimento” (PRANDI,1995,p.116)
No que tange a citada experiência de situar-se no mundo, tal qual a necessidade de se
vivenciar plenamente a liberdade, ademais de direitos de pertencimento, cabe nessa proposta,
focando questões educacionais, uma reflexão sobre multiculturalidade. Seria ela, a
multiculturalidade, uma forma de provocar análises sobre as várias formas de se situar no
mundo, além da multiplicidade de maneiras de se compreendê-lo. Tomando como princípio as
leis 10.639/03 e 11.645/08, podemos afirmar que almeja-se uma educação que promova a
integração entre os diferentes grupos culturais que dão corpo a sociedade brasileira. Cremos
que por meio dos possíveis diálogos que esse meio de educar pode promover, trazer a cena
[24]
Ao longo do texto, diversas vezes se fará referência a falas de Mãe Stella com relação a nossa entrevista. Trata-se de
fragmentos da entrevista concedida por ela durante a pesquisa de campo.
32
educacional valores afro-brasileiros é propor a inclusão frente às diferenças cultuadas
rotineiramente.
De acordo com a leitura que propomos desse processo de inclusão, nos é possível
afirmar que a partir dos perceptíveis encontros entre cultura e religião, em parceria com a
proposta multicultural, a diversidade, tal qual a desigualdade é reconhecida e posta em
confronto na proposta de uma reconstrução inclusiva. Em reflexão sobre a gama de
possibilidades de análise provenientes do referido encontro, pensando a afirmação de
identidades negras, tal qual na desconstrução de olhares inferiorizantes a cerca da
afrobrasilidade por vias educacionais, considera-se a apropriação da mitologia dos yorubás,
que exercem relevante papel no desenvolvimento da cultura africana que nos chega de
maneira mais intensa, como possível objeto ou instrumento para a reconstrução de
paradigmas.
Frente às práticas do candomblé, a mitologia, além de explicar dadas posturas, justifica,
a media que dá sentido a todos os atos realizados. Nesse sentido, o mito enquanto gênese do
ritual participa da estruturação dele além de se colocar como roteiro ou cenário da ação. O
candomblé insere em sua ritualística, como tantas outras crenças uma (re)vivência mitológica.
Esse processo se desenvolve inclusive nas cantigas e danças que embalam os rituais.
Considerando a rica carga cultural que essa mitologia carrega consigo, é possível
investigá-la como alternativa para uma releitura das tradições, religião e propriamente da
cultura africana e afro-brasileira em si. Ressalta-se que em um trabalho com tal mitologia o
que se pretende é (re) apresentá-la ao educando, por uma via dissonante da voz corrente que
insiste em estigmatiza-la.
Em suma, reconstruir imagens deturpadas no imaginário social, referentes às culturas,
tradições e religiões afro-brasileiras exige uma releitura desse universo. Na busca pela citada
releitura é preciso que se compreenda a diversidade centro de uma educação para as relações
étnico-raciais. O que se conclui é que por muito tempo a ignorância se sobrepôs a razão. A
afrobrasilidade se construiu de maneira encoberta pela repressão e se mantém nos dias hoje,
muitas vezes ainda escondida no mistério que o véu do desconhecimento provoca. Pensar os
mitos para além das bases de uma religião é reconhecer neles grande profundidade, o que
possibilita a necessária (re) apresentação. Intentando desarticular as percepções provenientes
da ignorância, oferecendo a luz do conhecimento efetivo dos pressupostos que norteiam a
lógica comportamental e ritualística desses grupos, um trabalho educacional apoiado no tripé
oralidade-mitologia-religiosidade se constitui, em nossa perspectiva, uma relevante
contribuição. É preciso negar os paradigmas que marcam negativamente a história e
representação do negro na história, literatura e educação brasileira.
33
Capítulo II – Literatura, oralidade e saberes: uma abordagem sobre a força das
palavras e da contação de histórias no candomblé
Ao nos depararmos com uma sucinta investigação, no que tange ao mundo das
palavras em interação com o desenrolar da vida humana, é possível notar-se o quanto ela é
intensa diante estrutura de sociedade que desenvolvemos. Nesse sentido, situo a palavra,
sobretudo, como motor da linguagem verbal, seja em sua face oral ou escrita. Obviamente não
são desprezados, enquanto linguagem, o valor dos símbolos e códigos que constituirão a
linguagem não verbal. Entretanto, frente ao que nos propomos a refletir, a palavra passa a
ocupar espaço de destaque. Na centralidade, prendo-me bastante ao seu potencial. Refiro-me
ao poder criador da palavra. A respeito disso traça-se, imediatamente, um paralelo entre
palavra e construção do imaginário. Dessa forma, seria então a palavra responsável por
desenvolver em nós uma série de noções e sensações. A relação significante - significado é
profunda e tem o poder de provocar a partir da relação enunciador – ouvinte uma série de
paradigmas. O que almejamos destacar aqui é a influência dos discursos que atravessam o ser
nas construções de si.
Se pensamos em literatura, é comum que se pense na face canônica que nos é
apresentada no âmbito escolar e acadêmico. E nesse cânone não se incluem as vozes
populares, não se abraçam as vozes desprendidas de letras escritas. Compomos uma
sociedade que valoriza o escrito e em favor disso, a fala, muitas vezes, perde a legitimidade
pela fragilidade que a fluidez lhe oferece. Todavia para além dessa concepção de literatura, no
caso a canônica, podemos fazer referência a uma literatura que se apoia na oralidade. Trata-se
de uma literatura intitulada Oral.
Considerada como aspecto fundamental no desenrolar da história da humanidade, à
medida que o ser humano evidencia grande aptidão para a linguagem verbal, como
possibilidade de transmitir e construir valores, a literatura oral consiste na arte de se valer
unicamente da oralidade para instituir valores, estabelecer pontes. Ainda que a denominação
concreta do termo tenha se dado posteriormente, o termo literatura oral foi cunhado por Paul
Sébillot em 1881. Inicialmente vinculada somente aos provérbios, contos, adivinhações,
orações, cantos populares e tradicionais, entre outros, a sobrevivência da oralidade,
atravessando marcas de temporalidade, oferece a literatura oral uma maior abrangência.
No decorrer do tempo, a literatura oral vem sendo naturalmente utilizada com a
finalidade de explicar, justificar e sobretudo promover o entretenimento. Nesse sentido, a essa
última funcionalidade citada, pode-se fazer alusão, por exemplo, à relação da infância e
construção do imaginário infantil em diálogo com a palavra falada e até mesmo a construção
dos conhecimentos, independente da fase da vida, uma vez que o imaginário é algo que tem
durabilidade vital.
34
Sabe-se que antes da inserção no mundo da escrita, ou seja, antes mesmo de se
conhecer e traduzir os códigos pertinentes à linguagem escrita, o mundo é norteado por sons e
imagens. Em dado instante do desenrolar da vida, parte desses sons poderão ser convertidos
em código linguístico. Transformados em palavras escritas, admitem uma outra roupagem sem
perder, no entanto, sua relação com o som. É a intrínseca relação entre voz e letra. São duas
faces de uma mesma moeda. A palavra tem nas letras seu corpo e no som, sua voz. Oriunda
dos leitores ou contadores de histórias, que muitas vezes não recorrerão ao texto escrito,
utilizando-se nesse momento da memória para enunciar, os rumos da literatura oral se
constroem.
Sobrevivente a partir da ação de duas tendências bastante divergentes, a literatura em
questão se faz ainda na contemporaneidade. Se por um lado, talvez o mais tradicional, sua
manutenção se ancore em uma base exclusivamente oral, atendo-se às lendas, anedotas,
adivinhações e as mais diversas canções, outra se vale de produções que, apesar de seu
caráter escrito tenham gênese voltada para a oralidade. Seja por meio da declamação, do
canto ou ainda outras vias. A esse segundo grupo, especificamente, se inserem livros
europeus com fábulas, temas próprios da época, autos populares, entre outros.
A essa literatura pode-se também fazer a atribuição de uma literatura folclórica. Para
tanto, faz-se necessário que seja esse conceito utilizado em perspectivas que destoam do
senso comum. Tal qual o vocábulo mito, ao folclore se atribui a ideia de inverdade. No entanto
não é esse o sentido que se aponta, quando se fala de uma literatura folclórica.
Independentemente da noção de veracidade, até mesmo porque a verdade também é um
conceito, a literatura folclórica possui uma série de características que a evidenciam. No
entendimento de CÂMARA CASCUDO (1984), a manifestação folclórica se instaura à medida
que além de popular é fruto de uma sobrevivência. Nesse sentido folclore e memória coletiva
seguem a mesma via, podendo inclusive ser o primeiro descendente do segundo. Como
elementos de caracterização do folclore, pode-se citar: a oralidade e tradicionalidade, ligadas
respectivamente à propagação pela palavra falada e a um processo que se dá de geração em
geração; aceitação coletiva, anonimato, espontaneidade e sobretudo funcionalidade. Na esteira
dessa lógica, as narrativas afro-brasileiras conhecidas nos candomblés como mitos yorubás,
ou ainda itan, seriam a partir da percepção de CASCUDO(1984), manifestações folclóricas ao
passo que são retratos da literatura oral.
Considerando o peso do senso comum no significado que comumente se atribui às
palavras, não trabalharemos com a terminologia literatura folclórica. Almejamos assim evitar
ruídos na comunicação, além de tratá-la como ela é mais profundamente conhecida. Tendo em
vista a incoerência de tratar da temática literatura oral desconsiderando a enorme contribuição
de CÂMARA CASCUDO(1984), citamos a terminologia por ele apontada por julgar necessário,
35
até mesmo para que esta nomenclatura não seja utilizada, frente ao objeto desta análise de
maneira errônea. No caso das narrativas do candomblé, a profundidade dessas histórias é
bastante superior às que popularmente circulam pelo senso comum, uma vez que são as
referidas histórias bases de um culto religioso, o que não ocorre com as ditas literaturas
folclóricas. Para que essas diferenças sejam respeitadas priorizaremos pela utilização do termo
que comumente circula nas casas de candomblé. Dessa forma trataremos as narrativas em
questão por meio do vocábulo itan.
II.1. Ìtan Atowodowó: história imemorial 25 - mitos yorubás, oralidade e literatura
“Reforçar a importância da tradição oral não significa, de modo algum, querer dizer que os povos africanos fossem ágrafos, mas apenas reiterar a importância da voz como a caixa de ressonância e/ou de ampliação que fez com que a memória do local da cultura resistisse aos canhões contra ela disparados.” (PADILHA, 2007, p.279)
Observando a cultura e tradição africana, é incontestável a percepção da manifestação
das tradições orais. A palavra para os africanos traz em si mesma toda a magia e uma grande
força. A prática da transmissão oral de conhecimentos é algo, para os nativos da referida
cultura, que estabelece uma ligação, senão uma relação com os antepassados e toda a
ancestralidade que exerce grande influência no cotidiano de África. “A palavra ocupa um lugar
especial nas comunidades, a ela é atribuída o poder de animar a vida e colocar em movimento
o axé contido na natureza”(BARROS, 2009, p.40). É a palavra responsável por fazer acontecer.
Ela carrega consigo a potencialidade de impulsionar ou retrair, incentivar ou impedir, abençoar
ou desconstruir a validade ou relevância de qualquer situação. A palavra é um instrumento de
poder, “a palavra é por excelência o grande agente ativo da magia africana.” (HAMPATÉ BA,
1993, p.17)
O mito africano, fruto da oralidade, tem em sua simbologia uma intensa relevância, a
partir do instante que através dele é que se faz a ligação entre o passado e o presente. Esse
elo formado entre os tempos, permite de alguma maneira, a perpetuação das tradições e da
religiosidade que se instaura a partir das memórias decorrentes dessas tradições, da mesma
forma que oferece bases para a formação dos princípios morais e éticos, direcionando os
caminhos do cotidiano e orientando os seres humanos a partir das experiências dos orixás,
ancestrais divinizados, seres encantados na própria natureza, que foram descritos por
VERGER (1981) assim:
[25]
A expressão “Ìtan Atowodowó: história imemorial”, utilizada aqui para dar título a seção é originalmente título de um capítulo do
livro Meu Tempo é agora, de Mãe Stella.
36
“Um babalaô me contou: ‘Antigamente, os orixás eram homens. Homens que se tornaram orixás por causa dos seus poderes. Homens que se tornaram orixás por causa de sua sabedoria. Eles eram respeitados por causa de sua força. Eles eram venerados por causa de suas virtudes. Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram. Foi assim que esses homens tornaram-se orixás. Os homens eram numerosos sobre a terra. Antigamente, como hoje. Muitos deles não eram valentes nem sábios. A memória destes não se perpetuou. Eles foram completamente esquecidos. Não se tornaram orixás. Em cada vila, um culto se estabeleceu sobre a lembrança de um ancestral de prestígio e lendas foram transmitidas de geração em geração, para render-lhes homenagem.” (VERGER, 1981, p.9)
No que tange as referidas lendas, como também são chamadas as histórias dos òrìsà (orixás),
as quais chamaremos de itán ou mitos, o sociólogo REGINALDO PRANDI (2001) considera
que:
“Os mitos dos orixás originalmente fazem parte dos poemas oraculares cultivados pelos babalaôs. Falam da criação do mundo e de como ele foi repartido entre os orixás. Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses e os homens, os animais e as plantas, elementos da natureza e da vida em sociedade.(...) Na diáspora africana, os mitos iorubás reproduziram-se na América, especialmente cultivados pelos seguidores das religiões dos orixás no Brasil e em Cuba. A partir do século XIX, primeiramente estudiosos estrangeiros, sobretudo europeus, e mais tarde letrados iorubas iniciaram a compilação desse vasto patrimônio.” (PRANDI, 2001, p.24)
Na literatura mítica, a natureza é humanizada e, através dela, são geradas críticas à
cultura humana e aos valores morais que a cercam. “O que deve ser entendido é que sempre
há um mito, um exemplo capaz de justificar qualquer teoria e qualquer prática, e que não deve
ser interpretado como curiosidade científica, mas sim como o reviver de uma mentalidade
primordial.” (BENISTE, 2006, p.14)
É a partir do momento que o homem começa a buscar respostas a seus
questionamentos, a respeito de sua existência nesse mundo e tudo que tem relação com a
vida, que os mitos começam a ser utilizados e admitidos como lógicos. “Nossos dogmas não
foram ditados por um Deus distante, eles são aprendidos na interação homem/divindade
através da natureza.” (ÒSÓSI, 2006, p.11)
Os mitos podem ser entendidos como a expressão cultural de um povo. Da mesma
forma que acontece em qualquer sociedade, para os yorubás, sociedade africana em foco
nesse trabalho, os primórdios têm muita relevância. O mito é o registro de grandes
acontecimentos, considerados agentes de formação de situações posteriores e, dessa forma,
serve para justificá-las. A mitologia yorubá surge da necessidade de um povo, com uma
tradição embasada na oralidade, registrar sua história. Através dele, o mito, o comportamento
das pessoas diante da vida e da sociedade é influenciado, como consequência da influência do
sagrado na vida dos africanos.
37
Como nos afirma a professora LAURA PADILHA (2007):
“A oralidade, ou oratura, como também alguns a denominam, se faz assim, a base de sustentação cultural africana e como que contamina o texto literário moderno, tornando-o uma espécie de falescrita ou , como em vários outros tempos e lugares afirmei, um espaço híbrido, intervalar, que se sustenta na fronteira gozosa onde a voz se encontra com a letra.” (PADILHA, 2007, p. 279)
O mito é sobretudo uma revelação desenvolvida para sustentar a crença religiosa, que é
algo de suma importância para os africanos, já que compõe um dos alicerces da construção da
estrutura social do continente, que se compõe a partir de uma mescla de religiosidade, política
e cultura.
MIRCEA ELIADE26 considera cinco aspectos fundamentais dos mitos: 1° - O mito constitui a história das ações de Entes Sobrenaturais; 2° - O mito coloca essa história como absolutamente verdadeira e sagrada; 3° - O mito dá sempre um sentido de criação para as coisas, ou seja, como vieram a existir ou como um comportamento, uma instituição, uma maneira de trabalhar foi inicialmente estabelecida; 4° - O mito é uma revelação: conhecendo-o, conhecemos a origem das coisas e, com isso, podemos dominá-las e submetê-las à nossa vontade. Esse conhecimento é “vivido” ritualmente, seja por narrativa ou repetição constante do mito em sua forma ritual; 5° - De uma ou outra maneira, o mito é vivido por sermos tomados pelo poder sagrado que engrandece os acontecimentos rememorados e reatualizados.
Em meio aos rituais candomblecistas, os mitos, além de explicar, dão sentido a todos os atos realizados. Algumas vezes, o mito não fica somente na construção da estrutura dos rituais ele passa a participar ativamente do ritual. Essa participação se dá entre outros momentos, mediante a presença da mitologia nas cantigas sagradas.
Segundo Mãe STELLA DE ÒSÓSI (2006): “Considerados como a mais perfeita manifestação da linguagem simbólica, os mitos justificam os ritos. Desse modo, podemos conceber os mitos e ritos como instrumentos capazes de fomentar a interação entre o universo pessoal do indivíduo e o universo como um todo.” (Òsósi, 2006, p.15)
O candomblé, uma religião com estrutura bastante dinâmica, tem em seu ritual a presença
constante dos cantos e das danças. “Na África Ocidental, as tradições orais possuem uma forte
relação com o canto e a música (...)ambas quando associadas formam um imenso repertório
que fala da vida política e social das populações ali encontradas”(BARROS, 2009, p.89).
Quando o mito se faz presente em cantos rituais, a dança pertinente a dada cantiga reconta
através de gestos a história que é louvada. Tais gestos acompanhados dos sons do sagrado
permitem uma comunhão com o divino.
[26]
Mircea Eliade apud José Beniste, 2006, p.12
38
“O cantar e o dançar imitando os gestos divinos integram o ser ao mito, e este a divindade. É a recriação do mundo e de toda a realidade que ocorre nessa celebração. A divindade, a natureza e o homem voltam a reencontrar-se. Há o objetivo de o homem tornar-se um òrìsà, sendo este parte do processo.” (BENISTE, 2006, p.16 )
Trata-se da antropologia dos corpos e nessa trilha se pensará as construções e
representações que se dão tendo o corpo como objeto de ação. Nesse sentido, pode-se
afirmar que nos candomblés os corpos são indumentados por uma série de marcadores
simbólicos que dialogam com a construção das identidades de seus membros, da mesma
maneira que se relacionam com uma série de posturas próprias dos rituais, que vão desde
detalhes de suas vestes e posicionamentos frente a dadas situações ritualísticas, até as
diferentes maneiras de saudar o sagrado “batendo cabeça” como costumeiramente se fala nas
casas de culto aos orixás. Esse encontro entre divindade, natureza e homem acontece por
meio da ação que a palavra provoca e se traduz em gestos e cantos que se constituem em
linguagem.
II.2 A palavra nas sociedades africanas
“As histórias dos mais velhos, muitas vezes, cumprem a função de preparar para a vida em sociedade, não há métodos pré-concebidos, não há verdades absolutas, são apenas histórias de vidas que confluem para possibilidades de aprendizado frente às situações corriqueiras do cotidiano” Fernando Santos
Os mais velhos, tanto em terras africanas, como nas comunidades negras afro-
brasileiras, e nesse sentido fala-se dos Candomblés, são considerados os responsáveis pelo
ritual de transmitir a toda a comunidade o poder que o circular da palavra exerce. É preciso que
se compreenda as diferentes percepções das fases da vida, de acordo com a cultura em que
se pensa essa questão. Embora estejamos inseridos em uma cultura ocidental, na qual a figura
do idoso ocupe o entendimento de período de descanso, final de vida, em uma perspectiva
africana não é desta forma que a velhice é caracterizada. Como nos afirma o africano
Kabwasa, escritor e especialista da Unesco em programas voltados para a educação:
“A cada uma das três idades do homem corresponde uma função particular. Assim a infância é um período de aprendizagem, um período muito físico durante o qual o desenvolvimento espiritual está em gestação. A maturidade é um período produtivo no qual o homem alcança o equilíbrio físico e espiritual. A velhice é a idade da sabedoria, do ensinamento e não do descanso, pois “mesmo que o corpo dos velhos desfaleça, seu espírito não descansa”. Ao contrário é o momento em que a vida do espírito se intensifica. Os velhos continuam a assumir funções importantes na sociedade, funções que apelam para seus conhecimentos da tradição em vários domínios: jurídico, religioso, médico-mágico, educacional e econômico. Detentores do saber tradicional, é no momento da iniciação que
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transmitem oralmente e de maneira ritual sua experiência prática as novas gerações.” (KABWASA,1982, p.14)
Nessa perspectiva, a velhice é uma fase da vida a que todos aspiram. De acordo com
essa visão de mundo que é perpassada por uma noção de força vital, o que chamaremos nas
religiões afro-brasileiras de axé, a velhice é respeitada e valorizada. Ápice da existência
humana, é nesta fase da vida, tal qual nos mitos, que se encontra a sabedoria que permite
transformar-se em uma ponte que liga o passado ao presente, apontando ainda os caminhos
do futuro. Dessa maneira, aquele que tem consigo o poder da palavra, traz também, em uma
perspectiva simbólica, a potencialidade de manipular forças no mundo. “Quem põe a palavra
em circulação ascende a um nível de poder maior, pois intervém no real, quase sempre com
um impulso de modificá-lo, dada a força cosmogônica da palavra que faz circular.” (PADILHA,
2007,p.275) Ao afirmar que “mesmo que seu corpo desfaleça, seu espírito não descansa”,
KABWASA (1982) nos sugere uma função desempenhada pelos espíritos dos anciãos, que nas
ressignificações afro-brasileiras se diluiu, de alguma maneira, na travessia África-Brasil. O culto
aos antepassados se configura como uma das mais relevantes relações com a ancestralidade
em uma perspectiva africana, afinal de contas seria dos ancestrais do povoado, e nesse
momento se faz referência aos mortos, a responsabilidade de zelar por dada comunidade,
mantendo a ordem e punindo aos transgressores.
A palavra é dotada de força à medida que estabelece relações com o movimento
contínuo da vida. “Assim, uma vez que a palavra é a exteriorização das vibrações das forças,
toda manifestação de força, não importa em que forma, será considerada sua palavra. Por isso
no universo tudo fala, tudo é palavra que tomou corpo e forma.” ( BA, 1993, p.16). A potência
da palavra, nessa perspectiva cultural, faz dela o grande agente não só da magia, mas o
grande agente da vida. Se tudo é palavra que tomou corpo e forma, todo o movimento da vida
e do mundo é consequência da ação da palavra.
Sendo assim, como podemos observar, as histórias ancestrais e seus contadores são de
extrema relevância no espaço cultural africano, da mesma forma que na construção cultural
dos candomblés, evidenciando a magia da oralidade. A esse respeito, assim nos fala VANDA
MACHADO (2006):
“O contador de história, nessa tradição, é um mestre, um iniciador da criança, do jovem e até do adulto. Trata-se de uma iniciação para a vida. As histórias míticas são contadas e recontadas e funcionam como mapas que encaminham os sujeitos nas suas possibilidades de convivência, sem prescrever conselhos, fazendo valer o arbítrio e o jeito de ser de cada um. Ou seja, os conhecimentos produzidos nessas culturas e seu aprendizado sempre podem favorecer a convivência ou uma utilização prática”. (MACHADO,2006, p.79)
As divindades são as personagens principais da mitologia yorubá, apesar de muitas
vezes contarmos com a presença de uma natureza humanizada para a explanação dos mitos.
40
Diante do que a mitologia nos conta, percebe-se no orixá características que, muitas vezes,
podem nos parecer incoerentes com a natureza divina dos mesmos, já que têm atitudes,
virtudes e defeitos tão humanos. “Os orixás alegram-se e sofrem, vencem e perdem,
conquistam e são conquistados, amam e odeiam. Os humanos são apenas cópias esmaecidas
dos orixás dos quais descendem.”(PRANDI, 2001, p.24). Essa maneira das divindades se
apresentarem promoveu uma grande aproximação entre o humano e o sagrado. “Os mitos não
criam esses deuses, revelam-nos juntamente com seus desejos e vontades. É essa a função
dominadora dos mitos que fixam modelos quase humanos às divindades, estabelecendo
desejos e determinados arquétipos a seus seguidores.” (BENISTE, 2006, p.29) Essa intrínseca
relação entre os humanos e o sagrado, aprofundada e embasada pelo mito, confere à
oralidade um lugar de destaque na formação sócio-cultural dos grupos étnico-religiosos
norteados por ela. Como nos afirma VANDA MACHADO (2006):
“Nas culturas africanas, principalmente hoje, compreende-se a história a partir da compreensão da oralidade. É através da oralidade, da voz do/s narrador/narradores que os mitos e os modos de organização dos rituais são transmitidos. Os mitos são constituídos de palavras organizadoras dos caminhos e vivências de cada um, em particular, e da comunidade.” (MACHADO, 2006, p. 80)
De alguma forma o mito admite, sobretudo, um caráter civilizatório, à medida que é dele
que partirão os valores que nortearão os rumos da sociedade submetida às intervenções do
mesmo. Nesse sentido a oralidade para as culturas em questão, no caso os candomblés,
assume o mesmo valor que as leis nas sociedades ocidentais que são legitimadas por
documentos escritos. Acontece na tradição religiosa yorubá e nos referidos espaços de
resistência, como pensamos os candomblés, uma documentação a partir da memória. Esses
mitos ditarão leis que devem ser absorvidas pela comunidade, sem no entanto recorrer às
escrituras alheias a memória dos anciãos, que são os responsáveis pela reconstrução dos
valores promovidos pela oralidade nas gerações que os seguem.
II.3 Percursos da palavra: entre heranças africana s e ressignificações na religiosidade
afro-brasileira
Toda essa cultura chega até nós por meio da memória e resistência dos negros
escravizados que superaram as barreiras da escravidão e conseqüentemente da repressão
impostas para o sufocamento de sua fé e cultura, trazendo através da oralidade até a
contemporaneidade a religiosidade hoje entendida como afro-brasileira. O complexo cultural
jêje-nagô é introduzido no Brasil, no século XVIII, pelos caminhos do Nordeste, principalmente
na Bahia, Pernambuco e Maranhão. Em decorrência da destruição de Ketu, atualmente no
Benin e Oyó, atualmente na Nigéria, os yorubás se sobrepuseram quantitativamente aos jêje.
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Nas palavras do professor JOSÉ FLÁVIO PESSOA DE BARROS (2006):
“A introdução contínua de africanos de uma mesma procedência étnica no meio urbano foi fator relevante para a viabilização de uma resistência maior ao colonizador e possibilitou a agregação e formação de núcleos ligados a preservação de sua cultura.” (Barros, 2006, p.23)
A força da tradição mantida há anos nas casas de Candomblé e o pulso forte das
ìyálórìsà (ialorixás), que reafirmaram no Brasil essa religiosidade e construção como uma
religião de resistência, possibilitaram, de alguma maneira, uma maior visibilidade ao culto de
òrìsà (orixá). Partindo de meados dos anos 30, pesquisadores e escritores passam a registrar
parte dessa oralidade que movimenta o dia a dia das casas de Candomblé. Dentre os referidos
estudiosos, podemos citar o antropólogo Artur Ramos, assim como o também antropólogo Julio
Braga, o sociólogo francês Reger Bastide e o africano Wande Abimbola. Não se pode deixar de
fazer referência ao fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger, que, em visita ao Brasil,
conhece o candomblé e o adere como religião, ganhando até em África, onde se inicia, um
novo nome, Fatumbi, passando a chamar-se Pierre Fatumbi Verger.
De acordo com REGINALDO PRANDI (2001):
“Pesquisadores brasileiros comentam a existência de cadernos mantidos secretamente pelo povo-de-santo como meio de preservar e passar adiante o conhecimento mítico, mágico e ritual cultivado nos terreiros brasileiros, mas isso é raro e recente, considerando o triste fato de que, até bem pouco tempo atrás, a maioria dos dirigentes dos terreiros e demais iniciados era analfabeta.” (PRANDI, 2001,p.25)
Em terras brasileiras, o professor Agenor Miranda Rocha, membro do Ilé Àse Opó Àfonjá
(Ilê Axé Opô Afonjá), terreiro da Bahia, em que se mantiveram as tradições divinatórias de
acordo com os métodos dos antigos babàlawó (babalaôs) é referência de uma grande fonte
das referidas memórias dos mitos de orixá. O caderno escrito por ele traz registros dos
aprendizados e práticas do candomblé e ìyálórìsà (ialorixás) da Bahia.
Durante muitos anos, as ìyálórìsà e babalórìsà (babalorixás) optaram pelo silenciamento
diante da sociedade, impendido confrontos com a cultura eurocentrada, mantendo dessa
maneira suas tradições e cultura restritas ao espaço demarcado pelos muros de suas
comunidades religiosas. A intolerância, o desrespeito e a repressão contribuíram para
intensificar o clima de mistério, digo intensificar considerando que o processo de transmissão
de conhecimento e o reconhecimento de particularidades e detalhes do culto são
tradicionalmente apresentados gradativamente, de mães/pais para filhos, de mais velhos para
mais novos, sempre seguindo uma ordem hierárquica, o que já sugere um tom de mistério aos
olhos e ouvidos leigos nas atividades religiosas.
Com o passar do tempo, a questão do silenciamento começa a ser repensada pelas
autoridades do candomblé brasileiro. Mantendo a proposta de uma resistência religiosa e
cultural, a sacerdotisa Maria Stella de Azevêdo Santos, Mãe Stella de Òsóòsí (Oxossi),
conhecida também pelo nome de Ode Kayode (Odé Caiodê), sacerdotisa do Ilé Àse Opó
42
Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá), dá um brado de alerta a toda a sociedade do Candomblé,
almejando despertar o povo-de-santo, com o exemplo que traz a cena religiosa, com seu livro
Meu tempo é agora (1993), reeditado recentemente. Em seus pensamentos, Mãe Stella afirma:
“O que não se registra, o vento leva”. E, nessa perspectiva, se levanta a questão de se
registrar, por meio da escrita, sem perder a essência da oralidade, registros da memória, nas
casas de candomblé. Desde então, a mãe de santo vem escrevendo sobre a religião de òrìsà
(orixá). Há pouco, a renomada sacerdotisa escreveu o livro infantil Epé Laiyé: terra viva, no
qual estabelecendo uma relação entre òrìsà (orixás) e natureza, escreve em favor da
preservação do meio ambiente. Assim como ela, outras sacerdotisas e sacerdotes tomam a
iniciativa de escrever sobre questões que atravessam a temática religiosa, além do ritual e da
religião em si. Dentre essas referências, podemos citar a ìyálórìsà (ialorixá) Beatriz Moreira
Costa, conhecida popularmente pelo nome de Mãe Beata de Yemoja (Iemanjá), iniciada no
centenário terreiro baiano do Alaketu, atualmente responsável pelo terreiro Ilê Axé Omi Oju
Arô, em Miguel Couto, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, que publicou o livro Caroço de
dendê – A sabedoria dos terreiros (1997); Gisele Cossard, antropóloga e escritora francesa que
se tornou ìyálórìsà (ialorixá). Iniciada pelo babàlórìsà (babalorixá) Joãozinho da Goméia.
Omindarewá, como é conhecida no ègbé (comunidade) do Candomblé, é autora de diversos
livros dos quais podemos citar sua mais recente obra, o livro Awô, o mistério dos orixás (2007).
Através da escrita, o acesso a essa memória contribui na construção de parcelas do que
se reconhece como cultura brasileira. O movimento de valoração da cultura, tradição e
religiosidade afro-brasileira, travado pelos movimentos sociais, oferecendo-se destaque, no
víeis dessa pesquisa, aos movimentos negros, religiosos e a iniciativa de autoafirmação da
comunidade afro-descendente, diante da sociedade brasileira, culmina com o favorecimento de
diversos grupos étnico-religiosos por intermédio da lei que propõe e obriga a inserção da
temática africana e afro-descente nas escolas. O que é de fato um grande avanço, uma vez
que evidencia a aceitação da proposta de novos olhares, a partir do governo, seguido de toda a
sociedade, no que se refere às questões étnico-religiosa-social.
II.4 Entre voz e letra: os mitos yorubás e a litera tura para crianças e jovens
Na contemporaneidade, podemos encontrar na literatura para crianças e jovens uma
certa reflexão sobre preocupações étnicas e sociais. Atualmente a visibilidade referente à
afirmação da identidade de populações negras, na literatura para crianças e jovens, é muito
maior, estabelecendo uma contraposição com o caráter dessa face literária, em períodos que
antecedem os anos 70. Em breve trataremos desse percurso temático da literatura infantil e
juvenil brasileira.
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Para exemplificarmos a presença dessa literatura etnocentrista, como pensamos a
literatura que traz a cena às temáticas e dilemas referentes a questões étnicas; podemos fazer
referência em um primeiro momento, a trilogia infanto-juvenil de Reginaldo Prandi. O professor,
escritor, pesquisador e sociólogo das religiões, anteriormente escrevia para o público adulto,
entretanto, a partir de sua obra para adultos, intitulada Mitologia dos Orixás, em decorrência do
incentivo de amigos, como afirma no primeiro volume da trilogia, o autor decide escrever
também para crianças e jovens. Dessa forma, entre 2002 e 2004, anualmente foram lançados
respectivamente os livros: Ifá, o adivinho; Xangô, o trovão e Oxumarê, o arco-íris.
Baseados pela caracterização dessa forma de escrever e descrever culturas,
objetivamente percebe-se a construção de uma linguagem verbal e não verbal, localizando
essa segunda linguagem nas imagens e símbolos que são trazidos ao texto; que oferece aos
leitores iniciantes uma parcela da enorme dimensão cultural do candomblé e da afro-
descendência na literatura. Através dessa linguagem literária, gradativamente são
apresentados os pressupostos culturais das referidas tradições e, de alguma maneira, começa-
se também o processo de desconstrução de estereótipos e paradigmas solidificados no
imaginário popular que desmerecem e menosprezam o negro, sua cultura religiosa e os
aspectos das sociedades afro-descendentes no Brasil. Essa literatura, pautada em uma
proposta engajamento, por meio de sua face reconstrutora de conceitos, é fundamental para
uma ressignificação da cultura afro-brasileira, além da construção do respeito às diferenças
culturais que são também partes da formação cultural do país. Sobretudo, devemos considerar,
como propõe PAULO FREIRE (1996), a educação como uma forma de intervir no mundo,
reconhecendo-a como ideológica.
Com a proposta de apresentar a trilogia infanto-juvenil de PRANDI, devemos considerar
que esta é constituída por mais de trinta contos, uma vez que cada livro apresenta um pouco
mais de dez. Nessas histórias apresentam-se inúmeros aspectos da tradição cultural e religiosa
dos povos yorubás, intimamente relacionados com o Candomblé brasileiro de ascendência
Ketu. Além disso, como não poderia deixar de ser, ao se tratar de religiosidade afro-brasileira,
esses contos promovem um retorno histórico, ao fazerem referências a um passado, a um
tempo em que essa cultura era apenas um marco da africanidade, de alguma maneira
reconstruída no Brasil, por meio de que conhecemos hoje como Candomblé, um espaço de
preservação e resistência.
Em toda a trilogia, há uma dedicação à proposta de trazer à cena a questão histórica da
escravidão e, em decorrência disso, também fazer alusão a alguns aspectos sociais, religiosos
e culturais. Há referências aos costumes, tradições, religiosidade e consequentemente Deuses
africanos, chamados de òrìsà (orixás). Apesar de estar submersa na temática da religiosidade,
que se entrelaça com a cultura, não há referências à religião no contexto africano. A
religiosidade é referenciada sobretudo a partir da relação de fé, devoção e afeto que os negros
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escravizados estabelecem com a figura e força dos òrìsà (orixás). Entretanto, encontram-se
também referências à gênese dessas divindades, suas raízes culturais e espaço consagrado
entre outras coisas. Dessa maneira, o autor localiza o público leitor a respeito da origem, e do
espaço primeiro de ação dessas narrativas, além de caracterizar e situar seus personagens na
construção cultural desses povos e até mesmo na própria natureza. As ilustrações colaboram
com a absorção da noção de afro-brasilidade que se pretende estabelecer, à medida que se
pauta em personagens negras, contrariando uma imagem que muitas vezes se faz de
divindades brancas, por questões sociais, tais como o embranquecimento da imagem de
Yemoja (Iemanjá), que, de ninfa das águas do rio Ogun e negra, torna-se rainha do mar e
branca, ressaltando nessa relação o embranquecimento dela, já que a travessia rio-mar tem
relação com a diáspora.
Apesar das três obras em questão serem nomeadas com a identificação de òrìsà
(orixás) específicos, os conteúdos não são restritos. Ao longo da história que norteia a
caracterização e culto dos òrìsà (orixás) referenciados, narrativas que nos trazem histórias de
outras divindades interagem, dialogando ou não com a história que dá início às produções. No
primeiro livro da série, Ifá, o senhor da sabedoria e todo o conhecimento, é apresentado como
sabedor de todas as histórias que circulam pela vida. Por intermédio do conhecimento das
diversas histórias que circulam pela humanidade, é possível a ele revelar com objetividade e
segurança os caminhos para a resolução das situações de conflito. Este personagem surge em
quatro histórias. Na primeira delas, vem fugindo da morte. Em meio à fuga, acaba sendo salvo
por Iyewa (Euá), com quem interage, podendo surgir dessa interação, na perspectiva do autor,
uma possível paternidade para os gêmeos, crianças conhecidas como Ibéji (ibêji), estes
mesmos òrìsà (orixás) infantis. Posteriormente, aparecem em uma história, na qual sua mãe,
Iyewa (Euá), que com auxílio de Olórum (Olorum), o Deus supremo, transforma-se em um rio,
almejando saciar a sede de seus filhos, que se perderam na mata; e ainda em outra história, na
qual tomadas pela versatilidade e inteligência que lhes é peculiar, espantam a morte da aldeia
de Ifá . Ainda no princípio da trama, o adivinho contracena com Èsù (Exú), o mensageiro,
senhor do movimento. Por estar sempre circulando, viajando, Èsù (Exú) é aquele que tudo
sabe da vida humana, tendo assim propriedade para informar a Ifá das mais diversas
situações. Nesse contexto, as histórias da vida começam a ser colecionadas, trazendo
referências do passado que são o presente e serão o futuro, uma vez que de acordo com os
princípios yorubás, o tempo, os acontecimentos são cíclicos. Tudo que acontece um dia já
aconteceu, da mesma forma que um dia se repetirá. Por ser conhecedor de tudo, Ifá ganha o
título de adivinho e é considerado o senhor do conhecimento, da sabedoria, aquele que pode
dar bons conselhos. Considerando a relevância do òrìsà (orixá) Rei de Ketu para os povos
yorubás, além de interessante, torna-se digno de referência, nesse mesmo volume, o conto em
que Òsóòsí (Oxóssi), o grande caçador de uma flecha só, mostra-se como o herói que com
45
uma única flecha livra o reino Ketu do grande pássaro das Ia mi Oxorongá, as feiticeiras, que
atormentavam a região.
Sendo assim, retomando falas anteriores, além de citar Ifá, a obra em questão
caracteriza e, através dessa iniciativa, apresenta alguns outros orixás ao público leitor, como os
já citados Èsù (Exú), Iyewa (Euá) e Ibéji (Ibeji), além de Òsun (Oxum).
No segundo livro da trilogia, o autor dá continuidade à proposta do primeiro. Nessa obra,
o ponto central da trama envolveria os òrisà Òsàlà (orixás Oxalá) e Odudua, no que tange a
função desempenhada por eles, os mitos nos trazem que estes seriam os responsáveis,
respectivamente, pela criação dos seres humanos e do mundo. Os òrìsà (orixás) já citados
estariam se reconciliando com a intervenção de Ifá, pelo conflito instaurado entre eles no
momento da criação do mundo, que deveria ter sido feita por Òsàlà (Oxalá), entretanto diante
do não cumprimento de uma regra básica determinada por Olórum, o Deus supremo, que
seriam as reverências a Èsù (Exú), ele acaba por embebedar-se dando, assim, oportunidade a
Odudua para realizar a obra que deveria ser fruto dele. Nessa via, as histórias chegam ao òrìsà
(orixá) título, no caso, Sàngó (Xangô), o senhor do trovão, do fogo, òrìsà (orixá) reconhecido no
Brasil como o Deus da justiça, o grande rei do Candomblé. O título de rei do Candomblé
brasileiro deve-se ao fato das africanas que deram início ao culto do Candomblé Ketu serem
consagradas a esse òrìsà (orixá). Por isso a casa é de Sàngó (Xangô), e sendo ele o dono da
primeira casa de àse (axé) Ketu, fica sendo junto a Òsóòsí (Oxossi), dono das terras onde foi
fundada a primeira casa, os fundadores desse culto. Nesse volume são apresentados além de
Òsàlà (Oxalá), o grande pai, o senhor das vestes brancas; Òsàgiyán (Oxaguian), o jovem orixá
das estratégias, que tem predileção pelo inhame pilado, aquele que faz a guerra acontecer
para que as coisas mudem; Iansã, mulher valente, senhora das ventanias; Irókò (Iroko), o
òrìsà (orixá) que habita a gameleira branca e finalmente Yemoja(Yemanjá), a grande mãe,
senhora dos mares e de todas as cabeças, que no conto surge irada pelos maus tratos que os
humanos vem dando às águas.
Na última obra da trilogia, a temática da construção do mundo se mantém, mas, dessa
vez, trabalhada sob outro aspecto. Nesse momento, se tratará da divisão do mundo, da
natureza que o cerca e de tudo criado nele entre os orixás. Cada orixá ocupará seu espaço na
grande criação dos Deuses. Mais uma vez outros orixás são acrescentados a lista dos
apresentados por Prandi às crianças. Nesse caso tratar-se-á de Nàná (Nanã), a mais velha dos
orixás, a sábia senhora; Omolu, o senhor da terra; Òsányín (Ossaim), o senhor das ervas e da
cura, aquele que dá aos homens os remédios para seus males; Erinlé, um grande caçador e
Ajalá, aquele que forma a cabeça dos seres humanos.
Mesmo que de forma sucinta, por meio desses mitos, se dá uma introdução ao
conhecimento de algumas das tradições e manifestações culturais africanas trazidas e
ressignificadas no Brasil, direcionadas pelas histórias dos òrìsà (orixás). Esses relatos são de
46
grande valia para o trabalho com as culturas afro-descendentes, em meios nos quais ela é
quase que totalmente desconhecida. Nesse momento, refiro-me às escolas, que no momento
político-social em que vivemos são obrigadas a introduzirem a história e cultura africana e afro-
brasileira em seus currículos, apesar de não reconhecerem, de fato, sólidos caminhos para a
construção de meios naturais, práticos e eficazes de se trabalhar essa cultura.
De alguma maneira, com os mitos yorubás apresentados às crianças e jovens, abre-se
um leque de possibilidades de trabalhos no âmbito escolar. Por meio de obras como essas de
que se fala, pode-se levantar questões a respeito da cultura africana, por exemplo no que se
refere ao culto à ancestralidade e à oralidade, à figura do babálawó27 (babalaô) e à origem dos
òrìsà (orixás). Além disso, pode-se falar também de afro-brasilidade, considerando de que
maneira essa cultura e tradições se fazem tão presente no desenrolar do que hoje
reconhecemos como cultura brasileira, sem desconsiderar o processo de reconfiguração
cultural sofrida pela cultura negra, para que ela se firmasse na nova terra, sem deixar de lado a
escravidão, ponto de partida para toda a história que segue. Nessa esteira, é possível que se
promova intensamente o reconhecimento das origens e o valor histórico-cultural dessas
manifestações.
A relevância do trabalho desenvolvido através dessas obras não se estrutura na
apreciação delas, mas no trabalho de esmiuçar a obra e estabelecer paralelos com a nossa
cultura, pensando em aspectos coletivos, enquanto cultura brasileira, e aspectos específicos,
pensando nesse sentido no processo de auto afirmação dos herdeiros desses valores.
Desconstruir imagens estigmatizadas do negro e suas manifestações culturais e
religiosas é fundamental para a promoção de um sentimento de igualdade, em perspectivas
raciais. Ainda que tenha como aspecto central narrativas que são bases de uma tradição
religiosa, a proposta não dialoga com um ideal de conversão em massa. Vai, no entanto, ao
encontro de ideias apoiadas na construção de caminhos para o desenvolvimento do respeito
mútuo no âmbito social brasileiro, desestruturando a hipocrisia dos preconceitos velados e
fundados na ignorância.
Ao se desenvolver o trabalho educacional com as referidas narrativas, ele deve se dar
tendo a percepção destas, como manifestações culturais. Bastante anterior ao que se conhece
na diáspora como candomblé são os itan. Pode-se afirmar que a funcionalidade deles, hoje nos
candomblés é resquício da ação dos mesmos na sociedade yorubá, ainda em terra africana.
Digo resquício uma vez que, atualmente não são esses valores que regem a sociedade,
estando estes restritos a comunidade do candomblé, que para além dos direcionamentos
religiosos que eles apontam, pretendem se ater, sobretudo, aos valores éticos, morais e porque
não civilizatórios, que a sabedoria ancestral dos yorubás sugere como direcionamento de vida.
[27]
Sacerdote do culto de Ifá. Literalmente o pai do segredo.
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Vindo por meio de outra construção, pode-se citar outro trabalho literário, esse de autoria
de uma mãe de santo que, através de sua obra infanto-juvenil, busca atingir seu público e
provocar nele por meio de um discurso que mescla religião e meio ambiente uma reflexão que
nos parece bastante interessante. Refiro-me a Maria Stella de Azevedo Santos, Mãe Stella de
Òsóòsí (Oxossi), é assim que o povo do Candomblé a conhece. A ìyálórìsà (ialorixá)
responsável pela liderança de um centenário terreiro da Bahia, o Ilé Àse Opó Àfonjá (Ilê Axé
Opô Afonjá), há muito tempo vem trabalhando, por meio de palavras, com suas obras, atitudes
e ações sociais, em favor do reconhecimento e respeito do Candomblé como religião. Sua luta
se caracteriza principalmente pelo brado contra o sincretismo religioso que, de alguma
maneira, age como uma sombra a fim de camuflar as verdades do patrimônio cultural que é a
religião de òrìsà (orixá).
Mãe Stella tem uma série de publicações a respeito da religiosidade afro-brasileira e da
cultura que a cerca. Como destaques dentre os muitos livros que escreveu ou participou sem
deixar de lado os artigos, podemos citar o de 1983 onde o “Candomblé diz não ao sincretismo”.
Artigo esse assinado também por outras ìyálórìsà (ialorixás), a exemplo, Mãe Menininha do
Gantois e Olga do Alaketu .
Dos livros da referida sacerdotisa, podemos citar: Meu tempo é agora (1993), Òsósi - O
caçador de alegrias (2006); Owé, provérbios(2007) e Epé laiyé: terra viva(2009), além de
Opinião(2012) e Ofun(2013). Vamos nos deter a obra de 2009, que é a primeira infanto- juvenil
da autora.
Epé Laiyé é o nome dado a uma árvore, personagem principal da trama. Essa árvore é
plantada por um menino de dez anos, chamado Fernando. Pensando os problemas do mundo,
mesmo diante da imensidão desse espaço, ele decide por fazer o seu mínimo. “Ouvir o
coração é uma arte e ser artista, um privilégio.”(2009, p.12) E aí começa a magia dessa obra.
Ele planta Epé Laiyé e a arvorezinha cresce com os desejos de colaborar com a resolução dos
problemas do mundo, apontando para reflexões sobre a questão ambiental. Uma vez que não
há marcação de espaço físico, nos é oferecida a possibilidade de adequarmos essa história a
qualquer lugar possível em um tempo não determinado, apesar de se entender como uma
época de crise.
Sendo o Candomblé uma religião de culto à natureza, uma vez que suas divindades
estão encantadas nela, Mãe Stella começa a fazer através de Epé Laiyé, a arvorezinha
plantada pelo menino, um percurso por toda a natureza, apresentada por meio de ricas
imagens, apresentando os òrìsà (orixás) e suas forças, além de inserir parte da cultura
lingüística yorubá. A ilustração do livro, fica por conta de fotos da vegetação do próprio terreiro,
ressaltando a valorização do ambiente natural.
Por muitas vezes, são referenciadas algumas expressões em yorubá, que
posteriormente são traduzidas para a língua materna, o que, com grande sensibilidade é uma
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forma de resistência e preservação. “ Ìbà àjè o ìbà. Ìbà àjè o ìbà Òsun ( Saudações a você,
Oxum).”(2009, p.29) Tendo a importância que a língua yorubá tem no contexto religioso do
Candomblé, valorizá-la e preservá-la é um instrumento de manutenção da tradição. Dessa
forma, apresentar palavras em yorubá para o público infantil é auxiliar na criação de uma nova
perspectiva a cerca da africanidade em terras brasileiras. Pode-se fazer tal afirmação
considerando que apresentar uma língua yorubá significa dizer que não se trata de um povo
ágrafo. E dessa maneira desconstrói-se previamente uma imagem pejorativa, que possa ser
alicerçada tendo como referencia a inexistência de algo que lhes pareça tão próprio da
civilização, no caso, a língua.
É comum que se fale de África considerando como referenciais a savana, a miséria, de
maneira que os desavisados possam chegar a construir a imagem de uma África selvagem.
Nesse sentido, crê-se que a ausência de uma língua colaboraria com essa perspectiva
errônea. Daí o fato de considerarmos bastante relevante apresentar, ainda que de maneira
sucinta, a língua nativa. Ainda que se trate de uma língua arcaica e não mais utilizada com a
mesma abrangência na contemporaneidade.
Considerando o nome que possui, Terra Viva, que seria a tradução do nome que a
árvore recebeu, ela sai em busca de auxílio de outros frutos da terra, sem no entanto obter
sucesso. Após ser encantada por Osaniyn (Ossain) para que pudesse se locomover, com
apoio de Ésú (Exú), o primeiro Deus a ser encontrado na caminhada, Epé acaba sendo guiada
pelos caminhos que a conduzirão aos orixás. Percebendo a ira dos Deuses diante dos maus
tratos que a natureza vinha recebendo, ela pensa em desistir. E, nesse momento, encontra Ésú
(Exú), acompanhado de Nando e de todos os outros òrìsà (orixás) que ainda não tinham
surgido na trama, que iriam se reunir para acertar como poderiam consertar os danos
causados ao mundo. “Epê Laiê, ao ouvir as palavras de Exú e visualizar a chegada das
divindades, percebeu que nunca esteve só e que sua peregrinação foi necessária para
descobrir a sua capacidade de acreditar nos outros.”(2009, p.48)
Compreende-se que a grande proposta da obra é uma reflexão sobre a relação entre o
ser humano e o meio ambiente. Nada mais coerente para alguém que dedica a vida ao òrìsà
(orixá), falar dessa energia, tendo como tema/cenário a natureza, uma vez que òrìsà (orixá) é
natureza. E assim, de maneira simples, porém de grande alcance, essa produção apresenta ao
público leitor diversos atributos da cultura africana, através da língua yorubá e das divindades,
hoje afro-brasileiras, que são apresentadas em aspectos filosóficos, que aponta para uma
relação intrínseca com a natureza, a qual será apresentada com o título de sagrada, à medida
que os òrìsà (orixás) não são apresentados como habitantes da natureza, mas como a
personificação dela mesma. Trata-se de uma olhar que falará de uma natureza divinizada.
Além de propor a ação individual em propósito da preservação da natureza.
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E, nesse sentido, o candomblé se destaca como uma religião que ao contrário do que já
se disse em algum momento do passado, mostra-se muito distante de valores primitivos.
Evidencia-se como religião com olhar voltado ao futuro, uma vez que sempre trouxe consigo,
de maneira inerente, a noção de preservação à medida que sempre apreciou a natureza a
partir de uma noção de sagrado. Entendendo a natureza como divina, como a materialização
das próprias divindades, e se pode fazer tal afirmação à medida que compreende-se, por
exemplo, que Òsun (Oxum), divindade ligada às águas doces, não está no rio sendo ela,
verdadeiramente, o próprio rio; compreende-se que ao par natureza – candomblé, o conceito
mais abrangente é cumplicidade.
Um renomado verso yorubá, de grande circulação nas casas de candomblé diz: “Kosi
ewe kosi òrìsà”, traduzido ele afirma: Sem folha, não há orixá. Com tais palavras ao passo que
se afirma a intrínseca relação que há entre o culto a òrìsà (orixá) e as ervas, evidenciando, de
alguma forma uma relação de completude entre esses personagens, essa fala também aponta
para a necessidade de preservação. É o candomblé altamente dependente dessa natureza
representada no provérbio em questão. Não se pode dizer, todavia, que os adeptos da religião,
em sua totalidade, sempre tiveram noções de preservação que hoje circulam nos terreiros, o
que é fruto de um amadurecimento da fé.
Diante do que observamos, é possível que investiguemos algumas formas de trabalhar a
cultura, religiosidade, línguas e tradição africana e afro-brasileira usando como alicerce a
literatura que vem se reconfigurando, oferecendo espaço e enaltecendo voz do sujeito negro,
permitindo-lhe a auto-afirmação de sua identidade cultural. Valendo-nos desse instrumento
ideológico que é a literatura, o que se pretende é reconstruir conceitos no imaginário dessa e
das próximas gerações, por meio de um trabalho gradativo que oferece possibilidades de bons
frutos, superando o preconceito, desdém e as visões pejorativas do negro e de suas
manifestações culturais como marcas de um passado surpreendido pela superação.
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Capítulo III - Crianças de terreiro e a contação de histórias: a construção/fortalecimento
de identidades
Pensando a infância e a juventude a partir da casa de Candomblé é, possível que se
questione a influência da memória na construção das identidades que compõem essa
juventude. É comum que se ouça o relato de jovens pertencentes à religião de òrìsà (orixás),
sobre a dificuldade de assumir ou evidenciar no âmbito escolar sua religiosidade28. De alguma
forma, esses jovens vivem no limiar entre dois mundos, compreendendo-se um referente à sua
vida pessoal, no qual sua religião é professada sem máscaras, e outro que apontará para o
âmbito escolar, espaço de socialização tal qual o terreiro, que por pressupostos decorrentes do
que será entendido como senso-comum, e nesse sentido se pensará nos tabus que o
preconceito e o racismo impõem; as identidades religiosas são silenciadas. Nessa perspectiva,
objetivamente as identidades se constroem mediante uma faixa de tensão, na qual os referidos
mundos coexistem. Por esta abordagem, podemos perceber as identidades como resultantes
de tensões, construções e reconstruções.
Inicialmente iremos nos ater às reflexões a cerca de memória e construção de
identidades, para que posteriormente, já apoiados pelo discurso da Ìyálórìsà (ialorixá) Stella de
Ósóòsí (Oxóssi) possamos mesclar a percepção que as teorias nos oferecem a respeito da
construção das identidades pelas vias da memória, em diálogo com a prática cotidiana dos
terreiros de Candomblé.
Tomando como alicerce as memórias ancestrais chegadas ao Brasil, a partir do
processo de travessia29 a que os negros escravizados foram obrigados e se submeter, o
Candomblé se estrutura nesse novo mundo, entre os século XVIII e XIX. Para uma
compreensão mais ampla, além de uma reflexão melhor pautada é válido que se marque,
objetivamente, o recorte referente à face do grande grupo entendido como Candomblé
brasileiro ao qual se pretende refletir, no caso se fará exclusivamente referência ao que se
reconhece como Candomblé Ketu. Ao se falar da estruturação do Candomblé nas terras do
Brasil, tal qual por toda a diáspora africana, não se pode perder de vista que estamos tratando
de um grupo étnico-religioso que, partindo da ressignificação de uma matriz religiosa africana,
se constrói nas Américas. Dessa forma, o que se almeja afirmar é que o Candomblé, tal qual
se reconhece no Brasil, não se traduz como religião africana transportada para outros
[28]
No que tange a investigação sobre a relação entre o âmbito escolar e a religiosidade ressaltamos a pesquisa de Stella Guedes
Caputo, intitulada Educação nos terreiros, que trata essencialmente da relação dos discentes com a religião que professam e escola, no que se refere as aulas de ensino religioso. Dessa maneira, trata-se de uma outra perspectiva, já que o nosso olhar está voltado a literatura.
[29] Ao falar-se em travessia, fazemos alusão ao processo de atravessamento dos negros escravizados de África para o Brasil.
51
continentes. Trata-se de uma religião construída com bases no culto de òrìsà (orixás), que se
estruturará mediante a interação com as realidades de outros espaços.
Como religião de tradição pautada na oralidade é nas redes da memória que sobrevivem
as sustentações desse culto secular. De acordo com o que nos afirma o antropólogo JOSÉ
FLÁVIO PESSOA DE BARROS (2005), acredita-se que o complexo cultural jeje-nagô se faz no
Brasil por volta do século XVIII, tendo como caminho principal o Nordeste, sendo seus
principais espaços de desenvolvimento: Bahia, Pernambuco e Maranhão. Em consequência da
destruição da cidade de Ketu, que atualmente, no que tange a uma divisão geográfica é
compreendida como os espaços referentes ao Benin e a Oyó, ambas localizadas na Nigéria, o
fluxo de escravizados dessa etnia foi bastante intenso.
Segundo BARROS (2005): “A introdução contínua de africanos de uma mesma
procedência étnica no meio urbano foi fator relevante para a viabilização de uma resistência
maior ao colonizador e possibilitou a agregação e formação de núcleos ligados a preservação
de sua cultura”. Dentre os referidos núcleos ligados a preservação da cultura, ainda que se
deva fazer referência mais intensa às irmandades negras por serem pioneiras no processo de
preservação no pós-travessia, podemos fazer também referência à construção das casas de
Candomblé.
No que se refere à proposta das irmandades negras, durante a entrevista MÃE STELLA
nos afirmou que: “Para se assegurar era necessário pertencer a igreja católica. A maior parte
delas (as negras de candomblé) fazia parte da irmandade nossa senhora do Rosário. Todas
elas vinham sempre abrindo a abrindo procissão.” Com isso a Ìyálórìsà (ialorixá) deixa evidente
que para além de uma perspectiva religiosa de assimilação da crença do dominador, eram as
irmandades meios de preservação da própria cultura afrodescendente. À medida que estas
asseguravam a(o) negra(o) escravizada(o) um outro olhar em decorrência de uma suposta
submissão aos valores europeus, as irmandades, algumas vezes, tinham função inclusiva. Em
diálogo com as propostas do sincretismo com a igreja católica, de maneira híbrida, as
irmandades fortaleciam as identidades negras, ainda que com máscaras que apontassem,
talvez, para um catolicismo africanizado.
Considerando a relação do Candomblé e o sincretismo com a igreja católica, Mãe
Stella, que tem sua trajetória como líder religiosa marcada pelo enfrentamento ao mesmo,
teceu diversas considerações sobre a desarticulação do mesmo. A respeito desse movimento
de ruptura com os valores sincréticos, vale ressaltar a marcante iniciativa da Ìyá (mãe), quando
em 1983, apoiada por outras sacerdotisas de renome escreve uma carta de repúdio ao
sincretismo religioso.
Durante a entrevista concedida para essa pesquisa, Mãe Stella, em sua fala, sinaliza,
ainda, outra questão bastante relevante para nossas reflexões. Tal questão refere-se ao que
ela chama de vício da escravidão, referindo-se nessa instante a colonização das mentes. Um
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dos objetivos da luta antirracista é descolonizar as mentes. Se hoje sabemos que nossos
negros corpos já estão livres, ainda temos que provar a nós mesmos que nossas mentes
também estão. Na construção dos pressupostos da sociedade brasileira, o processo da
escravatura foi crudelíssimo ao tentar apagar a humanidade dos escravizados. Esse processo
deixa marcantes cicatrizes na história nacional.
Pensando o processo de construção da memória e a faixa de tensão na qual
identidades infanto-juvenis se constituirão, nesse sentindo estabelecendo-se um recorte nas
crianças e jovens negros(as) e de Candomblé e tomando como base as reflexões propostas
por MICHAEL POLLAK (1992), podemos refletir sobre as influências culturais do berço da face
candomblecista que se observa. Nesse sentido, a reflexão se pontua a partir da referência a
cidade de Ketu, na memória das crianças e jovens negros(as) que interagem com o
candomblé e tem como referência a matriz africana citada anteriormente, além dos demais
adeptos da religião. Fala-se na cidade de Ketu como berço do referido candomblé à medida
que se considera que o culto aos òrìsà (orixás), forças divinas encantadas na natureza, está
pautado nas referências religiosas originárias nesse lugar. Ao pesar na relação dos
candomblecistas em questão, com este lugar, que geograficamente está tão distante, enquanto
pelas vias da memória e da cultura que se estabelece em decorrência da mesma está tão
próximo da realidade cotidiana dessas comunidades religiosas; é possível dialogar com
POLLAK (1992), quando ele nos afirma que:
“Locais muito longínquos, fora do espaço tempo da vida de uma pessoa, podem constituir lugar importante para a memória do grupo e por conseguinte da própria pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento a esse grupo. [...] A memória da África, seja dos Camarões ou do Congo, pode fazer parte da herança da família com tanta força que se transforma praticamente em sentimento de pertencimento.” (POLLAK,1992, p.202)
É exatamente essa a relação que os integrantes do Candomblé Ketu, em especial a
comunidade do Ilé Àse Opo Àfonjá ( Ilê Axé Opô Afonjá), espaço de observação dessa
pesquisa, desenvolvem com a cidade de mesmo nome. Trata-se de um lugar longínquo, fora
do espaço tempo da vida de grande parte dos adeptos da religião dos òrìsà (orixás), além de já
ter sido totalmente destruída. Entretanto, constitui um lugar de grande relevância na memória,
assim como para as identidades desse grupo étnico-religioso e consequentemente para os
indivíduos que o compõe.
Ao que parece, mediante a observação dessas comunidades religiosas, é o sentimento
de pertença a esse grupo um item que participa ativamente, a partir da memória, da construção
das identidades dessas pessoas. Vale lembrar que esse sentimento de pertença torna-se ainda
mais viável ao considerar-se a ancestralidade como elo que estabelece essa ligação. No que
tange às identidades, devemos considerar ainda que “à medida em que os sistemas de
significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
53
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais
poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.” (HALL, 2000, p.13), portanto,
devemos pensar no plural, ao se pensar em identidades.
Nessa perspectiva, a ancestralidade estaria relacionada não somente aos
antepassados consanguíneos, mas também aos órísá (orixás), de quem os religiosos se
entendem direta ou indiretamente descendentes. “É perfeitamente possível que por meio da
socialização política, ou da socialização histórica ocorra um fenômeno de projeção ou de
identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar de uma memória herdada”
(POLLAK, 1992, p.201). Dessa forma, seriam as referências africanas no Candomblé
constituintes de uma herança que se desloca através do tempo, da mesma forma que se
mantém viva por meio da memória. São os mitos yorubás, histórias ancestrais dessa
comunidade étnico-religiosa, responsáveis pelo repassar das informações do passado para o
presente, constituído em decorrência deste. Entre os religiosos do candomblé há um
sentimento de pertencimento, consequente da identificação com o passado vivido em terras
africanas por seus ancestrais, da mesma forma que acontece com a memória de vivências do
passado já em solo brasileiro. Os itans (histórias dos orixás) que sobrevivem na memória
coletiva do candomblé relatam episódios que vão desde a fundação do mundo até a transição
dos òrìsà (orixás) para esse novo mundo. A socialização histórica dos religiosos com a
realidade da travessia e da reconstrução da história de seus antepassados promovem o
referido fenômeno de projeção ou de identificação com esse passado, construindo o que se
chamará de memória herdada.
De acordo com o pensamento de POLLAK (1992), a memória pode ser constituída por
acontecimentos vividos individualmente e também vividos por uma coletividade, à qual o
indivíduo se sente pertencer. Além disso ocorre também na relação com pessoas,
independente da relação dessas figuras com o espaço tempo do sujeito. Dando ênfase, nesse
momento, a última consideração referente ao processo de constituição da memória, pode-se
pensar as emblemáticas figuras das referências matriarcais que participam e são responsáveis
pela sobrevivência do culto aos òrìsà (orixás). Mesmo diante de todas as tentativas de
sufocamento e desconstrução, que surgem como represálias aos cultos religiosos negros em
terras colonizadas e com lógicas naturalmente judaico-cristãs e ocidentais, a ação de
determinadas mulheres, herdeiras do àse (axé), são fundamentais para sua manutenção.
Dessa forma, podemos pensar na relevante função das ìyálórìsà (ialorixás) nesse processo de
desenvolvimento de identidades a partir da memória.
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III.1 Ìyálórìsà 30: intelectuais orgânicas em uma religiosidade matri linear
"A tradição no candomblé é tão dinâmica quanto a noção de mudança. É como se pudéssemos pensar que alguma coisa fosse capaz de mudar, permanecendo". Júlio Braga
Debruçando-se a pensar a sociedade e as classes sociais, o cientista social ANTONIO
GRAMSCI ganha destaque pela relevância de suas análises, que até os dias de hoje geram
reflexões. Pensando a estruturação social, entre outras questões, ele apontará para figuras que
chama de intelectuais. A esses indivíduos será atribuído, de alguma forma, o caráter de agente
de coesão dos grupos a que se dirigem. Dessa maneira, duas categorias de intelectuais se
destacarão. Trata-se dos tradicionais e dos orgânicos.
Dos intelectuais tradicionais, diz-se que são personagens que se vinculam a um dado
grupo social, corporação ou ainda instituição, expressando os interesses particulares do grupo
que o compõe. Já aos intelectuais orgânicos atribui-se a imagem de um sujeito que pertence
originalmente a classe a que representa, não vindo a integrar-se a ela posteriormente, e que
sobretudo mantém seu vinculo, desempenhando o papel de porta-voz da ideologia e interesse
de sua classe.
Àqueles que representam a classe dominante têm como pressuposto a produção e
reprodução de uma ideologia, almejando a hegemonia dos valores sócio-culturais, ademais de
uma percepção de mundo, que contribuirá fortemente na definição de paradigmas referentes
ao pensar e agir. Seria essa uma metodologia pertinente à proposta de garantir a integridade
dos interesses da classe dominante. No caso das análises de GRAMSCI(1982), ao referir-se a
dita classe, faz-se uma alusão a burguesia. No que se refere à ação dos que representam as
classes subalternas, agiriam estes em uma contrapartida, frente ao ideal dos representantes da
classe dominante. A pretensão destes se dirige rumo ao rompimento com a hegemonia.
Admitindo os questionamentos e críticas sociais como suporte, os representantes da classe
subalterna pretendem desarticular a ideologia dominante e estruturar uma ideologia outra, mais
favorável aos seus valores.
No que tange a essas reflexões de GRAMSCI(1982), o que nos interessa, nessa
pesquisa, é a figura do intelectual orgânico. Seriam esses, agentes libertadores, que se
dedicam a criação e defesa da ideologia de um dado grupo. Os intelectuais orgânicos dialogam
com o novo. Buscam, em geral, releituras referentes à concepção de mundo e valores culturais
e sociais. São eles distanciados da inércia social que mantém inabalável os valores que não
estabelecem relações harmônicas com as perspectivas que têm da sociedade. Na
caracterização deste intelectual, talvez o adjetivo mais relevante para esta análise seja o de
[30]
Apesar do termo em questão ao ser traduzido ir para o plural, ou seja ialorixás, por estar escrito em yorubá sua forma se
mantém idêntica, seja para o singular ou plural.
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porta-voz dos interesses de seu grupo. Será ele responsável por veicular o discurso que irá ao
encontro das necessidades de seus componentes. A figura em reflexão, no caso os intelectuais
orgânicos, pode estabelecer, a partir deste recorte, relevantes diálogos com grupos em análise
nessa investigação acadêmica.
Diante dos candomblés, espaços de visitação dessa pesquisa, em especial o Ilé Àse
Opo Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá – Casa de força sustentada por Xangô), localizada à Rua
Direta de São Gonçalo, 557. São Gonçalo, Salvador – BA, nos é possível considerar a
incidência dessa personagem nesses ambientes. Sem desconsiderar a ação política de
diversos outros membros dessas comunidades, mas sobretudo reconhecendo a função política
e social que esses redutos afro-brasileiros e suas lideranças podem exercer, podemos
considerar, pelo histórico dessa religiosidade, que muitas vezes estas são dirigidas por
intelectuais orgânicos. Não escapa a nossa compreensão que a análise de GRAMSCI (1982)
abrange essencialmente uma abordagem a cerca da sociedade a partir das classes sociais.
Todavia, salvo o objeto central que gera a reflexão do cientista social, cremos que a partir da
ressalva da substituição do pressuposto de classe social, para considerar então grupos
diversos que compõem a sociedade, independentemente da hierarquização econômica desta,
seja possível a apropriação destes conceitos referentes ao intelectual para se pensar outras
questões como o negro, o candomblé e o lugar destes nessa sociedade.
Tomando como especificidade o centenário terreiro de Sàngó (Xangô) que nos serve de
ambiente para reflexão, consideremos inicialmente sua atual ìyálórìsà (ialorixá), Mãe Stella de
Ósóòsí (Oxóssi). A mãe de santo, como popularmente se conhece as dirigentes das casas de
culto aos òrìsà (orixás), pertence a uma das mais puras linhagens de herdeiras do axé.
Descendente de africanos, como nos afirmou na entrevista, está há trinta e sete anos a frente
do àse (axé). Atravessada por diversas identidades, como: mulher, negra, omorode (filha de
Ósóòsì – Oxóssi), ìyálórìsà (ialorixá), escritora, entre tantas outras que a compõe; Maria Stella
de Azevedo Santos desempenha no âmbito do candomblé a função de intelectual orgânica. E
nesse sentido ela rompe as barreiras geográficas do terreiro no qual reina soberana, atingindo
a toda tradição religiosa de culto aos òrìsà (orixás). Desde sua posse como líder da
comunidade, Mãe Stella luta frente aos valores naturalizados nessa sociedade pela valorização
e direitos do povo de candomblé, propondo, de alguma maneira, uma quebras nos valores
hegemônicos.
Como representante de grupos subalternizados, já que é mulher, negra e de
candomblé, o que a faz, comumente nessa sociedade preconceituosa e racista, vítima de um
olhar subalternizado de caráter interseccional. Mãe Stella em suas investidas evidencia a
pretensão de desmontar a ideologia dominante, que coloca o candomblé e o negro entre os
referenciais menores, desenvolvendo assim outra percepção acerca da religião dos òrìsà
(orixás) e toda a riqueza cultural que ela carrega consigo.
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Desfrutando da roupagem de intelectual orgânica, Ode Kayode (Odé Caiodê)31 interage
com o novo ao propor releituras, sem no entanto quebrar as tradições da religião. Dentre as
alterações com as quais ela colaborou fortemente, está a desconstrução da ideia do
sincretismo com a igreja católica como algo necessário a religião e parte de uma tradição.
Como ela mesma afirma a respeito da referida ruptura, durante a entrevista:
“A separação é simplesmente consequência da evolução. Nós e os òrìsà (orixás) temos conhecimento e somos independentes. Sabemos que a nossa crença, a nossa prática religiosa é uma religião. Porque, se você for procurar lugares em que se fala sobre isso com propriedade, quando é que uma crença passa a ser religião? Quais são as características que tem? Vimos que não tinha necessidade de ter sincretismo. O que continua como sincretismo é vício da escravidão que não conseguiu se libertar. Nós temos a nossa teologia, nós temos a nossa sabedoria, nossos dogmas, tudo isso caracteriza qualquer crença como religião. Se você for pesquisar vai ver que nós temos tudo isso. E se você for descobrir, se for reparar, os sincretismo são duas crenças diferentes que se misturam nos procedimentos, de fazeres que, no fundo, agrada mas não satisfaz a ninguém.”
Outra proposta da mãe de santo que ganhou bastante espaço na manutenção do
candomblé, como religião independente, deslocada da imagem de culto primitivo que se
construiu em torno dela, diz respeito ao conflito entre a oralidade e a escrita. Mãe Stella
destacou-se por ser a primeira ìyálórìsà (ialorixá) de uma linhagem tradicional a render-se a
escrita. Afirmando que “O que não se registra, o vento leva”, a sacerdotisa que recebeu o título
de Doutor Honoris Causa pela Universidade do Estado da Bahia, em 2010, e foi eleita por
unanimidade como imortal da Academia Baiana de Letras, em 2013, afirma a necessidade de
romper com a negação à escrita em favor da oralidade. Ao tomar essa posição, ela assume a
fragilidade da oralidade nessa sociedade que tende a valorizar o escrito. Por mais que esse
culto tenha sobrevivido a todas as investidas de sufocamento por parte do dominador,
ancorados na potencia da oralidade, sabe-se que o registro escrito colabora, perpetuando
efetivamente o que se pretende preservar e propagar. A escrita livra esse culto da traição das
memórias, considerando nesse momento a memória como lembrança. Acerca da travessia das
temáticas do candomblé, do campo da oralidade para a escrita, Mãe Stella assim comentou, na
entrevista:
“Quando eu escrevi meu primeiro livro, pedi para o meu amigo fazer o prefácio. Ele: “Mãe Stella a senhora está escrevendo um livro e a tradição do Candomblé não é oral?” Eu disse: é rapaz, mas eu já descobri que o que a gente não registra o vento leva. Que quem conta um conto aumenta um ponto. Então o que está registrado ali é verdade, porque o que eu passo para você, você deduz de outra forma e já passa. Você está gravando tudo aí direitinho, mas quando perguntarem cadê o produto vão ver que é a minha voz e que fui eu quem falei tudo direitinho. Não é invenção, nem você ouviu uma voz e disse que era de outra.”
[31]
Nome de orixá concedido a Mãe Stella no momento da iniciação. Dentro dos terreiros chama-se essa nomenclatura de orukó.
57
Nesse sentido, mais uma vez de maneira ousada, a mãe de santo se vale da autoridade
que sua experiência de vida lhe oferece para desmontar um valor religioso com aparência que
sugere inalterabilidade. Enquanto no passado os anciãos, em favor da preservação das
tradições religiosas valorizavam o mistério, e para isso priorizavam como fonte somente a
memória, Mãe Stella, em seu lugar de agba(abá)32 e yalode33 (ialodê), percorre o caminho
contrário em favor da mesma lógica. O que se pretende afirmar aqui é que: ocupando o lugar
que cabe a uma mais velha, nessas tradições, e sobretudo sendo ela uma mulher com posição
de destaque, de poder, no egbe34 (ebé), na comunidade, na sociedade do candomblé é
legítimo o contra discurso que desenvolve.
É uma personagem com tanta representatividade quanto seus antepassados que dirige
essa fala à comunidade. No entanto, sua postura não vem quebrando tradições, mas
intentando mantê-las. O que Mãe Stella propõe é a alteração nos costumes. Para melhor
compreensão é preciso que se estabeleça as diferenças no que tange aos conceitos de
tradição e costume. Os referidos termos dialogam e podem, inclusive, se completar, entretanto
tem pressupostos distintos. Considera-se aqui, apoiados em ERIC HOBSBAWM (1977), a
tradição como algo invariável. Seria ela referente a práticas fixas. No entanto, o costume tem
caráter mutável.
Considerando ainda o trabalho que a ìyálórìsà (ialorixá) vem desenvolvendo, podemos
citar, como outra interessante temática que Mãe Stella aborda, a relação entre candomblé e
ecologia. Considerando questões altamente contemporâneas, como a preservação da natureza
e sustentabilidade, a ìyálórìsà (ialorixá) também se pronuncia. Tratando dessa temática, ela,
inclusive, publicou um livro intitulado: Epé Laiyé - terra viva, dedicado a crianças e jovens. A
relação do candomblé com o meio ambiente também se inseriu na entrevista. E nesse
momento ela afirmou:
“Eu soube ontem que vai acontecer um seminário aí, um congresso sobre ecologia. Nada mais prático do que pensar o òrìsà (orixá), que está presente na natureza. É a própria ecologia. Se você quer evocar Oxum, quer dar um presente a ela, você põe no rio. Agora o que ocorre é que tudo em excesso, prejudica. Então se todo mundo quer dar um presente a Oxum e põe garrafas de bebidas, de perfumes, né? Compra cristais, que Oxum gosta, medalha de ouro e tal e tal, então o material palpável, vidro, plástico, são coisas que no fundo, a natureza não consome. A terra não consome o vidro. Fica acumulando e no final o fundo do rio está poluído. Então é isso que a gente tem recomendado muito, que se você for dar oferenda para Oxum, que você não jogue o vidro na água, que são milhares de vidros. O liquido evapora, mas o vidro fica ali.”
[32]
Idosos. Anciãos da comunidade.
[33] Mulher de grande representatividade na sociedade.
[34] Comunidade, socidade.
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Sobretudo, Mãe Stella dá continuidade aos pressupostos de suas antecessoras, em
especial Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha, Oba Biyi, a fundadora do terreiro. O referido
terreiro de candomblé é o único do país que conta com a presença de uma escola em seu
terreno. A Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, fundada em 1998, fruto da creche Mini
Comunidade Oba Biyi, fundada em 1978. Crendo que a creche fundada por ela não supria as
necessidades da comunidade, Mãe Stella cria a escola, em 1986, tornando-se somente em
1998 uma instituição municipal. Sobre a municipalização da escola, um interessante relato de
Mãe Stella é que:
“quando era nomeado pela prefeitura ou pelo estado, quem vinha via a referencia de àse (axé) mas antes de começar queriam rezar “Pai Nosso que estás no Céu”. Eu disse: Perai, perai! Não! Você não vai ensinar candomblé, mas não vai enfatizar uma religião que é contra a nossa, nossa prática. Então não faça nada. Aí pergunta: Mas faz o que? Não faça nada! Mas agora já cantam o hino do àse (axé), faz teatrinho com os mitos... O mestre Didi deixou muitos mitos para eles, que ele gostava muito dessas coisas. Ficaram muitos mitos dele aí. E professores que transformaram tudo isso em livro, teatro, peça. Agora eles escolhem o mito para a peça, para o social mesmo da coisa.”
Todo o processo desenvolvido pela ìyálórìsà (ialorixá) se constitui como reticência das
propostas de Mãe Aninha. Com olhar voltado para o crescimento pessoal da comunidade em
geral, a fundadora do Ilé Àse Opo Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá), pensava com admiração na
educação. Tinha a pretensão de que seus filhos tivessem acesso à educação, que como já
sabemos, não era e ainda não é, privilégio de todos. Sobre esse projeto de Mãe Aninha,
durante a entrevista assim nos afirmou Mãe Stella:
“O Candomblé felizmente está muito evoluído. Antigamente, dizia que o Candomblé era como uma universidade. Aqui se aprende de tudo. Aqui é um Candomblé pobre, tem é muita gente. Gente sempre aumenta. Não é pobre. Não é tão pobre assim, porque nós temos a graça de òrìsà (orixá), mas não temos riquezas do mundo. Mãe Aninha se interessava muito pela educação. Ela botava a gente para ensinar aos mais novos, às vezes, ela mesma parava para ensinar. Ensinava como partia obi, essas coisas ela mesma ensinava e assim foi levando. Ela tinha uma coisa que dizia e que todo mundo reproduziu. Ela dizia que ainda ia ver o candomblé todo, servindo a Xangô com anel no dedo. Ela queria que todo mundo evoluísse e isso tem acontecido. Não vê você, que vai ser doutor, aí. (risos) «...» Quando ela criou aqui, uma mulher que era costureira era o máximo. Costureira! Hoje em dia é estilista, não é? Naquele tempo era costureira. Tinha as outras pessoas que estudavam e ela sempre incentivava isso.”
Dessa maneira percebemos que o Ilé Àse Opo Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá) se furta ao
direito de se colocar na sociedade brasileira somente como uma casa de culto religioso afro-
descendente, à medida que desempenha função social. De acordo com nossa reflexão, Mãe
Stella evidencia todos os pressupostos necessários para agregar às atribuições que já possui,
a de intelectual orgânica. Podemos dizer também que seja ela descendente de uma linhagem
de intelectuais orgânicas. Iniciada por Mãe Senhora, que por sua vez foi iniciada por Mãe
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Aninha, seria ela, Mãe Stella, pertencente a uma terceira geração de intelectuais orgânicas.
Mãe Aninha e Mãe Senhora, que são integrantes da linha matrilinear do terreiro em questão,
com suas trajetórias de vida também se mostram intelectuais orgânicas. São elas a gênese da
trajetória de Mãe Stella. Além dessas mulheres, uma série de outras referências atravessam o
cenário do candomblé brasileiro.
Como nos afirmou Mãe Stella, durante a entrevista:
“Antes, no passado, antes do século XX, as mulheres é que tomavam na realidade a frente, o cuidado com os òrìsà (orixás). Porque os homens iam para as fazendas, para a roça. Era a profissão dos alforriados. Iam fazer cada um sua função. E as mulheres ficavam em casa, iam ser babás, mãe de família, mas tudo em casa mesmo. Então uma babá, uma mãe, uma cozinheira, tinha muito mais tempo de cuidar das coisas de òrìsà (orixá), de cuidar das coisas do que é sagrado. Foi o que aconteceu. Tanto que até que se tem de informações de como começou o candomblé, em Salvador, tem três referências, três senhoras da África chamadas Iyakalá, Iyanasso e Iyadetá. Todas lá do Reino de Oyó. Vieram para o Brasil e aqui nesse vai e vem tinha um lugarzinho onde elas atendiam as pessoas, era tudo muito velado, muito escondido ali, então elas três cuidavam das pessoas. Mas foi juntando tanto, porque esse pessoal tem a característica de se unir. Eles se uniram tanto que até abriram um pequeno candomblé. Não podia chamar candomblé, porque até então faziam todos os rituais numa casa distante. Mas como a cidade cresceu eles saíram de lá. Foram da Barroquinha para o Rio Vermelho, onde até hoje funciona a Casa Branca. E lá foi ficando. E o Candomblé foi crescendo, e quando cresceu, outros iniciados tiveram necessidade de abrir a sua casa. Já tinha a Casa Branca, surgiu o Gantois e depois o nosso axé, aqui, e outros.”
Como fica evidente a partir das falas de Mãe Stella e de estudos na área, o candomblé
brasileiro nasce no ventre de uma matrilinearidade afro-descendente. São essas intelectuais
orgânicas que promoveram com auxílio de alguns homens a sobrevivência do culto de òrìsà
(orixás) no Brasil. Como nos afirmou Mãe Stella durante a entrevista: “ Eles eram auxiliares.
Foram mestres. As vezes o filho passa o mestre.”
Desempenhando também a função de contadoras de história, elas dão sustentação ao
candomblé a partir da oralidade e, na contemporaneidade, são fortes referências para a auto-
afirmação de uma série de negras e negros. Por mais que em África o culto de òrìsà (orixá) não
seja feminino, tendo os babalaôs35 relevante função, na travessia desse culto de África para o
Brasil, as mulheres assumiram aqui relevante posição, o que nos dias de hoje parece
intransferível.
Compreendidas como herança encarnada de uma africanidade ou afrobrasilidade, a
partir da legitimidade que as origens parecem atribuir, mulheres encontradas no decorrer da
[35]
Literalmente: O pai do segredo. São sacerdotes do culto dedicado a Ifá, divindade da adivinhação. Nesta forma de culto o
poder se concentra nas mãos dos homens, sendo os eleitos como sacerdotes, entre outras coisas, responsáveis pela adivinhação a partir do jogo que nesse sentido não é feito com búzios, mas como metades de caroços de dendê que formam algo semelhante a um colar.
60
vida de muitos adeptos estabelecem ou exercem influência na construção pessoal de inúmeros
religiosos. Ainda que sejam personagens conhecidas indiretamente, a partir do status de
referência que ocuparam ao longo de suas histórias, mulheres como Ìyá Detá, Ìyá Kalá, Ìyá
Naso, Mãe Aninha, Mãe Senhora e tantas outras personagens da história do candomblé
brasileiro se relacionam ideologicamente com diferentes gerações. Tal relação se processa a
ponto dessas mulheres, que hoje são ancestrais, se tornarem altamente conhecidas por
pessoas que não partilharam de seu espaço-tempo.
São essas nobres senhoras de Candomblé, também responsáveis pela travessia das
memórias ancestrais africanas. Faz-se tal atribuição, considerando que as narrativas mítico-
religiosas, que justificarão os rituais e a organização das casas de òrìsà (orixás) são também
memórias herdadas dos ancestrais ligados àquela raiz religiosa/cultural. A respeito do que se
reflete sobre as referidas senhoras, em diálogo com o processo histórico do espaço de
observação dessa pesquisa, deve-se fazer referência às ìyálórìsà (ialorixás) do terreiro Opo
Àfonjá (Opô Afonjá). Em ordem cronológica, estamos nos referindo a: Mãe Aninha de Afonjá,
Obá Biyi36; Mãe Bada de Osala (Oxalá), Olufan Deiyi; Mãe Senhora de Òsun (Oxum), Òsun
Muiwà; Mãe Ondina de Osala ou Mãezinha, Iwin Tona. Mãe Stella de Òsóòsí (Oxóssi), Ode
Kayode³, atual lider da comunidade é, de alguma maneira, reflexo das demais.
Com exceção de Mãe Stella, que permanece na direção do àse (axé), as mães de santo
citadas não interagiram, por exemplo, com a geração contemporânea do terreiro, entretanto,
todas se tornam próximas do espaço-tempo de toda a comunidade à medida que vivem na
memória coletiva desse lugar, sendo ainda fonte de inspiração para algumas atividades que se
desenvolvem no terreiro.
Como afirmou Ode Kayode em seu discurso, por ocasião de sua posse, na Academia
Baiana de Letras:
"Se a cabeça de Mãe Aninha foi consagrada; sua língua ganhou axé, ganhou força. Sua fala é uma sentença que seus filhos espirituais procuram obedecer e cumprir, como manda a sabedoria ancestral. Foi isso que também eu fiz, tanto que hoje me encontro aqui, na ilustre Academia de Letras da Bahia para ser empossada na cadeira 33. A sentença de mãe Aninha é mais profunda do que normalmente se costuma interpretar: receber um anel é símbolo de aceitação de um compromisso. A vanguardista senhora desejava que seus descendentes se comprometessem com as causas sociais e espirituais. Desejo de Mãe Aninha que se tornou de todas as iyálorixá que a sucederam. Esse também é meu desejo: comprometer-me com tudo que assumo, seja no âmbito social, seja no âmbito espiritual."
A exemplo, pode-se sinalizar Mãe Aninha como a grande inspiração para o olhar
voltado ao âmbito educacional, que esta casa de Candomblé possui. E, dessa maneira,
podemos pensar também na relação desses espaços religiosos com a construção e [36]
Esse e todos os nomes em língua yorubá que seguem os nomes ocidentais das referidas ìyálòrìsà são os ditos oruko, sobre os
quais já falamos anteriormente em nota.
61
posicionamento político-social dos adeptos dessa religiosidade. A respeito desse pensamento,
MUNIZ SODRÉ (2006) nos diz que:
“A comunidade liturgica afro-brasileira ou terreiro implica, antes de mais nada, a ideia de um corpo grupal forte o suficiente para dar proteção contra as adversidades, contra o estrangeiro hostil. É o que expressa um antigo canto de celebração: “Kosi mi fara alejo/ Ara wara kon mi fara...” (“Nada há que possa contra mim nem mesmo quando parte dos estrangeiros/ Todos unidos num mesmo corpo, não há no mundo que possa contra mim”). A liturgia não deixa, assim, de “vestir” ou exprimir uma prática política bastante clara.” (SODRÉ, ,p.170)
Como nos afirma JACQUES LE GOFF (1996, p.429), a respeito da manutenção da
memória, salvo as questões de gênero, que em nosso contexto favorece ao lado feminino, ao
contrário do relato do teórico que contempla um olhar masculino para essas relações de poder:
“Nestas sociedades em escrita há especialistas da memória, homens-memória: “genealogistas”, guardiões dos códices reais, historiadores da corte, “tradicionalistas”, dos quais Blandier [1974, p.207] diz que são ‘a memória da sociedade’ e que são simultaneamente os depositários da história ‘objetiva’ e da história ‘ideológica’, para retomar o vocabulário de Nadel. Mas também ‘chefes de família idosos, bardos, sacerdotes’, segundo a lista de Leroi- Gourhan que reconhece esses personagens ‘na humildade tradicional, o importantíssimo papel de manter a coesão do grupo’” ( LE GOFF, 1964-65, p.66)
No caso dos Cadomblés, esses idosos e sacerdotes, dos quais se pode dizer que sejam a
memória da sociedade são as agbás, as(os) antigas(os) egbon37, Ogan38 e ekedji39, as anciãs
e anciãos do Candomblé.
O histórico de repressão, sufocamento e silenciamentos sofridos pelos grupos e
tradições negro-brasileiros, compõem acontecimentos vividos por uma coletividade que atinge
diretamente ao negro na sociedade brasileira e estende-se a suas manifestações de cunho
religioso/cultural, entre outras que tragam em sua estrutura traços negroides. Esse atingir age,
inclusive, na construção da autoestima desses grupos, assim como é muitas vezes um forte
colaborador no desenrolar das auto-negações.
Nessa perspectiva, a memória desse lugar longínquo, no caso as terras de Ketu, a ação
das sacerdotisas que através de seus exemplos de vida e falas sustentadas pela oralidade,
frente à realidade da religião de matriz africana no Brasil, se relacionam através dos tempos
com sujeitos deslocados de seu espaço-tempo e o histórico de repressão e silenciamentos que
[37]
Todo iniciado que já cumpriu sua obrigação de sete anos, tornando-se assim um mais velho.
[38] Condição especificamente masculina, referente a aqueles que não entram em transe e são escolhidos pelos orixás para
desempenharem determinadas funções dentro das casas de candomblé relacionadas ao sacrifício, toque dos atabaques entre outras questões. Podem se tornar grandes mestres dentro das referidas comunidades, dependendo somente de sua atuação enquanto religioso.
[39] Condição especificamente feminina, referente a aquelas que não entram em transe e são escolhidas pelos orixás para
desempenharem na casa de candomblé funções em geral administrativas. São mulheres escolhidas para zelar pelos orixás e auxiliarem no bom andamento das atividades.
62
marcam a memória coletiva dos negros, assim como dos demais adeptos da religião dos òrìsà
(orixás), ademais do próprio espaço do terreiro, considerando suas relações e a socialização
decorrente, configuram-se como agentes de intensa atuação no processo de construção das
identidades dessas crianças e jovens de terreiro.
Sobre a comunidade religiosa, como espaço, diz SODRÉ(2006):
“A comunidade –terreiro é, assim, repositório e núcleo reinterpretativo de um patrimônio simbólico explicitado em mitos, ritos, valores, crenças, formas de poder, culinária, técnicas corporais, saberes, cânticos, ludismos, língua litúrgica (o irorubá) e outras práticas sempre suscetíveis de recriação histórica, capazes de implementar um laço atrativo de natureza intercultural (negros de etnias diferentes) e transcultural ( negros com brancos)” (SODRÉ, 2006, p.170-171)
Dessa maneira, pode-se compreender o terreiro, ambiente de resistência e preservação de
uma cultura afro-descendente, também como espaço de construções que se refletirão na
dinâmica social dos submetidos às suas relações frente ao mundo ocidental, que propagará
percepções e valores diversos, que, muitas vezes, não estarão em harmonia com os
pressupostos mantidos por esse lugar e suas políticas, à medida que se trata de um
direcionamento indicado por referências de mesma matriz da religiosidade citada, que, como já
é sabido, trata-se de algo comumente desconsiderado, ainda que em suas entrelinhas existam
referências absolutamente atuais, como, por exemplo o intento da preservação ambiental, tema
recorrente diante das falas contempladas pela sustentabilidade, e, ao mesmo tempo, pertinente
e costumeira em meio às comunidades de terreiro, diante da compreensão da natureza como
manifestação da própria divindade e não somente como criação divina.
Pensando as memórias, podemos considerar que elas tenham uma íntima relação com o
sentimento de identidades. Como nos sugere POLLAK (1992):
“a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. [...] A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com os outros.” (POLLAK,1992, p.204)
Dessa maneira, talvez nos seja possível compreender a memória como um espaço de
encontro entre tempos, à medida que a ela também se atribui o status de mantenedora de um
sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou grupo, na (re)construção de si.
Ela é a encarregada de promover esses encontros que possibilitarão a fluidez e construção de
novas identidades.
A respeito do conceito de identidade, as análises de STUART HALL (2000) sugerem,
pensando a contemporaneidade, que “naquilo que é descrito, algumas vezes, como nosso
mundo pós-moderno, nós somos também “pós” relativamente a qualquer concepção
63
essencialista ou fixa de identidade”(2000, p.10) e dessa forma ele faz referência a fluidez do
processo de definição e construções identitárias. Dessa maneira, entendemos que “A
identidade torna-se uma ‘celebração móvel’ formada e transformada continuamente em relação
às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam” (HALL, 1987).
A memória que inicialmente pode ser pensada como algo relativamente íntimo,
individual, abre possibilidade para um entendimento, tal qual o referente às identidades, que
apontam para um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações e mudanças.
Refletindo ainda sobre a memória, na perspectiva que se propõe, JACQUES LE GOFF
(1996) trará ao debate o conceito de memória étnica, reservando e relacionando aos povos
sem escrita a construção da memória coletiva, que seria uma história ideológica, que descreve
e ordena fatos estabelecidos com base em critérios objetivos de acordo com certas tradições.
LE GOFF (1996) pensará o que ele denomina memória étnica, entendendo memória “como
propriedade de conservar certas informações” (LE GOFF,1996, p.423), seria essa memória a
efetiva responsável por assegurar “a reprodução dos comportamentos nas sociedades
humanas.”(p.425)
III.2 Entre a louvação e a negação - ser de candomb lé na escola: uma abordagem
“A carne mais barata do mercado é a carne negra/Que vai de graça pro presídio/E para debaixo de plástico/Que vai de graça pro subemprego/E pros hospitais psiquiátricos/A carne mais barata do mercado é a carne negra/Que fez e faz história/Segurando esse país no braço/O cabra aqui não se sente revoltado/Porque o revólver já está engatilhado/E o vingador é lento/Mas muito bem intencionado/E esse país/Vai deixando todo mundo preto/E o cabelo esticado/Mas mesmo assim/Ainda guardo o direito/De algum antepassado da cor/Brigar sutilmente por respeito/Brigar bravamente por respeito/Brigar por justiça e por respeito/De algum antepassado da cor/Brigar, brigar, brigar”
Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette
Considerando o olhar de LE GOFF (1996) a cerca da memória, na face em que ele a
contempla, nos é possível compreender frente à realidade observada nos grupos religiosos
afro-brasileiros, especificamente os Candomblés, enquanto coletividade, e consequentemente
no que se refere aos seus adeptos, em uma abordagem individualizada, fotografando nesse
sentido as crianças e jovens negros(as), um sentimento de continuidade, de preservação e por
que não de resistência, que segue na esteira do sentimento de pertença a essas tradições.
A respeito das identidades, NILMA LINO GOMES (2005) tece uma definição que nos
parece bastante adequada ao nosso percurso reflexivo acerca dela:
64
“A identidade não é algo inato. Ela se refere a um modo de ser no mundo e com os outros. É um fator importante na criação das redes de relações e de referências culturais dos grupos sociais. Indica traços culturais que se expressam através de práticas lingüísticas, festivas, rituais, comportamentos alimentares e tradições populares referências civilizatórias que marcam a condição humana. Portanto, a identidade não se prende apenas ao nível da cultura. Ela envolve, também, os níveis sócio-político e histórico em cada sociedade. Assim, a identidade vista de uma forma mais ampla e genérica é invocada quando “um grupo reivindica uma maior visibilidade social face ao apagamento a que foi, historicamente, submetido” (NOVAES,1993: 25).” (GOMES, 2005, p. 41)
Pensando ainda a construção das identidades como um fenômeno que se realiza a partir
das relações diretas com o outro e as negociações, no que se refere aos critérios de
credibilidade, aceitação e admissibilidade, como nos sugere POLLAK(1992), compreende-se
que mesmo diante de todo referencial que a memória étnica/ coletiva dos grupos religiosos
negro-brasileiros oferece a essas crianças e jovens, a interação com a escola e os valores que
ela propaga podem abalar as estruturas deste. Não podemos perder de vista que tratamos de
um espaço escolar que majoritariamente serve a uma sociedade elitizada, que promove o
racismo, vindo a negar às várias manifestações/construções que se distanciem do modelo
branco, masculino, machista, cristão e heteronormativo, que a sociedade elegeu como modelo.
“A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros ( identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc.” (MUNANGA, 1994, 177-178).
Essas identidades, construídas nesse espaço de conflitos desconstrutivos se dividem entre o
ethos40 do enfrentamento e da resistência, que seria o ideal, e o ethos da negação, em
decorrência do já citado processo de negociação que oferece ainda mais subsídios para a
ampliação do sistema racista que sobrevive em práticas sociais, à medida que os estereótipos
são naturalizados.
Para a criança negra, afirmar suas identidades afro-descendentes é um processo
complexo. O racismo fere diariamente a população negra, sobretudo aos negros de pele mais
pigmentada. Tal particularização pode ser feita, à medida que compreende-se que o
preconceito de marca, como nos afirma ORACY NOGUEIRA (2006), é o que prevalece em
questões raciais no Brasil. Esmiuçando a questão, trata-se de um preconceito que se faz pela
cor da pele e aparência. Essa face do preconceito se difere do que o mesmo autor chamará de
preconceito de origem, compreendido como o que se destaca nos Estados Unidos. Esta outra
[40]
Conjunto de hábitos ou crenças que definem uma comunidade ou nação. Traços comportamentais que distinguem um povo.
Pode ainda, como no contexto em que trazemos fazer referência as características morais, sociais e afetivas que definem o
comportamento de uma determinada pessoa ou cultura.
65
face do racismo tem como pressuposto a suposta ascendência de um dado grupo étnico. De
acordo com NOGUEIRA (2006), nos espaços em que ocorre o preconceito racial de marca, a
discriminação pode ser abrandada por qualificações que o sujeito venha a apresentar. Em
contrapartida nos espaços em que é recorrente o preconceito de origem, a discriminação se
manterá independentemente de qualquer qualificação do indivíduo.
Nessa discussão é válido que se faça referência à dificuldade da definição de quem é
ou não negro, no senso comum. Sabemos que, de acordo com KABENGELE MUNANGA
(2006), hoje a compreensão do conceito de raça e do que é ser negro está intimamente ligada
a uma questão política, sobrepondo-se, dessa forma, a cor da pele. Entendida inicialmente a
partir de um conceito biológico, determinado pela autoridade científica europeia, raça foi um
conceito usado para classificar seres por espécies. No que se refere à humanidade ela, a raça,
foi argumento hierarquizador. Norteada, sobretudo por fenótipos, a hierarquização proveniente
das supostas diferenças raciais atribuiu aos mesmos noções de: intelectualidade, valores
morais, culturais, estéticos e até mesmo civilidade.
O entendimento de raça em uma vertente biológica se dissolve, muito oportunamente,
quando se pensa a humanidade. Ao se compreender a unidade da raça que a humanidade por
si só nos sugere, fazendo-nos apenas raça humana, a usualidade do termo no que se refere a
uma questão fenotípica se esvazia de sentido. Dessa forma a noção de raça passa a vincular-
se a uma questão sócio-política que tem como princípio o enfrentamento ou combate às
desigualdades.
Marcar a questão da raça é também um meio de resistência e enfrentamento, à medida
que está vinculado à afirmação da existência do racismo. A mesma nomenclatura
anteriormente utilizada como indicadora de hierarquização, hoje ecoa com conotação libertária.
Não estamos presos a um conceito biológico, mas a uma causa política, marcada pelo
significado preconceituoso oferecido ao significante raça. Diz-se preconceituoso considerando
que foi ele o pressuposto que embasava valores pertinentes ao entendimento de
superioridade-inferioridade.
Partindo das classificações que a biologia eurocentrada instaura, o significante negro
adquire como significado, raça inferior. Posteriormente, em nossa história nacional, da mesma
maneira que acontecerá em tantas outras, o termo será usado de maneira que torna-se
sinônimo de escravo. Talvez aí resida um dos argumentos que promovem a negação do
entendimento e auto-afirmação da própria negritude à medida que é historicamente vinculada a
ela um suposto peso que tem relações com o simbólico, com a construção do imaginário no
que se refere às identidades negras.
Ainda hoje, receosas de ofender pela utilização do vocábulo negro, uma gama de
pessoas substitui essa expressão por tantas outras, tais quais moreno, mulato, escurinho, de
cor, entre outras, considerando, então, que seja agressivo utilizá-la. Tão grave quanto a
66
negação do significante pelos referidos argumentos é não notar-se a existência do racismo
nessa negação.
Ora, se trata-se de uma população na qual uma considerável parte ainda teme utilizar
uma palavra, em decorrência da carga simbólica de caráter pejorativo que se construiu sobre
ela e anda não se conseguiu desarticular por inteiro, como poderemos pensar a auto-afirmação
de identidades vinculadas a esse mesmo pressuposto? Enquanto sobreviver o receio na auto-
identificação como negra(o), preta(o) e ainda mais na afirmação das identidades negras que
nos atravessam e nos constroem, o racismo sobreviverá no âmago de cada um desses
sujeitos.
Dessa maneira, compreende-se que o processo de desarticulação do racismo tem
intrínseca relação com construções do imaginário. Ao se tratar de crianças e jovens, temos em
vista que a afirmação dessas identidades é tarefa bastante densa, à medida que como já
consideramos, a escola não foi estruturada para receber crianças distante do padrão idealizado
pelo modelo eurocêntrico.
Como já sabemos, dentre o que se reconhece como riqueza cultural do Brasil, no senso
comum, e por assim ser nos representa no mundo, chega até nós como contribuição africana.
Em decorrência do pós-travessia e dos hibridismos que o sucede o afro-brasileiro se dá. Em
momento posterior ao tráfico negreiro, aspectos até então não reconhecidos pelo Brasil
indígena-europeu, sutilmente se estabelecem. Tais aspectos, ao longo do tempo vem
exercendo profunda atividade na movimentação cultural do país. Entre esses agentes culturais,
colaboradores da construção identitária dessa nação encontram-se as religiões afro-brasileiras.
Como nos afirma MUNIZ SODRÉ (2006):
“(...) é fundamental a memória da contribuição africana em termos de estética, música, culinária e religiosidade para as formas de vida atuantes entre as classes subalternas no país. Não foi uma contribuição aleatória e anárquica, mas um verdadeiro processo civilizatório, que comporta mesmo a categoria “elite”, a propósito das manifestações sociais dos africanos e seus descendentes. As categorias litúrgicas matriarcais, aquelas que deram origem à profusão e a popularização dos cultos afro-brasileiros, foram resultado de uma aglutinação de elite, caracterizada pela participação fundacional de altos dignatários e sacerdotes do milenar cultos aos orixás, trazidos ao Brasil na condição de escravos, em consequência das guerras interétnicas e das incursões guerreiras dos escravagistas no continente africano.” (SODRÉ, 2006, p.12)
O histórico de formação cultural desse país, tal qual a estruturação social e física do
mesmo, guardam em seus alicerces traços africanos e indígenas. Nesse sentido, ainda que
negadas com tanta intensidade, essas culturas exercem atividade na construção das memórias
desse lugar. Como nos afirma MUNANGA (2010):
“(...) essas heranças constituem a memória coletiva do Brasil, uma memória plural e não mestiça ou unitária. Uma memória a ser cultivada e conservada por meio das memórias familiares e do sistema
67
educacional, pois um povo sem memória é como um povo sem história.” (MUNANGA, 2010, p.50)
Na esteira dessa lógica é natural que as mesma desempenhem, sobretudo no âmbito
educacional, o mesmo processo de interação que ocorre com as europeias. Talvez, o que seja
mais curioso em todo esse processo seja defender o óbvio, mas se isso ocorre é porque o
óbvio é negado e se o fazem, algo de errado acontece nessa sociedade.
Considerando a criança e fazendo aí um novo recorte, pensando as crianças de terreiro,
um novo dilema se instaura. A questão religiosa é bastante polêmica e não pode ser
desconsiderada. Há quem questione o valor das discussões que envolvem religião e
sociedade, considerando muitas vezes o fato de sermos, ao menos teoricamente, um estado
laico. Todavia, crê-se que a legitimidade da discussão consista na influência do fator religioso
na construção do modelo de sociedade e seus reflexos na mesma. Um estado laico não propõe
a invisibilidade das religiões, mas o não privilégio de nenhuma. Entretanto, não é isso que
percebemos.
A criança negra terá dificuldade em afirmar suas identidades no âmbito escolar, tal qual
as crianças não negras que são de candomblé. Embora ambas sejam atravessadas pelo
preconceito, objetivamente a criança negra e de candomblé vivenciará o preconceito de forma
intereseccional.41 De qualquer maneira, as crianças e jovens de candomblé negras ou não
negras serão marcadas por um preconceito decorrente da gênese da religião dos òrìsà
(orixás).
Como qualquer manifestação de origem negra, o candomblé por sua ascendência já
tem voltado para si olhares preconceituosos. Além de somar-se ao preconceito em questão, a
discriminação por conta da forma de religiosidade não cristã. Nesse sentido o candomblé é
marcado pelo preconceito racial de marca e pelo preconceito de cunho religioso, assim como
parte de seus adeptos. Discriminado porque é considerado “coisa de preto” e por não ser
cristão.
A criança de candomblé interage de maneira bastante significativa com a cultura afro-
brasileira. A respeito dessa interação, pensando não somente essas fases específicas do
desenvolvimento humano, mas todos os adeptos, assim nos afirma MUNIZ SODRÉ (2006):
“Quanto ao fiéis, cultuam e incorporam as tendências ou possibilidades simbolizadas por cada um dos princípios-deuses, isto é, pelo poder dinâmico de movimentação e criação. Entre os humanos e essas entidades múltiplas, existe uma diferença de potência, já que são estas ultimas não-mortais e mais poderosas. Entretanto, ocupam todos o mesmo universo e pertencem a um mesmo plano de discurso – não se acham num “além”.” (SODRÉ, 2006, p.175)
[41]
Nesse sentido o conceito faz atribuição aos diversos indicadores étnicos ou culturais que serão utilizados como argumentos
para o preconceito. No caso das crianças negras de candomblé, elas sofrerão o preconceito de marca, decorrente de seus traços fenotípicos, além do preconceito decorrente da cultura e religiosidade na qual está submersa.
68
Com tal afirmação, SODRÉ (2006), de alguma forma faz referência ao que pensamos quando
consideramos a relação dos mitos que fundam e movimentam o candomblé, com a construção
das identidades de seus adeptos. Dessa maneira, pretende-se acentuar a profundidade da
negação a que essas crianças e jovens são submetidos. A interação dos adeptos com essa
forma de religião se dá, sobretudo, por meio dessas narrativas romanceadas que já
investigamos em capitulo anterior.
Enquanto no espaço familiar e do terreiro as crianças e jovens de candomblé louvam
suas identidades negras, como herdeiros de uma afro-brasilidade que seus ancestrais lhes
deixaram, na escola, em geral, esses mesmos valores são absolutamente negados. É contra
esse entre-lugar, o espaço da louvação e da negação, que o movimento negro e outros
movimentos sociais travam suas lutas, quando se trata de educação. Pensa-se um currículo
que seja mais democrático para as culturas que se apoiam para construir efetivamente a
cultura brasileira. No processo de (re)pensar o currículo e as relações da instituição escolar
com a construção das identidades dos discentes, deve-se considerar sobretudo o quanto as
desconstruções que decorrem do não reconhecimento efetivo da diversidade como algo
valorável prestam um desserviço à sociedade brasileira.
A relação entre escola e sociedade é inegável, uma vez que a primeira serve a segunda.
A instituição educacional é espaço de construção enquanto a sociedade e seus rumos podem
ser entendidos como o reflexo de valores construídos. Ressalta-se que o âmbito escolar
também partilha dessa última atribuição. Dessa maneira, considero que escola tem suas bases
ancoradas na sociedade a quem ela serve, da mesma maneira que é mais coerente aos
pressupostos dessa sociedade que a escola se mantenha com as características que lhe
convém.
A lei 10.639/03 pretende estreitar os laços entre as culturas africana e afro-brasileira e a
pratica educacional. Compreendemos que, algumas vezes, as leis surgem para negar questões
que frente ao bom senso seriam óbvias. Descremos que a mudança da sociedade, no que
tange ao racismo se dê em decorrência de leis. Acredita-se, no entanto, na contribuição destas
para o desenrolar das ações antirracistas, mas sobretudo consideramos que o caminho
verdadeiramente eficaz para a desarticulação do racismo seja o conhecimento das frágeis
bases que o sustentam.
Ao garantir, como propõem as diretrizes curriculares nacionais, o direito e igualdade de
acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos os cidadãos, por meio da valorização
da face histórico-cultural dos afro-brasileiros e dos africanos, o processo educacional brasileiro
tem a primeira grande oportunidade de comprometer-se com a educação das relações étnico-
raciais.
É necessário que o racismo seja desarticulado e que as várias culturas sejam
contempladas no espaço âmbito da educação, para que sejam possíveis as reconstruções do
69
imaginário da sociedade. A infância e a juventude são a personificação do futuro e, dessa
forma, mostram-se a esperança de uma efetiva reconstrução nos valores dessa sociedade.
Oportunizar condições para que esse estreitamento, seguido de releitura de valores, seja
possível é o que pretendemos que a escola em uma nova abordagem possa promover.
Coibir a prática do racismo no espaço escolar exige da comunidade docente um amplo
trabalho, decorrente de muitas reflexões, obviamente apoiadas pelo governo, acompanhada do
pressuposto de uma sociedade democrática e a consciência de um estado laico. Como
percebemos o racismo vez por outra se acomoda no seio da sociedade, tal qual o faz dentro da
escola. Apropriando-me dos ditos populares, podemos dizer que este lobo veste-se com a pele
de cordeiro da naturalidade.
Não se mostra interessante, para os valores excludentes e homogeneizantes que a
sociedade propõe, a formação de uma camada crítica desses valores. Nesse sentido, seria a
escola e a sociedade uma via de mão dupla, dando a suas estruturações um caráter de
dependência mútua. Simultaneamente elas dialogam e legitimam a existência de seus valores.
Ao dizer que a escola é espaço de construção, sugerimos que independente de quais
referenciais norteiem suas práticas, o papel de desenvolver a possibilidade de construção será
desempenhado. Para o bem ou para o mal, a escola sempre contribuirá com as construções.
Cabe a escola não invisibilizar o racismo, como se tentou fazer por muito tempo na
sociedade brasileira. Enquanto espaço de construção, pode ser a escola também um espaço
de desconstrução, à medida que se permite discutir o racismo, assumir sua existência, expor
seus danos e propor sua desarticulação. Em uma proposta de sociedade antirracista romper
com o modelo homogeneizante que se mantém vinculado a ela, promovendo a diversidade.
Dessa maneira, muitas histórias serão reescritas. Ao coagir o racismo, identidades antes
negadas poderão ser então afirmadas. Dessa maneira a reconstrução dos imaginários se dará
naturalmente.
70
Conclusão
Reconhecendo as mazelas sociais do país, em nossa análise, optamos por fazer um
recorte em um dos grandes males da sociedade brasileira, ou seja, o racismo. Compreendido
como repulsa e até mesmo ódio direcionado a pessoas marcadas por indícios de um dado
pertencimento racial, o racismo configura-se também como um aparato de ideias e imagens
que pretendem estabelecer uma hierarquização dos grupos humanos a partir de referenciais de
suposta superioridade e inferioridade.
A lei 10.639/03, almejando intervir e combater à realidade social brasileira que é
assombrada pelo racismo, vem pelas vias da educação, propondo, indiretamente, o repensar
de dadas ideias, no que tange à compreensão da história, e sobretudo da cultura africana e
afro-brasileira. Todavia, como nos parece evidente a partir de um olhar panorâmico sobre os
rumos sociais observáveis, é muitas vezes embarreirada por noções que circulam muito
naturalmente, em decorrência de pressupostos que habitam o senso comum e pensam o Brasil
a partir de uma lógica que aponta para uma sociedade sem o que se chama de uma linha de
cor. Ou seja, à medida que se observa essa sociedade, considerando não haver empecilhos
legais que impeçam a ascensão social por questões étnicas/raciais, se incute uma suposta
democracia racial, que será tratada como mito, não estando este vocábulo em consonância
com a noção de mito que observamos enquanto narrativas orais. Nesse sentido atribui-se ao
referencial a perspectiva de mentira. Constituído como corrente ideológica que nega a
desigualdade a partir de um pressuposto racial, crendo-se então que há igualdade entre negros
e brancos no que tange a oportunidades e tratamentos na sociedade, o mito da democracia
racial mostra-se um dos principais responsáveis pela sobrevivência do preconceito racial no
Brasil.
A partir da observação da construção de conhecimento e identidades no âmbito do
terreiro de candomblé, pensamos a escola enquanto espaço para construções de natureza
semelhante. Construída inicialmente em prol de uma elite, já que o acesso a ela se restringia
ao referido grupo social, essa instituição que exerce a função social de difundir a cultura, além
de retomar e apresentar às gerações mais recentes os grandes feitos da humanidade, muito
oportunamente parece anular, por vezes, uma história de glórias encenada por personagens
negros, estando os mesmos sempre entre os ditos referencias menores.
Como pretendíamos no capítulo primeiro, pensando as imagens e referenciais africanos
e afro-brasileiros na educação, refletimos acerca de África e da afrobrasilidade na escola e os
reflexos que se produz a partir de então. Como já foi constatado por outras análises,
evidenciou-se a deficiência curricular. É apresentada à população negra uma história que não a
71
insere. Trata-se de uma memória que forma a partir da negação, uma vez que a história
ensinada insistentemente nos faz referência ao negro ocupando o local dos coadjuvantes.
Observando, sem a necessidade de minúcias, comprova-se facilmente que, nos diferentes
estágios da escala do processo educacional no Brasil a ode aos valores sociais e culturais da
Europa e dos Estados Unidos da América assume espaço central. Histórias das Áfricas, suas
tradições e culturas são, quando não abominadas, reduzidas a estereótipos, oferecendo-lhes
uma face esdrúxula. Não é possível que se pense a educação desvinculando-a da cultura e da
observação crítica da história que a constrói, assim como a sociedade na qual ela se insere. Na
atualidade, não mais nos cabe o exercício de uma educação colonizada. Diante destas
percepções e valendo-nos da ideia que se faz centro dessa pesquisa, na busca de soluções
para o conflito concluímos que as vias do multiculturalismo mostram-se relevantes alternativas
de desarticulação da cultura da discriminação. Nesse sentido a discriminação admite o caráter
de normalidade. O sistema de oposição entre nós e os outros, sendo o âmbito do “nós”
ocupado por aqueles que em uma escala hierárquica acabam por se sobrepor aos “outros”, a
partir de um modelo eleito como padrão, torna-se frequente e intenso, equilibrando-se no não
reconhecimento da diversidade, podendo ainda se pautar em uma hierarquização que aponta
sempre o outro como inferior, à medida que manifestam-se nele dadas identidades,
posicionamentos e posturas. Em face de naturalização, a crueldade decorrente da segregação
que os atos discriminatórios provocam são invisibilizados.
Ao reconhecermos efetivamente a dificuldade da escola em interagir com a pluralidade,
justifica-se a tendência a silenciar as diferenças e consequentemente o enorme conforto da
instituição escolar diante da homogeneização. Dessa forma, mostra-se a valoração do
homogêneo como grande responsável pela cultura da discriminação, conceito trazido por
CANDAU (2005), uma vez que tudo que se constitui de maneira oposta ao padrão estabelecido
é negado. Nesse sentido, a construção de caminhos sólidos para que a noção de diversidade,
em todos os sentidos, seja, de fato, desempenhada entre os valores cultuados pelos discentes
é o grande desafio que a escola brasileira é convidada a enfrentar no momento sócio-cultural
que a contemporaneidade nos apresenta.
Compreendendo o multiculturalismo, dando ênfase a sua face crítica, como uma
corrente, além de estratégia, que almeja o reconhecimento e representação da diversidade
cultural a partir dos questionamentos das construções dos preconceitos, estereótipos e dos
conceitos de diferença a partir do pressuposto de inferiorização, concluímos que seja ele de
grande eficiência no processo de reorganização que compreendemos ser necessário ao
sistema educacional brasileiro. Considerando o desafio de construção de caminhos sólidos
para que se desempenhe plenamente a noção de diversidade e fotografando o recorte étnico-
racial, que essa pesquisa se propôs, em aliança com a noção de multiculturalismo, nos
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afinamos com a ideia de uma pedagogia da diversidade, ideia que MUNANGA (2010) nos traz.
No que tange a diversidade, ressaltamos a compreensão dela em comunhão com a
perspectiva de pluralidade, entretanto não construída em tom desenfreado, mas como o
reconhecimento das diferenças desapegado de hierarquizações decorrentes disso. Tomando
como centro a questão racial, percebemos a emergência da descolonização das mentes.
Com base nos direcionamentos que a pedagogia da diversidade nos sugere, assim
como na esteira da compreensão que temos de multiculturalismo, reafirmamos a necessidade
de uma literatura para crianças e jovens que traga a cena personagens e principalmente
figuras que ocupem o referencial de heróis negros, dada a importância dessas personagens na
construção do imaginário infantil e juvenil. Nesse sentido em decorrência do percurso que
fizemos no capítulo segundo, se conclui que como vínhamos supondo, as narrativas africanas
ou afro-brasileiras que se encontram na gama de histórias denominadas mitos yorubás são
capazes de suprir essa carência. O ponto central dessa pesquisa foi, justamente, o encontro
entre educação e cultura. Crendo no sucesso desse encontro para a reafirmação das
identidades negras, que por tantas vezes foram negadas na história desse país e
consequentemente na construção de uma sociedade mais igualitária, partimos para o alcance
do intento, da arma que se crê para o estabelecimento de mudanças, no caso, a educação.
Investigamos e concluímos que as narrativas orais africanas e afro-brasileiras, uma vez que
alguns mitos são referentes a questões diaspóricas, são grandes responsáveis pela construção
de identidades a partir de nobres valores de comunidades africanas recriadas no Brasil, a partir
dos candomblés.
No que tange à literatura oral, podemos fazer referência a sua funcionalidade, pautada
na finalidade de explicar, justificar e entreter. Nesse sentido, o recorte principal, de acordo com
a pretensão dessa pesquisa, é feito a partir da construção do imaginário infantil em interação
com a palavra falada. Fruto da memória, o mito yorubá em dada instância age também como
base de sustentação de uma dada cultura e modelo de sociedade. No encontro entre voz e
letra do ato de contar, ele deixa indícios de sua potencialidade nessa sociedade que prima pela
escrita. É nessa potencialidade que apostamos, crendo no sucesso da investida na instituição
escolar após observar o quanto ela é frutífera nos terreiros de candomblé, que são também
espaços de construção de saberes.
Crendo-se terreiro como espaço de construção e vislumbrando o potencial da contação
de histórias nesses âmbitos, é valido ressaltar a função das contadoras e contadores de
histórias nessas comunidades. Comprovamos, a partir da comunidade do Ilé Àse Opo Àfonjá
(Ilê Axé Opô Afonjá), que são eles verdadeiros mestres que auxiliam intensamente no processo
de iniciação e ou inserção de crianças, jovens e adultos na lógica desses grupos. O ato de
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contar e recontar as histórias daqueles que a partir dali são apresentados como seus
ancestrais são meios de nortear os indivíduos nos caminhos que a vida venha a lhes
proporcionar. Como referenciais dessa função, na comunidade afro-brasileira citada, podemos
citar a entrevistada, Mãe Stella, que foi uma criança de candomblé e atualmente ocupa o lugar
da sábia anciã norteadora e da recentemente falecida ebomi Detinha de Sàngó (Xangô), que
muito colaborou com essa pesquisa, a partir de conversas informais durante a visitação ao
terreiro. Ebomi Detinha carregava consigo a marca da maestria na contação de histórias e da
sabedoria evidenciada através delas. Sendo, também, essas mulheres, como apontamos no
terceiro capítulo, intelectuais orgânicas. A respeito das apontadas narrativas, a memória
herdada, como se chamará essa memória que se estrutura a partir da socialização dos
religiosos com o histórico dessas etnias, assim como do processo de travessia e de
reconstrução da história de seus antepassados, promove um processo de identificação com
uma ancestralidade negra, digna de valoração, como não se percebe nas histórias ocidentais.
E é nesse conjunto que reside a grandiosidade do trabalho com esse material nos terreiros de
candomblé e, de acordo com nosso desejo, nas salas de aula desse país.
A observação da comunidade do Ilé Àse Opo Àfonjá (Ilê Axé Opô Afonjá) e da interação
de todo o grupo, em especial das crianças e jovens com a oralidade, reconhecendo a força da
palavra nos candomblés, considerando o poder de gerar e desconstruir que lhes são
conferidos; a mitologia yorubá que veicula e se sustenta nas nuances da oralidade e a
revivência dessas histórias no âmbito do terreiro e indiretamente em suas vidas foi fundamental
na constatação da eficácia dessas narrativas na construção de um imaginário, de uma visão de
mundo que se difere daquela que a cultura da discriminação e a escola com seu caráter ainda
excludente propõem de maneira direta ou indireta. Dessa maneira concluímos que as
narrativas yorubás em questão podem colaborar intensamente com a desconstrução de
paradigmas preconceituosos e excludentes que circulam rotineiramente pela sociedade, à
medida que oferecem uma série de noções de civilidade, ética, caráter, bom senso, entre
tantas outras de grande relevância para a construção de uma sociedade mais igualitária. Além
do que, de acordo com o que foi observado, podemos dizer que a experiência com a palavra e
a contação de histórias, tal qual as comunidades de terreiro costumam experimentar, soma
profundamente com a construção de uma pedagogia da diversidade, ao descentralizar as
noções ocidentais que comumente são propagadas pelos contos, fábulas e demais narrativas
direcionadas às crianças e jovens. Ao oferecer um olhar construtivo e relevante advindo de
matrizes africanas, automaticamente se propaga um olhar que propõe um enfrentamento a
uma concepção degradante da cultura e tradição africana e afro-brasileira, assim como se
reconhece também o valor dessas narrativas que são responsáveis pela construção de tantos
imaginários.
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A respeito das obras de literatura para crianças e jovens, considerando-as no entre-
lugar de voz e letra, esse espaço de interseção mostra-nos exigir apenas um trabalho
responsável, compromissado, para que se alcance o intento. Como já foi dito anteriormente, o
processo em questão não consiste na apreciação aleatória das obras, mas sobretudo o
estabelecimento de pontes que promovam paralelos com questões culturais considerando
inclusive paralelos com a cultura brasileira, raciais e sociais, possibilitando assim a auto-
afirmação dos negros e negras herdeiros desses valores e o reconhecimento do valor dessas
tradições culturais por toda a sociedade, independente da relação de pertença que se
desenvolva. Dessa maneira, constata-se que ao se considerar o projeto de uma educação
plural que vise transformações a longo prazo, a partir de uma visão outra, de mundo e de
sociedade, além da auto-afirmação cultural de negras e negros, quebrando a lógica da
negação como naturalidade, essas narrativas cumprem com êxito a missão que se pretende.
Considerando as identidades como pretendemos no terceiro capítulo, entende-se que o
conflito, no caso que trouxemos, consiste nas contendas decorrentes do embate entre
louvação e negação de identidades negras, estando a escola no campo que nega. Nesse
sentido, a linhagem da pesquisa que acaba por se constituir como uma proposta de trabalho
pretende libertar a construção advinda da escola das marcas do sistema racista que se veste
de natural e sobrevive por meio de inúmeras práticas em seu seio. A instituição escolar ainda
não se mostra acolhedora para uma verdadeira manifestação de identidades negras, entretanto
reflexões como as propostas por essa pesquisa insurgem para corroborar com a desarticulação
do racismo, que como percebemos está intimamente ligado a construções do imaginário, que
podem ser desfeitas de maneira gradativa.
Atravessadas, em dados momentos, por um preconceito interseccional, no caso sendo
essa interseccionalidade estabelecida a partir do ser negra(o) e pertencer a uma religião de
matriz africana e por isso serem induzidas a se negarem duplamente, as crianças e jovens
negros e negras sofrem, por vezes, de maneira invisível aos olhos menos treinados, a
marginalização que a ausência de referencias negros provoca. São crianças que desde o
nascimento convivem com a sombra de discursos racistas que funcionam como demarcadores
de lugares, diante de toda a pressão que é inerente ao sistema imposto pelo racismo.
Almejando meios para se solidificar uma ruptura incisiva com os estereótipos que insistem em
colocar o negro, suas tradições e culturas entre os referencias menores, considerando nesse
sentindo o menor numa perspectiva de submissão a uma elite branca, os recursos pontuados
nessa análise, tais como: o multiculturalismo crítico em parceria com a literatura para crianças
e jovens, comprovam-se como atalhos bastante interessantes.
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Sendo assim, exalta-se aqui a memória, a contação de história e a leitura, de maneira
engajada almejando a desarticulação do racismo, o que não se configura em tarefa fácil, mas
tampouco impossível. Crendo na educação como maior arma para mudar o mundo e crendo
ainda nessa mudança como o resultado de uma série de processos, sugerimos a literatura,
nessas vias como forma de intervir na realidade, por vezes dura e cruel dessa juventude, com
a finalidade de promover a reconstrução de uma série de valores, o que se mostra uma nobre
possibilidade a partir da experiência apreciada nos terreiros de candomblé. Para descolonizar
as mentes é preciso que se repense a maneira como as lógicas se estruturam e reconstruir o
imaginário que se estruturou sobre a afrobrasilidade é uma questão de honra a todos os
antepassados negros que semearam o que na atualidade floresce como herança cultural afro-
brasileira. Frente a tudo que expomos no decorrer dessa pesquisa, e nesse sentido juntam-se
reflexões teóricas e observação em campo, podemos afirmar que a magia de contar e recontar
histórias ancestrais, que já se evidenciava desde o princípio das reflexões como geradora de
valores no âmbito dos terreiros de candomblé, é também uma grande possibilidade de recriar
valores em tantos outros espaços dessa sociedade. Podemos considerar que, por meio das
obras citadas, se tem possibilidades interessantes de trabalho, seguindo o traçado lógico que
estabelecemos no decorrer da pesquisa. Questões que vão desde a língua, passando por
cultura, religiosidade, história, tradição e literatura podem se tornar alvo de debates e motores
para a criação de novos valores referentes à cultura afro-brasileira, além de enaltecer vozes
negras e permitir a auto-afirmação de identidades culturais.
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APÊNDICE
Entrevista Ìyá Stella de Oxóssi – Ilé Àse Opo Àfonjá - BA
1)Jorge: Como a senhora começa a ter contato com as tradições africanas?
Ìyá Stella: Minha vó toda vida desde nova tinha muita entrada lá no Gantois, não tinha dia nem
hora para chegar e sair. Eu era menininha mesmo, então este contato já veio, ele já veio da minha vó. E a minha vó Maria Theodora era filha de africano. E como naquele tempo o africano quando o povo que ia pra lá pegar, pra pegar o dinheiro pra vender, como pra vender os africanos, então essa turma pegava os africanos e traziam pra vender no novo mundo. Europa, Brasil. Pra vender como material. E a minha vó chamava-se Maria vivia nessas condições ela estava lá, ela era adolescente e então alguém mandou que ela fosse ao cais do porto, chegou no cais do porto pra levar um pacote ela quis sair e não deixaram mais, falaram que ela estava vendida falaram: “você agora é nossa.” Então ela veio assim, veio pro Brasil, vendida. Aqui ficou e aqui produziu a família dela. Teve um marido chamado Konibabe e o nome o nome da minha bisavó era Maria de Konibabe. Então ela ficou ai fez a família dela. A minha vó tinha mais dois irmãos a minha avó Maria Theodora, uma chamada Damiana, outra Joana outro Joaquim e tem outro que eu não lembro bem o nome que ficou pelo Rio de Janeiro os outros ficaram aqui em Salvador.
2)Jorge: E como a senhora chegou no Afonjá?
Ìyá Stella: Caminho. Isso aí é uma história toda a ser contada né, porque eu ficava ouvindo dos historiadores a nossa história ser contada apenas pela boca dos outros. Quando chegou o branco que teve acesso a leitura chegou sabia essa história isso sempre me incomodou muito. O orixá nos ajudou a termos acesso a todas as informações até temos condições de voltar a África, de ver nossa história verdadeira. Eu sou descendente de africana como todo descendente de africano então qualquer doença, qualquer coisa anormal que aparecia era visita para o orixá. Então fui pra casa de santo para buscar a cura por lá com remédio com banho, com erva, com ebó, com tudo isso. Minha mãe faleceu eu estava com sete anos de idade, nisso a minha tia Arcanja de Xangô ficou tomando conta de mim e dos meus irmãos todos. Quando eu estava com uns 10 anos mais ou menos eu era diferente, não era normal de uma criança do meu tempo, tinha visões, conversava sozinha, era diferente. Então, além de me levar para o psiquiatra, pro médico que atende né, o psiquiatra, me levou também para o Gantois que era a casa de Mãe Menininha que era muito amiga da minha vó, da minha tia. Mãe Menininha chamava a minha tia de xará porque se chamava Menininha também. E lá Mãe Menininha cuidou muito de mim. (e começamos lá) passava dias com a minha tia tudo mais e a amizade foi crescendo. Mas as vezes não é o que queremos, as vezes tem um tratado lá de cima. Meu tratado era que eu cuidaria sempre do orixá e que não seria pelo Gantois que era casa de amizade e de família. Porque (...)[silêncio] meu próprio orixá me trouxe para São Gonçalo, Tia Aninha era madrinha da minha tia Arcanja, ela já tinha essa amizade de madrinha e afilhada eu fiquei aqui e aqui no ano de 1939 eu fui iniciada por Mãe Senhora estou até a data de hoje aqui. Todo meu contato já vinha, todo meu contato já era de herança de família
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mas depois meu orisà me trouxe para São Gonçalo. Aqui fui iniciada e agora estou na direção da casa.
3)Jorge: Então a senhora conviveu com o Axé desde a época de Mãe Aninha ou a senhora conheceu mãe Aninha, mas só veio a ter contato com o axé já na época de Mãe senhora?
Ìyá Stella: Eu vi Mãe Aninha duas vezes na vida. O primeiro Natal que eu estive aqui, eu era
garota e ela cuidava de minha tia. Eu vim aqui, conversei com Mãe Aninha e tem uma história que ela me deu uma maçã do pé do santo de presente. Eu parecia que estava com um troféu. (eu ficava) com aquela maça e depois de um certo tempo eu estava no Gantois. nesse tempo também. Eu me cuidei espiritualmente no Gantois depois que eu vim pra cá. Eu a conheci no Gantois depois ela faleceu. Ela faleceu em 38 e eu vim, me iniciei com Mãe Senhora.
4)Jorge: No percurso dos seus primeiros contatos com o Candomblé até a sua iniciação e mesmo posterior a sua iniciação, sempre foram presentes referências femininas. Grandes mulheres que estavam liderando um grupo. E elas foram referência para a senhora.
Ìyá Stella: Perfeitamente. Antes, no passado, antes do século XX as mulheres é que tomavam na realidade a frente o cuidado com os orixás porque os homens iam para as fazendas, para a roça, era a profissão dos alforriados iam fazer cada um sua função. E as mulheres ficavam em casa, iam ser babás, mãe de família, mas tudo em casa mesmo. Então uma babá, uma mãe, uma cozinheira tinha muito mais tempo de cuidar das coisas de orixá, de cuidar das coisas do que é sagrado. Foi o que aconteceu. Tanto que até que o que se tem de informações de como começou o candomblé, em Salvador, tem três referências, três senhoras da África chamadas Iyakalá Iyanasso Iyadetá. Todas lá do Reino de Oyó. Vieram para o Brasil e aqui nesse vai e vem tinha um lugarzinho onde elas atendiam as pessoas, era tudo muito velado, muito escondido ali, então elas três cuidavam das pessoas. Mas foi juntando tanto porque esse pessoal tem a característica de se unir. Eles se uniram tanto que até abriram um pequeno candomblé, não podia chamar candomblé porque até então faziam todos os rituais numa casa distante. Mas como a cidade cresceu eles saíram de lá da Barroquinha (e foram) para o Rio Vermelho, onde até hoje funciona a Casa Branca. E lá foi ficando e o Candomblé foi crescendo, e quando cresceu, outros iniciados tiveram necessidade de abrir a sua casa. Já tinha a casa Branca, surgiu o Gantois e depois o nosso axé, aqui, e outros.
5)Jorge: Nessa questão do movimento das mulheres negras nesse pós-escravidão, já que o negro estava tão marginalizado, foi nesse movimento de aproximação que surgiram as irmandades e confrarias religiosas? Como foi a relação das irmandades com as casas de candomblé?
Ìyá Stella: (Também, também, que) Para se assegurar era necessário pertencer a igreja católica. A maior parte delas (as negras de candomblé) fazia parte da irmandade nossa senhora do Rosário. Todas elas vinham sempre abrindo a abrindo procissão.
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6)Jorge: Neste percurso de afirmação do candomblé, em um dado momento o sincretismo era
necessário, entretanto depois se processou o rompimento com essas ideias?
Ìyá Stella: Isso. Sim, sim. A separação é simplesmente consequência da evolução nós e os orixás temos conhecimento e somos independentes. Sabemos que a nossa crença, a nossa prática religiosa é uma religião porque se você for procurar lugares que se fala sobre isso com propriedade, quando é que uma crença passa a ser religião? Quais são as características que tem? Vimos que não tinha necessidade de ter sincretismo. O que continua como sincretismo é vício da escravidão que não conseguiu se libertar. Nós temos a nossa teologia, nós temos a nossa sabedoria, nossos dogmas, tudo isso caracteriza qualquer crença como religião. Se você for pesquisar vai ver que nós temos tudo isso. E se você for descobrir, se for reparar, os sincretismo são duas crenças diferentes que se misturam nos procedimentos, de fazeres que no fundo agrada mas não satisfaz a ninguém, porque se você for ver a religião católica tem aquela pessoa que depois que passou por sacrifícios e que depois de santificaram, beatificaram enquanto que os orixás são comparados com os elementos naturais com a água, o fogo, com o trovão, com tudo isso aí que é vivo, é energia. Então orixá é energia. Então quando você vê a imagem de Xangô as características de Xangô que é algo tão profundo é caracterizado por um ocutá, otá que é a pedra de raio e se você for comparar ele com são Pedro é diferente. E aí tentar aprender profundamente sobre a nossa religião, ai sim, você podia pegar e ensinar a teologia da nossa religião. E ao entrar no currículo, vai longe também. Então SE pode falar com propriedade daquilo que é seu. Procurou, foi lá fundo no baú e descobriu com veracidade.
7)Jorge: A senhora se iniciou com 14 anos?
Ìyá Stella: Sim
8)Jorge: Então a senhora foi uma adolescente que viveu no Candomblé?
Ìyá Stella: Com 14 anos, naquela época, era criança ainda.
9)Jorge: era uma criança de candomblé, né? Fora dos muros do terreiro outras crianças sabiam que a senhora era de candomblé?
Ìyá Stella: Nem se falava nisso, o padre dizia que quem era de candomblé nem deveria ir a igreja, que ele não aceitava. Que quem era de candomblé era do diabo. Essas coisas foram tocando em mim e eu fui crescendo com esse sentimento de que meu orixá não é diabo. Eu comecei com 14 anos e aos 17 ouvi isso então eu não fiz guerra nem desmereci ninguém, mas a gente luta com as armas que tem, vê a nossa fé, a nossa força a nossa essência e mostra que é coisa boa. Que estamos lutando até hoje pra dizer que é coisa bela. O que eu sempre disse a eles quando tinha essa questão é que eu acreditava nos mais novos. Que o mais novo é sempre cheio de ideia os mais novos é que estão falando e dizendo o que quer. O mais novo é o que está na atualidade sabe o que é bom. Com os mais novos não tem mais aquele negócio de missa no dia de ogum, missa para santo Antônio. No próprio dia de São Jorge, no
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Rio de Janeiro, eu mesma saia daqui porque eu gostava da fofoca. Eu ia lá para o Rio de Janeiro para sair na procissão. Ogunhê! Falando Ogunhê. Aqui mesmo em Salvador, no dia de santa Bárbara o pessoal “Eparrei!” então imagina uma coisa dessas. Então Ogum é diferente, Iansã não é santa Bárbara é diferente, São Jorge é outro. Então podemos falar cada qual no seu momento. A fé tem que ser única e exclusiva.
10)Jorge: Com a lei 10.639/2003 as questões de estudos africanos, da cultura e tradição ganham destaque...
Ìyá Stella: Faz parte do currículo. Vou dizer pra você, meu filho, essa questão aí é recente, mas não começou agora não. Em 1930 Mãe Aninha saiu aqui de Salvador através de um secretário de Getúlio Vargas e conseguiu a libertação de cultos de matriz africana. Agora chama matriz africana para ficar mais leve, mas antigamente era chamado apenas de candomblé. Tinha o candomblé e a religião católica que era a considerada normal, né?
11)Jorge: Então se a gente pensar na questão da casa do Candomblé, nos hábitos, de uma
maneira geral, se pode pensar na oralidade, na contação das histórias do orixá...
Ìyá Stella: A oralidade é uma coisa! Eu agora me tornei escritora. Sempre gostei de escrever e anotar as coisas para não esquecer, e não sei se é ironia ou se é sorte, SEI me puseram na academia baiana de letras, tanto que eu já posso contar que é tradição escrita e tradição oral. No meu livro consta a pesquisa, como foram feitas. No meu tempo era oral, quando eu era garota. Depois quando eu cresci que a gente passava para a escrita. Quando eu escrevi meu primeiro livro, pedi para o meu amigo fazer o prefácio ele “Mãe Stella a senhora está escrevendo um livro e a tradição do Candomblé não é oral?” eu disse é rapaz, mas eu já descobri que o que a gente não registra o vento leva. Que quem conta um conto aumenta um ponto. Então o que está registrado ali é verdade, porque o que eu passo para você, você deduz de outra forma e já passa. Você está gravando tudo aí direitinho, mas quando perguntarem cadê o produto vão ver que é a minha voz e que fui eu quem falei tudo direitinho. Não é invenção, nem você ouviu uma voz e disse que era de outra.
12)Jorge: Então a palavra é um agente muito intenso no candomblé. É um agente de força.
Ìyá Stella: É, tudo que sabemos aqui... Nós não temos bíblia, não temos o alcorão, não tínhamos tantas coisas aí. Tínhamos o que? Nós aprendemos através das historias, dos mitos, as histórias de Xangô, os mitos de Xangô, tem cada coisa tão verdadeira que parece que você está vivendo, de Ogum também, de todos os orixás.
13)Jorge: Então o mito, ao contrário das outras percepções que pensam o mito como alguma mentira, no candomblé o mito não é uma historinha qualquer, o mito para o candomblé não é uma mentira, não é uma história sem fundo de verdade, ela tem um fundo moral, ela tem uma série de valores.
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Ìyá Stella: Perfeitamente. Os mitos (de) são histórias que você vai escrever depois dessas
historias que você aprendeu com sua tia, com sua avó e tudo mais. Então a diferença de um e outro é que História é o que se viveu e deduz (silêncio) presta atenção para não colocar coisa errada (risos)e o mito é a verdade verdadeira de tudo. Porque ele vem falar sobre a historia da fundação do mundo
14)Jorge: Crendo na proposta do mito e nas palavras essa pesquisa vem tentando avaliar, refletir justamente sobre a capacidade, a potencialidade do mito enquanto narrativa, de chegar a escola e oferecer ao jovem a criança, ao adolescente e porque não ao adulto, histórias. Contatos com essas historias africanas que vão além de uma fábula, de uma história simples, são histórias que vão além de um valor moral, ético, religioso. Então pela pratica do candomblé, pela sua vivência e contato com o mito com a tradição da oralidade a senhora entende o mito como uma forma de construção também? Como uma forma de aprendizado?
Ìyá Stella: Perfeitamente. Posso dizer que o mito é uma construção verdadeira que surge no
tempo que não se tinha registro das coisas.
16)Jorge: Então o mito que a senhora conta hoje foram contados por um mais velho?
Ìyá Stella: Sim, o mito é contado a pessoa iniciada. A mãe de Santo depois de viver a vida toda ali, conta um mito para explicar aquilo com que ela está lidando. Tem quizila de abóbora, por isso que a Iansã tátátá átátátá. A pessoa que ela tava rezando era proibido cantar quando a polícia chegou ela ficou tão assustada que a fortaleza da energia dela começou a transformar as pessoas em abóbora. Ai ela disse que não estava fazendo nada e “estou aqui com as minhas abóboras”. Risos. Então virou... risos... (não*) comer abóbora em homenagem a tudo isso.
17)Jorge: Então essas histórias com fundo moral e religioso vão construindo todo um imaginário das crianças de candomblé? Dos jovens de candomblé?
Ìyá Stella: Com certeza.
18)Jorge: A medida que se conta a historia que o mito está interagindo com as pessoas a medida que a criança sabe quem é o orixá e escuta história desses orixás essas histórias acabam de alguma maneira dialogando com a vida delas?
Ìyá Stella: Com certeza, você vai ver que tem uma comparativa com a gente. Ah, eu sou de
Oxossi e Oxossi era caçador ou eu sou de Ogum e você vai vendo o arquétipo, pelos arquétipos da pessoa de acordo com o mito de determinado orixá.
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19)Jorge: Então a senhora falava que os mitos em relação com a vida desses iniciados dessas
crianças que vão interagindo com o candomblé eles vão dialogando e sabendo o mito tem relação com o arquétipo. Como é que se processa?
Ìyá Stella: Veja bem, o grande mito de Oyá. Iansã é guerreira. ela se identifica com o raio, com o fogo, com a luz, o vento. Por isso então a gente remete ao arquétipo de Oya pessoas vivas, alegres, quentes. Quentes de natureza, capazes de dar uma resposta rápida. São pessoas rápidas também talvez se pode confundir com o próprio vento, tanto que Oyá em Iorubá quer dizer rápido. Por que o nome dela é Oyá? Porque o nome dela quer dizer vento e o vento sempre é rápido. Desde uma pequena brisa até um tufão, alguma coisa é rápido e difícil de se pegar, ninguém apalpa o vento. Se você faz a comparação de Oxum que é a deusa da beleza, da riqueza, da alegria, do amor. Sobre as pessoas de Oxum sempre dizem “ah, dengosa, essa é de Oxum”. O arquétipo das pessoas de Oxum são pessoas delicadas, dengosas, que gostam de fazer boas maneiras com os outros, que gostam de carinhar, acariciar, ser amorosa. São pessoas amorosas. Até uma coisa interessante, quanto os Ibejis. Temos Ibejis, né? São a representação dos gêmeos, os gêmeos são representados por crianças toda criança é inquieta né? Eles têm atos irresponsáveis a pessoa tamém quando está com a irradiação de Ibeji muda até o tipo da fala, de falar... Tudo isso são pessoas com o arquétipo de Ibeji que são responsáveis pela cabeça. São pessoas assim meio inconsequentes, assim meio abobalhadas, alegres assim como criança mesmo.
20)Jorge: A senhora falou algo que esta o tempo todo ligado a religiosidade, com orixá, com as práticas religiosas, que é a questão da natureza. Iansã com o vento, Oxum com a água. Quando se trata das questões do orixá, se trata, se pensa que se fala que se cultua, essas energias estamos falando de uma energia que é viva no mundo enquanto natureza.
Ìyá Stella: Natureza principalmente, o que vira nuvem o que é trovão. O encontro de uma nuvem na outra faz aquele estrondo né? A nuvem é um elemento da natureza cujo encontro dá aquele choque né e causa o fenômeno que é o choque dá aquele som. E quando Xangô a trovoada e o ronco da trovoada o choque Iansã fala o relâmpago abre de repente vem o som é como se fosse a própria voz do orixá falando. São essas coisas, você vê a batida de um ferro no outro você evoca logo Ogum pápápápápá e por aí a fora. Outra coisa é Ossãe, se você está no mato e se perdeu, se você está fazendo uma trilha e se perde você fala “Ossãe, meu Pai me leve, me rege Ewe o! Ewe o! Me bote no caminho certo.” Aí e a ver com a própria energia da natureza. Eu sou de Oxóssi quando eu entro no mato fechado firme eu sinto uma coisa diferente. Eu sinto aquela energia ali perto de mim.
21)Jorge: Então a gente pode pensar também que os caminhos da natureza como referência né de analise da natureza. É um outro caminho viável para que as questões das tradições africanas cheguem na escola, cheguem na educação? E aí se a gente vai pensar em algo sobre meio ambiente, sustentabilidade...
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Ìyá Stella: Perfeitamente, olha e veja bem. Eu soube ontem que vai acontecer um seminário
aí, um congresso sobre ecologia. Nada mais prático do que pensar o orixá que está presente na natureza. É a própria ecologia. Se você quer evocar Oxum quer dar um presente a ela você põe no rio. Agora o que ocorre é que tudo em excesso prejudica. Então se todo mundo quer dar um presente a Oxum e põe garrafas de bebidas, de perfumes né? Compra cristais que Oxum gosta, medalha de ouro e tal e tal então o material palpável, vidro, plástico, são coisas que no fundo a natureza não consome. A terra não consome o vidro. Fica acumulando e no final o fundo do rio está poluído. Então é isso que a gente tem recomendado muito que se você for dar oferenda para Oxum que você não jogue o vidro na água que são milhares de vidros o liquido evapora, mas o vidro fica ali. Então se você quiser oferecer bebida boa, perfume, a comida o próprio fundo do mar decompõe a natureza consome. E aí é comida para os peixinhos.
E o que mais que a gente pode fazer... Se você quer dar um presente a Xangô é interessante é que Xangô é representado além do trovão como por uma pedra fria um mineral ali está todo calor de Xangô. Às vezes a pedra é efeito de um vulcão que houve que surgiu a pedra de fogo, caiu esfriou e virou pedra ou quando o raio cai da terra que se chama eduará é a pedra de Xangô. Então é nessas coisas que se vê que fundamento tem que não é uma coisa aleatória. Não é de dedução são coisas verdadeiras que aqueles que negros que deixaram essa crença no Aye, na terra né, são pessoas que pensavam que tinham visão, com inteligência discernimento, a visão de passar para nós que ficou essa herança maravilhosa das coisas nascidas na África.
22)Jorge: Sobe essa questão da transição África-Brasil, aí pensando a questão do axé, Mãe Aninha fundou o axé sozinha? Era ela com outras mulheres? Existia algum homem? Alguma influencia masculina?
Ìyá Stella: Tem um livro chamado histórias de Odu, são mitos como Mãe aninha por exemplo,
fundadora daqui do Ilê Axé Opô Afonjá é descendente, como eu te falei, da Casa Branca que é o Ilê Axé Ia Nassô Oká. Que por sua vez é continuação do (candomblé) que eu te falei que era na Barroquinha e que depois saiu de lá. Então nesse tempo candomblé era uma coisa muito fechada muito secreto ne? E que ninguém tinha capacidade de dizer “eu vou abrir meu candomblé” dizia que era herança. Minha vó deixou, minha mãe deixou, pode ter uns casos desse. O que aconteceu também é que Mãe Aninha, filha de africano que era, foi fazer a obrigação de iniciação dela na casa Branca. E lá encontrou as senhoras africanas. E de lá morreu a Mãe de Santo de Mãe Aninha. (e de lá) teve a substituição. Quando a casa não é de família, através do jogo o orixá determina quem vai ficar no lugar daquele que faleceu. Nessa ocasião foi escolhida uma senhora que não era da simpatia, do amor de todo mundo, então o candomblé de dividiu. A Casa Branca se dividiu em 3 porções. A própria que ficou e mais duas que seguiram o Gantois. Mãe Nazaré... eu não me lembro mais... Mãe menininha tinha não sei quem mais antes dela. Saíram da Casa Branca e foram montar o Gantois. E lá surgiu essa casa, que tem nome francês né? Então ficou como o Candomblé do Gantois. E tinha o Candomblé de São Gonçalo. São Gonçalo era uma rua aqui. Aqui era muito parecido com a África, cheio de roça e Mãe Aninha conseguiu comprar esse terreno aqui pra fazer também a
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roça dela. Mas antes dela vir parar aqui, ela se afastou da casa de Candomblé dela que era a Casa Branca e foi para a casa de Tio Joaquim que era um negro também descendente de africano que acolheu. Como sempre, alguém sempre acolhe o outro e de lá levou para um lugar chamado Camarão que é lá perto mesmo. Depois ficou de um lugar a outro, na Barroquinha e depois ela comprou então essa roça (então) deixou de... quando não tem uma parada certa... é itinerante. Deixou de ser itinerante. Como era muito amiga de um senhor de Oxóssi descendente de africano, muito inteligente que veio da África pra o Brasil ficou aqui e se tornou brasileiro e aprendeu a falar o inglês ensinava até na faculdade. Ele tinha os alunos dele e os da feitiçaria dos búzios tinha um rapaz daqui que foi discípulo dele que jogava búzios ele ensinava também. Ensinou muita coisa da cultura africana aqui como era muito amigo de Mãe Aninha falou, vamos fazer como se fosse a África. Na África sabemos que cada orixá tem a sua tribo a sua cidade, tem Oyó, tem outras também e ele também quis fazer assim. Porque no dia da festa de Ogum, é na terra de Ogum que se faz a festa, de Xangô é a mesma coisa, Oxalá a mesma coisa. Como o lugar era grande ela dividiu muito bem desde a casa de Exu até a casa de Oxalá e até o culto aos mortos. Então cada orixá ela botou um pedacinho tudo na proporção tanto você vê que aqui nós temos três ciclos de festa. Temos o ciclo de festa que é de janeiro até março, depois o carnaval, depois o descanso. Temos de junho até julho e depois de setembro em diante até novembro então cada orixá tem seu tempo e templo diferente. Agora nós estamos no tempo de Xangô. São doze dias. Então tem as oferendas, tudo para Xangô. É como se fosse a história do próprio orixá que nós vamos desmanchando em atitudes, durante esse tempo aí com rituais. A de Oxalá é a mesma coisa são domingos em o primeiro das Águas de Oxalá, é uma replica do artigo que levaram ele como ladrão e que depois que descobriram que ele estava preso e que a cidade não andava mais, evolução, as árvores não davam mais frutos as mulheres sem parir sem nada foram fazer o jogo ninguém sabia que Oxalá estava preso então a cidade toda decaindo. Foi por isso toda cidade de juntou num dia para lavar Oxalá dar um banho nele uma coisa bem simbólica e isso vai ter Ogum, vai ter outras festas que Mãe Aninha fez.
23)Jorge: Então ela teve diálogo com outros homens como tio Joaquim?
Ìyá Stella: Com certeza, mas ela foi sempre a cabeça.
24)Jorge: Era ela quem tomava a frente?
Ìyá Stella: Eles eram auxiliares foram mestres. As vezes o filho passa o mestre superou bastante teve a vez dela abriu sem candomblé esse pedaço aqui nessa casa aqui especialmente tem cem anos, só este em são Gonçalo. Por isso que o candomblé evoluiu porque neste tempo onde as pessoas iam ajudar. Se tem algo na casa de outra pessoa eu digo que vou na casa de fulano ajudar. Levava até comida também, levava os animais para se comer, levava feijão e tudo era carroça não enchia a carroça e dizia “ah, eu vou levar para a casa de minha irmã”. De lá passava dias também ajudando e trabalhava, ajudava nas obrigações nesses dias todos e aí foi evoluindo que agora você vê uma casa como essa os homens aqui tem mais coragem para levantar casa de candomblé que as mulheres. As mulheres daqui quase não saem para abrir casa. Os homens, aqui tem muito Ogã, muitos
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cargos. O Ogã mesmo só pode ser homem. Mas tem a voz das mulheres, aqui é matriarcado. Então por isso Mãe Aninha criou aqui e nós estamos levando com fé em Deus e segurando a tradição na medida do possível, aqui na casa de candomblé não se fala em feitiço entendeu, que queimou, que como se diz “fulano que queimou minha filha” eu digo como é que queimou sua filha joga água (risos) Ele não tem porque queimar né? Se tem nosso protetor, nosso orixá que é da nossa cabeça por que eu vou ter medo de uma pessoa de má índole? E meu orixá deixar aquilo me atingir? Eu falo, você tá garoto e isso que você está é baixo astral, candomblé é uma religião e uma religião que não tem nada de mal. Magia ruim é uma droga. É você meter uma faca no outro. É você meter um revólver. É você roubar o outro. Entendeu? É deixar passar fome. Isso que é magia ruim. Mas eu chamar o nome do sagrado para estar fazendo mal para o outro é loucura. Ir para as drogas isso é queimação, maconha, crack... são essas coisas que não devem nem se pensadas numa casa de santo.
25)Jorge: Quando a senhora fala dessa divisão que Mãe aninha fez desses cultos isolados
esses cultos vão revivendo a historia de cada orixá de alguma maneira a cada celebração dessas é uma forma de vivência mitológica?
Ìyá Stella: Reprodução da mitologia africana é isso aí. No ciclo de Oxalá, nas águas de Oxalá, no final de setembro,tem as águas na sexta-feira, se faz oferenda para Oxalá, outro dia para Oxalufã no primeiro domingo oferecemos oferenda pra ele no segundo para os Orixás todos os Oxalás ali na palhoça como se tivessem na palhoça durante esse período ai botou água tudo limpinho né aí domingo fazemos oferendas a ele. No segundo domingo ele volta para casa no terceiro domingo é o dia do pilão. Então daí pra lá já vai partir para Exu então faz as oferendas para Exu depois vem a quarta-feira que é para Xangô dia do Ojá. Todos nós nos enrolamos no ojá, dentro do barracão. Deixa o Amalá no chão apanha o Amalá come todos juntos né, pedir união, né? E aí depois aí vem Ogum depois vem Omolu depois vem Papai Oxossi depois vem todas as Iabás depois vem a festa de Oxum separada, depois vem a festa de Iansã separada também. Iansã é bonita porque os homens ligados aos egun cantam fazem homenagem a ela. E quando vem a mulher que carrega mariô que ela misturada com egum e tudo. No dia de Oxum nós dividimos água, Oxum é mãe da água né? Então se canta e vai dando água pra todo mundo. Também é um ritual muito bonito. Omolu fazemos o Olubajé, nós fazemos tudo direitinho. Depois tem Iroko, todo candomblé tem um pé de Iroko e um pé de também ligado a Ia. No dia de Iansã, os homens pegam o Mariô entregam a Iansã cantam pra ela fazem uma homenagem porque ela é a única mulher que carrega o Mariô. Ela tem aquela relação com egun e o mariô é o que a gente usa para se livrar da irradiação. Então elas vão dançando com o mariô. Tem o dia de Oxum que é o dia que nós dividimos a água ela é mãe das águas. Omi torô omi omã ya comon fun moré. E então nós vamos dando água para todos no axé beberem da água de Oxum. É um ritual muito bonito faz parte da liturgia. Tem o dia de Omolu o ritual do Olubajé que é a segunda-feira seguinte de Oxum depois encerramos aqui com as festas de Iroko. Iroko sabemos que é outra nação, mas todo Candomblé de se preze tem um pé de Iroko e Apaoka que é coisa ligada as iás depois fazemos o presente das águas que é o presente de Iemanjá e aí encerra direitinho. No tempo que ainda existia sincretismo, tinha a missa hoje não há mais necessidade nossa missa é lá no mar e acabamos e vamos descansar até o próximo ano.
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26)Jorge: Mãe Aninha, além de pensar a recreação dessa pequena África aqui pensou
também a educação e a formação intelectual de seus filhos.
Ìyá Stella: O Candomblé felizmente está muito evoluído. Antigamente dizia que o Candomblé era como uma universidade. Aqui se aprende de tudo. Aqui é um Candomblé pobre, tem é muita gente. Gente sempre aumenta. Não é pobre não é tão pobre assim porque nós temos a graça de orixá. Mas não temos riquezas do mundo. Mãe Aninha se interessava muito pela educação. Ela botava a gente para ensinar aos mais novos, às vezes, ela mesma parava para ensinar. Ensinava como partia obi, essas coisas ela mesma ensinava e assim foi levando ela tinha uma coisa que dizia e que todo mundo reproduziu, ela dizia que ainda ia ver o Candomblé todo servindo a Xangô com anel no dedo, ela queria que todo mundo evoluísse e isso tem acontecido. Não vê você que é doutor aí. (risos)
27)Jorge: Então foi através do pensamento de Mãe Aninha que considerava além da questão religiosa o crescimento pessoal e intelectual dos seus filhos que se pensou aqui na comunidade aqui do Axé Opô Afonjá a questão da educação que deu origem a uma creche que levava o nome dela e que veio a se tornar hoje uma escola?
Ìyá Stella: Quando ela criou aqui uma mulher que era costureira era o máximo. Costureira. Hoje em dia é estilista, não é? Naquele tempo era costureira. Tinha as outras pessoas que estudavam e ela sempre incentivava isso. Ela sempre fazia isso para evoluir as pessoas. Aqui não tem muita gente desempregada, graças a Deus. Tem aqueles que não encontraram ainda trabalho de acordo com o caminho do que querem fazer de verdade, mas vagando não.
28)Jorge: E foi através dessa perspectiva dela de educação que se criou aqui a creche e a
escola?
Ìyá Stella: Foi, primeiro eu criei a creche, mas depois eu vi que não dava conta, era muita gente. Os pais tinham que sair para trabalhar e os meninos não tinham com quem ficar depois dos cinco anos tinha que sair da creche. Com quem as crianças iam ficar? Aí conseguimos criar a escola. Criamos essa escola aí que a princípio tinha convênio com o estado depois era estado e prefeitura, agora só prefeitura. Cada sala tem um nome de uma Mãe de Santo daqui conta uma historinha e tudo mais. Mãe Aninha era meu ídolo, eu adorava Mãe Aninha. Adorava as histórias que contavam dela era uma mulher de uma visão tão grande. Ela tinha uma barraca lá no centro histórico no Pelourinho ela ficava sentada e sempre vinha um e outro falar com Mãe Aninha, um dia ela viu passar dois homens carregando um caixão ela mandou parar perguntou o que era aquilo.
O que é isso rapaz? O que está acontecendo?
Eles responderam: Foi fulano que morreu.
E ela perguntou: Quem é fulano?
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- Um amigo nosso.
E ela disse:
- “Arreia” esse caixão aí e vamos providenciar um enterro decente para esse homem.
Mandou comprar flores, arranjar mais gente e conseguir alguma coisa para carregar o caixão até o cemitério. Foram da Baixa de Quintas a Barroquinha. Outra vez ela encontrou uma senhora que ela não conhecia a chorar no armazém do espanhol aquela discussão ela procurou saber o que era e a mulher dizendo que os filhos precisavam comer, mas não tinha dinheiro para pagar. E Mãe Aninha perguntou a ele porque ele não dava o pão a ela. E ele disse: Ela que tem os filhos dela que sustente não vou dar nada a ela não. Mãe Aninha tirou as argolas da orelha botou encima do balcão disse a ele:
-Segure para cobrar as despesas dela que amanha venho buscar o meu troco.
No dia seguinte ela voltou pagou o pão da mulher e levou as argolas de volta. Deixou as argolas como fiança. (risos)
Uma pessoa dessas não é qualquer pessoa. Pagava casa pra uns, quantas casas aqui nesse terreno foram doadas. Não tem onde ficar dá um pedacinho de terra. Aqui já foi refúgio de político no tempo que político tinha que fugir. Como aqui é mato, eles vinham e ficavam escondidos na casa de Oxum e de outros santos aí, para a polícia não dar encima. E eles confessam mesmo hoje alguns já morreram, mas outros ainda estão aí e dizem “Eu já me refugiei aqui”. Ela se deu ao cuidado de sair daqui através de Oswaldo Cruz, Jorge Amado era deputado, e um outro rapaz daqui Jorge e foi para o Rio de Janeiro atrás de Getúlio Vargas para pedir a ele que deixasse ela fazer o Candomblé dela em paz. O povo de Candomblé em paz. E aí ele baixou um decreto naquele tempo dando liberdade de culto. E aí outros foram tomando coragem e aí hoje nós temos secretaria disso e daquilo e as coisas foram evoluindo.
29)Jorge: Talvez não se perceba o quanto de influencia há dessa ìyálòrìsà nesse movimento
de combate a intolerância religiosa que vivemos hoje.
Ìyá Stella: Hoje já existem pessoas do ministério que são ligadas ao àse então cada um vai evoluindo de acordo com a sua crença cada um vai evoluindo com aquilo que tem. O chefe de polícia dizia assim: Fecha o Candomblé e fechava eu era garota e via no jornal as Mães de Santo com atabaque na cabeça para ir para a polícia. Eu agora que estou como ìyálòrìsà já vi movimentos para retirar peças de Candomblé que estão apreendidas com aberrações. O facão que matou não sei quem, a cabeça de Lampião e, felizmente, nós fomos tirando aos pouquinhos no início desse ano tiramos o restinho que sobrava. Tiramos de um Museu da faculdade de medicina e agora está no Museu do Negro. Tudo direitinho lá.
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30)Jorge: Outra questão é que Mãe Aninha mesmo não tendo contato físico, pessoal com toda a atual comunidade do Opo Àfonjá ela sobrevive na memória dessa comunidade.
Ìyá Stella: Ela é imortal, é uma referência.
31) Jorge: As coisas que ela dizia, os projetos que ela almejava, os direcionamentos tanto
religiosos como sociais dialogam com a vida das pessoas daqui?
Ìyá Stella: Com certeza. Por causa dela nessa relação com a memória é que temos aqui um museu com objetos dela: contas, saias, a cadeira que ela sentava. Eu mandei fazer uma réplica d fogão daquele tempo, panela de ferro e uma série de coisas está tudo lá no museu. Temos a biblioteca com alguns livros antigos, agora com internet quase ninguém mais usa a biblioteca, mas a nossa está aí como referência. (risos) temos essa escola e agora recente há uns dois anos ou três eu fiz a casa do Alaka. Alaka é o pano da costa africano. Temos o tear a filha do mestre que fazia isso veio aqui ensinar a fazer através do Mauá. Já tivemos aqui oficina de costura, agora todo mundo tá colocado na vitrine, tem casas só pra isso, mas antigamente aqui tinha a Prazeres que costurava. Eu fazia ela costurar, era uma forma dela ganhar dinheiro. Toda casa de candomblé tem uma costureira que ficava fazendo as roupinhas. Agora virou escola de desfile, cada obrigação é uma roupa nova. (risos)
32)Jorge: Então tudo isso que a senhora vem fazendo são reflexos de Mãe Aninha?
Ìyá Stella: Perfeito, são reflexos de Mãe Aninha. Mãe Senhora foi uma grande figura também filha de Mãe Aninha, mas tem a questão da evolução da cidade. Na época de Mãe Senhora a cidade tomava outro rumo. Mãe Senhora ficou trinta e tantos anos Mãezinha só teve tempo de ficar sete anos. Mãe Bada ficou um ano porque já era velhinha e eu tô aqui a trinta e tantos anos também, já estou ficando uma Mãe Senhora. (risos)
33)Jorge: Mãe Senhora foi filha de Mãe Aninha. Mãe Bada também?
Ìyá Stella: Foi, era irmã de dona Mira, que era irmã de santo de Mãe Aninha Tinha o cargo de
Bada Baro uma espécie de conselheira. Tanto que Mãe Aninha a chamava de Mãe. Interessante, né? Teve Ondina que foi a ìyákekeré da casa, Mãezinha, foi Iaquequere no tempo de Mãe Aninha. Foi a minha ìyákekeré ficou aí durante uns anos, ela tinha casa o Rio de Janeiro também. Foi embora e eu tomei conta do lugar. Mãe Senhora teve uma grande representatividade na questão intelectual do Asè. Aqui dava muito escritor. É uma casa de Xangô, não é? (risos) Dá muito escritor. Eles a levaram daqui para o Rio de Janeiro em um ano que eu não me lembro mais qual foi para ser Mãe Preta de lá. Tinha um busto dela lá em Campo grande, não sei se ainda tem, ou se já tiraram. Mãe Preta era referência também. Desde Mãe Aninha desde os filhos dela. Que ela queria ver os filhos formados, você vê aí tem médicos, doutores, tem tudo aí.
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34)Jorge: A escola é aberta a outras crianças que não a do Afonjá ou é fechada?
Ìyá Stella: De jeito nenhum, mas uma coisa que aconteceu quando era nomeado pela prefeitura ou pelo estado quem vinha via a referencia de axé mas antes de começar queriam rezar “Pai Nosso que estás no Céu”. Eu disse: Perai, perai não. Você não vai ensinar Candomblé, mas não vai enfatizar uma religião que é contra a nossa, nossa prática. Então não faça nada. Aí pergunta, mas faz o que? Não faça nada. Mas agora já cantam o hino de àse, faz teatrinho com os mitos. O mestre Didi deixou muitos mitos para eles, que ele gostava muito dessas coisas. Ficaram muitos mitos dele aí. E professores que transformaram tudo isso em livro, teatro, peça. Agora eles escolhem o mito para a peça, para a social mesmo da coisa.
35) Jorge: O mito também está ligado as danças, a alguns gestos e movimentos próprios dessas danças. Então o candomblé também tem o corpo como linguagem?
Ìyá Stella: Pois é. Desde iniciado se tem responsabilidade. O nosso corpo é um templo. E esse templo sente o que nós fazemos com ele e ele também é o veículo que vai e volta com nosso orixá. Então uma das formas que nós temos que homenagear nosso orixá é prezar nosso corpo. Se você ver um determinado cântico de Oxossi ele tem a intenção de que você vai caçar, se você vai cantar para Ogun, Oxalá a mesma forma, cada tempo desse é uma forma de cultuar nosso orixá, com o corpo, com as danças com a música e com as letras. Por isso é preciso aprender um pouco o mínimo de ioruba para saber o que está cantando para o orixá. Porque assim pode fazer uma troca de palavras e falar um palavrão para o orixá. Cantam: “ìyá abere, ìyá abere o” . Aberê é prostituta. Entendeu? Coitada de oxum. (risos) Então a dança é a mesma forma de cultuar. Até para os mortos você canta. O batizado você canta, depois é lindo. Você canta o nome. Coisa muito interessante. Tudo para nós é cantado. E no momento que o yawo é iniciado que ele recebe esse novo nome. Ele recebe junto com esse novo nome uma missão. Uma nova historia, um novo caminho.
Jorge: Obrigado. Benção Mãe Stella!
Ìyá Stella: Meu pai abençoe. Traga boas notícias. Quero o retorno de tudo isso que você pesquisou aqui.