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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA A METAFÍSICA DOS COSTUMES: A AUTONOMIA PARA O SER HUMANO Diego Kosbiau Trevisan São Paulo 2011

a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

A METAFÍSICA DOS COSTUMES: A AUTONOMIA PARA O SER HUMANO

Diego Kosbiau Trevisan

São Paulo 2011

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

A METAFÍSICA DOS COSTUMES: A AUTONOMIA PARA O SER HUMANO

Diego Kosbiau Trevisan

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo Ribeiro Terra

São Paulo 2011

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ÍNDICE

Nota sobre as citações e abreviaturas ............................................................................... 8

INTRODUÇÃO - UMA METAFÍSICA DOS COSTUMES “CRÍTICA”? ............ 14

I - METAFÍSICA DOS COSTUMES: A GÊNESE DE UMA IDEIA ..................... 42

1. 1762-1770 – DA NATUREZA HUMANA À PUREZA DA RAZÃO: SÍSIFO E A

LÚBRICA ROCHA METAFÍSICA........................................................................... 48

1.1. 1762-1766 – Um Shaftesbury wolffiano? ....................................................... 49

1.2 1766-1770 – A distinção dos mundos e o surgimento do projeto de uma

Metafísica dos Costumes ........................................................................................ 58

2. 1770-1781 – CONHECENDO “A PERSONALIDADE DA RAZÃO”.

TRANSIÇÃO PARA A MORAL CRÍTICA ............................................................. 72

2.1. Os “Limites da Sensibilidade e da Razão” – a Metafísica dos Costumes no

interior dos planos de uma futura “Crítica da Razão Pura”.................................... 74

2.2. Os primeiros esboços de um princípio puro da moralidade – Delineamentos

iniciais da concepção de autonomia ....................................................................... 79

2.2.1. Rejeição das escolas empirista e intelectualista ....................................... 79

2.2.2. Razão pura, princípio moral e a comunidade de seres racionais sob leis da

liberdade. ............................................................................................................ 88

3. 1781-1797 – A MORAL CRÍTICA E A EMPRESA DOUTRINAL. DE SÍSIFO A

TÂNTALO OU: A “IMINENTE” METAFÍSICA DOS COSTUMES? ................. 104

3.1. A Metafísica dos Costumes antes do término da “empresa crítica” .............. 105

3.2. Da “empresa crítica” à “empresa dogmática” – problemas conceituais e

empecilhos políticos. ............................................................................................ 110

II - KANT E A REFORMULAÇÃO DA METAFÍSICA ....................................... 118

4. A QUESTÃO DE UMA “METAFÍSICA APLICADA” EM KANT .................. 121

4.1. Sentidos de “metafísica” no projeto crítico kantiano .................................... 122

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4

4.2. O sistema da filosofia – crítica e metafísica aplicada.................................... 127

5. OS PRIMEIROS PRINCÍPIOS METAFÍSICOS DA CIÊNCIA DA NATUREZA.

O MODELO DE UMA METAFÍSICA APLICADA .............................................. 138

5.1. A parte transcendental e a parte metafísica da Metafísica da Natureza ........ 139

5.2. O conceito empírico de matéria..................................................................... 144

5.3. Princípios transcendentais e princípios metafísicos ...................................... 152

III - A METAFÍSICA DOS COSTUMES COMO AUTONOMIA JURÍDICA E

AUTONOMIA ÉTICA............................................................................................... 164

6. A METAFÍSICA DO COSTUMES E O MOMENTO TRANSCENDENTAL.

AUTONOMIA COMO PRINCÍPIO SUPREMO DA MORAL.............................. 170

6.1. As exigências de pureza – a peculiaridade da concepção kantiana de uma

Metafísica dos Costumes...................................................................................... 172

6.2. Primeiro nível de pureza: A pureza irrestrita e a vontade santa .................... 181

6.3. Segundo nível de pureza: Moral para seres racionais finitos. O princípio da

autonomia e o reino dos fins................................................................................. 192

6.3.1. Fato antropológico fundamental. A busca pela felicidade ..................... 192

6.3.2. Natureza racional como fim em si mesmo ............................................. 202

6.3.3. Princípio da autonomia e o reino dos fins. ............................................. 207

6.4. Excurso. Antropologia e moral aplicada. ...................................................... 216

7. O LIVRE ARBÍTRIO COMO OBJETO DE UMA METAFÍSICA DOS

COSTUMES............................................................................................................. 221

7.1. O ato do livre arbítrio como conceito supremo da Metafísica dos Costumes.

.............................................................................................................................. 223

7.2. As faculdades práticas humanas. O aporte da psicologia. ............................. 229

7.3. Capacidade de propor-se fins como base inicial da distinção entre Doutrina do

Direito e Doutrina da Virtude .............................................................................. 238

7.4. Princípios supremos da Doutrina do Direito e da Doutrina da Virtude como

princípios metafísicos. .......................................................................................... 244

7.5. Excurso. Legalidade como critério deontológico inicial de uma Metafísica dos

Costumes. Intersubjetividade da ação do arbítrio no mundo................................ 250

8. DOUTRINA DO DIREITO E DOUTRINA DA VIRTUDE – AUTONOMIA NA

COMUNIDADE JURÍDICA E ÉTICA ................................................................... 261

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5

8.1. Legislação ética e legislação jurídica. ........................................................... 262

8.2. Autonomia jurídica ........................................................................................ 269

8.2.1. Definição do direito como faculdade de coagir – pressupostos empíricos e

liberdade externa............................................................................................... 269

8.2.2. Liberdade negativa e liberdade positiva – o direito da humanidade como

ponto de confluência e as fórmulas de Ulpiano................................................ 276

8.2.3. Direito Privado – A lex permissiva e a permissão do ato unilateral do

arbítrio. ............................................................................................................. 280

8.2.4. O direito público. A república e a paz perpétua na comunidade jurídica

cosmopolita....................................................................................................... 291

8.3. Autonomia ética............................................................................................. 299

8.3.1. Virtude e o confronto entre razão e sensibilidade – os fins obrigatórios 299

8.3.2. Amor e respeito – perspectiva social da virtude..................................... 306

8.3.3. A comunidade ética ................................................................................ 310

CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 321

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 326

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6

AGRADECIMENTOS

Ao professor Ricardo Terra pela generosa e próxima orientação desde a

graduação e minhas sucessivas e malogradas tentativas de formular um projeto de

pesquisa, aceitas, todas, com paciência e gentileza; agradeço-lhe também pela

oportunidade de participar de grupos de pesquisa por ele conduzidos e que tão

importantes foram e continuam sendo para meu lento amadurecimento intelectual.

Talvez mais do que tudo, devo a ele e ao ambiente de estudos e de amizade existente

nestes grupos um ensinamento que certamente conservarei por toda minha vida

acadêmica: não é desejável ou mesmo possível refletir e fazer filosofia de forma

solitária, carrancuda e casmurra.

Aos membros do Grupo de Filosofia Alemã: Bruno Simões, Erinson Cardoso,

Flávio Reis, Francisco Gaspar, João Geraldo da Cunha, Jonas Medeiros, Marília

Espírito Santo, Marisa Lopes, Rafael Rodrigues Garcia, Ricardo Crissiuma e Rúrion

Soares; agradeço especialmente a Bruno Nadai, Fernando Mattos, Monique Hulshof,

Maurício Keinert e Nathalie Bressiani, também companheiros do Grupo de Tradução

Kant e pacientes leitores de minhas produções oceânicas.

A Maurício Keinert e Maria Lúcia Cacciola pelas valiosas sugestões e críticas

feitas em meu exame de qualificação; os erros que persistem são atribuídos à minha

teimosia córnea.

Aos amigos que me fazem providencialmente esquecer, mesmo que de forma

temporária, que existe algo chamado filosofia: Arthur Iglesias, Bruno Ceccon, Caio

Lima, César Rodrigues, Felipe Marchiori, Felipe Zaia, Marcos Paulo Guedes, Mateus

Ruiz e Rodrigo Cheida.

Aos amigos e interlocutores espalhados pelo mundo: André Nunes, José

Guilherme Caiado, Marcelo Granato e Nicolás Alles.

À comunidade do mítico “Indião”, uma verdadeira instituição da capital

bandeirante. Aos ex-moradores, amigos e antigos companheiros de convivência diária:

Daniel Carnaúba, Felipe Bueno, Fernando Carnaúba e João de Paula. Aos atuais e/ou

antigos moradores, amigos e convivas da feijoada e da boemia paulistanas: Adriano

Scalzaretto, Bruno Salles, Guilherme Suguimori, Leon Domingos e Marcelo Pacheco. A

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7

estes agradeço em especial pelas inúmeras vezes que fui e ainda sou acolhido com os

braços e o sofá da sala abertos. Minha gratidão a vocês é inestimável.

À FAPESP pela concessão da bolsa de pesquisa com a qual realizei este

mestrado.

Às secretárias do departamento de filosofia, sempre simpáticas e eficientes em

desentravar o aparato burocrático uspiano. Em especial à Maria Helena, pela contínua e

gentil ajuda, e à Marie, por tudo isso e pelas boas risadas.

Ao meu padrinho e à minha madrinha, pelo apoio, ajuda e atenção.

Por fim, ao meu irmão e à minha mãe pelo incondicional carinho. À minha mãe

em especial, por sempre, e apesar de tudo, ter me dado plena liberdade e acreditado nos

meus planos de vida: o que devo a você não cabe nesta e em qualquer outra página.

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RESUMO

TREVISAN, D. K. A Metafísica dos Costumes: A Autonomia para o Ser Humano.

2011. 336 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências

Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, 2011.

Esta dissertação tem por objetivo analisar o lugar sistemático ocupado pela

Metafísica dos Costumes no interior da filosofia prática kantiana, interpretando-a como

uma metafísica da moral aplicada a um elemento empírico mínimo: a natureza humana.

Em suas duas partes, a Doutrina do Direito e a Doutrina da Virtude, o princípio

supremo da moral, o princípio da autonomia, adquire o significado de uma autonomia

jurídica e ética que guia as situações fundamentais da vida prática do homem.

Na primeira parte da dissertação, o transcurso do projeto de uma Metafísica dos

Costumes ao longo do desenvolvimento da filosofia kantiana será investigado como

uma progressiva purificação do princípio supremo da moral condizente com o projeto

crítico mais amplo de Kant e que culmina na formulação embrionária de uma

comunidade de seres racionais sob leis autônomas. Numa segunda parte, a Metafísica

da Natureza será analisada como uma metafísica aplicada que surge a partir da

reformulação da metafísica tradicional empreendida por Kant e, de acordo com os

novos parâmetros estipulados pela crítica, é composta por um momento transcendental e

por outro metafísico-específico, onde os princípios do momento anterior são aplicados a

um elemento mínimo empírico. Por fim, na terceira e última parte, o procedimento em

atuação nos Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza será adotado

como o modelo a ser seguido na Metafísica dos Costumes, surgindo disto um momento

transcendental da filosofia moral, que encontra sua base normativa no princípio de

autonomia, e uma etapa metafísica, na qual o princípio supremo da moral é aplicado ao

direito e à ética.

Palavras-chave: Kant, Direito, Ética, Metafísica, Moral

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ABSTRACT

TREVISAN, D.K. The Metaphysics of Morals: The Autonomy for Human Beings.

2011. 336 f. Thesis (Master Degree) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, 2011.

This work intends to analyze the Metaphysics of Morals’ systematic place within

Kant’s practical philosophy, interpreting it as a metaphysical discipline of morals

applied to an empirical minimum: the human nature. In its both parts, the Doctrine of

Right and the Doctrine of Virtue, the supreme principle of morality, the principle of

autonomy, turns into an ethical and juridical autonomy that guides human practical life.

In the first place, the journey of the always postponed Metaphysics of Morals in

the course of Kant’s philosophical development will be investigated as a progressive

purification of the supreme principle of morals, a procedure that agrees with the wider

critical project and that culminates in the incipient idea of a community of rational

beings under autonomous laws. In the second place, the Metaphysics of Nature will be

analyzed as an applied metaphysics, a discipline that emerged after Kant’s Critique had

molded the new shape of traditional metaphysics; according to its critical pattern, this

discipline is composed by a transcendental and a special-metaphysical part, in which the

principles of the former are applied to an empirical minimum. Finally, in the third and

final part, the procedure in action in the Metaphysical Foundations of Natural Science

will be taken as a model to be followed in the Metaphysics of Morals. From such

procedure arise a transcendental moment, which finds its normative basis in the

principle of autonomy, and a metaphysical stage, in which the supreme principle of

morality is applied to right and ethics.

Keywords: Kant, Right, Ethics, Metaphysics, Morals

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NOTA SOBRE AS CITAÇÕES E ABREVIATURAS

As obras de Kant são citadas segundo a edição da Academia (Kants gesammelte

Schriften: herausgegeben von der Deutschen Akademie der Wissenschaften,

anteriormente Königlichen Preussischen Akademie der Wissenschaften, 29 vols. Berlin,

Walter de Gruyter, 1902– ) e de acordo com o seguinte modelo: Gr Ak IV: 388. p. 103,

ou seja, a abreviação do nome da obra (com exceção das correspondências, presentes

nos volumes X-XIII e, em alguns casos, XXIII da Akademie Ausgabe) seguida do

volume e da página da edição da Academia e, quando possível, da página da edição em

português correspondente. Nas citações da Crítica da Razão Pura, a página da edição

da Academia é substituída pelas mais convencionais referências “A” e “B”,

correspondentes à primeira e à segunda edições da obra, respectivamente. Em todas as

citações busquei utilizar as traduções para o português referidas na bibliografia, fazendo

alterações quando julgava conveniente. As traduções de trechos de obras sem edição em

português são de minha autoria.

As abreviaturas das obras citadas seguem a referência dos seguintes títulos em

alemão:

Anthropologie Anthropologie in pragmatischer Hinsicht – Antropologia de um ponto

de vista pragmático.

Beobachtungen Beobachtungen über das Gefühl des Schönen und Erhabenen -

Observações sobre o sentimento do belo e do sublime

Bemerkungen Bemerkungen zu den Beobachtungen über das Gefühl des Schönen und

Erhabenen – Comentários às Observações sobre o sentimento do belo e do

sublime

Dissertatio De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis - Forma e

princípios do mundo sensível e do mundo inteligível

EE Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft – Primeira introdução à Crítica da

Faculdade de Julgar

Fortschritte Welches sind die wirklichen Fortschritte, die die Metaphysik seit

Leibnitzens und Wolf’s Zeiten in Deutschland gemacht hat? – Quais são os

verdadeiros progressos que a metafísica realizou na Alemanha, desde os tempos

de Leibniz e Wolff? (Os Progressos da Metafísica)

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Gebrauch Über den Gebrauch teleologischer Principien in der Philosophie – Sobre o

uso de princípios teleológicos na filosofia

Gr Grundlegung zur Metaphysik der Sitten – Fundamentação da Metafísica dos

Costumes

Idee Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht – Ideia de uma

história universal de um ponto de vista cosmopolita

Krankheiten Versuch über die Krankheiten des Kopfes – Ensaio sobre as doenças

mentais.

KrV Kritik der reinen Vernunft – Crítica da Razão Pura

KpV Kritik der praktischen Vernunft – Crítica da Razão Prática

KU Kritik der Urteilskraft – Crítica da Faculdade de Julgar

MAN Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaften – Primeiros Princípios

Metafísicos da Ciência da Natureza

Met. Dohna Metaphysik Dohna – Lições de metafísica Dohna

Met. Mrongovius Metaphysik Mrongovius -Lições de Metafísica Mrongovius

Met. Volckmann Metaphysik Volckmann – Lições de metafísica Volckmann

MS Metaphysik der Sitten: Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre e

Metaphysische Anfangsgründe der Tugendlehre – Metafísica dos Costumes;

Primeiros princípios metafísicos da Doutrina da Virtude e Primeiros princípios

metafísicos da Doutrina do Direito

Nachricht M. Immanuel Kants Nachricht Von der Einrichtung seiner Vorlesungen in

den Winterhalbenjahren Von 1765-1766 – Notícia do Prof. Immanuel Kant

sobre a organização de suas lições no semestre de inverno de 1765-1766

Prolegomena Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik – Prolegômenos a toda

a Metafísica Futura (1783).

Rel Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft – A religião nos

limites da simples razão

Rx Reflexionen – Reflexões

Träume Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik - Sonhos

de um visionário explicados por sonhos da metafísica

UdG Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht

für die Práxis – Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas

nada vale na prática.

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Untersuchung Untersuchungen über die Deutlichkeit der Grundsätze der natürlichen

Theologie und der Moral - Investigação sobre a evidência dos princípios da

teologia natural e da moral

Vorl Collins Moralphilosophie Collins – Lições de filosofia moral Collins

ZeF Zum ewigen Frieden – À paz perpétua

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A Kant

Como, porém, a tantos pedintes um único rico dá de comer!

Quando os reis constroem, os operários têm o que fazer.

(Friedrich Schiller. Xenien)

Sempre se esquece que o filósofo, tal como o poeta, é o portador de

futuros entre nós e pode contar menos do que os outros com a

participação de sua época. Filósofos e poetas são contemporâneos de

pessoas de um futuro longínquo (...). Filósofos deveriam ser

pacientes e esperar, e não querer fundar uma soberania, nem um

reino que se mantenha com os meios de seu tempo. Eles são os reis

do vindouro, e suas coroas ainda são unas com os minérios que

enchem as veias das montanhas...

O fato é que as pessoas mais progressistas dão coisas ao futuro e por

isso devem ser duras com o presente; elas não têm pão para os

pedintes – por mais que assim lhes pareça... elas têm pedras, que aos

contemporâneos parecem ser pão e alimento, mas que no fundo

servirão de alicerce para os dias vindouros, algo que elas não devem

dar de presente. Pense na liberdade infinita do indivíduo sem fama e

desconhecido; é essa liberdade que o filósofo deve conservar para si;

ele pode ser uma pessoa nova todo dia, um refutador de si mesmo.

(Rainer Maria Rilke. Carta a Alexander Benois, 18/07/1901)

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INTRODUÇÃO

UMA METAFÍSICA DOS COSTUMES “CRÍTICA”?

[Der] Ursprung der critischen philosophie ist Moral (Ak XX: 335).

Com o surgimento dos Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude

no fim de 1797 Kant completava a publicação de sua Metafísica dos Costumes, cuja

primeira parte, os Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito, aparecera

poucos meses antes. A obra coroava um difuso e distendido esforço filosófico que

perdurava cerca de três décadas, mais precisamente desde 1765, com o anúncio, feito

em correspondência, de um futuro escrito sobre os “primeiros princípios metafísicos da

filosofia prática” (Ak X: 56). Já no interior do período crítico, a Metafísica dos

Costumes foi a última obra a ser publicada do conjunto de projetos e escritos previstos

por Kant na Crítica da Razão Pura, mais especificamente no capítulo sobre a

Arquitetônica da Razão Pura – tratava-se, presumivelmente, da obra que arremataria o

projeto doutrinal kantiano e representaria a cristalização “metafísica” do primado da

razão prática acentuado ao longo da produção filosófica de Kant.

Contudo, a despeito da centralidade do projeto e da distensão assumida na sua

concepção, a Metafísica dos Costumes foi taxada de forma quase unânime como um dos

grandes fracassos da carreira filosófica de Kant. Seja como marca de um intelecto senil,

seja como fruto de um arroubo dogmático de um espírito crítico, seja ainda como um

lapso pseudo-sistemático incoerente com o restante de sua filosofia prática, a obra foi

acolhida de forma no mínimo desdenhosa pela Kant-Forschung, e apenas recentemente

começou a gozar de certo prestígio por parte dos comentadores1.

1 Da bibliografia recente sobre a Metafísica dos Costumes, o livro de Mary J. Gregor (Laws of Freedom. A Study of Kant´s Method of Applying the Categorical Imperative in the Metaphysik der Sitten. Oxford: Basil Blackwell,1963) foi o primeiro a investigar o aspecto sistemático da obra, buscando analisar as possíveis conexões entre a etapa de fundamentação e as duas metafísicas, a do direito e a da virtude, com especial ênfase nesta última. Desde a publicação do livro pioneiro de Gregor, foram lançadas muitas obras e coletâneas de artigos a respeito da Metafísica dos Costumes, sobretudo sobre a Doutrina do Direito, que a partir dos anos 1970 tornou-se objeto intensa atenção (ver a bibliografia ao fim da dissertação). No entanto, os estudos sobre a Metafísica dos Costumes de modo geral limitam-se a adotar como tema algum tópico ético ou jurídico, reservando pouca atenção à sistematicidade da obra, seja na relação interna entre suas duas partes, seja no interior da arquitetônica da razão prática e da arquitetônica da razão pura – elucidar este aspecto sistemático é o fio condutor e objetivo de fundo desta dissertação. Ao invés de uma investigação a respeito de temas particulares das duas partes da Metafísica dos Costumes, ou mesmo um estudo sobre as diferenças conceituais entre a obra e os escritos de fundamentação, tomaremos por foco a legitimação do lugar sistemático da Metafísica dos Costumes no

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15

O alvo inicial dos críticos foi a suposta senilidade de Kant no momento em que

efetivamente se pôs a redigir sua Metafísica dos Costumes, o que, segundo eles,

explicaria o caráter fragmentário e a infecundidade da obra. Quem inicialmente fez esta

acusação foi Schopenhauer, que, com a acrimônia habitual, escreve:

A Doutrina do Direito é uma das mais tardias obras de Kant e uma obra tão fraca, que,

embora eu a desaprove inteiramente, considero supérflua uma polêmica contra ela, já

que ela, como se não fosse a obra desse grande homem, mas antes o produto de um

homem comum ordinário <gewöhnlicher Erdensohn>, há de morrer de morte natural,

por sua própria fraqueza2

Com efeito, Schopenhauer vê na Doutrina do Direito uma mera reprodução dos

mesmos erros identificados por ele na Crítica da Razão Pura, sem, contudo, o

brilhantismo desta última. O resultado: “uma paródia satírica do maneirismo kantiano”3.

Não é necessário muito empenho para que da constatação de aridez da obra se

passe ao juízo sobre a decrepitude de um homem que, sete anos antes da morte, dava

sinais de que persistia teimosamente em seu leito de Procusto construído à fria e austera

moda gótica4. Victor Delbos emite um juízo paradigmático sobre o tema:

Os Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito e os Primeiros Princípios

Metafísicos da Doutrina da Virtude, surgidos sucessivamente em 1797, longe de

oferecerem uma dedução sistemática rigorosa, não são mais do que um esforço

frequentemente penoso e estéril de simples arranjo esquemático: o pensamento parece

imobilizado em definições e proposições anteriormente estabelecidas; ele não tem nem

largura nem plasticidade, e nem sempre lucidez5.

Hannah Arendt exprime um descaso análogo relativamente à Metafísica dos

Costumes, mais especificamente à Doutrina do Direito:

No que diz respeito à Doutrina do Direito (...), se vocês forem lê-la, provavelmente a

acharão bem monótona e pedante – é difícil não concordar com Schopenhauer, que

interior do sistema da filosofia prática kantiana, considerando-a como metafísica aplicada da moral, ou seja, como filosofia moral pura aplicada ao homem. Mais sobre isso na sequência. 2 Schopenhauer, A. Die Welt als Wille und Vorstellung. Bd I. Werke in Fünf Bänden. Zürich: Haffmans Verlag. 1988. pp. 667-668. Trad.: Schopenhauer, A. Crítica da Filosofia Kantiana. In : Textos Escolhidos (Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 229. 3 Idem. p. 668. Trad.: p. 229. 4 Idem. p. 549. Trad.: p. 132. 5 Delbos, V. La Philosophie Pratique de Kant. Paris: PUF, 1969. pp. 559-60.

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disse sobre ela: ‘é como se não fosse a obra desse grande homem, mas o produto de um

homem comum ordinário’6.

Segundo ela, a aridez da obra e sua falta de “lucidez” seriam conseqüências da

“imbecilidade senil” de Kant e do “enfraquecimento de suas faculdades mentais” no

momento de sua redação. Arendt, como se vê, não foi a única a seguir o veredicto de

Schopenhauer e atribuir à suposta senilidade de Kant o caráter fragmentário e infecundo

da Metafísica dos Costumes e, como conseqüência, o acerto no desdém e desinteresse

que a obra deveria suscitar nas investigações sobre o pensamento ético e jurídico

kantiano: para Arendt, a filosofia política de Kant deve ser buscada não ali onde Kant

mais se debruça sobre ela, ou seja, em sua Doutrina do Direito e nos opúsculos sobre

direito, política e história, mas antes na Crítica da Faculdade de Julgar; já Delbos, no

livro em que analisa o conjunto da filosofia prática de Kant, reserva à obra meras 39

páginas de um total de 608. Trata-se do retrato de um descaso: durante um longo tempo,

a “tese da senilidade” foi amplamente defendida não apenas por filósofos como

Schopenhauer e Arendt, mas mesmo por comentadores, especialistas da filosofia

kantiana, como V. Delbos, o que em muito explica a irrelevância a que, por um longo

período, foi legada a obra.

À parte questões filológicas recentemente levantadas e que em grande medida

desabilitam a tese sobre a suposta senilidade de Kant no período de redação da

Metafísica dos Costumes7, o fato é que esses críticos descuram tanto do estatuto

doutrinal da obra, que, segundo Kant, justifica o frio tom “escolástico” que ressoa em

6 Arendt, H. Lectures on Kant’s Political Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1992. pp. 7-8. 7 Cf. Flikschuh, K. Kant and Modern Political Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. pp. 8-9. A autora discute a sorte da “tese da senilidade” como uma resposta natural às distorções argumentativas presentes na Metafísica dos Costumes, mais precisamente na Doutrina do Direito, que foram, segundo ela, em grande medida remediadas pela nova edição da obra lançada pela editora Felix Meiner sob a edição de Bernd Ludwig, sobretudo no que diz respeito à posição do “postulado jurídico da razão prática”. Bernd Ludwig credita ao editor da obra, e não a Kant, os problemas de encadeamento argumentativo – ver sua introdução à edição: Ludwig, B (ed), Immanuel Kant. Metaphysische Anfangsgründer der Rechtslehre. Hamburg. Felix Meiner Verlag. 1986. XIII-XLVI. Para Flikschuh, com o remanejamento de algumas passagens e completa supressão de outras, a coerência argumentativa teria sido restituída, desabilitando, por conseguinte, a “tese da senilidade”, ao menos no que diz respeito à Doutrina do Direito. Na realidade, o trabalho de Ludwig é a culminação de uma série de pequenos reparos feitos ao texto estabelecido da Doutrina do Direito na Akademie Ausgabe que remontam a meados do século XX, com os trabalhos de G. Buchda [Das Privatrecht Immanuel Kant (Der erste Teil der Rechtslehre in der Metaphysik der Sitten). Ein Beitrag zur Geschichte und zum System des Naturrechts. Jena: Frommann, 1929], F. Tenbruck (“Eine Bemerkung zu einer Fußnote Kants”. In: Archiv für Philosophie 5, 1954-1956), Th. Mautner (“Kants Metaphysics of Morals. A note on the text”. In: Kant-Studien 72, 1981) e outros. Para a história das diversas edições da Metafísica dos Costumes e das emendas sugeridas ao texto final da obra, cf. Parma, V. “Es war einmal eine Metaphysik der Sitten...”. In: Kant-Studien 91, 2000.

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17

suas páginas (MS Ak VI: 206. pp. 7-8), quanto, a exemplo de intérpretes que adotam

outras linhas, da posição sistemática ocupada pela obra no interior da arquitetônica da

razão prática. No limite, os comentadores refratários à relevância da Metafísica dos

Costumes no interior do edifício crítico desdenham do escopo mesmo do projeto

kantiano em filosofia moral: a elaboração de um sistema doutrinal de deveres como

deveres para o homem enquanto um determinado ser racional finito. Apenas como

condição desse projeto – e ressaltemos o valor de “condição – é que devem ser

compreendidos os escritos de fundamentação, como a “Fundamentação” da Metafísica

dos Costumes.

Dessa maneira, o argumento que aqui será defendido é o de que os comentadores

resistentes à possibilidade de uma Metafísica dos Costumes não atentam, de um modo

geral, para o caráter sistemático específico da obra, desprezando com isso o lugar tópico

ocupado por essa disciplina no interior da arquitetônica da razão prática. Para apreender

os contornos gerais de uma Metafísica dos Costumes, é necessário considerar tanto o

significado para Kant de uma metafísica aplicada, compreendidas aqui a Metafísica da

Natureza e a Metafísica dos Costumes, quanto o sentido preciso dos dois momentos que

a compõem: um momento transcendental, que funda a objetividade ou normatividade do

uso da razão correspondente, e o momento metafísico-específico, no qual as

proposições anteriormente estabelecidas são aplicadas a um elemento empírico mínimo

fornecido pela experiência. Para Kant, e a despeito do que creem os críticos, uma

disciplina metafísica crítica que “queira apresentar-se como ciência” deve referir-se a

um âmbito específico da experiência ao qual possam ser legitimamente aplicadas as

proposições discernidas na etapa crítica de fundamentação e unicamente as quais

fundam, especificamente no âmbito prático, um conceito estrito de dever.

Nesse sentido, propomos nesta dissertação não tanto uma investigação sobre os

tópicos particulares de que tratam as duas partes da Metafísica dos Costumes, a

Doutrina do Direito e a Doutrina da Virtude, em outras palavras, uma investigação

acerca do que seriam a filosofia do direito e a ética kantianas ou os deveres particulares

de que ambas se compõem; dito de modo mais preciso, nosso objetivo é, antes,

compreender o estatuto sistemático da Metafísica dos Costumes no interior da

arquitetônica da razão prática e mesmo da arquitetônica da razão pura. Para tanto, é

necessário elucidar um duplo movimento: em primeiro lugar, o esforço crítico de

“purificação” da base da moral localizado, através disso, na própria atividade da razão

pura, através da qual a normatividade de enunciados prático-morais é fundada no

Page 18: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

18

princípio de autonomia como princípio supremo da moral; em segundo lugar, o

momento de aplicação deste princípio de autonomia a um elemento empírico mínimo, o

conceito geral da “natureza humana” (KpV Ak V:8. p. 14; MS Ak VI: 216-217. pp. 23-

24.), que enseja os princípios supremos do direito e da ética e, a exemplo do que ocorre

com a metafísica da substância corporal da Metafísica da Natureza e sua função de

conferir “significado e sentido a meras formas de pensamento” (MAN Ak IV: 478),

“realiza” o princípio “formal” de autonomia, na perspectiva do direito, em uma

comunidade jurídica e, na perspectiva da virtude, em comunidade ética.

Na Metafísica dos Costumes trata-se, assim, do objetivo sistemático mais amplo

de aplicação ou passagem do princípio supremo da filosofia moral, o princípio de

autonomia, à experiência prática efetiva do homem. Friedrich Kaulbach resume a

questão de maneira exemplar:

O programa e o método da Metafísica dos Costumes são determinados através da tarefa

de intermediar os princípios puros da razão prática e aquelas proposições que resultam

da experiência da natureza jurídica e também moral do homem. A Metafísica dos

Costumes ‘específica’ realiza essa intermediação entre os pólos da razão prática pura e

da empiria da vida prática. Ela segue um caminho a priori, partindo, entretanto, de um

conceito de homem obtido a partir da experiência da natureza humana e disposto

idealisticamente de modo que ela possa compreender o homem como ponto de

referência de relações jusnaturalistas <naturrechtlicher>. Assim como na Metafísica da

Natureza aparecem, por exemplo, o movimento, a extensão e a impenetrabilidade da

matéria, aqui também o sujeito humano precisa ser considerado como carente

<bedürftig> em muitos modos, dependente de interesses naturais, e como um ser ao

mesmo tempo corporal e racional8

A preocupação de fundo da Metafísica dos Costumes consiste em expor as

conseqüências das proposições morais fundamentais quando aplicadas a um ser finito

específico, o homem, e à situação ética e jurídica que inevitavelmente se lhe impõe em

contextos práticos elementares. Bem entendido, em lugar de uma observação empírica

de cunho antropológico acerca da ação humana, o ponto de vista adotado numa

Metafísica dos Costumes é aquele da normatividade mesma – e, portanto, a perspectiva

a priori e necessária – a que estão sujeitas as ações humanas efetivas, caracterizadas

jurídica e eticamente:

8 Kaulbach, F. Immanuel Kant. Walter de Gruyter: Berlin & New York, 1982. p. 305.

Page 19: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

19

O caminho de Kant não é (…) o do empírico ao universal, mas antes aquele do a priori

ao concreto. Na moral, é o caminho dos princípios da ética àqueles dos costumes e do

direito. Dessa maneira, o que Kant entende por Metafísica dos Costumes é – em poucas

palavras – o a priori ético da sociedade civil em sua aplicação social, político-jurídica

<rechtstaatliche> e individual enquanto doutrina dos costumes, do direito e da

virtude.9

Assim, vista de uma perspectiva sistemática, a tarefa de uma Metafísica dos

Costumes no interior da arquitetônica da razão prática não consiste em desenvolver o

quadro do estrito formalismo de uma ação racional “em geral” e das exigências

normativas que subjazem a um agente dotado unicamente de razão; inversamente, a

base de que parte a interrogação metafísica presente na obra é a de uma natureza

racional finita específica determinável a priori: a natureza humana. A perspectiva

transcendental assumida pelas obras de fundamentação, obtida após um distendido

processo de purificação da base da moral, deve ser complementada por um elemento

empírico mínimo constitutivo da natureza humana sem que, com isso, seja perdido o

caráter a priori das prescrições práticas fundamentais que se impõem ao homem nas

situações éticas e jurídicas elementares – ou seja, sem que se caia em uma antropologia

moral, prática ou pragmática.

[S]e um sistema do conhecimento a priori mediante meros conceitos se chama

metafísica, uma filosofia prática, que não tem por objeto a natureza, mas a liberdade do

arbítrio, pressuporá e exigirá uma Metafísica dos Costumes (...). Assim como numa

Metafísica da Natureza deve haver também princípios da aplicação dos princípios

supremos universais de uma natureza em geral aos objetos da experiência, assim

também não podem faltar numa Metafísica dos Costumes, e teremos de tomar

frequentemente como objeto a natureza específica do homem, cognoscível só pela

experiência, para nela mostrar as consequências dos princípios morais universais, sem

9 Delekat, F. “Das Verhältnis von Sitten und Recht in Kants großen Metaphysik der Sitten”. In: Zeitschrift für philosophische Forschung. Bd.12. H. 1. 1958. p. 62. Na sequência da passagem citada, Delekat insere a Metafísica dos Costumes num interessante quadro histórico: segundo ele, em uma Metafísica dos Costumes, “em lugar do ethos de igreja <kirchlichen Ethos> fundado teologicamente e desvalorizado através das guerras religiosas, é colocado o ethos de uma humanidade que tudo abrange <allumfassend>; na ordenação da sociedade, em lugar de um patriarcado da sociedade feudal, o ethos das pessoas burguesas livres <freien bürgerlichen Personen> que se sabem ligadas jurídica e eticamente numa vida pública unicamente por contratos; no direito político <Staatsrecht>, em lugar das relações entre autoridade e súdito, o ethos da vida político-jurídica conjunta <rechtsstaatliche Zusammenleben> dos cidadãos sob a volonté générale por eles mesmos produzida. A tarefa da Metafísica dos Costumes de Kant é fundar e desenvolver em detalhes essa ordenação vital <Lebensordnung> da sociedade civil-burguesa e seus novos costumes”.

Page 20: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

20

todavia diminuir a pureza dos últimos nem pôr em dúvida sua origem a priori (MS Ak

VI: 216-7. pp. 23-24. Grifos nossos)

Nesse sentido, o esforço crucial de Kant na obra é o de construir uma passagem

da pureza irrestrita do princípio supremo da moralidade para o âmbito empírico e não

obstante determinável a priori em que efetivamente toma lugar a ação humana, e isto a

partir da aplicação do princípio de autonomia aos âmbitos fundamentais da vida prática:

o direito e a ética.

A ‘aplicação’ necessária do conhecimento metafísico à experiência da natureza do

homem (...) consiste por sua vez em uma passagem do ponto de vista ‘puro’ do

pensamento e do discurso racionais para o do empírico. Essa passagem pressupõe a

possibilidade de trazer a um discurso transcendental enunciados empíricos sobre o

homem e suas inclinações e paixões10

Em outras palavras, para Kant – e por mais estranho que isso possa soar a

ouvidos contemporâneos – em uma “metafísica” dos costumes trata-se do problema da

relação entre a fundamentação e a aplicação de uma determinada teoria moral, ou

ainda, entre o momento transcendental que fundamenta a normatividade dos enunciados

práticos no princípio de autonomia da vontade, e o momento “material” no qual aqueles

devem ser e de fato são aplicados à experiência ética e jurídica exemplificada no

conceito de “natureza específica do homem”. Na Metafísica dos Costumes, o nível

transcendental-normativo das condições de possibilidade de uma ação à qual se aplica o

adjetivo “moral” deve ser ultrapassado até que se obtenha o “a priori material” da ação

humana. Como decorrência, o princípio de autonomia, tomado como princípio supremo

da moral numa perspectiva, digamos, “metaética”, é estendido até o âmbito jurídico e

ético, surgindo desse procedimento uma autonomia ética e uma autonomia jurídica, ou

ainda, uma autonomia da liberdade interna na comunidade ética e uma autonomia da

liberdade externa na comunidade jurídica.

* * *

Tendo em vista a perspectiva prático-sistemática exposta acima, a dissertação

adotará um duplo caminho para analisar a legítima posição da Metafísica dos Costumes

10 Kaulbach, F. Immanuel Kants ‘Grundlegung zur Metaphysik der Sitten’. Darmstadt: Darmstadt WBG, 1988. p. 6

Page 21: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

21

no interior da arquitetônica da razão prática. Na primeira parte da dissertação, será

proposta uma reconstrução da exigida progressiva purificação do princípio supremo da

moral como marca central e constitutiva do desenvolvimento da concepção de uma

Metafísica dos Costumes no decorrer da evolução do pensamento de Kant. A segunda e

terceira partes da dissertação, por sua vez, propõem-se a reconhecer no procedimento

de aplicação do princípio da autonomia à natureza humana um momento condizente

com a reformulação por que passou a metafísica tradicional no período crítico, ou seja,

trata-se aqui de compreender a estrutura da metafísica aplicada da moral, num

procedimento inerente ao projeto metafísico kantiano exemplificado de modo mais claro

na Metafísica da Natureza. Trata-se, portanto, de duas visadas distintas, em alguma

medida independentes uma da outra: num primeiro momento, retraçar a constituição de

uma filosofia moral crítica a partir do confronto de Kant com os autores da tradição e

que justificaria a ambição kantiana de uma moral pura repetidamente reforçada ao

longo do período crítico e aparentemente contradita na própria Metafísica dos Costumes

de 1797. Num segundo momento, identificar, já no interior do procedimento crítico, um

instrumental sistemático que legitime o projeto mesmo de uma “moral aplicada” que

realiza a autonomia humana e que, assim, inevitavelmente e de modo consistente com o

lugar da arquitetônica da razão prática ocupado pela Metafísica dos Costumes,

ultrapassa a pureza e o formalismo exigidos e obtidos através do transcurso do

desenvolvimento do pensamento prático kantiano reconstruído anteriormente. Com essa

dupla perspectiva, seria desabilitado, assim esperamos, o núcleo das críticas à

Metafísica dos Costumes que exporemos na sequência.

A primeira parte da dissertação, dessa maneira, consiste na reconstrução

esquemática do fado do projeto de uma Metafísica dos Costumes ao longo da produção

filosófica kantiana, desde o período pré-crítico até a publicação das duas partes da obra,

em 1797. O objetivo aqui consiste em retraçar o esforço crítico kantiano de purificação

da base da moral, identificado, ao fim do trajeto, no princípio de autonomia como

princípio supremo da moral e que acarreta a autonomização do âmbito moral

relativamente ao teórico11. Esse processo coaduna-se com o procedimento correlato de

11 Cumpre desde já fazer uma longa observação aparentemente colateral, mas que, num olhar mais detido, revela-se central para rebater de antemão possíveis objeções ao propósito da dissertação, sobretudo em sua primeira parte, mas também na terceira, por ocasião da discussão em torno da Fundamentação. Na reconstrução do processo de “purificação” da base da moral para Kant estamos interessados apenas naquilo que Kant denomina, em reflexões do período pré-crítico, principium diiudicationis, em oposição

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22

purificação da razão atrelado ao projeto de uma Crítica da Razão Pura como a tarefa de

esquadrinhar o território da razão, ou ainda, de delimitação das fontes, limites e

extensão das faculdades do sujeito na constituição da objetividade do conhecimento. O

movimento de fundo de purificação da razão conduz, por um lado, à denúncia sobre um

“contágio do conhecimento sensível e intelectual” na metafísica tradicional, que sela o

fracasso racionalista em conhecer os objetos suprassensíveis, e, por outro, à recusa da

solução sensualista britânica e dos princípios práticos da escola wolffiana para o

problema da fundamentação da moral. O novo caminho crítico submete a metafísica ao

tribunal da razão ao mesmo tempo em que progressivamente reconhece na atividade

racional prática pura o princípio de autonomia como base de uma Metafísica dos

Costumes.

Nesse sentido, cumpre aqui inicialmente discutir aqueles comentadores que,

argumentando haver uma continuidade entre a filosofia prática de Kant nos períodos

pré-crítico e crítico, põem em questão não apenas o estatuto crítico-transcendental da

Metafísica dos Costumes, como também chegam a desqualificar a existência mesma de

uma filosofia prática kantiana genuinamente crítica e influenciada pela revolução

copernicana em filosofia desencadeada pela Crítica da Razão Pura. A célebre tese da

ao principium executionis da moral (cf. p.ex. Rx 6760. Ak XIX: 151. 1772; Rx 6972 Ak XIX: 217. 1778? (1773-177?)), ou seja, grosso modo, o princípio de julgamento acerca do que é bom e do que deve ser feito, e o princípio sobre como e por que é feito o que deve ser feito; em outras palavras, trata-se, por um lado, da questão de um princípio de avaliação de quais ações são consideradas morais, e, por outro, da questão da motivação em executar tal ação reputada como um dever. Para Dieter Henrich, o surgimento e desenvolvimento do princípio de autonomia da vontade no itinerário filosófico de Kant somente pode ser completamente compreendido sob esta dupla perspectiva (Ethics of Autonomy” In: The Unity of Reason. Cambridge & London: Harvard University Press, 1994. pp. 94-95). O autor sugere mesmo que o problema central enfrentado por Kant – e que, de resto, marca seu lugar no interior da história da filosofia moral – seria o segundo mencionado, a saber, o da motivação para o agir racional. Em outras palavras, o mais importante consistiria não em avalizar que uma ação moral é aquela conforme ao princípio da autonomia, mas antes em saber como e por que ajo em conformidade a tal princípio. Segundo Henrich, a resposta à segunda pergunta através do fato da razão (que fornece à teoria moral kantiana uma doutrina sobre “a força motivacional da razão” e, assim, “torna todo o sistema coerente e o traz à conclusão” – Idem, p. 105) insere Kant na tradição do “sittliche Einsicht” que parte dos gregos, passa pelos britânico lidos por Kant e chega ao idealismo alemão (cf, Idem. “The concept of moral insight and Kant’s doctrine of the fact of reason”. In: The Unity of Reason. Op. cit). Ao contrário de Henrich, entretanto, preferimos focar nossa reconstrução no principium diiudicationis, ou seja, na maneira pela qual Kant chega a seu princípio da autonomia, abstraindo das por vezes confusas e controversas questões que giram em torno da motivação para o agir autônomo em Kant, como, por exemplo, o interesse prático oposto ao patológico, o respeito pela lei, a ação por dever, o fato da razão, sumo bem, postulados, etc. Acreditamos que o prejuízo para a dissertação não é tão grande em virtude do objetivo proposto: compreender o lugar sistemático da Metafísica dos Costumes no interior da filosofia prática kantiana. Ora, a “derivação” dos deveres depende apenas de um princípio que avalia quais ações são deveres, e não sobre por que e como ajo em conformidade a tais deveres – não é por esse motivo que questões relativas à motivação para o agir moral não entram na Doutrina do Direito? Como veremos em 7.5 infra, mesmo a virtude não põe como “norma fundamental” a ação por dever. Em suma, a questão acerca do surgimento da concepção kantiana sobre a motivação para o agir moral, embora central para a compreensão completa de sua filosofia moral, não nos parece crucial para uma análise da Metafísica dos Costumes.

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23

continuidade da filosofia moral pré-crítica no período crítico foi inicialmente defendida

por Dieter Henrich e depois compartilhada por, dentre outros, Josef Schmucker,

Christian Ritter e Karl-Heinz Ilting.

Dieter Henrich defende que “a fórmula do imperativo categórico baseada na

universalidade da vontade mesma” e as “duas primeiras seções da Fundamentação da

Metafísica dos Costumes” já estariam estabelecidas por volta de 1765 nos Comentários

<Bemerkungen> às Observações sobre o sentimento do belo e do sublime12. Segundo

Henrich, o percurso sistemático interno à Fundamentação, a saber, partir da boa

vontade para o imperativo categórico e a autonomia da vontade, também caracterizaria

o percurso genealógico do pensamento kantiano em filosofia prática. A “intuição” de

1765, a saber, que a boa vontade seria a vontade despida de interesses particulares, já

conteria os elementos necessários para ser denominada “crítica”: o quase presságio que

levou à formulação “intuitiva” do imperativo categórico já no ano de 1765

funda também a concepção de uma ‘autonomia da vontade’, e, de fato, de tal modo que

esta se apresenta como o conceito da possibilidade de uma vontade boa por si mesma.

O desenvolvimento tardio de Kant constitui-se como uma sucessão de tentativas de

desenvolver o conceito dos bens específico da vontade <der besonderen Güten des

Willens> (...). O caminho que, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, conduz

do conceito de uma vontade absolutamente boa à fórmula do imperativo categórico e

depois à doutrina da autonomia da vontade, foi também o caminho histórico da ética

kantiana13

Josef Schmucker também argumenta que o conteúdo da futura filosofia prática

crítica já estaria contido in nuce nos escritos compreendidos entre 1764-1766; da mesma

maneira, o problema formal da determinação da vontade unicamente pela lei moral de

que trata a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Crítica da Razão Prática

em nada dependeria da Crítica da Razão Pura e da nova démarche crítica:

temos claro este tipo de crítica da razão prática já em Crusius e Hutcheson e no Kant

mesmo na Investigação sobre a evidência dos princípios da teologia natural e da

12 Henrich, D. “Kant and Hutcheson”. In: Ameriks, K & Höffe, O. (orgs). Kant’s Moral and Legal Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. pp. 51-52. O original é de 1957: “Hutcheson und Kant”. In: Kant-Studien, 49, 1957-1958. Cf também. Idem.“Ethics of Autonomy” In: The Unity of Reason. Cambridge & London: Harvard University Press, 1994. p. 98; O original é de 1963: “Das Problem der Grundlegung der Ethik bei Kant und im spekulativen Idealismus”. In: Sein Und Ethos: Walberger Studien, vol 1. Mainz. E Idem. “Über Kants früheste Ethik”. In: Kant-Studien 54. 1963. 13 Henrich, D. “Über Kants früheste Ethik”. Op. cit. p. 406.

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24

moral, nas Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, nos Comentários às

Observações sobre o sentimento do belo e do sublime e nos Sonhos de um visionário;

trata-se de um problema bem próprio da doutrina ética dos princípios e não permanece

nem genética nem fatualmente <sachlich> numa relação de dependência com o

problema crítico da metafísica teórica14.

As célebres teses de Schmucker e Henrich tornaram-se uma consistente base

conceitual para que alguns comentadores reconhecessem na Metafísica dos Costumes de

1797 tão-somente a repetição, muitas vezes sem grande refinamento de estilo, de ideias

expostas em Reflexões e Lições das décadas de 1750 a 1770. Christian Ritter, por

exemplo, lançando mão de um minucioso e vasto tratamento do Nachlass kantiano e,

como ainda será visto, de uma velada concepção cientificista da filosofia de Kant de

matriz neokantiana, identifica a reincidência na Doutrina do Direito de tópicos de

autores jusnaturalistas anteriores e discutidos no material disponível do período pré-

crítico. Como consequência, o comentador conclui que não seria permitido afirmar a

existência de uma filosofia jurídica crítica.

O pensamento jurídico de Kant desenvolve-se em uma forte continuidade. Já desde o

começo do período inicial das fontes (por volta de 1764) encontram-se in nuce as

mesmas determinações fundantes presentes na Metafísica dos Costumes, e, ao final do

período considerado neste trabalho (por volta de 1775), âmbitos temáticos, perguntas e

respostas idênticos àqueles da obra tardia. Essa continuidade do pensamento jurídico

kantiano exclui a possibilidade de que Kant tenha fundado uma filosofia ‘crítica’ do

direito – isto é, correspondente ao criticismo especulativo. Nem em 1769, nem mais

tarde, ocorre uma ‘ruptura’ que permita falar de uma fase pré-crítica em oposição a uma

fase crítica da filosofia jurídica kantiana15

Por fim, Karl-Heinz Ilting, no desdobramento das discussões levantadas pelo

influente livro de Christian Ritter, busca rebater a contratese de Werner Busch, para

quem haveria um conceito crítico de liberdade formulado a partir de 177216,

14 Schmucker, J. Die Ursprunge der Ethik Kants. Meisenheim am Glan: Verlag Anton Hain Kg. 1961. p. 383. 15 Ritter, C. Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen. Vittorio Klostermann. Frankfurt. 1971. p. 339. cf. 217-219; 339-341. 16 Busch, W. Die Entstehung der kritischen Rechtsphilosophie Kants. Berlin/New York: De Gruyter, 1979. pp. 70ss. Este conceito crítico de liberdade consistiria em tomar o homem como um ser natural e racional, ou seja, como um agente que produz efeitos no mundo sensível cuja causa, contudo, não pode ser atribuída a estímulos que provêm deste mesmo mundo sensível. Em suma, trata-se, grosso modo, da

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25

argumentando que Kant, na verdade, retém uma concepção dogmática de liberdade

desde 1765 que em nada dependeria da nova visada crítico-transcendental desenvolvida

ao longo da década de 70. Como resultado, escreve ele,

não se reconhece uma ‘virada crítica’ de Kant nos anos setenta no âmbito da filosofia

prática (...). Kant, mesmo nos escritos sobre filosofia prática dos anos oitenta, ainda se

apóia na doutrina de uma metafísica pré-crítica e, logo lá onde conecta problemas éticos

com sua crítica da razão, afasta-se daquilo que com direito poder-se-ia chamar de uma

ética e filosofia do direito críticas17.

Concedendo uma razão inicial ao argumento desses autores, é incontestável que

certos temas centrais da filosofia moral crítica kantiana já figuram em escritos anteriores

a 1781, e podemos aqui mencionar a título de exemplo a distinção entre uma

necessidade “hipotética” e uma “categórica” das prescrições morais discutida já na

Investigação sobre a evidência dos princípios da teologia natural e da moral, redigida

em 1762, assim como a progressiva identificação entre universalidade da lei da

liberdade e sua fonte na razão ou “intelecto” puro observada na década de 1760 e

desenvolvida ao longo da década de 1770; ao mesmo tempo, contudo, tais

similaridades, se enfatizadas em demasia, obscurecem aquilo que de fato interessa, a

saber, a solução crítica acabada conferida a esses temas e a sua inclusão específica no

interior do quadro transcendental aberto pela Crítica da Razão Pura. Nesse ponto

começamos a discordar fundamentalmente da “tese da continuidade”.

Tomemos como contraexemplo os conceitos puros do entendimento. Nenhum

daqueles que defendem a continuidade da filosofia moral kantiana na passagem do

período pré-crítico para o crítico poderia, sem despertar protestos bem fundados,

defender que as categorias seriam “pré-críticas” pelo simples fato de esboços das

mesmas remontarem a meados da década de 1770, ou mesmo pelos seus contornos

futuros estarem contidos “in nuce” na famigerada carta a Herz de fevereiro de 177218.

Quanto à filosofia prática, se é fato que Kant escreve já em 1762 que a obrigação moral

deve enunciar a necessidade categórica da ação, ou mesmo quando afirma, por volta de

questão liberdade como espontaneidade e oposta ao determinismo natural de que trata a terceira antinomia da Crítica da Razão Pura. 17 Ilting, K-H. “Gibt es eine kritische Ethik und Rechtsphilosophie Kants?”. In: Archiv für Geschichte der Philosophie. Vol. 63, N. 3, 1981. p. 325. 18 Cf. Carl, W. Der Schweigende Kant. Die Entwürfe zu einer Deduktion der Kategorien vor 1781. Göttigen: Vandenhoeck & Ruprecht in Göttigen, 1989.

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1765, que a vontade boa tem de ser universal e “não poder anular-se” <sich selbst

aufheben> (Bemerkungen Ak XX: 67), não há nada que nos leve a assumir a presença

definitiva seja do imperativo categórico, seja do princípio de autonomia como as bases

explicativas desse estrito dever categórico, ambos, como é assumido nesta dissertação,

construções conceituais centrais da filosofia moral crítica – de resto, mesmo

concedendo que a formulação precisa dos dois princípios acima mencionados já

estivesse pronta ou definitivamente esboçada em 1765, ambos coexistiriam ainda com

claras influências britânicas e racionalistas ilegitimadas no nível de fundamentação

crítica da moral. Em suma, a continuidade temática não implica necessariamente uma

continuidade de método19, e sabemos muito bem como Kant concebe sua filosofia

crítica como um “tratado sobre o método” (KrV B XXII-XXIII. p. 23), ou melhor, sobre

um “novo método” em filosofia.20

Em linhas gerais, embora temas e mesmo conteúdos específicos da futura moral

crítica já estejam esboçados ou suficientemente expostos no período pré-Crítica da

Razão Pura, conforme será discutido ao longo da primeira parte da dissertação,

entendemos que apenas na década de 1780 consolida-se um movimento inicialmente

percebido a partir de 1765, com os Sonhos de um visionário e os Comentários às

19 Sobre uma ideia semelhante, cf. Oberer, H. “Zur frühgeschichte der Kantischen Rechtslehre”. In: Kant-Studien 64, 1973. pp.100-102. Contra a tese de Ritter e a fortiori contra Schmucker e Henrich, Oberer comenta acertadamente que a “descoberta” de um novo método não exige, por si mesma, que um novo conteúdo seja forjado: “a ‘nova determinação’ <Neubestimmung> do antigo conteúdo pode ser completamente absorvida em tal nova configuração <Neueinpassung>. Portanto, não era exigido de Kant que todos os conteúdos da filosofia prática, da maneira como eles foram desenvolvidos até o início da fase crítica, fossem transformados após o início da nova fase, ou, ainda, adaptados através de modificações de conteúdo” (p. 101). 20 Sobre a discussão desse tópico em relação à Metafísica dos Costumes especificamente, Manfred Kuehn coloca a questão nesses termos: “o que permaneceu o mesmo [na passagem do período pré-crítico para o período crítico] é o conteúdo mesmo da Doutrina do Direito e da Doutrina da Virtude de Kant. O que mudou foi a perspectiva a partir da qual esse conteúdo precisa ser visto de acordo com Kant. Isso deu origem a tensões no sistema kantiano, mas elas não são tensões fatais para a visão de Kant, ao menos não para que sejam propriamente entendidos o conteúdo e a forma de sua filosofia moral”. Kuehn M. “Kant’s Metaphysics of Morals: the history and significance of its deferral”. In: Denis, L (ed). Kant’s Metaphysics of Morals: A Critical Guide. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 16. Com efeito, Kuehn mostra como alguns dos deveres presentes na Doutrina da Virtude são apropriados de Baumgarten e discutidos nas Lições sobre filosofia moral do período pré-crítico (pp. 17ss). Mesmo concordando com o comentador a respeito das “tensões” que tal situação produz no sistema de Kant, preferimos, contudo, adotar uma postura mais prudente do que a de Kuehn, não pretendendo um juízo tão universal e categórico sobre o conteúdo da Metafísica dos Costumes já estar todo presente no período pré-crítico – basta, por exemplo, citar o tratamento “crítico-transcendental” dado por Kant à questão da propriedade privada na Doutrina do Direito e sua diferença em relação à solução “lockeana pré-crítica” fornecida nos Comentários às Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Cf. Terra, R. A Política Tensa. Ideia e Realidade na Filosofia da História de Kant. São Paulo: Iluminuras, 1995. pp. 97ss, esp. pp. 110-118. Kersting, W. Wohlgeordnete Freiheit. Immanuel Kants Rechts- und Staatsphilosophie. 3. Erweiterte und Bearbeitete Auflage. Paderborn. Mentis. 2007. pp.213-228. Trata-se de mais um motivo para não se acreditar tão obstinadamente na “tese da continuidade”.

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27

Observações, e intensificado ao longo da década de 70, de purificação do princípio da

moral conjugado ao diagnóstico acerca do contágio entre o conhecimento sensível e

intelectual, inicialmente elaborado na Dissertação Inaugural e que em larga medida

conduziu ao projeto de uma crítica da razão como a investigação de sua atividade pura

nas perspectivas prática e teórica21. Somente a partir do fim da década de 60 surge a

explícita recusa ao sentimento moral e aos princípios racionalistas como bases da moral

e, nesta esteira, ocorre a autonomização da filosofia prática em relação à teórica e o

despontar inicial do princípio da autonomia como exigência normativa suprema da

filosofia prática crítica e fundamento para o tratamento sistemático dos deveres na

Metafísica dos Costumes. Esta, após o esforço propedêutico e purificador, é contada

como uma moral aplicada legitimada no interior da arquitetônica da razão prática

“crítica” e consistente com o projeto moral mais amplo de Kant22.

Portanto, no que diz respeito estritamente aos momentos de virada na filosofia

moral kantiana, será defendido que no período relativo à Dissertação Inaugural assiste-

se a uma inflexão crucial no desenvolvimento do pensamento moral kantiano, a saber, a

inflexível demanda pela “pureza” do princípio da moralidade em confluência com o

objetivo metodológico mais amplo de Kant de “purificar” a razão e de alguma maneira

devedora da “distinção dos mundos” esboçada nos Sonhos de um visionário e

consumada na Dissertação Inaugural23. Como decorrência disso, no período

imediatamente seguinte, a década silenciosa, o princípio de autonomia como princípio

21 Cf. Beck, L.W. “Lambert and Hume in Kant’s Development”, In: Essays on Kant and Hume. New Haven and London: Yale University Press, 1978. Tonelli, G “Die Umwälzung von 1769 bei Kant” In: Kant-Studien, 54, 1963. Santos, L. R. Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1990. Discutiremos esse tópico na primeira parte da dissertação. 22 Sobre o significado mesmo de “crítico” na filosofia moral kantiana, cf. Oberer, H. “Ist Kants Rechtslehre kritische Philosophie?” In: Kant-Studien 74. 1983. O autor toma uma postura mais matizada e ligeiramente diferente da adotada aqui, e, a exemplo de Werner Busch, argumenta que a marca constitutiva do criticismo em filosofia prática repousa no “conceito crítico de liberdade” discutido na Crítica da Razão Pura e do qual decorre a “autonomia da subjetividade racional” em oposição à “heteronomia do sentimento” (idem. pp. 223-224). Preferimos no restante da dissertação evitar uma discussão detida sobre as diferentes conceitualizações da liberdade (transcendental, negativa, positiva) feitas na Crítica da Razão Pura, mais notadamente no capítulo sobre as antinomias da razão pura, retendo, inversamente, o mero significado da autonomia como autolegislação do agente racional livre discutido na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Crítica da Razão Prática e pressuposto na Introdução à Metafísica dos Costumes. Essas questões serão discutidas na terceira parte da dissertação, em que a liberdade externa, a “autonomia” jurídica da Doutrina do Direito, será contraposta à liberdade interna, a “autonomia” ética da Doutrina da Virtude. 23 É a tese de, por exemplo, Brandt (Die Bestimmung der Menschen bei Kant. Hamburg: Felix Meiner, 2007), Menzer (“Der Entwicklungsgang der Kantischen Ethik in den Jahren 1760-1785”. In: Kant-Studien 2 e 3. 1898), Schilpp, (Kant’s Pre-Critical Ethics. Bristol. Thoemmes Press. 1998. Reedição de 1932) e Schwaiger, (“Die Anfänge des Projekts einer Metaphysik der Sitten zu den wolffianischen Wurzeln einer kantischen Schlüsselidee”. In: Gerhardt, V; Horstmann, R-P & Schumacher, R (eds). Kant und die Berliner Aufklärung. Akten des IX. Internationalen Kant-Kongresses. Berlin: De Gruyer, 2000). Cumpre notar que Menzer e Schlipp não tiveram acesso às Bemerkungen.

Page 28: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

28

da razão prática pura começa, sob a profunda e marcante influência de Rousseau, a

ganhar a forma definitiva assumida nas obras sobre filosofia prática do período crítico,

permitindo, com isso, que haja algo como uma metafísica aplicada na moral, que conta

com uma parte transcendental “pura”, que funda a normatividade da ação moral em

geral no princípio de autonomia, e um momento especificamente metafísico, que aplica

este princípio geral à natureza humana, instanciando-o em uma autonomia jurídica e

uma autonomia ética.

Ainda no interior dessa perspectiva argumentativa a respeito de uma filosofia

prática pré-crítica – e como transição para o tema das segunda e terceira partes da

dissertação –, notemos que um erro sistemático semelhante é cometido pelos partidários

de uma “correção neokantiana” da filosofia moral kantiana e da Metafísica dos

Costumes, mais especificamente da Doutrina do Direito. Para esses intérpretes, a

ausência de uma “dedução rigorosa” das proposições morais a partir de alguma ciência

prática bem fundada – de modo contrário, portanto, ao que supostamente ocorre na

filosofia especulativa com o ancoramento da interrogação transcendental no “fato da

física newtoniana” – desabilita a existência de uma filosofia prática crítica.

Curiosamente, a disciplina escolhida pelos neokantianos para esta tarefa é a ciência

jurídica, que, assim, deveria constituir-se como uma disciplina puramente formal e

rigorosa na fundamentação de suas proposições, servindo de modelo para a filosofia

moral de modo geral assim como a física newtoniana relativamente à filosofia teórica.

A ampla voga neokantiana que desqualificou por completo a Metafísica dos

Costumes, e, de forma mais ampla, toda a filosofia prática kantiana, teve como seu

primeiro e principal expoente Hermann Cohen. Vejamos seu juízo a respeito da filosofia

prática de Kant:

Assim como a física está enraizada na lógica, também o direito está na ética (...),

portanto, também a ética precisa ser investigada a partir da ciência jurídica e nela ser

fundada. Esta é a nova posição que aqui damos à ética. Ao passo que Kant, na Crítica

da Razão Pura, investigou as genuínas bases metafísicas da ciência da natureza, ele

procedeu diferentemente na ética. Na Crítica da Razão Prática (...), ele não partiu do

fato da ciência jurídica, mas antes do análogo de um fato (...). Aqui Kant perdeu a

Page 29: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

29

aplicação do método transcendental; (...) e não realizou a dedução da ética na ciência

jurídica (...) como a da lógica na ciência da natureza24.

Segundo Hermann Cohen, a filosofia moral kantiana renegou o “procedimento

crítico”, a saber, partir de um factum da ciência e, deduzindo post festum suas condições

de possibilidade, conceder-lhe justificação filosófica. Ao contrário do que ocorrera com

a física newtoniana, Kant não teria encontrado em filosofia moral nenhuma ciência

prática bem estabelecida da qual pudesse questionar os princípios que inicialmente a

tornam possível, e teria recorrido, pelo contrário, ao juízo “fatual” sobre o entendimento

comum dos homens (o “análogo” de um fato de que fala Cohen) para dele construir seu

sistema; - nada mais natural, afirma Kurt Lisser, dado o “estágio histórico das ciências

práticas” de então. Cohen teria “corrigido” Kant, e, partindo do factum da ciência

jurídica, concebeu sua “ética da vontade pura”25.

O veredicto de Cohen obteve larga influência nos estudos sobre filosofia prática

de Kant; na esteira deste diagnóstico neokantiano, a Doutrina do Direito, e, com ela, a

Doutrina da Virtude foram rejeitadas como escritos “pré-críticos”, na medida em que

“traem” o “espírito crítico-transcendental” que funda a sistematicidade e a cientificidade

da filosofia kantiana. Assim, ao invés de propor uma “ciência pura do direito”, a

Doutrina do Direito de Kant retorna ao dogmatismo das escolas jusnaturalistas ao

afastar-se dos cânones transcendentais da Crítica da Razão Pura.

na sua Metafísica dos Costumes, Kant deixou cair em relação à doutrina do direito o

método crítico, permanecendo na esteira do direito natural, que era dominante à altura26

Em outras palavras, a Metafísica dos Costumes é simplesmente rejeitada e

excluída de um sistema kantiano crítico procedente. Christian Ritter, que com seu livro

buscava uma prova histórico-genética desta tese, emite um juízo conciso sobre o tema:

Na medida em que as interpretações não se deixam contentar com uma apresentação do

‘sistema jurídico’ kantiano, mas antes se esforçam por uma derivação desse sistema a

partir dos fundamentos da filosofia crítica de Kant, surpreendentemente elas chegam,

24 Cohen, H. Ethik des reinen Willens. Berlin, 1907. p. 227. Apud Ritter, C. Op. cit. p. 17. Grifos nossos. 25 Lisser, K. El Concepto del Derecho en Kant. México: Centro de Estúdios Filosóficos, Universidad Autônoma de México, 1959. p. 5-8. 26 Stammler, R. Theorie der Rechtswissenschaft. Halle, 1911. p. 36. Apud Lamego, J. “A Metafísica dos Costumes: a apresentação sistemática da filosofia prática kantiana”. In: Kant, I. A Metafísica dos Costumes. Porto. Calouste Gulbenkian. 2005. p. XVIII.

Page 30: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

30

sem exceção, à conclusão de que esta derivação não é possível. Desde a Ética da

Vontade Pura de Hermann Cohen há um amplo consenso de que a filosofia jurídica de

Kant, como ela é estabelecida na Metafísica dos Costumes, não está em concordância

com os requisitos do criticismo filosófico, a saber, com a certeza de cada proposição

através de uma rigorosa dedução a partir das condições de possibilidade da atividade

racional humana em geral e, aqui, da razão prática em particular27

Do diagnóstico sobre o suposto fracasso da filosofia jurídica de Kant surge o

esforço neokantiano de “dar prosseguimento” ao projeto crítico formulando uma

filosofia jurídica a partir dos “pressupostos transcendentais” da Crítica da Razão Pura –

trata-se, por exemplo, do projeto da escola de Marburg, com Cohen, Nartop, Stammler,

e da escola de Heidelberg, com Lask, Ernst, Rickert, Radbruch.28

Os problemas gerais da interpretação da escola positivista neokantiana são

inúmeros e já fartamente discutidos na história da Kant-Forschung sob as mais diversas

perspectivas interpretativas29. No que diz respeito à interpretação da filosofia moral

kantiana de modo geral e da Metafísica dos Costumes mais especificamente, o erro

central do neokantismo – a despeito das diferenças internas ao movimento – foi ter

desconsiderado a etapa sistemática ocupada pela filosofia jurídica de Kant e o valor

mesmo do estágio propedêutico em que têm lugar os escritos de fundamentação. Da

mesma maneira pela qual, como veremos na segunda parte da dissertação, a física

newtoniana caracteriza-se, na realidade, como uma metafísica aplicada da natureza e

não como o estágio primitivo do questionamento crítico-transcendental, assim também

o direito, ao invés de “base factual” da interrogação transcendental em filosofia moral, é

um momento sistemático posterior à etapa inicial, uma disciplina prática à qual devem

ser aplicadas as proposições morais fundamentais “buscadas”, “fixadas” e deduzidas na

etapa de fundamentação; para esta última, ao contrário do que creem os positivistas

neokantianos, não existe nenhum “factum” a não ser a própria racionalidade finita do

agente moral e sua liberdade – trata-se, como veremos na terceira parte da

dissertação, do fato antropológico fundamental que instaura a finitude do agente moral e

lhe desvela a urgência de um princípio moral absolutamente vinculante. Desta urgência

27 Ritter, C. Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen .Op. cit. pp. 15-16. 28 idem. pp 17-18. 29 Cf., por exemplo, Brandt, R. The Table of Judgments: Critique of Pure Reason A 67-76; B 92-101. Atascadero: Ridgeview Publishing Company, 1995. pp. 111ss. Heimsoeth, H. “Metaphysische Motive in der Ausbildung des kritischen Idealismus”. In: Kant-Studien 29, 1924. Lebrun. G. Kant e o Fim da Metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 19ss. Oberer, H. “Zur Frühgeschichte der Kantischen Rechtslehre”. In: Kant-Studien 64, 1973.

Page 31: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

31

surge o princípio de autonomia da natureza racional em uma comunidade com outros

seres racionais, e que para ser especificada em uma autonomia jurídica exige a

intromissão de certos elementos materiais e empíricos que ultrapassam o estrito

formalismo exigido pelo neokantismo.

Neste sentido, é interessante notar que também Christian Ritter identifica no

elemento empírico presente na Doutrina do Direito uma marca significativa de seu

estatuto pré-crítico, aproximando sua análise daquela do cientificismo neokantiano.

Ritter argumenta que o direito da humanidade, introduzido como um a priori material

“antropológico” na filosofia jurídica de Kant, denunciaria o desvio em relação ao

“fundamento formal” de que dependeria a filosofia moral crítica:

Demonstra-se (...) que o direito da humanidade, como um fundamento material, fornece

as bases do pensamento – segundo sua intenção, formal – jurídico de Kant. Todo direito

é legitimado e limitado através não apenas de um elemento formal, lógico-jurídico, mas

também do elemento da humanidade material e jurídico-estruturante - que, de resto,

permanece escondido30.

Embora identifique esta intromissão empírica ainda na virada da década de 1760

para a de 1770, Ritter expande sua influência para a própria Doutrina do Direito de

1797, ressaltando como a filosofia jurídica kantiana liga-se, com esse “conceito

fundamental sistemático” de toda a obra, à tradição “metafísica” de um direito

secularizado porém de matriz teológica31. Esse inconveniente adito empírico, portanto,

trai o necessário formalismo da moral de Kant e remete sua Doutrina do Direito à

tradição jusnaturalista, reforçando ainda mais o caráter “pré-crítico” da Metafísica dos

Costumes:

O direito natural racional de Kant repousa sub-repticiamente em proposições materiais

metafisicamente fundadas sobre a humanidade do homem no direito. Kant desenvolve

as bases sistemáticas para uma metafísica jurídica no ‘direito da humanidade’. Essas

bases, contudo, não são por ele expandidas em um sistema32

30 Ritter, C. Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen. Op. cit.. p. 261. Cf. Kersting, Wohlgeordnete Freiheit. Op. cit. pp. 159-60. n 197. 31 Ritter, C. Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen. Op. cit. pp. 323-325. 32 Idem. p. 340.

Page 32: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

32

Além de prender-se à ilusória exigência neokantiana de “cientificidade” da

filosofia jurídica, Ritter, assim como os demais comentadores que discutiremos abaixo,

desconsidera os níveis de pureza da filosofia prática kantiana e não consegue notar

como uma Metafísica dos Costumes, concebida como uma metafísica aplicada da

moral, deve satisfazer a necessidade sistemática de ultrapassar o formalismo da etapa de

fundamentação e acolher elementos empíricos em seu cerne conceitual. O “direito da

humanidade”, ao lado dos demais elementos empíricos presentes na Doutrina do

Direito (e na Doutrina da Virtude), atesta a presença necessária e sistematicamente

prevista de um “a priori material” em uma metafísica kantiana. Em outras palavras,

Ritter “é cego, por um lado, à genuína problemática da fundação da filosofia prática e,

por outro, à mudança de base incluída por Kant na fundação do direito e da ética”33. A

Metafísica dos Costumes, a exemplo da Metafísica da Natureza, deve ser analisada em

conformidade com seu lugar tópico no interior da arquitetônica da razão prática, a saber,

como uma moral aplicada ao homem, retirando sua substância normativa da etapa de

fundamentação que estipula as condições para uma ação moral em geral.

Com esse último ponto chegamos de modo definitivo aos temas da segunda e

terceira partes da dissertação. Realizada essa tarefa “propedêutica” de refutação das

teses acerca de supostos traços pré-críticos na Metafísica dos Costumes e, a fortiori, de

uma moral pré-crítica no interior do período crítico, a segunda parte da dissertação

buscará rebater as acusações de que, embora haja algo como uma filosofia prática

efetivamente condizente com os padrões críticos, a Metafísica dos Costumes de 1797

representaria, ela sim, uma espécie de deslize dogmático de Kant, ou, na melhor das

hipóteses, um desordenado ajuste de contas sistemático de sua parte. Por acolherem

elementos empíricos, a Doutrina do Direito e a Doutrina da Virtude seriam ou bem

recaídas de Kant em relação à démarche crítico-transcendental em filosofia moral e a

uma concepção legítima de “metafísica”, ou, na melhor das hipóteses, realizariam de

modo precário e mal-acabado algo sub-repticiamente presente como condição de

possibilidade de qualquer filosofia prática consequente, a saber, partir inevitavelmente

33 Kersting, W. Wohlgeordnete Freiheit. Immanuel Kants Rechts- und Staatsphilosophie. Op. cit. p. 159. n. 197. Busch também critica Ritter, afirmando que o “a priori material” supostamente antevisto no recurso ao direito da humanidade é, na realidade, uma base normativa da ação jurídica decorrente da nova concepção crítica de liberdade (desenvolvida a partir de 1772) como exigência de não-contradição nas ações de um ser racional livre, e, enquanto tal, algo próximo do valor absoluto da humanidade como índice restritivo das ações afirmado no período crítico. Em suma, ao invés de um elemento empírico inadvertido na base mesma da normatividade jurídica, trata-se de uma conseqüência da nova concepção “formal” de liberdade que fundará a Metafísica dos Costumes. Busch, W. Die Entstehung der kritischen Rechtsphilosophie Kants. Op. cit.. p. 80.

Page 33: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

33

de elementos empíricos, a despeito das intenções ou declarações explícitas do filósofo

que os rejeita. Trocando em miúdos, a Metafísica dos Costumes seria o exemplo

perfeito para atestar os problemas enfrentados por Kant ao abordar questões de

aplicação em sua filosofia prática.

Um significativo número de comentadores combate as pretensões sistemáticas

da Metafísica dos Costumes denunciando um suposto descompasso entre o grau de

pureza e empiricidade presente na obra e aquele prometido por Kant – em outras

palavras, a precária classificação da Metafísica dos Costumes no interior da

arquitetônica da razão prática colocaria em risco o caráter sistemático da obra ou seria

motivo suficiente para desqualificá-la por completo. As inconsistências sentidas seriam,

ademais, uma justificativa para, segundo esses intérpretes, relegar a um segundo plano o

projeto metafísico prático de Kant e, por conseguinte, as exigências de sistematicidade

internas à obra: a distinção entre direito, virtude, Crítica da Razão Prática,

Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Metafísica dos Costumes, etc., é tragada

num mesmo torvelinho.

Lewis White Beck, em seu estudo de referência sobre a Crítica da Razão

Prática, discute o significado profundo de uma “metafísica” dos costumes no interior do

quadro aberto pela Dissertação Inaugural de 1770. Segundo ele, a distinção feita nesta

obra entre um mundo inteligível e um mundo sensível e a caracterização da metafísica

como conhecimento puro que lida com conceitos dados “pelo intelecto mesmo”, forçam

a conclusão de que a “Metafísica dos Costumes devia ter sua base em um platonismo de

um mundo não-fenomênico” 34. Avaliando o modo como Kant concebia sua Metafísica

dos Costumes no período da Crítica da Razão Pura, Beck sugere que aquela ainda

deveria manter-se presa a um questionamento prático-metafísico acerca de um mundo

inteligível no qual as leis da liberdade encontrariam uma sede suprassensível de matriz

“platônica”35 – os temas par excellence de uma suposta Metafísica dos Costumes

“crítica” seriam tanto os objetos da metaphysica specialis “reabilitados” sob uma

perspectiva prática, quanto a origem “pura” das leis morais em um mundo inteligível

apartado de todo o empírico.

Sob a influência desse quadro interpretativo, Beck argumenta que Kant não

conseguiu distinguir a contento a parte pura da parte aplicada de sua ética, e, assim,

34 Beck, L.W. A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Chicago. Chicago University Press. 1960. cit. p. 7. 35 Beck, L.W. A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Op. cit. pp. 8-9.

Page 34: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

34

“[distinguir] a metafísica da crítica, ou ainda do sistema”36. A tentativa de Kant de

formular a Metafísica dos Costumes de 1797 como um sistema de deveres como deveres

humanos, ou seja, que acolhe em seu interior um mínimo empírico sobre a natureza do

homem, incorre em uma contradictio in adjecto que descaracteriza por completo a

definição kantiana de metafísica como ciência pura. Como conseqüência direta disso, ao

invés de ser uma exposição sistemática da filosofia moral naquilo que ela tem de

independente da sensibilidade - o que, segundo Beck, se coadunaria melhor com a

definição de “metafísica” -, a Metafísica dos Costumes se torna um contraditório

sistema da filosofia prática exposto em conjunto com fatos empíricos extraídos da

natureza humana específica. De acordo com Beck, como resultado,

a tênue linha que separa crítica e sistema é borrada, se não rompida. (...). A única

Metafísica dos Costumes que Kant escreveu de fato foi a Crítica da Razão Prática, pois

somente ela é ‘um sistema de conhecimento a priori a partir de meros conceitos’ – se,

de fato, ela o for37.

A Metafísica dos Costumes - assim como a Metafísica da Natureza prevista na

Crítica da Razão Pura - seria, na realidade, uma disciplina excedente da filosofia

kantiana, um arroubo caprichoso de um racionalista ainda sonolento após o súbito

despertar de uma longa letargia dogmática.

As duas metafísicas e sistemas foram ideais continuamente renunciados, e, após as

Críticas, qualquer metafísica ulterior, concebida de forma estrita, teria sido supérflua38

Outro comentador que defende uma interpretação semelhante à de Beck é H.J.

Paton. Segundo ele, haveria uma confusão entre a ética pura e a ética aplicada em Kant

e a conseqüência disso seria a impossibilidade de definir a diferença específica de uma

Metafísica dos Costumes relativamente à etapa crítica precedente:

36 Beck, L.W. A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason .Op. cit. p. 10 n. 21. 37 Idem. Ib. p. 54. Para uma crítica direta à divisão da filosofia prática de Kant proposta por Beck, cf. Terra, R. “Sobre a Arquitetônica da Razão Prática”. In: Passagens. Estudos sobre a filosofia de Kant. Rio de Janeiro. Editora UFRJ. 2003. pp. 69-70. Para uma proposta alternativa e que não vê nenhuma inconsistência nas declarações de Kant – como, de resto, é nossa opinião -, cf. Louden, R. Kant’s Impure Ethics. From Rational Beings to Human Beings. Oxford. Oxford University Press. 2000. pp. 10-16. 38 Beck, L.W. Op. cit. p. 54.

Page 35: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

35

Kant comumente considera suas duas grandes Críticas como ou propedêutica a, ou

partes da metafísica correspondente. Nenhuma dessas visões é satisfatória, pois se nós

supusermos que metafísica é um conhecimento a priori, há então pouco ou nada desse

tipo de conhecimento fora das próprias Críticas39

Segundo Paton, tomando-se por base a Fundamentação da Metafísica dos

Costumes e os títulos de suas duas últimas seções, a Metafísica dos Costumes seria a

disciplina que aborda as “diferentes formulações do imperativo categórico”, e uma

Crítica da Razão Prática, a investigação sobre a “origem do mesmo”40. Contudo, a

explícita menção de Kant à necessidade de introduzir elementos empíricos em uma

Metafísica dos Costumes contradiz este quadro: ao invés de discutir as fórmulas do

princípio supremo da moralidade, o “verdadeiro conhecimento a priori” da filosofia

moral, a obra de 1797 torna-se um arremedo de ética aplicada, que temerariamente

prescinde de um estudo prévio sobre a “psicologia geral como conhecimento da

natureza humana” e confunde-se com uma antropologia mal definida e precariamente

executada. Para remediar essa inconsistência, Paton busca recuperar o verdadeiro

espírito da Metafísica dos Costumes “pura e a priori”, declarando que “no presente

contexto, parece-me melhor considerar uma Crítica da Razão Prática e uma Metafísica

dos Costumes como sendo a mesma coisa”41. Ou seja, nesta reconstrução da

“verdadeira” filosofia moral kantiana, crítica e “sistema da metafísica prática”

confundem-se.

Seria mesmo assim? Contra este juízo desanimador sobre a possibilidade

sistemática de uma Metafísica dos Costumes, mostraremos na segunda parte da

dissertação que aquilo que Kant tem em mente em sua metafísica moral não é um

inadvertido prolongamento dogmático ou apêndice supostamente crítico da metaphysica

specialis, mais especificamente algo como uma psicologia empírica ou racional, ou um

direito natural de matriz teológica. Pelo contrário, assim como uma Metafísica da

Natureza, mais especificamente uma metafísica da substância corporal, a Metafísica dos

Costumes seria uma metafísica aplicada <metaphysica applicata> que surge dos

escombros da metafísica dogmática e carrega em si a pretensão racional e científica da

antiga e finada disciplina, cujos objetos agora se dirigem, post mortem, a um uso prático

da razão. Da explícita referência ao “trânsito para o suprassensível”, a nova disciplina

39 Paton, H.J. The Categorical Imperative. Philadelphia. University of Pennsylvania Press. 1971. pp. 31. 40 Idem. Ib. 41 Idem. Ib.

Page 36: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

36

metafísica kantiana passa – ao menos de forma explícita – a um registro mais modesto:

aplicar os conhecimentos transcendentais, ou obtidos através da pura autoatividade da

razão em seus usos prático e teórico, a um elemento empírico mínimo constitutivo do

âmbito da experiência correspondente. Nessa medida, a Metafísica da Natureza e a

Metafísica dos Costumes caracterizam-se como disciplinas a priori não puras, ou ainda,

não “absolutamente puras” <ganz reine> (Prolegomena Ak IV: 294-295. pp. 65-66).

Seu objetivo profundo seria “realizar” as proposições transcendentais em sua referência

àquilo de que estas não podem abrir mão: a experiência possível

Nesse sentido, cumpre afastar desde já um frequente mal-entendido, que será

rebatido na terceira parte da dissertação: por não prescindir da “pureza irrestrita” que

caracteriza a lei moral que tem por base, a Metafísica dos Costumes não pode ser

confundida com uma antropologia, mesmo, é bem verdade, sendo considerada como

uma “moral aplicada ao homem”. Trata-se do erro cometido por Rüdiger Bittner e

Ludwig Siep, que tomam por ponto de partida de sua análise as dificuldades em

conciliar as diferentes caracterizações de uma Metafísica dos Costumes fornecidas ao

longo da obra crítica de Kant, sobretudo comparando a definição dada na

Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a saber, que uma metafísica dos costumes

deveria ser uma “moral pura” depurada de “elementos empíricos” (Gr Ak IV 388-9. p.

104), com as observações feitas na introdução à própria Metafísica dos Costumes,

segundo as quais era preciso nesta obra considerar “a natureza peculiar do homem,

cognoscível apenas pela experiência” (MS Ak VI: 217. p. 24).

Para Ludwig Siep, quem leva a sério as exigências de pureza de uma Metafísica

dos Costumes formuladas na Fundamentação “entra em dificuldades com a própria

introdução à Metafísica dos Costumes de Kant”42, já que na Doutrina da Virtude, para

mencionar um único exemplo, a definição mesma de virtude, a saber, “a capacidade e o

propósito deliberado de opor resistência a um adversário forte, mas injusto (...), a

fortaleza (...) em relação ao adversário da disposição moral em nós” (MS Ak VI: 380. p.

283), contém claras referências a elementos empíricos aparentemente rejeitados por

Kant em sua definição de Metafísica dos Costumes como ciência da “ideia de uma

vontade pura” exposta na Fundamentação:

42 Siep, Ludwig. “Wozu Metaphysik der Sitten?” In: Höffe, O. (org). Grundlegung zur Metaphysik der Sitten: ein kooperativer Kommentar. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1989. p. 36.

Page 37: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

37

É duvidoso se uma Doutrina da Virtude pode pertencer a tal metafísica [conforme é

formulada na Fundamentação], Doutrina essa que já em seus ‘primeiros princípios

metafísicos’ patentemente contém conceitos antropológicos, tais como inclinação,

obstáculo ao dever, felicidade, etc.43.

Siep conclui que Kant “reduz as exigências de pureza da Fundamentação na

Metafísica dos Costumes tardia”44 ao exigir, na introdução a esta última, princípios de

aplicação das proposições morais à natureza humana. Sobre tal aplicação

“intrametafísica” <innermetaphysische>, prossegue Siep, não há informação alguma na

Fundamentação. Nesta, segundo ele, a única referência a uma possível “sistemática da

filosofia moral fundada numa perspectiva metafísica pura” parece ser a distinção entre

dever perfeito e dever imperfeito, isto é, as duas formas da obrigação: “deveres perfeitos

são aqueles cuja negação não pode ser pensada sem contradição, e deveres imperfeitos,

aqueles cuja negação não pode ser desejada sem contradição”45.

De acordo com a interpretação de Siep, mesmo esta distinção “puramente

metafísica” não deve ser aceita. Ora, os exemplos de Kant, sobretudo aqueles de deveres

imperfeitos, não dizem respeito a uma “vontade pura” - sob a ideia da possibilidade

desta não é possível compreender, por exemplo, porque uma máxima que desconsidere

o desenvolvimento de disposições intelectuais e corporais não pode ser concebida sem

contradição. Para Siep, em resumo, na Fundamentação não é possível identificar aquilo

que corresponderia à rigorosa metafísica prometida por Kant, e a própria Metafísica dos

Costumes publicada trai a tão-prometida “pureza” ligada a esta disciplina. A alternativa

proposta por Siep consiste basicamente em que se admita de forma definitiva e

inequívoca a inevitabilidade de intromissão da empiria nos quadros de uma filosofia

moral – com isso, contudo, renuncia-se a uma “posição metafísica específica para a

qual, de fato, não há alternativa” que não a de um “fiat voluntas rationalis que apenas

pode ser compreendido como a secularização de uma moral religiosa”46. Ou seja, é

desabilitada a existência mesma de uma metafísica dos costumes no interior da

arquitetônica da razão prática. Aparentemente, restaria na filosofia prática apenas algo

como uma antropologia moral, prática, pragmática, ou alguma outra definição que se

lhe queira dar.

43 Idem. p. 37. 44 Idem. p. 38. 45 Idem. Ib. 46 Idem. p. 44.

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38

Rüdiger Bittner aponta também a impossibilidade sistemática de uma Metafísica

dos Costumes segundo as caracterizações desta fornecidas na Fundamentação da

Metafísica dos Costumes. Bittner interpreta a “pureza” exigida na Metafísica dos

Costumes não como uma pureza de “conteúdo”, mas antes relativamente à maneira

como suas proposições são fundadas: uma determinada doutrina é pura quando todas as

proposições sobre os quais ela repousa são proposições a priori47. Ademais, Bittner

identifica uma segunda condição, a saber, que estas proposições a priori tenham sua

sede <Sitz> e origem <Ursprung> na razão; com isso, Kant queria ressaltar que “os

conceitos morais são válidos em virtude da razão. Seres racionais, portanto, (...)

estariam sujeitos às exigências de conceitos morais pelo fato e unicamente pelo fato de

serem racionais”48. Em suma,

de acordo com a primeira condição, estão proibidas em uma Metafísica dos Costumes

todas aquelas proposições que não são discernidas através da mera razão, portanto,

todas as proposições empíricas. De acordo com a segunda condição, estão proibidas

todas as proposições nas quais os homens não são descritos como seres racionais

práticos (ou como algo que não esteja incluído nesta última noção)49.

Segundo Bittner, embora Kant não seja claro a respeito, essas condições seriam

distintas. Ora, uma teoria moral poderia tomar o conceito de homem como ser racional

e, não obstante, estar fundada em proposições empíricas, assim como poderia haver uma

teoria moral pura que parte de outro aspecto do homem que não o de sua

racionalidade50. Com efeito, Bittner vai mais longe e afirma que ambas as condições

não apenas são distintas como também inconciliáveis. Segundo ele, não é possível

conhecer a razão de um ser senão mediante recurso à experiência, de modo que é

possível preencher a segunda condição, a de que a sede e a origem da teoria moral

residam na razão, mas não a primeira, a de que esta teoria não possua proposições

empíricas – aquele que pretende fundar conceitos morais em proposições a priori, por

exemplo na vontade divina, não tem outra solução senão desprezar o conceito de razão,

47 Bittner, R. “Das Unternehmen einer Grundlegung zur Metaphysik der Sitten”. In: Höffe, O. (org). Grundlegung zur Metaphysik der Sitten: ein kooperativer Kommentar. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1989. p. 16-17. 48 Idem. p. 18. 49 Idem. p. 19. 50 Como exemplo da primeira, Bittner cita uma filosofia moral popular, e da segunda, a teoria de, por exemplo, Crusius, que afirma que estamos sujeitos a uma obrigação moral pois somos criados por Deus e, assim, nossos deveres seriam derivados deste intelecto puro (Idem. p. 20).

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39

conhecido unicamente através da razão humana dada na experiência51. Bittner conclui

que a primeira condição, a de “pureza estrita”, deve ser desprezada e conservada apenas

a segunda, a de derivação a partir da razão.

Como o próprio Bittner reconhece, a solução proposta acima é explicitamente

rejeitada por Kant: trata-se da Philosophia practica universalis da escola de Wolff. Esta

filosofia prática universal wolffiana logra derivar prescrições morais a partir do conceito

de um agente racional ao mesmo tempo em que inadvertidamente acolhe proposições

empíricas por partir do conceito geral de “querer” <Wollen> humano e não do conceito

de uma “vontade pura” em geral (Gr Ak IV: 390-1. pp. 105-106). Ora, Kant nega a via

wolffiana, argumentando tratar-se de uma verdadeira perversão a mescla entre

elementos puros e empíricos em uma Metafísica dos Costumes, a filosofia moral pura

segundo a “primeira condição” descrita. Bittner não aceita a retificação kantiana: para

ele, Kant “erra” ao tentar partir de uma vontade pura, e, mesmo a contragosto, realiza

em sua Metafísica dos Costumes algo semelhante a Wolff, a saber, toma por base um

“querer racional em geral” <vernünftiges Wollen überhaupt> mesclado a dados

empíricos. Em suma, Kant falha e erra ao não localizar a lei moral “nem no céu, nem na

terra” (Gr Ak IV: 425. p. 133): “Não no céu, de fato, mas antes na Terra mora a

razão”52.

Fixar a residência da razão na Terra não implica, como querem Siep e Bittner,

negar a exigência de pureza ligada à Metafísica dos Costumes. Como veremos na

terceira parte da dissertação, o momento que denominamos transcendental na

disciplina metafísica aplicada da moral é composto por aqueles conceitos que decorrem

do “conceito universal de um ser racional em geral” (Gr Ak IV: 411-412. p. 123).

Embora, com efeito, apenas conhecemos a razão humana, disso não se conclui que nos

seja vedado ou mesmo que seja possível deixar de formar, por contraste

<Dagegenhaltung – Cf. KU Ak V: 408. p. 249>, o conceito de uma vontade racional

perfeita e pura: vontade divina. Servindo como arquétipo e imagem constrastiva, esse

ideal da perfeição moral torna patente a peculiaridade de uma vontade racional finita em

geral: ser imperfeita e, portanto, não determinada tão-somente pela lei moral. Deste fato

antropológico fundamental, que, na verdade, não fornece conteúdo positivo algum sobre

o que seja o homem ou mesmo sobre o mecanismo específico de suas faculdades

práticas, surge a força imperativa da lei moral, a necessitação <Nötigung> que sentimos

51 Idem. p. 20. 52 Bitter, R. Op. cit. p. 27.

Page 40: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

40

e o dever a que estamos sujeitos. O conceito de autonomia se mostra como o princípio

supremo da moral e imperativo categórico para um ser racional e finito, como, por

exemplo, o homem.

No entanto, a isso não se reduzem todas as circunstâncias práticas em que o

homem está inevitavelmente situado. Nos momentos metafísico-específicos da

Metafísica dos Costumes, o direito e a ética, são considerados elementos empíricos

mínimos que definem a moral humana em sua seus traços elementares: como um ser

carente que visa fins com seu arbítrio, o homem está situado em meio a outros homens

em uma superfície terrestre finita na qual deve exercer suas ações, buscar objetos e,

sobretudo, assegurar a liberdade externa que o habilita para tanto; ademais, como um

ser natural que reconhece a força do dever em seu embate com os estímulos da

sensibilidade, o homem tem de fazer valer e concretizar sua liberdade interna no mundo,

acolhendo por fim das suas ações aqueles fins obrigatórios estipulados pela razão pura e

não pela sua natureza sensível. Neste momento surgem as características morais

fundamentais do ser humano, sem que, no entanto, haja um registro estritamente

antropológico. No momento metafísico do direito e da ética, o princípio da autonomia,

base normativa para qualquer ser racional, aparece como exigência e padrão de medida

para o homem, O ideal abstrato e meramente “transcendental” de um reino dos fins

composto por seres racionais, detentores de dignidade e legisladores universais, deve ser

realizado e concretizado nas esferas efetivas em que a ação humana tem lugar: no

direito e na ética. Apenas neste momento, em que surgem uma autonomia jurídica e

uma autonomia ética concretizadas na comunidade cosmopolita de todo o gênero

humana, é possível haver liberdade externa e liberdade interna para o homem como ser

moral no mundo.

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41

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42

I

METAFÍSICA DOS COSTUMES: A GÊNESE DE UMA

IDEIA As ciências práticas determinam o valor das teóricas; o que não tem uso é inútil. Elas são, na intenção, as primeiras: os fins precedem os meios. Na execução, porém, as primeiras são as teóricas (Rx 6612. Ak XIX: 110. 1769-1770? 1764-1768??).

Refazer o sinuoso percurso que une as primeiras e titubeantes formulações de

Kant na década de 60 sobre seus planos de escrever uma Metafísica dos Costumes à

forma final assumida pela obra, publicada apenas em 1797, não apenas conduz ao

retraçado de todo o desenvolvimento do pensamento moral kantiano, mas também

auxilia a compreender a maneira pela qual Kant se relacionava com seus escritos e, de

forma geral, projetos filosóficos. Idas e vindas, avanços e retrocessos, acréscimos e

supressões: a dinâmica que anima o processo kantiano de escrita, sedimentação e

consolidação de ideias encontra na Metafísica dos Costumes um exemplo modelar. Essa

impressão geral se torna mais aguda quando se atenta para a importância que Kant,

desde sempre, conferiu à obra. Lemos na Introdução à Metafísica dos Costumes:

[S]e um sistema de conhecimentos a priori mediante meros conceitos se denomina

metafísica, uma filosofia prática, que não tem por objeto a natureza mas a liberdade do

arbítrio, pressuporá e carecerá <bedürfen> de uma Metafísica dos Costumes, isto é, ter

uma tal metafísica é em si mesmo um dever e cada homem tem-na também em si

próprio, ainda que, via de regra, de modo obscuro (MS Ak VI: 216. p. 23. Grifos

nossos).

Sentida como um “dever” ou uma “carência” e “necessidade” <Bedürfnis>, a

redação da Metafísica dos Costumes, a transposição em forma filosófica dessa

obscuridade ínsita à razão humana comum, impunha-se a Kant como uma obrigação de

ofício da qual não podia furtar-se – e não apenas por motivos sistemáticos, imagina-se,

mas também eminentemente “morais”, basta, para tanto, lembrar-se do primado da

razão prática insinuado na epígrafe a esse capítulo. Contudo, o que na “intenção” viera

primeiro, na “execução” foi legado para um futuro sempre mais longínquo e incerto ao

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43

longo do desenvolvimento do pensamento de Kant, constituindo-se como um verdadeiro

– e, por vezes, angustiante – périplo filosófico.

Dessa forma, para caracterizar mais adequadamente a posição da Metafísica dos

Costumes no interior do projeto filosófico de Kant talvez seja necessária uma

retificação: mais ainda do que um dever, a obra foi, desde o início, uma ideia no sentido

kantiano crítico do termo: algo a que o filósofo deveria se aproximar sem cessar, mas a

cuja realização completa e acabada, entretanto, ele talvez nunca tivesse genuinamente

aspirado. As três décadas que afastam a redação final de seus esboços iniciais justificam

– obliquamente, por certo – o estranho e denunciado inacabamento sentido ao ler-se a

obra, logo uma “obra kantiana”.

Tentaremos nessa parte da dissertação refazer a gênese da Metafísica dos

Costumes desde os seus primórdios, no período pré-crítico, até a sua forma crítica

“acabada”, em 1797, movidos não apenas por um interesse puramente histórico-

filológico, mas também – e sobretudo – temático-conceitual. O objetivo, assim, consiste

não tanto em reconstituir narrativamente essa distendida odisseia kantiana (em que,

como veremos, figuras mitológicas são não raro evocadas pelo próprio Kant), quanto,

na realidade, em compreender a peculiaridade daquela que se pode denominar a marca

constitutiva da Metafísica dos Costumes de 1797 no interior da arquitetônica da razão

prática e que, a despeito da pertinência de seu lugar sistemático, tanto inquietou os

comentadores e a recepção, imediata e tardia, da obra: o seu caráter a priori não puro de

uma moral aplicada, e, assim, como um momento sistemático posterior à etapa de

fundamentação; em outras palavras, a sua ambição de formular um sistema de deveres

enquanto deveres humanos e que, ao acolher a “natureza humana” em seus marcos

conceituais, ultrapassa o inegável e, segundo muitos, desejável formalismo presente nos

escritos críticos de fundamentação. O tema da pureza da moral e sua relação com o

empírico, como veremos, faz-se presente desde os esboços iniciais da filosofia moral

kantiana, e, ao lado de uma miríade de outras questões – evidentemente desconsideradas

nesse trabalho –, articulam e moldam a evolução do pensamento kantiano nesse terreno,

bem como o ligam à tradição que o precedeu. Para compreender a forma final

sistemática da moral kantiana, consideradas aqui as presenças de uma Doutrina do

Direito e de uma Doutrina da Virtude como partes constituintes da Metafísica dos

Costumes, faz-se imprescindível compreender de antemão a relação que Kant

Page 44: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

44

estabeleceu entre pureza e empiria em sua filosofia prática53. Somente sob essa

perspectiva torna-se claro o projeto kantiano de uma metafísica do direito e de uma

metafísica da virtude.

Nesse sentido, retraçar a gênese da Metafísica dos Costumes cobra nova

utilidade. Como já discutido na introdução, a obra foi um dos alvos preferenciais das

críticas - amiúde pesadas - a Kant. A história de recepção da obra mostra uma

verdadeira sucessão de fustigações: as acusações vão desde a patente presença de sinais

da lamentável senilidade de um grande intelecto, até de “traição” ao espírito crítico-

transcendental inaugurado pela Crítica da Razão Pura. As críticas mais significativas e

relevantes, entretanto, giram em torno seja da relação entre etapa crítica e etapa

doutrinal, seja do modo de tratamento dado por Kant à tradição da qual foi herdeiro e

contra a qual elaborou sua filosofia prática “crítica”. Para estes críticos, a Metafísica dos

Costumes representaria, de modo geral, um indevido (e explícito?) retorno aos autores

dogmáticos pré-críticos e às influências iniciais do pensamento moral kantiano: no que

diz respeito à Doutrina do Direito, “uma recaída no jusnaturalismo de Wolff,

Baumgarten e Achenwall”, e à Doutrina da Virtude, a consubstanciação de “uma ética

de bens, fins e virtudes, refratária à exigência formulada por Kant na Fundamentação

da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática de que apenas a forma

legisladora das máximas constitui o móbil da vontade”54. Dessa maneira, reconstruir o

embate criativo de Kant com os temas recebidos pela tradição na montagem de sua

Metafísica dos Costumes, sobretudo no interior de seu plano mais amplo de “purificar”

o âmbito de fundamentação da moral, auxilia a iluminar e reavaliar de maneira mais

adequada as críticas acerca de uma moral “pré-crítica” na filosofia prática pós-Crítica

da Razão Pura ou, de forma mais específica, na própria Metafísica dos Costumes e sua 53 Para uma ampla análise das exigências de pureza no interior do desenvolvimento do pensamento kantiano em filosofia de modo geral, remetemos a Leonel dos Santos. Santos, L. R. Metáforas da Razão ou Economia poética do pensar kantiano. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1990. pp. 131-249. Segundo o comentador, a ocorrência progressivamente mais frequente do adjetivo “puro” nos escritos de Kant a partir da década de 1770 “permite não só levar-nos a reconhecer, mesmo de um ponto de vista linguístico, uma decisiva ruptura, da parte de Kant, relativamente às filosofias do seu tempo (fossem elas a da escola wolffiana, a popular, a da Aufklãrung ou a do sentimento), como ainda, caso se quisesse adotar para o efeito o mesmo critério linguístico, a constatar, para além do corte fundamental entre as obras kantianas do período crítico e as do período pré-crítico, uma evolução da perspectiva quanto ao método, ao modo, ao sentido e objetivos da prática filosófica” (Santos, L. R. Metáforas da Razão ou Economia poética do pensar kantiano. Op. cit. p. 131). Completemos: não só da prática filosófica, mas também da filosofia prática. Conforme será argumentado, é a progressiva purificação da moral que marca o desenvolvimento do pensamento kantiano também no terreno prático. Nesse sentido, o contraste com a Metafísica dos Costumes tardia torna-se ainda mais agudo e o esclarecimento acerca de seu lugar sistemático, imprescindível. 54 Lamego, J. “A Metafísica dos Costumes: a apresentação sistemática da filosofia prática kantiana”. In: Kant, I. A Metafísica dos Costumes. Porto: Calouste Gulbenkian, 2005. p. XIX

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45

suposta precária classificação no interior da arquitetônica da razão prática55. O

argumento central dessa dissertação é o de que esses críticos não atentam ao lugar

sistemático ocupado pela Metafísica dos Costumes, bem como desconsideram o valor

meramente propedêutico que detêm o formalismo e o purismo na filosofia moral

kantiana.

O intuito dessa primeira parte, portanto, é retraçar a gênese da exigência de

pureza da moral kantiana para, mais adiante, na terceira parte da dissertação, contrastá-

la com a solução recebida na Metafísica dos Costumes de 1797 a respeito do caráter a

priori não puro dessa moral aplicada, sempre, decerto, com o objetivo de fundo de

compreender de maneira mais adequada a “forma final”56 do sistema prático kantiano.

Nesse sentido, o transcurso da Metafísica dos Costumes será entremeado ao próprio

desenvolvimento da filosofia kantiana em seu todo, sem que com isso se perca o

propósito da análise exposto acima.

Quanto à estrutura dessa parte da dissertação, as menções à “sempre futura”

Metafísica dos Costumes, continuamente feitas seja em cartas, seja em obras publicadas,

serão entremeadas ao traçado daquela grande linha escolhida e que corta o

desenvolvimento do pensamento moral kantiano: o caráter a priori da moral. Nessa

medida, faremos uso da correspondência, das Reflexões e das lições de Kant

disponíveis, sobretudo no intervalo final do período pré-crítico. Cientes dos problemas

que envolvem esse material de fonte, sobretudo no diz respeito às Reflexionen57,

55 Não é preciso aqui mencionar que uma discussão completa a respeito das fontes kantianas no terreno prático está excluída do escopo do presente trabalho. Apenas nos interessa a maneira pela qual Kant recebe esses temas, bem como o modo como se posiciona contrariamente a eles na montagem de seu sistema. 56 O termo é de Allen Wood. “The Final Form of Kant’s Practical Philosophy”. In: Timmons, M (org). Kant’s Metaphysical of Morals. Interpretative Essays. Oxford. Oxford University Press. 2002. 57 São amplamente conhecidos e discutidos na Kant-Forschung os problemas de datação das Reflexões coligidas na Akademie Ausgabe por Adickes. Alguns dos critérios empregados, a saber, a tinta utilizada, a caligrafia, a condição do papel no qual está anotada a Reflexão, são, sem dúvida, duvidosos - apenas em poucos casos a datação do manuscrito é mais segura, como, por exemplo, quando há algo anotado em cartas que trazem uma data precisa (cf. introdução do próprio Adickes à sua compilação, Ak XIV: XXVIII-XXXV). Ademais, as Schriftphasen, ou seja, os intervalos de tempo selecionados para a classificação do material, compreendem, em muitos casos, um período extenso e, assim, aumentam a incerteza quanto à data precisa à qual pertence determinada Reflexão, diversas vezes classificada como possivelmente pertencente a mais de uma Schriftphase (cf. Ak XIV: XXXVI-XLIII). Sobre os problemas (e méritos, em comparação às tentativas anteriores de Erdmann, Haering e Reicke) do procedimento de Adickes, cf. Vleeschauwer, H.J. La Déduction Transcendentale dans l’Oeuvre de Kant. Tome I. New York & London: Garland Publishing, Inc, 1976. Reeimpressão de Antwerpen: De Sikkel, 1934. pp 43-49. Dado que o objetivo central de nossa dissertação não consiste em uma análise detida do desenvolvimento do pensamento de Kant no interior mesmo da década de 1770, de onde extraímos a vasta maioria das Reflexões utilizadas, não acreditamos que a indeterminação na datação do material utilizado comprometa os resultados obtidos.

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46

acreditamos, porém, que a modéstia do objetivo habilita a empreitada sem grandes

condicionamentos.

Dividiremos a história da composição da Metafísica dos Costumes em três

momentos distintos, discutidos nos três capítulos que compõem esta parte da

dissertação: 1) 1762-1770; 2) 1770-1781; e 3) 1781-1797.

No primeiro deles, iniciado com a redação de Investigação sobre a evidência dos

princípios da teologia natural e da moral, vemos um Kant ainda tateante em temas

morais: as influências britânicas, sobretudo a teoria do sentimento moral de Hutcheson,

contrastam com a herança racionalista da escola de Wolff. Em meio a um profícuo e

intenso debate com as escolas filosóficas de seu tempo através do qual identifica um

contágio entre conhecimento sensível e conhecimento intelectual que coloca em perigo

a metafísica como disciplina científica, Kant passa de uma filosofia moral marcada por

ressonâncias “antropologizantes” para um modelo que pode ser definido como

“propriamente kantiano”, nutrido pela constatação de que os conceitos centrais da

doutrina moral devem dizer respeito não ao mundo natural e à observação do

comportamento efetivo do homem em sociedade ou a considerações relativas à sua

natureza específica como ser humano, mas antes são fruto e reflexo de uma lógica

própria, ensejada pela sua localização em um “mundo moral” no qual a razão encontra

sua sede como poder prático – neste último momento, significativamente, surgem as

primeiras menções a uma metafísica dos costumes.

A “década silenciosa” de 1770, tema do segundo capítulo, mostra o esforço de

Kant em consumar o rompimento conceitual - ao menos relativo à base da moral - com

os britânicos e a escola de Wolff na concepção e formulação dos contornos da futura

Metafísica dos Costumes, agora no interior do plano mais amplo de uma Crítica da

Razão Pura. A partir do embate com esses autores, Kant inicia a formulação de uma

concepção própria e “crítica” do princípio supremo da moralidade: o princípio de

autonomia da vontade. Resultado do processo crítico de “purificação” ou

“autoisolamento da razão”, o princípio de autonomia traz a marca jurídica de origem,

advinda da influência central de Rousseau, de uma comunidade regida por uma vontade

geral onde os sujeitos particulares se harmonizam e a liberdade põe-se de acordo

consigo mesma. O princípio positivo e puro da moral, ausente nos britânicos com seu

recurso ao sentimento moral e nos racionalistas com o vazio de suas fórmulas

tautológicas, é encontrado na própria autoatividade de uma razão que se põe diante de

um tribunal da qual é, ela própria, a responsável. Trata-se, nesse período, das

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47

formulações embrionárias a respeito do sujeito racional como membro legislador de um

reino dos fins compartilhado com todos os demais seres detentores de razão, que

moldarão e culminarão na Metafísica dos Costumes de 1797.

No terceiro capítulo, por fim, continuaremos o relato das idas e vindas do projeto

de uma Metafísica dos Costumes, agora já interior do período crítico. Furtando-nos a

discutir neste momento os contornos da filosofia moral de Kant, serão apresentados os

empecilhos que atravancaram a redação definitiva da Metafísica dos Costumes,

atribuíveis tanto a problemas vividos por Kant com a política de censura imposta na

Prússia, quanto a dificuldades enfrentadas no acabamento da “empresa” crítica e

passagem à “empresa doutrinal” e às duas metafísicas “impuras” kantianas, da natureza

e dos costumes, com as quais nos ocuparemos nas partes seguintes da dissertação.

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1. 1762-1770 – DA NATUREZA HUMANA À PUREZA DA RAZÃO:

SÍSIFO E A LÚBRICA ROCHA METAFÍSICA

Se, de acordo com as observações de Swift, um poema ruim é meramente uma purificação do cérebro através da qual são extraídas muitas danosas lubricidades <Feuchtigkeiten> para alívio do poeta enfermo, por que com um escrito miseravelmente meditabundo não deve ocorrer o mesmo? Nesse caso, contudo, seria aconselhável indicar à natureza outro caminho de purificação <Weg der Reinigung> para que o mal seja fundamentalmente e com toda calma extirpado, sem, com isso, perturbar o bem-estar geral (Krankheiten Ak II: 271).

Nesse período inicial do desenvolvimento da filosofia moral kantiana surge pela

primeira vez o termo “Metafísica dos Costumes” cujos contornos, decerto, em pouco se

assemelham àqueles assumidos pela obra de 1797. Como veremos, em seus esboços

morais do período, Kant defende algo como uma compreensão “eclética” da filosofia

prática, adotando elementos dos sensualistas britânicos, Rousseau e da escola

wolffiana58. Essa postura filosófica não é mero acaso. Justamente durante esse período,

o ecletismo era considerado por Kant como verdadeiro guia metodológico em

investigações filosóficas, e seu lema: “devemos pegar o que é bom independentemente

de onde ele venha”59, quase que uma divisa para o desenvolvimento intelectual em

sentido amplo. Contudo, Kant gradualmente abandona ou ao menos atenua essa atitude

à medida que progride em suas próprias concepções sobre filosofia em geral e filosofia

moral em particular. Esse primeiro intervalo discutido é marcado pela passagem de uma

compreensão mista ou flagrantemente empírica dos primeiros princípios da filosofia

prática para um novo paradigma propriamente kantiano aprofundado no período

seguinte e que pode ser caracterizado como uma visão “purificada” da filosofia moral.

Esse projeto “purificador” abrange não apenas a moral, mas também a filosofia como

um todo e mais particularmente a metafísica – trata-se da medida profilática, enunciada

na Dissertação Inaugural, de separação dos elementos empíricos dos elementos puros

do conhecimento.

O primeiro subperíodo, que compreende os anos de 1762 a 1766, é marcado

sobretudo pela Investigação sobre a evidência dos princípios da teologia natural e da

58 Cumpre notar desde já que estamos interessados apenas no modo como Kant lia e interpretava esses autores na montagem de seu próprio sistema, e não “na genuína obra” dos mesmos que pode “emergir do desbotado retrato” kantiano, de que fala Dieter Henrich por ocasião da interpretação de Hutcheson por Kant. Henrich, D. “Kant and Hutcheson”. Op. cit. p. 32. 59 Log. Herder Ak XXIV: 4-5. Cf. Kuehn, M. Kant. A Biography. Cambridge: Cambridge University Press,. pp. 130-1.

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49

moral (Untersuchungen über die Deutlichkeit der Grundsätze der natürlichen Theologie

und der Moral) (1764), escrito em que Kant pela primeira vez aborda questões morais

de forma direta e detida. A discussão empreendida nesta obra e nas demais publicações

do período mostra um Kant vacilante quanto à sua filiação completa e irrestrita à escola

britânica sensualista, elogiada e apontada como uma alternativa à “frieza matemática”

de Wolff e seus seguidores. Surge a imagem de um “Shaftesbury alemão” com traços

racionalistas pouco confessos (1.1). O teor geral desses escritos sofre uma súbita e

radical inflexão no subperíodo seguinte, iniciado com os Sonhos de um visionário

explicados por sonhos da metafísica (Träume eines Geistersehers, erläutert durch

Träume der Metaphysik), publicados em 1766, e encerrado com a Dissertação

Inaugural, defendida em 1770. Os traços antropologizantes e marcadamente empiristas

gradualmente se atenuam, e o quadro de uma moral pura começa a ser desenhado no

interior de um projeto mais amplo de “purificação” da metafísica. Ao lado das primeiras

menções ao projeto de uma Metafísica dos Costumes, que datam explicitamente de

1768, Kant enceta, de forma ainda pouco consciente, o projeto de uma Crítica da Razão

Pura, que ocupará seus esforços na década de 70 mas cuja ideia diretiva se faz já

presente na Dissertação Inaugural (1.2).

1.1. 1762-1766 – Um Shaftesbury wolffiano?

A Investigação sobre a evidência dos princípios da teologia natural e da moral

é a primeira obra em que Kant aborda questões morais de maneira direta e explícita60.

Publicada apenas em 1764 mas redigida entre junho de 1761 e dezembro de 176261, a

obra, apesar do que sugere seu título, dedica à investigação sobre a evidência das

proposições morais uma parte significativamente menor do que aquelas voltadas à

60 As obras anteriores, embora abordem incidentalmente questões religiosas e até mesmo éticas e jurídicas, não nos interessam aqui. Cf. Ritter, C. Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen. Op. cit. pp. 40-43. Beck, L. W. A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Op. cit.. 1960. p. 5. Schmucker afirma que Kant defendia nessas obras iniciais uma concepção moral baseada na cosmogonia de Wolff e em sua concepção de liberdade (Op. cit. pp. 26-51). Já Paul Arthur Schilpp. (Kant’s Pre-Critical Ethics. Bristol. Thoemmes Press. 1998. Reedição de 1932) discute brevemente algumas dessas obras iniciais e, contra a tese de Menzer, defende que já nelas há um “otimismo” de Kant quanto à natureza humana e, apesar dos temas tratados (predominantemente ciência natural), um “vivo” interesse no homem (pp. 16-21). 61 A obra foi escrita por ocasião de um concurso organizado pela Academia de Berlim. A pergunta a ser respondida pelos participantes foi publicada em 23 de junho de 1761 e o prazo final imposto, perto do qual Kant enviou seu escrito, era 31 de dezembro de 1762. Cf. Kuehn, M. Kant. A Biography. Op. cit. p. 136.

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metafísica, à matemática e, de forma geral, ao método em filosofia, discutidas com o

objetivo de compreender os limites da “certeza” e “evidência” dos princípios envolvidos

na teologia natural e em metafísica.

Após empreender uma ampla crítica à aplicação do método matemático em

metafísica, o qual de forma equívoca conduz o filósofo a proceder sinteticamente,

construindo seu objeto, ao invés de realizar uma análise do dado para então chegar a

definições seguras62, Kant inicia a seção final de seu escrito com um desanimador

diagnóstico: os princípios da moral ainda carecem da evidência presente, por exemplo,

na teologia natural. Um caso modelar disso encontra-se no “primeiro conceito” da

moral, o de obrigação <Verbindlichkeit>, que ainda seria “pouco conhecido”

(Untersuchung Ak II: 298. p. 136), ou seja, pouco analisado e desmembrado em seus

elementos constituintes primordiais.

De acordo com Kant, a obrigação se enuncia por um dever-ser <Sollen> que

exprime a necessidade (prática) de uma ação. O dever-ser se refere ou bem a algo que

deve ser empreendido como meio quando outra coisa é desejada como fim, ou bem a

algo que deve ser imediatamente realizado como o fim mesmo visado pela ação. Kant

denomina à primeira expressão do dever-ser “necessidade dos meios” (necessitatem

problematicam) e à segunda, “necessidade dos fins” (necessitatem legalem)

(Untersuchung Ak II: 298. p. 137).

A primeira expressão do dever-ser não indica, na verdade, nenhuma obrigação,

mas apenas um preceito <Vorschrift> para a resolução de um problema, como, por

exemplo, o de como promover a própria felicidade. As ações ou meios sugeridos para

atingir esse fim não seriam obrigações stricto senso, mas antes meros “ensinamentos”

<Lehren> ou “instruções <Anweisungen> para uma conduta hábil” caso se deseje lograr

o fim por elas pressuposto. Há, com efeito, a contingência das ações aqui prescritas,

dependentes do fim posto, e que, enquanto tais, prescindem da necessidade inerente a

62 “[Kant] mostra que as matemáticas possuem suas definições na origem mesma de suas démarches, pois elas as estabelecem por via de síntese e de construção, ao passo que a metafísica somente pode possuir as suas definições ao cabo de suas investigações, sendo obrigada, para construí-las, a proceder a uma análise do dado. O objeto da matemática é, portanto, mais claro e simples em comparação ao objeto da metafísica”. Delbos, V. La Philosophie Pratique de Kant. Paris. PUF. 1969³. p. 82. A matemática tem por objeto quantidades, determináveis através de uma construção sintética, enquanto que a metafísica parte de “noções confusas” que carecem da clarificação obtida por meio de análises e desmembramentos de conceitos. Cf. Untersuchung Ak II 282-283. pp. 113-115. É, assim, no interior desse quadro mais amplo que as questões morais são abordadas. Trata-se aqui do “método analítico” em oposição ao “método sintético” como o mais propício em investigações metafísicas e morais. Para uma crítica semelhante feita no período crítico à aplicação do modelo matemático em filosofia, cf. a “Disciplina da Razão Pura no Uso Dogmático” da Crítica da Razão Pura (KrV A 712-738/ B 741-766. pp. 430- 443).

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51

toda obrigação, como, por exemplo, aquela expressa pelo princípio “faze o mais perfeito

de que és capaz” (Untersuchung Ak II: 299. p. 138).

Este último princípio, pertencente à escola wolffiana63, seria, segundo Kant, o

princípio formal supremo de toda a obrigação. Contudo, ao lado dele Kant acrescenta

“princípios materiais” do “conhecimento prático”, dos quais, por sua vez, dependem os

princípios formais64. Embora de forma vacilante e algo imprecisa, Kant defende que os

princípios materiais da filosofia prática são aqueles que indicam determinada ação como

imediatamente boa, ou seja, produzem um assentimento direto e imediato relativamente

às ações prescritas pelos princípios formais da obrigação. Os princípios materiais,

assim, repousariam sobre um “sentimento irresolúvel” obtido quando o “entendimento”

desmembra e tenta tornar distinto “o conceito composto e confuso do bem <Gut>”

pressuposto pelos princípios formais. O sentimento último e imediato de que algo é bom

por si e, enquanto tal, tem de ser desejado como um fim e não como meio para algo, é

um sentimento moral não desmembrável e, portanto, indemonstrável. Trata-se de

“sensações simples [e ‘materiais’] do bem” nas quais repousam os princípios

meramente formais da moral e que nos fornecem a “revelação positiva de nossos

deveres” 65 como obrigações categóricas:

Dessa maneira, se uma ação é representada imediatamente como boa, sem que

contenha, de modo implícito, outro bem qualquer que nela pode ser reconhecido por

desmembramento, chamando-se, portanto, perfeição, então a necessidade dessa ação é

63 A herança da escola wolffiana é nítida. Cf. Wolff, C. Philosophia Practica Universalis, I § 153; Ratio praelectionum, Sec. II, Cap. VII, § 9 e Baumgarten, Initia, §§ 43-4. Apud Ritter, C. Op. cit. p. 47. Como veremos, a referência à “perfeição”, seja moral, seja física, mantém-se como uma constante no período pré-crítico, e reaparece na Doutrina da Virtude de 1797. 64 Kant ressalta como a distinção entre princípios formais e princípio materiais no âmbito teórico remonta a Crusius e à sua demonstração de que os princípios de contradição e de identidade, embora sejam princípios formais supremos do conhecimento humano, carecem ainda de princípios materiais que constituem, na verdade, o “fundamento e consistência <Grundlage und Festigkeit> da razão humana” (Untersuchung Ak II: 295. p. 132). Cf. Figueiredo, V. 1762-1772. Estudo sobre a relação entre método, teoria e prática na gênese da Crítica kantiana. FFLCH/USP. Tese de Doutorado. 1998. pp. 117ss. Delbos, V. Op. cit. 83. Ritter, C. Op. cit. 47-48. Schmucker, J. Op. cit. pp.79ss. De valor imediato e não desmembrável, essa “base material” fornece a “matéria das definições e do dado” e, enquanto tal, é “indemonstrável”. Como será mostrado na sequência, na filosofia prática a “matéria da obrigação” é identificada a um “sentimento moral” sensível e imediato de reconhecimento do valor moral das ações. Trata-se aqui, contudo, de uma crítica mais ampla à escola racionalista e sua tentativa de fundar a metafísica em princípios “meramente lógicos”. Para a questão da separação operada por Kant nesse período entre forma e matéria do conhecimento no interior da crítica à metafísica racionalista, cf. Figueiredo, V. Op. cit.. 1762-1772. Estudo sobre a relação entre método, teoria e prática na gênese da Crítica kantiana. pp. 78ss. 65 Delbos, V. Op. cit. p. 85. Cf. Figueiredo, V. 1762-1772. Estudo sobre a relação entre método, teoria e prática na gênese da Crítica kantiana. Op. cit. pp. 114; 123-124.

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52

um princípio indemonstrável material da obrigação (Untersuchung Ak II: 299-300. p.

139).

Kant chega, assim, a um problema: como elucidar a “evidência moral” envolvida

na necessidade absoluta e incondicionada de um princípio material supremo da

obrigação que comanda determinada ação como imediatamente boa e, assim, como um

fim diretamente exigido, se, justamente por possuir tal propriedade e ao contrário dos

princípios formais e demonstráveis da obrigação, esse princípio se caracteriza como

uma regra imediata e, nessa medida, como uma proposição imediatamente certa e

destarte indemonstrável da filosofia prática? (Untersuchung Ak II: 299. p. 138).

Não é fornecida uma resposta ou conclusão definitiva e inequívoca sobre o

impasse. Kant, na realidade, encerra a discussão admitindo que muito ainda haveria de

ser feito e investigado no terreno prático: de saída, a própria base em que se assentam os

primeiros princípios <erste Gründsätze> de toda a filosofia prática ainda restava ser

desvelada:

Daí é de notar que, se deve ser possível alcançar o maior grau de evidência filosófica

nos primeiros fundamentos da moralidade <Sittlichkeit>, os supremos conceitos

fundamentais da obrigação devem, antes de tudo, ser mais seguramente determinados,

em vista do que a deficiência da filosofia prática é ainda maior do que a da

especulativa, devendo ser decidido, antes de tudo, se tão-somente a faculdade do

conhecimento <Erkenntnisvermögen> ou o sentimento <Gefühl> (o fundamento

primeiro, interno da faculdade de desejar <Begehrungsvermögen>) estabelece os

primeiros princípios <erste Gründsätze> na filosofia prática (Untersuchung Ak II: 300.

p. 140).

Opondo a faculdade de conhecimento ao sentimento como base da filosofia

prática, Kant coloca de maneira explícita uma alternativa – poder-se-ia dizer ainda: uma

confusa união66 – entre o racionalismo e o sensualismo britânico, ou ainda, entre um

estrito formalismo e um inadvertido elemento material sensível nos fundamentos do

campo prático. Contudo, Kant é claro a respeito daquele que denomina o “ponto de

66 “É visível que Kant, nesse período, fora influenciado pela ética material do sentimento dos sensualistas ingleses, sobretudo Hutcheson, sem, com isso, abstrair da fórmula racionalista-formal wolffiana: ‘faze o melhor/mais perfeito possível através de ti’, etc., confiada a ele o mais tardar desde o início de suas lições sobre a ética de Baumgarten. Ele buscou, antes, uma síntese de ambas, essencialmente sob a influência de Crusius. Este não apenas lhe forneceu a distinção entre deveres materiais e formais, mas também deu a Kant - por meio da oposição entre ‘necessitas legalis’ e ‘necessitas problematica’ - o impulso para a distinção posterior entre imperativos categóricos e hipotéticos” (Ritter, C. Op. cit. p. 48).

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partida” da investigação a ser dali em diante empreendida: decerto, não o já batido

caminho aberto por Wolff e sua escola, mas antes aquele fornecido “por Hutcheson e

outros (...) sob o nome de sentimento moral <moralisches Gefühl>” (Untersuchung Ak

II: 300. p. 140). O formalismo racional wolffiano parece sucumbir – ou ao menos

ocupar um vacilante papel secundário – em relação à ética material britânica67.

Outros escritos redigidos no intervalo aproximado de 3 anos entre 1762 e 176568

desde a redação da Investigação sugerem que Kant caminhava a passos largos em sua

filiação à escola britânica, em cujo sentimento moral, conclui-se, estaria localizada a

buscada “base” da filosofia prática mencionada na Investigação, e em cujo fecundo

método a futura ciência prática deveria apoiar-se.

No anúncio de suas lições no semestre de inverno de 1765-176669, publicado no

outono de 1765, Kant escreve que utilizará, como será a praxe de toda sua vida docente,

o manual de Baumgarten em suas aulas sobre “filosofia prática universal” <allgemeine

praktische Weltweisheit> e “doutrina da virtude” <Tugendlehre>, servindo, na

realidade, como complementação e modo de conferir precisão aos “ensaios de

67 “Na realidade, Kant, sem que talvez tenha clara consciência disso, permanece diante de uma dupla possibilidade: uma ética intuitiva do valor para a qual o dever-ser é uma qualidade do valor mesmo (...), ou uma ética racional da razão prática legisladora, cuja consequência é a determinação do bom ou do valor através da razão mesma”. Schmucker, J. Op. cit. p. 76. Ou, segundo Ritter, Kant teria visto aqui “uma doutrina do valor <Wertlehre> intuitivamente fundada como alternativa à moral racional, que somente obtém enunciados formais – os quais, contudo, têm a vantagem da certeza apodictica”. Ritter, C. Op. Cit. pp. 46-7. Como já mencionamos acima, embora Kant abrace com entusiasmo a causa sensualista, não há o abandono completo do princípio wolffiano e sua forte pretensão racional. Como bem nota Henrich, a exigência de que o princípio material do sentimento moral fundamente, de alguma maneira, os princípios formais da obrigação já indica a “mistura” de escolas: “A pretensão absolutamente vinculante do bom revela que algum poder ou realização da razão, seja um discernimento <Einsicht>, seja um conhecimento, está essencialmente implicado aqui” (Henrich, D. “Kant and Hutcheson”. Op. cit. p. 39). Ademais, Henrich explica a escolha de Kant por Hutcheson no contexto da Investigação como uma oposição tanto à ausência de “conteúdo substantivo” dos princípios formais racionalistas e seu “monismo” na localização das faculdades cognitivas e morais em um princípio único pertencente à alma, quanto à solução “teonômica” de Crusius com seu recurso ao “entendimento divino” (pp. 49ss). Sobre a crítica de Kant a Crusius, cf. infra, 2.2.1. Por fim, ao contrário do que fazem os três comentadores acima, cumpre ressaltar com cuidado que a “alternativa racional” entrevista por Kant neste momento não corresponde ainda àquela encampada em sua filosofia moral “pura” que começa a se delinear na década de 70. 68 Além do “Anúncio”, discutido no sequência, são quatro as obras escritas no período: A falsa sutileza das quatro figuras silogísticas (Die falsche Spitzfindigkeit der vier syllosgistischen Figuren erwiesen) (1762); O único possível argumento para demonstrar a existência de Deus (Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes) (1763); Tentativa de introduzir o conceito de magnitudes negativas em filosofia (Versuch den Begriff der negativen Größen in die Weltweisheit einzuführen) (1763); e Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (Beobachtungen über das Gefühl des Schönen und Erhabenen) (1764). Com exceção da última, não discutiremos essas obras já que nelas estão ausentes temas morais que nos interessam. De modo geral, e com exceção da Observação, a motivação dos escritos publicados por Kant no período é a de criticar aspectos específicos da tradição metafísica racionalista e refletir sobre tópicos metodológicos em filosofia. 69 O título completo é M. Immanuel Kants Nachricht Von der Einrichtung seiner Vorlesungen in den Winterhalbenjahren Von 1765-1766.

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Shaftesbury, Hutcheson e Hume, que, embora incompletos e falhos, são os que no

entanto mais longe chegaram na busca dos fundamentos primeiros de toda moralidade

<Sittlichkeit>” (Nachricht Ak II: 311. p. 178). Com efeito, Kant mantém um argumento

semelhante àquele apresentado na Investigação: segundo ele, os juízos morais sobre o

bom e o mau são “conhecidos pelo coração humano de maneira direita e sem o rodeio

de provas, graças àquilo que se chama sentimento <Sentiment>” (Nachricht Ak II: 311.

p. 178).

Há, entretanto, uma indicação adicional e significativa a respeito do método

considerado o mais adequado em filosofia prática e que em muito revela as

preocupações centrais de Kant no período. O Anúncio exorta ser necessário “estudar o

homem” de modo a considerar na Doutrina da Virtude “sempre de maneira histórica e

filosófica o que acontece antes de indicar o que deve acontecer”; com esse método seria

possível iluminar “qual perfeição é adequada ao homem”, e, assim, prescrever a “norma

de seu comportamento” para “tocar o grau supremo da excelência <Vortrefflichkeit>

física e moral”. Esse método de investigação moral, prossegue Kant, era “uma bela

descoberta de nosso tempos”, tendo permanecido “inteiramente desconhecido aos

antigos”. Ora, somente assim seria possível desvelar a “natureza do homem”, que

permanece e persiste desde o seu “estado da simplicidade rude” a despeito da “figura

mutável que seu estado contingente imprimiu nele”70 (Nachricht Ak II: 311-312. pp.

178-179).

70 Kaulbach faz notar como esta distinção feita por Kant entre a consideração “histórica” e a consideração “moral-filosófica” da “natureza humana” se baseia em uma “conexão de pensamento” nutrida pelos escritos do período pré-crítico sobre filosofia da natureza, mais notadamente a História dos Céus, e, dessa maneira, por uma compreensão “cosmoteológica” da normatividade da conduta humana. Segundo ele, “quando [Kant] se refere [no período pré-crítico] a uma ‘lei suprema da moral’, deve-se então remetê-la a uma conexão de pensamento em cujo interior deve ser levado a sério o ‘ser’, ou ainda, a ‘natureza’ das coisas, impresso por Deus tanto às coisas quanto aos homens. Não há ainda no período inicial nada sobre a autonomia da lei moral e sua origem na razão dos ‘seres racionais’” Kaulbach, F. Immanuel Kant. Op. cit.. p. 208. Contra isso, cf. Henrich, D. “Über Kants früheste Ethik”. Op. cit. pp. 410ss. Ao contrário de Kaulbach, Henrich argumenta que já nas décadas de 50 e 60 Kant se distancia de uma visada “cosmoteológica” e gradualmente se aproxima da “revolução copernicana” em moral: o bom seria medido não pela perfeição conferida por Deus às coisas, mas antes pela “concordância” destas com a vontade do agente racional. Ao contrário de Henrich, porém, vemos no Anúncio uma marca inquestionável do caráter “pré-crítico” da moral kantiana mencionado por Kaulbach. Como será discutido na sequência, há nestas passagens claras indicações de que a filosofia moral kantiana do período crítico depende, para sua autonomização em relação à filosofia teórica, não apenas da influência britânica (identificada por Henrich como fonte da “revolução copernicana em moral” mencionada) mas também da “distinção dos mundos” realizada na Dissertação Inaugural e que “autonomiza” o “mundo” moral relativamente ao mundo sensível, o que, como se viu, ainda não ocorre nas obras do período aqui analisado.

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Esse método composto por um misto de investigação antropológica e análise

psicológica71, animado tanto pela “novidade” sensualista britânica quanto por uma clara

intenção rousseauísta de revelar a “natureza imaculada” do homem72, e, por fim,

marcado pela ressonância wolffiana na referência à “perfeição física e moral” do

homem, caracterizara uma peculiar obra kantiana redigida havia pouco mais de dois

anos, em 1763: as Observações sobre o sentimento do belo e do sublime

(Beobachtungen über da Gefühl des Schönen und Erhabenen)73, que valera a Kant a

alcunha de “Shaftesbury” e “La Bruyère” da Alemanha74.

A obra, onde Kant estaria “mais independente das fórmulas de escola”75,

apresenta uma rica análise de tipos psicológicos, dos gêneros, dos povos e dos

71 Schilpp argumenta que Kant defendia então uma fundação “realista” da conduta humana e o “método empírico, dessa forma, precisaria ser um fator importante na determinação da natureza essencial do homem” (p. 78). Segundo ele, esse método realista não pode ser entendido como uma adesão pura e simples ao “método psicológico” britânico (p. 77). Schilpp, contudo, não consegue esclarecer de que maneira evitar essa identificação patente na obra. Já Delbos ressalta a importância do método herdado da escola sensualista para a ruptura de Kant com o frio procedimento racionalista: “De maneira geral, esse método consiste em analisar os conceitos morais para reduzi-los a elementos implicados na experiência interna. A observação psicológica é, portanto, o elemento mais precioso de conhecimento” (Delbos, V. Op. cit. p. 86). Segundo Delbos, Kant se volta a esse método marcadamente sensualista de modo a contrapor-se à “frieza” da escola wolffiana: “O que atrai em sua [sensualista britânica] doutrina é, por oposição ao logicismo da escola de Wolff, a ideia de que a moralidade não é obra da reflexão e do cálculo, de que ela é o fruto natural do coração, de que, ao invés de se impor por composições fictícias e modos exteriores de disciplina, ela agrada imediatamente pela sua beleza mesma, pela harmonia que ela estabelece entre o amor de nós mesmos e o amor de outrem, pelo acordo que ela faz prevalecer em nossa vida” (idem. ib). Delbos, contudo, confia em demasiado no “entusiasmo” que os britânicos provocaram em Kant. Mesmo no princípio que guia a investigação psico-antropológica, a saber, a “perfeição moral e física” do homem, a influência da escola wolffiana ainda é sentida. Vincíus de Figueiredo também afirma que a influência da “tratadística britânica” sobre Kant, “longe de resumir-se ao mero exercício da perspicácia na análise do mundo social”, é decisiva para o reconhecimento tanto “de que a perspectiva prática constitui, ela também, um elemento indispensável para a instituição do caráter sistemático em filosofia”, quanto “da autonomia da prática frente à teoria” (Figueiredo, V. 1762-1772. Estudo sobre a relação entre método, teoria e prática na gênese da Crítica kantiana. Op. cit. p. 100). Como posteriormente se tornará mais claro, preferimos assumir a influência britânica como uma entre outras que marcaram a ruptura – que, cumpre notar, se consuma apenas na década de 1770 – de Kant com a tradição racionalista-metafísica. 72 Sobre esse tema em particular, cf. Schillpp, P.A. Op. cit. pp. 23-24, e Cassirer, E. Rousseau, Kant and Goethe. Two Essays. Princeton: Princeton University Press. 1970. pp. 18ss, A influência de Rousseau sobre Kant, sobretudo na formulação da concepção kantiana de autonomia da vontade, será discutida na seção 2.2.2. 73 A obra foi terminada em outubro de 1763 e publicada em janeiro de 1764. Cf. Kant, I. Theoretical Philosophy – 1755-1770. Cambridge. Cambridge University Press. 1992. p. lxv e Kant, I. Anthropology, History, and Education. Cambridge. Cambridge University Press. 2007. p. 18. 74 Cf. Delbos, V. Op. cit. p. 88. Kuehn, M. Kant. A Biography. Op. cit. p. 132-4. Ritter, C. Op. cit. pp. 54-55. O belo juízo sobre a proximidade com Shaftesbury é de Herder: “Kant é um observador social em sua plenitude (...). O grande e o belo nos homens e nos caracteres humanos, os temperamentos, as inclinações dos sexos, as virtudes e, enfim, os caracteres nacionais: eis o seu mundo, onde ele leva a fineza das observações até as mais sutis nuances, a sutileza das análises até os móbiles mais secretos, a sutileza das definições até a mais ínfima singularidade – um pleno filósofo do belo e do sublime da humanidade! E, nessa filosofia humana, um Shaftesbury da Alemanha”. Apud Delbos, V. Op. cit. p. 88, n. 1. 75 Delbos, V. Op. cit. p. 90.

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sentimentos morais, baseada numa dicotomia de caracteres segundo os “sentimentos do

belo e do sublime”76. Um dos objetivos de Kant, que dizia assumir na obra o “olhar

mais de um observador do que de um filósofo” (Beobachtungen Ak II: 207. p. 20),

consistia em investigar o homem em sua faticidade e variedade de expressões,

desvelando, com isso, aquilo que lhe conviria como a perfeição moral e física aludida

no Anúncio – tratava-se, se se deseja, de um método de análise da natureza do homem

conforme esta era dada na efetividade de sua manifestação em sociedade e na

multiplicidade antropológica e cultural de tipos humanos – em outras palavras, na obra

Kant “passa do plano da ética propriamente dita, circunscrita ao plano individual do

agente em seu vínculo com o imperativo do dever, àquele da cultura, meio no qual se

desenvolve o gosto. A meta passa a ser a descrição do que resulta de aparente em nossas

condutas”77.

A intenção, como dito acima, era claramente de matriz rousseauísta, com a

diferença de que Kant, inversamente ao filosófo genebrino, pretendia partir não da ideia

de um homem “natural”, conforme identificava ser o intuito de Rousseau, mas antes do

homem em sociedade:

Rousseau procede sinteticamente, partindo do homem natural; eu procedo

analiticamente, partindo do homem civilizado (Bemerkungen Ak XX:14).

Os termos empregados lembram a censura de Kant à escola wolffiana: assim

como Wolff e seus partidários equivocavam-se ao pregar na metafísica um método

matemático-sintético de construção do objeto, também Rousseau teria pecado ao

proceder sinteticamente em filosofia moral, partindo do homem no estado de natureza -

esse suposto “dado bruto moral” anterior à sua manifestação atual - na tentativa de

desvelar aquilo que lhe conviria como perfeição física e moral. O método de análise do

homem civilizado, dado em sociedade, deveria corrigir o erro de Rousseau78.

Tanto a repercussão positiva recebida pelas Observações, quanto as ideias

mantidas por Kant na época em relação à filosofia moral, levaram-no ao plano de

publicar uma segunda edição ampliada que nunca veio a ser redigida, mas cujas notas

76 Cf. Delbos, V. Op. cit. pp. 91-96 e Ritter, C. Op. cit. pp. 54-67. 77 Figueiredo, V. “Introdução”. In: Kant, E. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime e Ensaio dobre as doenças mentais. Campinas: Papirus. 2000. p. 13. 78 Sobre isso, cf. Cassirer, E. Op. cit. p. 22-23.

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preparatórias foram preservadas e ganharam no século passado o nome de Comentários

<Bemerkungen> às Observações sobre o sentimento do belo e do sublime79.

É, portanto, justamente desse período (1763-1765) que remontam os primeiros

indícios da influência do pensamento de Rousseau sobre Kant e que tanta influência

exerceria no tournant do pensamento kantiano em moral. Atestam o influxo havido não

apenas as diferenças discutidas acima sobre a necessidade de partir-se da natureza do

homem, imaculada ou efetiva, para uma discrição fidedigna da moral humana, mas

79 Cf. Ak XX: 1-180. Esses esboços e comentários para uma segunda edição da obra teriam sido feitos entre 1764-1765. Cf. Kant, I. Anthropology, History, and Education. Op. cit. p. 21. Esses apontamentos apresentam de forma exemplar o período de transição por que passava o pensamento moral de Kant. Em meio a observações de caráter “antropológico” semelhantes àquelas realizadas na obra publicada, os comentários de Kant para a malograda segunda edição mostram sua preocupação por questões acerca do fundamento da moral que culminarão nos Sonhos de um visionário, obra que será discutida na sequência. Dentre essas passagens, encontram-se trechos interessantes como os seguintes: o arbítrio determinado pelo ser bom <Bonität> “contém tanto o que é meramente próprio, quanto a vontade universal <allgemeinen Willen>, ou considera-se o homem ao mesmo tempo em consensu com a vontade universal” (Bemerkungen Ak XX: 145); “a vontade que tem de ser boa <gut sein soll>, quando é tomada universal e reciprocamente, não pode anular-se <aufheben>” (Bemerkungen Ak XX: 67). Como veremos, trechos “rousseauístas” semelhantes a esse reaparecem nos Sonhos e na década de 70. Contudo, concluir disso que aqui – e, portanto, antes mesmo do diagnóstico do contágio entre conhecimento sensível e intelectual da Dissertação Inaugural, e dos Sonhos com sua embrionária distinção entre “mundo moral” e “mundo sensível” e a consequente autonomização do âmbito moral em relação ao teórico-especulativo – já estaria “a fórmula do imperativo categórico baseada na universalidade da vontade mesma” (Henrich, D. “Kant and Hutcheson”. Op. cit. p. 51), ou que Kant “já estaria essencialmente em posse da teoria que ele iria subsequentemente apresentar nas duas primeiras seções da Fundamentação à Metafísica dos Costumes” (idem. p. 52), parece-nos no mínimo apressado, quando não flagrantemente equivocado. Como já discutido na introdução à dissertação, os partidários da tese da continuidade da filosofia prática pré-crítica e crítica tomam sobretudo essas passagens para atestar seu argumento – dentre eles, Josef Schmucker, para quem (Schmucker, J. Op. cit. pp. 252ss) os Comentários fornecem uma resposta inequívoca à indagação deixada em aberto na Investigação a respeito de se os princípios da moral repousam no sentimento ou nas faculdades de conhecimento. Passagens como as transcritas acima atestariam a inclinação de Kant pela segunda opção, e marcariam a “segunda virada decisiva no desenvolvimento ético de Kant” (Schmucker, J. Op. cit. p. 252), a saber, uma solução para o problema da obrigação “que parte da liberdade, do arbítrio livre, e estatui a lei formal da concordância do arbítrio consigo mesmo como um princípio <Prinzip> que decide sobre as proposições fundamentais <Grundsätze> da obrigação” (idem. ib). Haveria mesmo uma resposta “inequívoca” a tal pergunta? Embora, com efeito, Kant esteja em um claro período de transição, mesmo nas Bemerkungen há referências claras a um “sentimento moral” <sensus moralis> como aquilo que impõe uma “obrigação estrita” <obligatio stricta> e fonte do “juízo categórico sobre o bom” <bonum categorice> no ânimo <mens> humano. Assim, conclui Kant, “há, de fato, um sentimento comum <sensus communis> do bem e do mal” (Bemerkungen Ak XX: 156). Ora, o sentimento moral ainda detém papel proeminente na determinação da obrigação, a despeito do que querem Schmucker e Henrich. Ademais, vale ressaltar que ainda figuram neste período textos como o Anúncio em que se fazem decisivamente presentes tanto a opção britânica “empírica”, quanto a visada antropologizante que parte da análise do comportamento efetivo do homem, assim como menções explícitas ao “princípio de perfeição” como base da moral (cf. Bemerkungen Ak XX: 144ss). Assim, ainda que haja passagens nas Bemerkungen que lembrem trechos de obras sobre filosofia prática do período crítico, acreditamos que a presença do princípio de perfeição e sobretudo do sentimento moral como base da obrigação estrita e base de avaliação do bem e do mal é suficiente para cravar o caráter pré-crítico deste escrito e dos demais do período. Como se tornará claro na sequência, preferimos localizar o momento inicial da “virada decisiva” da ética kantiana na Dissertação Inaugural e já sinalizada claramente nos Sonhos de um Visionário. Com isso, esperamos, torna-se errôneo o juízo de Henrich compartilhado por Schmucker (Schmucker, J. Op. cit. p. 375), de que os traços fundamentais da moral crítica kantiana já estariam aqui delineados.

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mesmo referências explícitas ao filósofo genebrino como aquele que acordara Kant de

seu “sono dogmático” em filosofia moral. São bem conhecidas as palavras de Kant a

respeito de Rousseau como aquele que lhe abrira os olhos para o “valor moral” da

humanidade:

Eu sou por inclinação um pesquisador. Eu sinto uma ardente sede por conhecimento e a

ávida inquietação por avançar nele, bem como a satisfação em cada passo dado adiante.

Houve um tempo em que acreditava que unicamente isso poderia constituir a honra da

humanidade e desprezava a populaça por nada saber. Rousseau corrigiu-me. Esse cego

preconceito desapareceu; eu aprendi a honrar os homens e me reputaria mais inútil do

que um trabalhador comum caso não acreditasse que essa consideração pode conferir

valor a todas as demais: estabelecer os direitos da humanidade (Bemerkungen Ak XX:

44).

Essa passagem, contida nos Comentários às Observações, ilustra sobremaneira o

estágio em que o desenvolvimento do pensamento moral kantiano se encontrava e a

influência marcante de Rousseau nesse percurso80. A ode aos sensualistas britânicos, o

louvor à “sensibilidade moral” do pensamento de Rousseau e o aparente afastamento do

“rigor matemático” da escola wolffiana: ao que tudo parecia indicar, Kant marchava

triunfantemente para tornar-se como que um “moralista alemão” instalado em

Königsberg. Tratar-se-ia de uma definitiva guinada “empírica” que o levaria a um

pensamento “antropologizante” baseado na aguçada observação dos usos e costumes da

sociedade prussiana de então e à rejeição completa da influência sub-reptícia da escola

wolffiana? Não, certamente não. A obra imediatamente seguinte no itinerário filosófico

kantiano, justamente uma das mais peculiares saídas de sua pena, demonstra de maneira

clara a inflexão por que passava o pensamento moral kantiano em tão pequeno intervalo

de tempo.

1.2 1766-1770 – A distinção dos mundos e o surgimento do projeto de uma

Metafísica dos Costumes

80 Como já mencionado, discutiremos mais detidamente a influência de Rousseau sobre o pensamento moral de Kant na subseção 2.2.2, em que localizaremos neste momento do progresso da filosofia prática kantiana a “intuição rousseauísta” acerca do princípio de autonomia, desenvolvido de forma mais detida na década de 70 sem, contudo, assumir ainda a forma definitiva dos anos 1780.

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Em Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica (Träume eines

Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik), publicados no início de 1766,

Kant aponta para a “purificação” de sua moral que começaria a ser definitivamente

consumada no período de redação da Dissertação Inaugural de 1770. Os temas

britânicos e rousseauístas ainda estão nitidamente presentes, já tendo, contudo, sofrido,

como se verá, uma significativa modificação de fundo.

Nos Sonhos de um visionário, cujo interesse estritamente filosófico reside no

novo ataque kantiano à vanidade das pretensões especulativas da metafísica tradicional,

desdenhosa da limitação do conhecimento humano ao mundo empírico81, o sentimento

moral é atrelado a uma “realidade moral” não sensível, referida a um “entendimento

universal humano” <allgemeinen menschlichen Verstand> que, tomado como

fundamento de determinação <Bestimmungsgrund> da ação, não encontra sua sede no

“mundo dos sentidos”:

toda moralidade <Moralität> das ações jamais poderá ter, segundo a ordem da natureza,

seu efeito completo na vida corpórea do homem, mas poderá tê-lo certamente no

mundo dos espíritos segundo leis pneumatológicas (Träume Ak II: 336. pp. 167-8).

Ora, esse “mundo dos espíritos” é, assim, um “mundo moral”, onde as

verdadeiras intenções e os genuínos “impulsos morais” <sittliche Antriebe> podem

surgir e ser propriamente avaliados, mas cujo conhecimento, entretanto, é vedado às

limitadas capacidades cognitivas humanas:

com isso vimo-nos dependentes nos mais recônditos motivos <Beweggründe> da regra

da vontade universal e nasce daí no mundo de todas as naturezas pensantes uma

unidade moral <moralische Einheit> e uma constituição sistemática <systematische

Verfassung> segundo leis puramente espirituais. Se se quer chamar de sentimento

moral essa necessitação <Nötigung> de nossa vontade para a concordância com a

vontade universal, então se fala disso apenas como de uma manifestação daquilo que se

passa efetivamente em nós, sem determinar as suas causas (Träume Ak II: 335. pp. 166-

7).

81 Kant direciona suas críticas às pretensões do “limitado conhecimento humano” em conhecer o mundo “imaterial” dos espíritos. Cf. dentre outros, Träume Ak II: 340-1. pp. 174-175; 351-352. p. 188-190. Não abordaremos esse tema aqui.

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De modo a explicar de que maneira o sentimento moral comporta-se nesse

“mundo dos espíritos” entendido como uma “unidade moral”, Kant emprega uma

analogia com as leis de atração vigentes no “mundo sensível”: da mesma forma que os

corpos no mundo físico atraem-se segundo uma força irresistível e ubíqua, assim

também as “vontades” no “mundo imaterial” se relacionariam através de uma lei de

atração que, sem que possamos verdadeiramente conhecer seu funcionamento,

determinaria seu comportamento recíproco. Ao passo que no mundo sensível essa força

é denominada e conhecida como gravitação, no mundo dos espíritos a “força atrativa”

análoga seria desempenhada pelo sentimento moral:

[O] sentimento moral seria essa dependência sentida da vontade privada com relação à

vontade universal e uma consequência da ação recíproca natural e universal através da

qual o mundo imaterial ganha sua unidade moral, na medida em que se forma de acordo

com as leis dessa sua conexão própria em um sistema de perfeição natural (Träume Ak

II: 335. p. 167).

Uma “vontade universal” de matriz rousseauísta82 é empregada para explicar o

liame estrutural que une as vontades particulares, reciprocamente atraídas, por sua vez,

por uma “força prática” exemplificada pelo sentimento moral herdado dos sensualistas

britânicos. Entretanto, mesmo em meio a esse mélange ou mixture franco-britânico,

Kant ainda permanece no interior dos limites da escola prática wolffiana: não apenas a

“perfeição natural” é conservada como um princípio central, mas também os “impulsos

morais” são ainda localizados não na “razão”, mas antes na “alma do homem”83

82 Embora aqui não mencione explicitamente Rousseau, Kant o faz nos Comentários às Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, onde compara o papel que a vontade geral cumpre no mundo moral ao papel que a lei de atração newtoniana desempenha no mundo físico. Cf. Ak XX: 58-59. Veremos em 2.2.2 como a “vontade geral” de Rousseau transmuda-se numa comunidade autônoma de seres racionais regidos por leis morais cuja fonte encontra-se na razão pura. 83 Como já mencionado, uma das rupturas de Kant em relação à tradição racionalista diz respeito justamente à “autonomização” da filosofia moral relativamente à metafísica tradicional através da rejeição do “monismo” wolffiano, ou seja, a atribuição da sede dos princípios do comportamento prático do homem não à alma (ou ao entendimento divino, como era comum na escola wolffiana e em seus dissidentes ) mas sim à própria razão. Com isso, a filosofia prática se desvincula da psicologia racional – e, na esteira, das demais disciplinas metafísicas, dentre elas a teologia natural – e se torna um âmbito autônomo da filosofia. Em suma, mesmo em meio ao esboço inicial do mundo moral como autônomo relativamente ao mundo natural, Kant ainda conserva traços marcantes do “monismo” da escola de Wolff. A influência desta nos Sonhos de um visionário é sentida ainda em outro âmbito. Segundo Sgarbi, o contexto em que Kant avança sua tese sobre a analogia entre os mundos sensível e moral é o do embate dos modelos de explicação da relação entre corpo e alma. Kant se aproximaria da escola de Wolff e sua adaptação da teoria leibniziana sobre a harmonia preestabelecida em oposição às doutrinas ocasionalista, de influência cartesiana, e do influxo físico, de origem aristotélica. A ideia de um mundo inteligível de substâncias pensantes regido por leis pneumatológicas análogas às leis newtonianas é tomada de

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(Träume. Ak II: 336. p. 168). Talvez seja essa a obra em que se torna mais marcado o

“ecletismo” de Kant em seu pensamento moral do período.

O que particularmente nos interessa, contudo, é que aqui se torna explícita a

separação entre a empiria e a base da moralidade. Mesmo ainda não se expressando

com estes exatos termos, Kant atribui a “pureza” dos princípios morais – dentre os quais

curiosamente figura o sentimento moral – à sua origem em um “mundo moral imaterial”

cuja estrutura, porém, é explicada mediante recurso ao funcionamento do mundo

material da natureza sensível. A moral, portanto, parecia ter encontrado seus

“primeiros princípios” em uma realidade totalmente diversa da empírica84.

Ao que indica a correspondência do período, essa ainda incipiente ideia kantiana

de um mundo moral apartado da empiria motivou os primeiros planos de uma

Metafísica dos Costumes. Em uma carta redigida dias antes da publicação dos Sonhos

de um visionário e posterior à redação da obra85, Kant parecia convencido de que este

escrito e os demais publicados nesse ínterim haviam produzido bons resultados no que

diz respeito não apenas ao método em filosofia, mas também, imagina-se, à questão

sobre a “base” da filosofia prática. Em carta a Lambert de 31/12/1765 (Ak X: 54-57),

Kant conta crer ter atingido, não sem muito esforço, um “conhecimento” <Kenntnis> no

qual “depositava grande confiança”. O conhecimento mencionado dizia respeito ao

“método próprio da metafísica” e, por conseguinte, da “filosofia em seu todo”. Através

da instauração de um “padrão de medida comum” <gemeines Richtmaβ>, surgido por

meio de uma “eutanásia da falsa filosofia” <Euthanasie der falschen Philosophie>, esse

novo método marcaria o início de uma “nova criação”, aplacando a “destruidora

Baumgarten e Meier. Sgarbi, M. “Kant’s Ethics as a part of Metaphysics: The role of spontaneity”. In: Kant e-Prints. Série 2, V.2, n.3. Julho-Dezembro, 2008. 84 Reinhard Brandt argumenta que, durante o período pré-crítico, a ruptura definitiva e mais radical de Kant com a tradição racionalista ocorre justamente nos Sonhos de um visionário, em que ele, não sem modificá-la, volta-se à tripartição helenista de lógica, física e ética, retomada no prefácio à Fundamentação (Gr Ak IV: 387-389. p. 104). O mundo da física é separado do mundo da ética; ambos são apresentados como realidades independentes e autosubsistentes, respondendo a leis distintas embora análogas (cf. Träume. Ak II: 335-7). “Ao passo que, para os estoicos, física e ética são dois aspectos de uma ‘substância’ (...), Kant divide a ‘natureza unitária’ <Allnatur> estoica em duas partes com leis distintas: o mundo da física, com as leis newtonianas da gravitação (...), e o mundo da ética, com o análogo às leis pensantes da liberdade” Brandt, R. Die Bestimmung der Menschen bei Kant. Hamburg: Felix Meiner, 2007. p. 252. Ou seja, é realizado um primeiro esboço da divisão entre “leis da natureza” e “leis da liberdade” desenvolvida a partir da Crítica da Razão Pura, ensejando com isso a possibilidade de uma disciplina “autônoma” similar à tardia Metafísica dos Costumes e seus deveres como “leis da liberdade”. 85 O mais provável é que os Sonhos de um visionário já existissem em forma impressa desde 31/01/1766, embora sua redação tenha sido consumada ao longo do ano de 1765, mais provavelmente, caso levarmos a sério o progresso do pensamento moral kantiano descrito, no segundo semestre desse ano. Cf. Kuehn, M. Kant. A Biography. Op. cit. pp. 170-173. Kant, I. Theoretical Philosophy 1755-1770. Op. cit. lxvii-lxviii.

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desunião” que grassava dentre os diversos partidários dessas disciplinas e fazendo surgir

os contornos de uma nova disciplina filosófica86.

Essa confiança – fortemente desmedida, decerto – motivava Kant a planos de

obras futuras, ou ainda, de “pequenos ensaios preparatórios” <kleinere Ausarbeitungen>

que deveriam preceder projetos de maior fôlego. Dentre essas peças propedêuticas, cujo

tom modesto fazia-se necessário para evitar acusações de tratar-se de “mais um dos

muitos novos projetos filosóficos” <philosophische Projektmacherei>, figuram os

“Primeiros princípios metafísicos da filosofia prática” <metaphysische Anfangsgründe

der praktischen Weltweisheit > (Ak X: 56), o primeiro esboço e paráfrase da futura

Metafísica dos Costumes, que, contudo, somente viria a público 29 anos depois dessa

inicial promessa87.

Em 16/02/1767, Hamann escreve que Kant estava então trabalhando em sua

“Metafísica dos Costumes”88, e, em 08/05/1768, lê-se da própria pena kantiana que a

ambição exposta a Lambert mais de dois anos antes e retomada por Hamann ainda

86 Esta carta inclui-se na profícua correspondência kantiana com Lambert, cujo cerne reside na exortação deste último para que ambos trabalhassem conjuntamente numa “reforma da metafísica” através da ampliação do método matemático a âmbitos não considerados pelos wolffianos (cf. Ak X: 54). Contudo, é de se imaginar que Kant não fosse simpático à ideia: como vimos, mesmo no período pré-crítico, seu projeto de renovação da metafísica não passava pela retomada e pelo alargamento do método matemático de Wolff – tipificado por ele como “sintético” em oposição ao “analítico” no qual então apostava –, mas muito antes se caracterizava como uma forte crítica ao mesmo – cf. p.ex, Deutlichkeit, Ak II: 276ss. pp. 104ss; Beweisgrund, Ak II: 72; 158; Log Jäsche, Ak IX: 32. p. 49. Em todo caso, é interessante notar que Kant liga à proposta de Lambert a origem de sua Crítica da Razão Pura (Ak X: 276-9 e esp. 271) – na carta discutida aqui, Kant chega a mencionar a “tão longamente desejada grande revolução nas Ciências” que emergiria da “crise” nas escolas e coincidiria com o surgimento da “verdadeira filosofia” (Ak X: 57). Os próprios termos empregados por Kant no período sugerem que a iminente “grande luz” do ano de 1769 (cf. Rx 5037. Ak XVIII: 69), atribuída à “descoberta” das antinomias ou ao diagnóstico do contágio entre conhecimento sensível e conhecimento intelectual, estava intimamente ligada à correlata “descoberta” da distinção dos “mundos” propugnada nas duas obras discutidas nesta subseção. Sobre a relação entre Kant e Lambert e a proposta de “reforma da metafísica” que a permeou, cf. Malibabo, B. Kants Konzept einer kritischen Metaphysik der Sitten. Würzburg. Königshausen & Neumann. 2000. p. 68. 87 Para Reinhard Brandt (“Kant como Metafísico” In: Diánoia / Anuario de filosofía, XXXIX, 1993. p. 41), a proximidade temporal entre os Sonhos de um visionário e a carta aqui discutida leva forçosamente à conclusão de que, mesmo no momento inicial de sua gênese, a Metafísica dos Costumes já estaria moldada à feição de sua forma tardia. Ora, como vimos, é de fato nos Sonhos de um visionário que pela primeira vez é exposta uma doutrina dos dois mundos, e a moral é atribuída ao mundo inteligível, regido por uma “lei de atração moral” análoga àquela vigente no mundo sensível e baseada numa “vontade geral“ cuja “força atrativa” é exercida pelo sentimento moral. Ou seja, a influência dos sensualistas britânicos seria, a rigor, secundária no desenvolvimento inicial da Metafísica dos Costumes: o sentimento moral figura apenas como um conceito auxiliar no esquema explicativo do mundo da ética, cujas leis, as futuras “leis da liberdade”, entretanto, ainda permanecem pouco explicadas nesse período. Conforme já mencionado, tratar-se-ia da prefiguração germinal da “autonomização” da Metafísica dos Costumes em face da psicologia racional ou empírica tanto britânica quanto aquela pertencente à tradição da metaphysica specialis. Concordamos com Brandt apenas na medida em que se ressalte com a ênfase devida a germinalidade da Metafísica dos Costumes na ainda precária distinção entre os dois mundos presente nos Sonhos de um Visionário. 88 Apud Kuehn, M. “Kant’s Metaphysics of Morals: the history and significance of its deferral”. Op. cit.. p. 12. E Sgarbi, M. Op. cit.. p. 267.

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persistia. Kant confidencia a Herder estar no momento com a atenção voltada “ao

conhecimento da real determinação e dos limites das capacidades e inclinações

humanas” (Ak X: 74). Terminada essa investigação, com a qual esperava “finalmente

obter relativo êxito no que diz respeito aos costumes”, Kant dedicar-se-ia então a

trabalhar em uma “Metafísica dos Costumes”, onde imaginava “poder fornecer tanto o

método quanto os princípios evidentes e frutíferos através dos quais os esforços de fato

ubíquos, porém por toda parte infrutíferos nesse tipo de conhecimento, precisam poder

ser estabelecidos caso devam produzir alguma utilidade” (Ak X: 74)89. Embora

hesitante, Kant promete a entrega da obra ainda para aquele ano, contanto, claro, que

sua “saúde vacilante” não obstruísse seus planos. Como é sabido, esta é apenas a

primeira das muitas oportunidades em que Kant frustra seus interlocutores quanto a

prazos definitivos para a redação e entrega de sua continuamente diferida Metafísica dos

Costumes – e, ao menos durante duas décadas, a justificativa baseada em seu estado de

saúde não serve senão como simples substituição às questões morais e metodológicas

que realmente embaraçaram a redação da obra. Em suma, o suposto sucesso imediato

que se seguiria aos Sonhos de um visionário e a euforia demonstrada nas cartas se

revelariam infundados ou ao menos desmedidos.

São justamente amplos problemas metodológicos e metafísicos que motivam o

próximo escrito kantiano de relevo: Forma e princípios do mundo sensível e do mundo

inteligível (De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis), mais conhecido

como Dissertação Inaugural de 1770. Kant aqui consuma teoricamente a distinção

89 Segundo Allen Wood, esse primeiro emprego explícito do termo metafísica dos costumes “provavelmente expressou sua rejeição [de Kant] da teoria do sentimento moral de Shaftesbury e Hutcheson, com a qual encontramos Kant flertando em suas lições do começo da década de 60 e em seu ensaio premiado Investigações sobre a Evidência dos princípios da teologia natural e da moral. Porém, não é claro se nessa época seu uso do termo ‘metafísica’ significava algo mais do que a idéia de que a moralidade precisava ser fundada na análise de conceitos ao invés da imediaticidade de sentimentos” Wood, A. “The Final Form of Kant’s Practical Philosophy”. In: Timmons, M (org). Kant’s Metaphysical of Morals. Interpretative Essays. Oxford. Oxford University Press. 2002. p. 2. Na realidade, não há indicação alguma nos escritos, lições e reflexões de Kant que sugira que “metafísica” se referisse tão-somente a uma “análise de conceitos”. Ora, o próprio termo “análise” remete a um método em filosofia – expresso na Investigação, sobretudo – de cuja plena fecundidade, como veremos, Kant começaria seriamente a duvidar no âmbito moral. No entanto, concordamos com Wood ser claro o início da rejeição da “teoria do sentimento moral” por parte de Kant no período, bem como acreditamos ser extremamente significativa a aparição do termo metafísica dos costumes justamente no período em que a moral kantiana começava a “purificar-se” das influências “empíricas” britânicas.

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entre um “mundo sensível” e um “mundo inteligível” já enunciada nos Sonhos de um

visionário e que desempenha papel central na observada “purificação” da moral90.

Na obra de 1770, na realidade uma dissertação defendida para a obtenção do

cargo de professor titular de lógica e metafísica na Universidade de Königsberg, Kant

concebe espaço e tempo como “formas puras da sensibilidade”, diferenciando-os

radicalmente do entendimento ou “inteligência” <intelligentia> como duas fontes

distintas de representações: ao passo que os objetos que a sensibilidade nos fornece são

todos sensíveis, ou seja, fenômenos, aqueles que são dados à inteligência caracterizam-

se como inteligíveis, ou seja, númenos (Dissertatio Ak II: 392. p. 235). Dessa forma,

distinguem-se um mundo sensível, relativo ao que é “subjetivo na mente humana”, ou

ainda, ao que pode ser dado ao espaço e tempo, um mundo, portanto, que “contém o

fundamento da conexão universal de tudo na medida em que é fenômeno” (Dissertatio

Ak II: 398. p. 246), e um mundo inteligível, cuja forma “reconhece apenas um princípio

objetivo, isto é, alguma causa pela qual há a ligação dos existentes entre si” (Dissertatio

Ak II: 398. pp. 246-247) na medida em que estes são considerados não segundo a sua

matéria, ou seja, segundo aquilo que pode ser dado aos sentidos, mas antes enquanto

seres inteligíveis ou numênicos em “comércio mútuo” e apreensíveis apenas pelo

entendimento (Dissertatio Ak II: 407. p. 262).

Desse esboço originário do idealismo transcendental da Crítica da Razão Pura

surge o argumento que será de crucial importância para a rejeição kantiana da solução

britânica e, de modo geral, da obtenção do princípio da moralidade a partir de

observações empíricas: a crítica radical à ideia legada pela tradição acerca do critério

lógico de distinção entre representações sensíveis e intelectuais, a saber, que o

conhecimento sensível seria eminentemente confuso, ao passo que o conhecimento

intelectual, pelo contrário, claro e distinto. Para Kant não é mais válida a propagada tese

racionalista sobre distinção ou indistinção da representação como índice da diferença

entre conceito, ou representação intelectual, e intuição, ou representação sensível. A

sensibilidade se diferencia do intelecto não pela “indistinção” ou “confusão” da sua

representação relativamente à “clareza” ou “distinção” da representação intelectual, mas 90 É evidente que a continuidade proposta aqui entre as duas obras discutidas é meramente esquemática e propícia ao nosso argumento. Como nota Lewis White Beck, Kant, em um escrito de 1768, Von dem ersten Gründe der Unterschiedes der Gegenden im Raume, defende uma noção newtoniana de espaço como uma realidade ontológica absoluta, o que, contrariamente ao que ocorre na Dissertação Inaugural e nos Sonhos de um Visionário, sugere a possível continuidade das ciências naturais à metafísica. Em suma, a fissura que separava os “dois mundos” dos Sonhos de um visionário ainda não parecia tão consumada como será o caso a partir da Dissertação Inaugural. Cf. Beck, L. W. “Lambert and Hume in Kant’s Development from 1769 to 1772” Op. cit. pp. 101-106.

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antes pela radical separação que existe na fonte mesma de ambas as representações91. É

possível que um conhecimento sensível seja plenamente claro e distinto e um

conhecimento inteligível, por seu turno, indistinto e confuso no mais elevado grau. Ora,

há exemplo melhor do que a precária ciência metafísica para atestar a até então negada

confusão das representações intelectuais?

O que é sensitivo (...) pode ser inteiramente distinto, e o que é intelectual, confuso ao

máximo. O primeiro caso observamos no protótipo do conhecimento sensitivo, a

geometria, o segundo caso no órganon de tudo o que é intelectual, a metafísica, que

despende um grande trabalho para dissipar as névoas de confusão, que ofuscam o

entendimento comum, ainda que isso nem sempre se converta em resultado tão feliz

como na geometria, como é notório. Não obstante, cada um desses conhecimentos

guarda o sinal de sua ascendência, de modo que os primeiros, por mais distintos que

sejam, são denominados, em virtude de sua origem, sensitivos; os segundos, mesmo

que confusos, permanecem intelectuais (Dissertatio Ak II: 394-395. p. 241).

O desenvolvimento da crítica a esse pressuposto central da metafísica de Leibniz

e Wolff, dentre outros, atinge não apenas a metafísica, prossegue Kant, mas também a

moral. A marca distintiva dos conceitos morais, que “não são conhecidos pela

experiência, mas pelo próprio entendimento puro” (Dissertatio Ak II: 395. p. 241),

desautoriza a crença desmedida no “método analítico” em filosofia moral nos moldes

preconizados na Investigação e no Anúncio. Ora, “analisar” ou “desmembrar” um dado

material de modo a torná-lo “distinto”, como ainda era a exortação kantiana em moral,

mais especificamente no conceito de natureza humana dado em sociedade e na

variedade de suas manifestações, torna-se insuficiente para fundar a moralidade quando

de saída se distinguem sensibilidade e intelecto: por mais meticuloso que seja, nenhum

“desmembramento” ou “análise” de determinada representação fará com que se altere a

91 Cf. Santos, L. R. Op. cit. pp. 164-166; 171-174. Capozzi, M. Kant e la Logica. Vol. I. Napoli: Bibliopolis, 2002. pp. 362-376. Segundo Capozzi, o instrumental racionalista atinente à distinção e clareza de representações é preservado por Kant, com a diferença de que agora é aplicado àquilo presente no conceito (representação intelectual) e na intuição (representação sensível), tornando “clara e distinta” a diversidade contida tanto em e sob determinado conceito, quanto na intuição. Já de acordo com Leonel dos Santos, esse ataque kantiano à tradição metafísica justifica a “intenção fundamental, de índole metodológica, da Dissertação Inaugural” apontada no prefácio à obra: a diferença crucial de método entre metafísica e demais ciências “empíricas” fundada numa espécie de oposição “ontológica” entre os âmbitos de objetos de que ambas tratam. Dessa maneira, nas ciências “é o ‘uso que faz o método’ e o precede. Na Metafísica, pelo contrário, o método deve preceder o uso da razão; por outras palavras, nela a exposição das leis da razão pura constitui a própria gênese da ciência e o critério da verdade é a própria distinção dessas leis genuínas relativamente às que nela são falsamente introduzidas” (Santos, L. R. Op. cit. p. 173). Para a moral, como veremos, essa virada metodológica se fará crucial.

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“jurisdição” à qual ela pertence, se à do mundo sensível ou à do mundo inteligível92. Em

outras palavras, analisar a “natureza humana” ou qualquer elemento empírico que

pertença ao comportamento efetivo do homem não conduz à elucidação “por

desmembramento” do fundamento da obrigação e, assim, da base da moralidade – trata-

se de conhecimentos não logicamente, mas antes originariamente distintos. Dessa

maneira, transpondo o campo da moral ao mundo inteligível, Kant dá aqui o passo

decisivo – e teoricamente consistente, se comparado aos Sonhos de um Visionário – no

abandono do método “psico-antropológico” como fundamento da moral, ou dito de

forma mais ampla, no reconhecimento de algum sentimento ou base material em que se

apoiaria a filosofia prática. Em suma, nenhuma observação da conduta humana efetiva,

por mais aguçada e detalhada que seja, consegue adentrar no “mundo moral” em que

aquela cobra sua normatividade.

Com efeito, Kant discute na Dissertação Inicial as consequências que esta nova

démarche, relativa inicialmente apenas à metaphysica specialis93, ao mesmo tempo

acarreta para a filosofia moral. Após enunciar que a metafísica deve justamente ocupar-

se com as representações intelectuais e não com as sensíveis (Dissertatio Ak II: 395. p.

242), Kant localiza a perfeição moral, proposição prática nuclear da philosophia

practica universalis wolffiana, no “âmbito dos númenos”, ou seja, no “mundo

92 Sobre isso, cf. Santos, L. R. Op. cit. pp. 171ss. Leonel dos Santos discute esse tema para mostrar como essa nova visada kantiana “demarca” a distinção entre “Ciência e Metafísica”, ou seja, entre as ciências físicas e matemáticas, de um lado, e a metaphysica specialis, de outro. Em acréscimo à análise de Leonel dos Santos, aplicamos o mesmo argumento à moral. 93 Como, esperamos, já está claro, evitamos aqui uma interpretação detalhada sobre o teor mesmo da “virada” proposta na Dissertação no interior do desenvolvimento da filosofia teórica kantiana e de sua crítica à metafísica tradicional: com a proposta reorientação da metafísica a um mundo inteligível, haveria ainda um teor dogmático ou pré-crítico acentuado num possível conhecimento das coisas em si mesmas, ou, antes, a definitiva sinalização do procedimento crítico de negar a possibilidade de conhecer os objetos localizados para além de espaço e tempo? Em outras palavras, tratar-se-ia do “escrito mais dogmático de Kant” (Vleeschauwer, H.J. Op. cit. p. 154), em que é afirmada “a possibilidade de da metafísica transcendente” (Idem. p. 163), ou, muito pelo contrário, a Dissertação, sobretudo com a distinção entre conhecimento sensível e intelectual e o esboço do problema antinômico da totalidade cosmológica, já sinaliza a rejeição crítica da metafísica dogmática através da concessão ao entendimento de um uso meramente empírico de seus conceitos? (Cf. Licht dos Santos, P.R. “O conceito de mundo e conceito na Dissertação de 1770” Primeira e segunda partes. In: Analytica, vols 11 e 12. 2007 e 2008). Por ora, ligado a isso e à argumentação de nossa dissertação, notemos também a ambiguidade que impregna o “puro” a que a Dissertação se refere e que será trabalhado na década de 1770: ora, ele pode ser ou bem a “estrutura transcendental” que permite a experiência, ou bem o “mundo inteligível” que se encontra “por trás” dos objetos sensíveis. A favor do que é argumentado aqui, trata-se de um problema que marca o projeto crítico kantiano e que, de resto, é acentuado desde a recepção imediata da obra crítica de Kant pelos seus contemporâneos.

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inteligível”, admitindo tratar-se do conceito prático de perfeição94. Baseado nesse

princípio geral da filosofia prática, Kant escreve:

Portanto, a filosofia moral, na medida em que fornece os primeiros princípios de

julgamento, não é conhecida senão pelo entendimento puro e pertence ela mesma à

filosofia pura (Dissertatio Ak II: 396. p. 243).

Após definir a filosofia moral como uma disciplina pura, que lida com as leis de

que trata o entendimento puro95, Kant realiza uma espécie de mea culpa referindo-se a

todos aqueles que puseram como base dos princípios práticos supremos alguma espécie

de elemento sensível:

Epicuro, que reduziu os critérios dela [filosofia moral] ao sentimento de prazer e

desprazer, é com muita justiça repreendido, juntamente com certos modernos que até

certo ponto o têm seguido à distância, como Shaftesbury e seus adeptos (Dissertatio Ak

II: 396. p. 243. Grifo nosso).

Logo Kant, o até pouco tempo antes potencial “Shaftesbury alemão” que

identificara no sentimento moral o ponto de partida das investigações em filosofia

prática, censura a escola britânica da arguta observação moral e social do homem por

partir de algum dado empírico em suas investigações. O “até certo ponto” presente na

passagem não faz justiça ao rigor da denúncia: tratava-se, de agora em diante, de uma

94 Há aqui mais um motivo para afirmar que Kant, na realidade, ainda não havia rompido definitivamente com a tradição. O princípio de perfeição somente será rejeitado como princípio supremo da moralidade em meados dos anos 70, justamente quando Kant começa a consolidar e cristalizar sua concepção própria sobre a base da filosofia moral. Cf. abaixo seção 2.2.1. 95 “Seu uso da palavra ‘puro’ [implica] a ausência, no mundo intelectual, de quaisquer elementos materiais (empíricos ou sensíveis). ‘Puro’, nesse sentido, é o absolutamente a priori. Visto negativamente, ele se refere ao que é independente da experiência. Visto positivamente, ele significa o que se origina da razão mesma e, como tal, é caracterizado por universalidade e necessidade”. Schilpp, P. A.. Op. cit. p. 90. Na verdade, o sentido de puro presente na Dissertação Inaugural seria o definido por Schilpp como “negativo” – é importante ressaltar que a atividade da razão nessa filosofia moral “pura” ainda não estava em absoluto clara para Kant. Na carta a Herz de 21 de fevereiro de 1772, Kant afirma que na Dissertação Inaugural a natureza das representações inteligíveis ainda era caracterizada “apenas negativamente, a saber, que elas não são modificações da alma produzidas pelos objetos” (Ak X: 130). Como bem mostra Leonel dos Santos (Cf. Santos, L. R. Op. cit. pp. 167-171), Kant, à altura da Dissertação Inaugural, ainda atribui o “poder puro (qual a sua natureza, quais os seus princípios, quais os limites de seu uso) (...) ao entendimento e coloca no mesmo plano os princípios do juízo moral e os princípios (ou categorias) da ontologia wolffiana” (idem. p. 171). O valor negativo do puro não levava imediatamente ao seu valor positivo, a ser desenvolvido ao longo da década de 70.

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68

recusa completa da intromissão de algo sensível nos “critérios iniciais” da filosofia

moral96.

A mudança de paradigma enunciada nessas passagens atesta a “mais

significativa inflexão no desenvolvimento da ética de Kant”97, a saber, a passagem de

“uma teoria ética determinada pela emoção <emotion-bound> para uma controlada pela

razão <reason-controlled>”98, ou ainda, uma “reorientação a uma fundação intelectual

da filosofia prática”99. Em uma palavra, a purificação da base da moralidade.

Estendendo ao âmbito teórico o alcance dessa denúncia sobre a “anfibolia

moral” cometida pelos partidários de Epicuro, Kant identifica o erro que conduziu ao

flagrante fracasso da metafísica tradicional – e, de resto, à agressiva indiferença de seus

detratores – na negligência em distinguir entre um mundo sensível e um mundo

inteligível, cujas “leis” somente podem ser aquelas do entendimento ou da razão e não

as da natureza, e, com isso, em ter confundido representação intelectual e representação

sensível, ou ainda, conhecimento “puro” e conhecimento “empírico”100. Daquele

96 Além da recusa da solução sensualista, Kant dá claro indício de que a própria escola wolffiana seria negada nessa esteira. Segundo Malibabo, na Dissertação Inaugural sinaliza-se a ruptura definitiva – mais uma, diga-se – com a philosophia practica universalis wolffiana consumada na Fundamentação. Como veremos mais adiante, Kant censura Wolff e seus seguidores por terem introduzido “considerações psicológicas” e “móbiles empíricos” na base mesma da vontade e de seu princípio “racional” de perfeição, perdendo-se, assim, o “âmbito a priori” em que toda filosofia moral deve fundar-se (Gr Ak IV: 390. p. 105). Para Malibabo, a distinção entre mundo sensível e mundo inteligível abre espaço não apenas para um “a priori do saber <Wissen>”, mas também para um “a priori da moralidade <Sittlichkeit>”, ausente em Wolff e seus seguidores: “Para a doutrina da ética (moral), isso significa uma ruptura com toda fundação eudemonista – pressuposto está que o a priori da moralidade deva ser, em todo o seu valor e em sua validade, completamente independente do sentimento sensível de prazer e desprazer” (Malibabo, B. Op. cit. p. 82). Visto que seu objeto deve ser conhecido unicamente através do “entendimento puro”, “a filosofia moral pura e a Metafísica dos Costumes são entendidas como ciências que, por isso, têm a ver com princípios puros e a priori, e não empíricos” (Idem. pp. 82-83) como, de resto, ainda ocorria na Investigação (Idem. p. 83. n 85). Ressaltemos novamente: dar um “passo decisivo” não significa ainda, por certo, “romper em definitivo” com a philosophia practica universalis wolffiana. 97 Menzer, P. “Der Entwicklungsgang der Kantischen Ethik in den Jahren 1760-1785”. In: Kant-Studien, 2. 1898. p. 51. 98 Schilpp, P. A. Op. cit. p. 104. Na realidade, é necessário modular as afirmações de Menzer e Schilpp. A presença da “razão”, como vimos, é sentida desde as primeiras formulações morais de Kant, mais precisamente em seu recurso ao “princípio formal” da perfeição. A extirpação dos “sentimentos” da fundação da moral não leva necessariamente consigo a matriz wolffiana, ao menos não nesse estágio da investigação kantiana em moral. Em outras palavras, o mais importante ainda permanecia a ser definido com precisão: de que “razão” se tratava nessa nova teoria ética, e qual “pureza” ela cobraria? São essas, como veremos, algumas das questões que Kant terá de responder na década seguinte ao desenvolver no campo moral a “grande luz” que tivera no período da Dissertação Inicial. Cf, infra seção 2.2 99 Ritter, C. Op. cit. p. 222. 100 “Era precisamente esse o grande defeito da escola wolffiana, a saber, o de não ter sabido aprofundar a distinção que ela própria estabelecera, segundo a tradição platônica e metafísica, entre uma parte empírica e uma parte pura do conhecimento, de ter ela mesma frequentemente apagado tal distinção através de uma aplicação banal do princípio de continuidade, e de tê-lo reduzido a não mais do que uma diferença de clareza na percepção de objetos”. Delbos, V. Op. cit. p. 122. Trata-se da crítica ao connubium rationis et experientiae de Wolff.

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69

momento em diante, os partidários da metafísica tinham uma nova diretriz

metodológica para livrarem-se do trabalho de Sísifo a que estavam condenados:

[J]á que em nossos dias o método dessa ciência [metafísica] não é conhecido a não ser

tal como o que a lógica prescreve em geral a todas as ciências, ao passo que se ignora

por completo o método que seja adequado ao espírito singular da metafísica, não é de

admirar que os que têm se dedicado a essa investigação pareçam, rolando eternamente a

sua pedra de Sísifo, não ter feito quase nenhum progresso. Embora eu não tenha aqui

nem a intenção nem a oportunidade de dissertar mais minuciosamente acerca de tema

tão notável e de extensão vastíssima, esboçarei porém desde já, com concisão, o que

constitui uma parte nada desprezível deste método, a saber, o contágio do conhecimento

sensitivo com o conhecimento intelectual (Dissertatio Ak II: 411. p. 269).

Embora, por certo, a questão ainda não estivesse plenamente constituída para

Kant, o que se prefigurava nessas passagens que coroam seu desenvolvimento

intelectual no período discutido era o projeto mais amplo de uma crítica da razão pura.

O “contágio do conhecimento sensitivo com o conhecimento intelectual”, que faz com

que “os princípios próprios do conhecimento sensitivo ultrapassem os seus limites e

afetem os princípios intelectuais” (Dissertatio Ak II: 412. p. 269), diagnosticado seja no

descaso cético empirista, seja na soberba racionalista e seu connubium rationis et

experientiae, somente seria debelado após um longo processo terapêutico que resultaria

na obra inaugural do período crítico101. Tratava-se, portanto, de deixar a lúbrica e

impura rocha de Sísifo de lado e adentrar no exame das nossas capacidades de

conhecimento e seus limites, em uma palavra, da pureza da própria razão:

101 Lewis White Beck liga a ideia do contágio diretamente à “grande luz” recebida por Kant em 1769 quanto ao problema das antinomias e que em grande medida dá o impulso à Crítica da Razão Pura: “Nenhum juízo que pressuponha ou exija um conhecimento do espaço e do tempo pode ser genuinamente metafísico; por conseguinte, os problemas que irão aparecer mais tarde sob o nome das antinomias (infinitude do mundo; divisibilidade infinita das substâncias; etc.) não são problemas genuinamente metafísicos”. Beck, L.W. “Lambert and Hume in Kant’s Development”. In: Op. cit. p. 105. Quem também interpreta a “grande luz de 1769” na chave da “separação da sensibilidade e do intelecto”, decorrendo disto “o sentido de espaço e tempo como formas puras da intuição e de alguns conceitos metafísicos fundamentais como conceitos sintéticos do entendimento”, é Giorgio Tonelli. “Die Umwälzung von 1769 bei Kant” In: Kant-Studien, 54, 1963, p. 369. Sobre isso, cf. Zammito, J.H. Kant, Herder, and the birth of anthropology. Chicago & London: The Universisty of Chicago Press, 2005. pp. 264ss. Ainda sobre a Crítica da Razão Pura como “medida profilática” para a metafísica, cf. Santos, L. R. Op. cit. p. 147: “A impressão que se colhe desses escritos [do período aqui analisado] (...) é a de que eles são fortemente marcados por uma concepção terapêutica, profilática e catártica da filosofia. É esta intenção que dá o tom à preocupação metodológica, que assim assume uma feição clínica e, em última instância, uma feição moral”. Trata-se, decerto, da profunda intenção moral que marca a “reabilitação” de uma metafísica “científica” para Kant. Sobre o tom moral que anima o embate de Kant com a tradição no período pré-crítico, cf. Figueiredo, V. Estudo sobre a relação entre método, teoria e prática na gênese da Crítica kantiana. Op. cit.

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70

A Metafísica é uma Crítica da Razão Pura, e não uma doutrina (...). Crítica é a ciência

de um conhecimento considerado subjetivamente; doutrina, a ciência de um

conhecimento considerado objetivamente (Rx 3964. Ak XVII: 368. 1769).

Com sua ambição de purificação da razão, Kant marcava sua posição não apenas

contra os empiristas e sua recusa em aceitar princípios anteriores à experiência, mas

também contra a escola racionalista de matriz wolffiana. Esta, com seu connubium

rationis et experientiae, não admitia algo como uma razão humana pura. “Segundo

Wolff, a pureza não é senão o mais alto grau de um uso que, por sua vez, depende

estreitamente da experiência, Apenas a razão divina pode ser absolutamente pura”102. A

revolução copernicana, consumada dali onze anos, começava de forma explícita nesse

momento103.

Os problemas, contudo, apenas se iniciavam: no sinuoso caminho que se abrira

com a Dissertação Inicial, Kant deparou-se com “novas e imprevistas dificuldades”

(Carta a Johann Bernoulli. 16/11/1781. Ak X: 277-8). Seu percurso, decerto, passaria

pela reformulação da filosofia moral, mas, no entanto, esta última seria

progressivamente reconduzida para segundo plano nas preocupações imediatas de Kant

no período seguinte, a “década silenciosa”. Nesta, o que o ocupou prioritariamente foi a

determinação precisa dos limites entre conhecimento sensível e conhecimento

intelectual, para cuja solução seria necessária uma Crítica da Razão Pura. Em suma, a

partir de agora os esforços de Kant se voltariam ao traçado dos contornos da razão e à

compreensão de seus “movimentos e ações”104 no interior dos limites do conhecimento

102 Paccioni, J.P. Cet Esprit de Profondeur. Christian Wolff. L’ontologie et la métaphysique. Paris: Vrin, 2006. p. 30. Cf. também. Idem. “Wolff, l’expérience et la raison non pure”. In: Revue philosophie de la France et le l’étranger. Tome 128. 2003/3. 103 Considerando-se, claro, as obras publicadas e as explícitas “cartas de intenção” fornecidas por Kant – o problema das antinomias, o despertar do sono dogmático pela leitura de Hume, etc., são todas razões alegadas por Kant de um ponto de vista retrospectivo, ou ainda, post factum. Sobre o intricado problema dos possíveis motivos que desencadearam a Crítica da Razão Pura (e aos quais nos limitamos a fazer menção) e a vasta literatura sobre o tema, cf. Figueiredo, V. Estudo sobre a relação entre método, teoria e prática na gênese da Crítica kantiana. Op. cit. pp. 42ss, esp. p. 51 e passim. Zammito, J.H. Op. cit. pp. 255ss. Os autores fazem um apanhado geral das diversas interpretações a respeito, e, de modo significativo e em confluência com o tom de fundo da nossa dissertação, avançam, cada um à sua maneira, uma tese que defende um forte lastro moral nos motivos que levaram à kritische Wendung. 104 “No percurso seguinte de seu pensamento, Kant precisaria atravessar o precipício traçado pela Dissertação de 1770 ao longo do território da razão, para que, com isso, pudesse ser produzida a unidade da razão por sobre os limites entre cognitio sensitiva e cognitio intellectualis. Dependeria, a partir de agora, de conhecer os movimentos e as ações da razão pura que fundam a experiência, ao mesmo tempo, contudo, em que permitem realizar passagens criticamente certificadas para o pensamento metafísico”. Kaulbach, F. Immanuel Kant. Op. cit. p. 103.

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71

humano – a filosofia moral, nessa esteira, “purifica-se” e encontra sua sede na “razão

pura”.

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72

2. 1770-1781 – CONHECENDO “A PERSONALIDADE DA RAZÃO”.

TRANSIÇÃO PARA A MORAL CRÍTICA

O sentimento moral não é nenhum sentimento originário. Ele repousa numa lei interna necessária de considerar-se e sentir-se a si mesmo num ponto de vista externo. Por assim dizer, na personalidade da razão <Persönlichkeit der Vernunft>: já que se sente no universal e se considera o indivíduo como um sujeito contingente e um acidente do universal (Rx 6598 Ak XIX: 103. 1769-1770 (1764-1768?)).

A década de 70, época que Kant ocupou desenvolvendo aquela que viria a ser a

obra inauguradora do período crítico, a Crítica da Razão Pura, marca o momento em

que seu observado “ecletismo” em filosofia prática definha de modo decisivo e a

“ruptura de Kant com a tradição” - propagada por diferentes comentadores nos mais

diversos momentos do período anterior analisado - finalmente se consuma. A pureza

exigida no momento de fundamentação não apenas faz Kant modular e matizar o antigo

fascínio exercido pela escola sensualista britânica, como também, e mais

significativamente, afrouxa irreversivelmente os últimos laços que o prendiam à

tradição racionalista em moral. Como sugerimos, o “formalismo” da moral kantiana em

sua etapa de fundamentação é aqui moldado no interior da diretriz profilática mais

ampla de distinção entre conhecimento intelectual e conhecimento sensível como ponto

de partida da “nova ciência” e da “nova metafísica” projetadas. Trata-se do longo

caminho percorrido por Kant em sua tarefa “conhecer a personalidade da razão” e

purificá-la de suas aderências empíricas – em outras palavras, o “procedimento da razão

que se isola a si mesma” <Das Verfahren der sich selbst isolierenden Vernunft> (Ak X:

144); na moral, que aqui particularmente nos interessa, isso significa a formulação

inicial e germinal de uma lei prática que cobra sua universalidade e necessidade

justamente de sua sede na “razão pura” e independente de bases sensíveis.

Como já dito, a preocupação mais imediata que anima as investigações de Kant

na década de 70 não é eminentemente prática, mas antes, dito de maneira ampla,

metodológica. Seguindo o caminho aberto pela Dissertação Inaugural, Kant se pôs a

investigar os elementos intelectuais ou puros do conhecimento, opostos e não mesclados

aos sensíveis:

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73

aqui, então, está o núcleo do problema que Kant enfrentou durante a década silenciosa;

e é também evidente que problemas de epistemologia tomaram de tal modo precedência

em face de problemas de ética que a solução final destes últimos deveria esperar até

1785. Contudo, isso não altera o fato de que no início dos anos 70 problemas de ética

assomavam-se no pensamento de Kant105

O objetivo de Kant na década silenciosa, a saber, “colocar tanto a moralidade

quanto o conhecimento sob a ‘base sólida da ciência’”106, conduzi-lo-ia à publicação da

Crítica da Razão Pura em 1781.

A ausência quase completa de obras publicadas107 no período e a dificuldade de

datar de modo preciso as Reflexões sobre filosofia moral da década de 70 nos obrigam a

adotar uma estratégia diferente nessa seção. Ao invés de entremear os relatos contidos

na correspondência kantiana sobre o transcurso das ideias acerca da Metafísica dos

Costumes às investigações específicas sobre filosofia moral desenvolvidas no Nachlass,

dividiremos esses tópicos em duas subseções: na primeira delas (2.1), apresentaremos,

apenas na medida, contudo, em que temas práticos se articulam a esse desenvolvimento,

as cartas de Kant do período nas quais expõe a seus interlocutores os progressos que o

levariam à Crítica da Razão Pura; numa segunda parte (2.2), discutiremos um trecho

das Lições sobre filosofia moral de Collins para marcar a posição de Kant em

contraponto à de seus antecessores e contemporâneos, surgindo desse embate a

exigência de um princípio moral puro e formal porém não tautológico e vazio (2.2.1);

na sequência, analisaremos uma série de passagens do Nachlass em que as relações

entre pureza, universalidade e razão começam a ser deslindadas e organizadas segundo

a feição geral que assumirão no período crítico, fazendo, é verdade, pouco caso das

modificações que possivelmente tomaram lugar no interior mesmo da década de 70.

Será demonstrado de que maneira a noção de um fundamento moral absolutamente

vinculante toma como modelo - de origem jurídica e nítida matriz rousseauísta - uma

105 Werkmeister, W.H. Kant’s Silent Decade. A Decade of Philosophical Development. Tallahassee: University Presses of Florida, 1979. p. 12. 106 Idem, Ib. 107 Kant publicou apenas quatro escritos na década de 1770: em 1771, uma recensão da tradução para o alemão de um livro de Peter Moscati, Von dem körperlichen wesentlichen Unterschiede zwischen der Struktur der Tiere und Menschen; em 1775, o ensaio Von den verschiedenen Racen der Menschen, em conjunto com o anúncio do programa das suas lições de geografia física do semestre de verão; em 1776-1777, Zwei Aufsätze, betreffend das Basedow’sche Philanthropin, publicados anonimamente; e, finalmente, em 1777, o comentário apresentado na defesa da dissertação inaugural do novo professor de lógica da universidade de Königsberg da qual Kant foi o responsável, publicado inicialmente sem título mas posteriormente nomeado Dissertatio philologico poetica de principiis fictionum generalioribus.

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74

comunidade de seres racionais regidos por leis autônomas que harmonizam a liberdade

e o arbítrio de cada indivíduo envolvido (2.2.2).

Diferentemente do que foi feito na seção anterior, assumiremos a indeterminação

na datação do material disponível e consideraremos a “década silenciosa”, apesar dos

vários argumentos possíveis em contrário, como um grande bloco uniforme no

desenvolvimento do pensamento moral de Kant. Em outras palavras, desconsideraremos

as modificações que possivelmente tomaram lugar no interior mesmo da década de 70.

2.1. Os “Limites da Sensibilidade e da Razão” – A Metafísica dos

Costumes no interior dos planos de uma futura “Crítica da Razão Pura”

Em 02/09/1770, menos de um mês após a defesa de sua Dissertação

Inaugural,108 Kant escreve a Lambert oferecendo-lhe uma cópia do escrito e relatando-

lhe os desenvolvimentos de seus projetos. A carta é marcada por um intenso sentimento

de entusiasmo: após um longo e exaustivo período tomado por investigações sobre a

“ciência” compartilhada por ambos, Kant conta a Lambert que com a obra que enviava

ao amigo acreditava finalmente ter chegado a uma “ideia determinada do método

peculiar a ela”; o prolongado percurso o conduzira a conceitos que, esperava, “jamais

seriam alterados”, mas que, entretanto, deveriam ser “ampliados” para que “todas as

formas de questões metafísicas fossem provadas segundo critérios simples e muito

seguros, bem como fosse decidido com certeza até onde elas são ou não resolvíveis”

(Ak X: 97). Segundo Kant, a propedêutica à metafísica deveria ser depurada de todos os

elementos sensíveis, pois os objetos de que trata são “pensados através de conceitos

racionais puros e universais”, sem contato algum com espaço e tempo (Ak X: 98).

O novo método “purificado” parecia já render frutos. Kant afirma que reservaria

o inverno daquele ano para “colocar em ordem” e “completar” suas “investigações

sobre a filosofia prática pura, na qual nenhum princípio empírico deve ser encontrado,

por assim dizer, uma Metafísica dos Costumes” (Ak X: 97. Grifos nossos). Esta obra,

segundo Kant, “pavimentaria em muitos aspectos o caminho para os mais importantes

propósitos na modificação da forma da metafísica”, e seria igualmente necessária com

vistas “ao precário estado dos princípios das ciências práticas” (Ak X: 97), denunciado

108 A defesa pública da dissertação ocorreu em 21/08/1770. Cf. Kuehn. M. Kant. A Biography. Op. cit. p. 189.

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75

desde a Investigação. A importância da obra, portanto, não poderia ser

menosprezada109. Infelizmente seu entusiasmo o traia novamente, e Kant realizava aqui

mais uma promessa infundada e involuntariamente lograva mais um interlocutor: não

apenas ele não publicou qualquer escrito estritamente sobre filosofia moral durante os

14 anos seguintes, como também sua sempre renovada confiança no “novo método” em

filosofia sofreria sucessivos golpes nos anos subsequentes.

As investigações sobre a filosofia prática pura relatadas a Lambert e reforçadas

em carta de Johann Georg Sulzer de 08/12/1770, que escreve a Kant dizendo-se ansioso

pela publicação da sua Metafísica dos Costumes (Ak X: 112), seriam a partir de então

incluídas como parte de um projeto mais ambicioso, cujo cerne, a separação entre os

elementos sensíveis e intelectuais do conhecimento, já havia sido enunciado na

Dissertação Inaugural. Cerca de 6 meses mais tarde, em 07/06/1771, Kant conta a Herz

que o inverno anterior – justamente o período que seria tomado pela redação de sua

Metafísica dos Costumes – havia sido reservado para “recolher os materiais”, “examinar

e pesar” tudo aquilo necessário para uma obra chamada “Os Limites da Sensibilidade e

da Razão”, que deveria conter “a relação dos conceitos fundamentais e leis que

determinam o mundo sensível conjuntamente com esboços daquilo que perfaz a

natureza da doutrina do gosto <Geschmackslehre>, metafísica e moral <Moral>” (Ak

X: 123). Ao que o restante da correspondência indica, seria esse esquema ainda precário

de obra que guiaria as preocupações kantianas na década de 1770, não apenas

determinando a tão desejada “refundação da metafísica” como também marcando o

percurso do pensamento moral de Kant no período.

109 Tomando esta carta a Lambert como exemplo bem acabado de seu argumento, Monika Sänger afirma que os esboços e indicações da futura Metafísica dos Costumes contidos no período pré-crítico sinalizam problemas muito mais metodológicos do que propriamente morais: “As cartas de Kant deixam em geral a impressão de que a Metafísica dos Costumes era uma preocupação central sua, visto que ela, segundo sua nova determinação, deveria ser um demonstrativo para um novo método em metafísica, ou ainda, em filosofia em geral”. Sänger, M. Die kategoriale Systematik in den ´Metaphysischen Anfangsgründe der Rechtslehre´. Berlin: De Gruyter, 1982. p. 17. Como a autora tenta mostrar na seqüência do trecho citado, é o próprio caráter sistemático da filosofia que está no centro das preocupações de Kant no período. Discordamos da autora quando esta entende o “aspecto sistemático” tão-somente como a acomodação de questões jurídicas e éticas no interior de um esquema categorial, a exemplo do que ocorre nos Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza, deixando em segundo plano, desse modo, as próprias questões sobre filosofia moral que permeiam o trajeto da Metafísica dos Costumes durante toda a evolução da filosofia kantiana. A avaliação de Sänger decorre do objetivo de seu livro, a saber, demonstrar, sobretudo através dos Vorarbeiten zur Rechtslehre, a existência de uma inacabada estrutura categorial na Metafísica dos Costumes. Com isso ela subordina os problemas intrínsecos à filosofia moral ao aspecto “sistemático-categorial” extrínseco ao desenvolvimento mesmo da Metafísica dos Costumes. Ora, a estrutura categorial, sobretudo no âmbito prático, apenas surge de forma acabada no período crítico, e, portanto, apenas no interior deste poderia ter-se revelado um empecilho decisivo para a redação da Metafísica dos Costumes, se é que, de fato, tenha se revelado como tal.

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76

Na famosa carta a Herz de 21/02/1772, na qual a resposta ao problema da

relação entre representação intelectual (ou “conceitos puros do entendimento” [Ak X:

130]) e representação sensível é definida por Kant como a “chave” para o “mistério da

metafísica”, delineando-se assim uma das bases da futura Crítica da Razão Pura110,

Kant afirma já ter feito grandes progressos na “distinção do sensível e intelectual na

moral <Moral>” e esboçara, de modo “suficientemente satisfatório”, os “princípios do

sentimento <Gefühl>, do gosto e da capacidade de ajuizamento <Beurteilungskraft>,

com seus efeitos: o agradável <Angenehm>, belo e bom” (Ak X: 129). O êxito obtido

em suas investigações o levara a um esquema prévio da obra cujo título seria “algo

como” aquele já anunciado na carta anterior a Herz: “Os Limites da Sensibilidade e da

Razão” seriam divididos em duas partes, uma teórica e outra prática. “A primeira

conteria duas seções: 1. fenomenologia em geral <Phaenomologie überhaupt>111. 2. A

Metafísica, e, de fato, apenas segundo sua natureza e método. Da mesma forma, a

segunda parte [conteria] duas seções: 1. Os princípios universais do sentimento, gosto e

desejo sensível <Allgemeine Prinzipien des Gefühls, des Geschmacks und der

sinnlichen Begierde>. 2. Os primeiros fundamentos da moralidade <Sittlichkeit>” (Ak

X: 129). Com efeito, essa obra planejada seria, segundo Kant, “uma Crítica da Razão

Pura, que contém a natureza do conhecimento tanto teórico quanto prático”, a primeira

parte contendo “as fontes da metafísica, seu método e limites”, e a segunda, “os

princípios puros da moralidade” (Ak X: 132).

Dessa segunda parte, com exceção de que ela seria composta apenas após o

término da primeira, nada mais é dito112; sobre a parte teórica, por sua vez, Kant escreve

110 Trata-se do questionamento germinal da relação entre categorias do entendimento (representações “intelectuais”) e objetos da experiência possível (representações sensíveis): “Como meu entendimento ‘pode, completamente a priori, constituir para si mesmo conceitos de coisas’, como, portanto, representações a priori podem referir-se a coisas”. Kaulbach, F. Immanuel Kant. Op. cit. p. 104. Para um tratamento completo da maneira como a questão se apresenta na carta a Herz e transmuda-se nos termos presentes na Crítica, cf. Longuenesse, B. Kant and the Capacity to Judge – Sensibility and Discursivity in the Transcendental Analytic of the Critique of Pure Reason. Princeton: Princeton University Press, 1998. pp. 17-26. Carl, W. Op. cit. pp. 16-50. 111 Lewis White Beck escreve que esta “fenomenologia” seria uma “teoria das aparências” (Beck, L. W. A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Op. cit. p. 8), o que não é exato. Em carta a Lambert de 02/09/1770, Kant descreve a phaenomologia generalis como “uma ciência meramente negativa que precisa preceder a metafísica para que sejam determinados os limites e a validade dos princípios da sensibilidade, e, com isso, a metafísica não se equivoque nos juízos sobre os objetos da razão pura, como até aqui quase sempre ocorreu” (Ak X: 57). Num olhar prospectivo, algo bem próximo do significado assumido por Crítica em um sentido amplo; num olhar retrospectivo, a ciência propedêutica à metafísica discutida na Dissertação Inaugural e que, segundo Kant, teria sido desempenhada justamente por esta obra (Dissertatio Ak II: 395. p.242). Cf. Carl, W. Op. cit. pp. 17-18 112 Para Schilpp, essas duas cartas a Herz, a despeito do laconismo de ambas, demonstram como “Kant estava pensando metafísica e ética como relacionadas, ao menos metodologicamente, de forma íntima”. (Schilpp, P. A. Op. cit. p. 108). E, de fato, trata-se de preocupações “gêmeas”, ou melhor, motivadas por

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tratar-se de uma investigação “sobre a natureza e os limites da Metafísica”, ou ainda,

uma “filosofia transcendental” cujos conceitos, “todos aqueles pertencentes à razão

pura”, seriam reduzidos a um determinado número, as “categorias”, segundo “as leis

fundamentais do entendimento”, num projeto semelhante àquele de Aristóteles (Ak X:

132).

As laboriosas buscas de Herz nos catálogos da feira de livros de Berlim por um

nome começado com “K” são infrutíferas, afirma Kant em carta ao próprio datada do

fim de 1773 (Ak X: 143-146). A obra sobre um novo método em metafísica, anunciada

no ano anterior, ainda permanece como simples projeto: os três meses então prometidos

para a publicação da obra (Ak X: 132) se tornariam, como é sabido, 9 anos. No ano que

separa as duas cartas a Herz, Kant parece ter-se dado conta do longo trabalho exigido na

fundação dessa “ciência absolutamente nova segundo sua ideia”, e sabe que seu

grandioso propósito o impede de fazer vir à luz um escrito qualquer motivado pelo

fascínio da busca pela fama (Ak X: 144).

No entanto, suas ideias sobre a moral parecem ter avançado ao lado de seus

esboços sobre o novo método em filosofia. Kant relata a Herz os resultados provisórios

a que tinha chegado no terreno prático: segundo ele, “o fundamento supremo da

moralidade <der oberste Grund der Sittlichkeit> não poderia ser inferido meramente do

agradável <Wohlgefallen>, devendo ser, ele mesmo, no mais alto grau agradável, pois

não é nenhuma representação meramente especulativa, mas antes precisa ter força de

motivo <Bewegkraft> e, portanto, caso de fato seja intelectual, precisa ter uma

referência direta aos primeiros móbiles da vontade <erste Tribfedern des Willens>” (Ak

X: 145).

Presumivelmente satisfeito com o transcurso de suas investigações práticas,

Kant anuncia a Herz que, ao lado de uma “Metafísica da Natureza”, uma “Metafísica

dos Costumes”, da qual, imagina-se, o “fundamento supremo da moralidade” anunciado

serviria como base e primeiro princípio, estava prevista como a primeira obra após o

término de seu atual projeto: uma “filosofia transcendental que é realmente uma Crítica

da Razão Pura” (Ak X: 145). Kant novamente se trai: mesmo no período crítico, a

“empresa doutrinal prática”, a Metafísica dos Costumes, viria a público 11 anos após o

esboço de seu correlato teórico, os Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da

Natureza, publicados em 1786.

um propósito comum no percurso que conduz à Crítica da Razão Pura. Contudo, dessa constatação não é possível extrair qualquer determinação positiva a respeito do que seria a “moralidade” aludida.

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78

Cerca de três anos separam essa breve discussão do “fundamento supremo da

moralidade” da seguinte menção ao que seria a tão prometida “Metafísica dos

Costumes”. Em carta a Herz de 24/11/1776, Kant esboça um plano mais concreto acerca

do que viria a ser sua futura “filosofia transcendental” ou “Crítica da Razão Pura”.

Respondendo àqueles que o acusavam de “inatividade”, Kant replica que, pelo

contrário, estava então mais envolvido em “ocupações constantes e sistemáticas” do que

nos anos precedentes. Esse cansativo trabalho consistia em percorrer todo o “campo dos

juízos independentes de princípios empíricos, isto é, [o campo] da razão pura, que reside

a priori em nós e cuja revelação não pode ser esperada da experiência” (Ak X: 199). O

esboço da obra provinda dessa “ocupação sistemática” era composto por uma “crítica,

uma disciplina, um canon e uma arquitetônica” da razão pura, partes essas necessárias

para indicar “com certeza a extensão, as divisões, os limites e todo o conteúdo” dos

princípios da razão pura (Ak X: 199). Assim, além das partes de que se comporia a

Crítica da Razão Pura, muitos dos objetivos da obra de 1781 já estavam aqui

plenamente delineados: o esquadrinhamento completo do “campo da razão pura”, isto é,

dos “juízos independentes de princípios empíricos”, bem como a determinação precisa

da “extensão, das divisões, dos limites e de todo o conteúdo” do mesmo (Cf. KrV A

XII. pp. 5-6). Em suma, Kant parecia já ter avançado consideravelmente no projeto

daquela que, 5 anos mais tarde, seria a obra inauguradora do período crítico.

De acordo com uma Reflexão desse mesmo ano, Kant pensava sua Metafísica

dos Costumes no interior desse extenso plano, a saber, como o canon da razão pura

mencionado, e que, enquanto tal, seria apartado de tudo aquilo pertencente ao homem

enquanto um ser “in concreto”:

Na metafísica dos costumes precisamos abstrair de todas as características humanas, da

aplicação e de seus impedimentos in concreto, e precisamos buscar apenas o canon, que

é uma ideia pura e universalmente válida”. (Rx 6822. Ak XIX: 172. 1776. Grifos

nossos).

Os problemas metodológicos implicados na reta final na redação da Crítica da

Razão Pura aparentemente desligaram Kant de questões estritamente morais e da antiga

ambição de redigir “em breve” uma Metafísica dos Costumes – ao menos é isso o que

sugere o desaparecimento na correspondência de referências ao estado atual e aos

futuros contornos da filosofia prática kantiana. Seja como um “canon”, seja como um

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79

escrito redigido em separado da futura Crítica da Razão Pura, Kant somente iria

retomar publicamente os planos de sua Metafísica dos Costumes na década de 80, já no

interior do período crítico.

* * *

Vejamos agora a forma como Kant esboça suas ideias sobre filosofia moral no

material contido no Nachlass. Ao lado dos contornos da futura Crítica da Razão Pura, é

a própria filosofia prática crítica que se desenhava gradualmente ao longo da década de

70.

2.2. Os primeiros esboços de um princípio puro da moralidade –

Delineamentos iniciais da concepção de autonomia

2.2.1. Rejeição das escolas empirista e intelectualista

Adotaremos aqui um dos possíveis pontos de partida para se compreender o

desenvolvimento da filosofia moral de Kant no período que culmina no aparecimento da

filosofia crítica. Para tanto, partiremos da contraposição da doutrina kantiana que então

se delineava à de seus precursores e, por meio desse confronto, caracterizá-la em suas

exigências e pretensões centrais, que serão, por sua vez, analisadas na subseção

seguinte. Como vimos anteriormente, a marca do pensamento prático kantiano na

década de 60 é a de um ecletismo que o levava a unir o princípio wolffiano de perfeição

às vogas britânicas relativas ao sentimento moral. No embate com esses autores, a

“autonomização” da filosofia prática kantiana, cujos primeiros indícios datam da

segunda metade dos anos 60, atinge no período aqui analisado um estágio significativo

e um verdadeiro ponto de inflexão: a negação do sentimento moral como base

normativa da filosofia moral vem juntar-se à recusa da solução wolffiana, considerada

seja excessivamente abstrata, seja completamente indeterminada. Delineia-se, assim, um

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80

princípio supremo da moralidade puro e formal, independente das características

subjetivas do agente e positivamente determinante na obrigação e dever morais113.

Numa Reflexão possivelmente do início da década de 70, Kant expõe uma breve

taxonomia de todos os possíveis sistemas morais segundo o “fundamento teórico” de

onde extraem seu princípio supremo:

Todos os sistemas de moral buscam, primeiro, encontrar o fundamento (teórico)

supremo do ajuizamento moral (...). No que diz respeito ao primeiro, [há sistemas que]

derivam 1) essa regra não de princípios universais da razão, buscando, antes, o

fundamento daquilo que acontece e é ajuizado, e não do que deve ser julgado; eles

consideram, portanto, o principium morale como subrepticium e como legem

phaenomenorum. Eles fazem a) dos usos e exemplos, b) do amor à honra <Ehrliebe> e

do autointeresse <Eigennutz> fontes de todas as nossas ações aparentemente virtuosas.

Eles consideram, portanto, todo imperativo moral como condicionado sub conditione

subjectiva. [Trata-se de sistemas que buscam] um principium empiricum a) em leis

humanas contingentes: Hobbes; b) em um impulso especifico da natureza e do

sentimento humanos. Ou 2) [sistemas que são] racionais” (Rx 6635. Ak XIX: 121.

1769-1770; (1764-1768?)).

Haveria, portanto, duas grandes classes de sistemas morais. Primeiro, aqueles

que buscam deduzir e formular proposições morais a partir do que acontece, tomando

seja algum sentimento ou inclinação como fundamento, seja algum condicionamento

externo que acomete o sujeito. Em ambos os casos, trata-se de uma base empírica de

onde, presumivelmente, a moralidade extrairia sua normatividade. Segundo, haveria

sistemas morais que tomam um caminho inverso, apoiando seus princípios na razão.

Sobre o que seriam estes sistemas morais racionais, entretanto, Kant nada diz aqui.

Nas Lições sobre Filosofia Moral anotadas por Collins entre 1774-1775 e 1776-

1777114, esclarece-se qual seria a opção racional em moral. Retomando em linhas gerais

113 Boa parte das críticas aos sistemas morais da tradição que aqui serão discutidas está presente nos escritos sobre filosofia prática do período crítico (algumas delas remontam até à década de 1760). Preferimos, no entanto, escolher trechos redigidos ou anotados durante a década de 1770 para indicar de que maneira já nesse período Kant estava em vias de conceber seu sistema moral crítico segundo a feição assumida nas obras tardias. Trata-se, aqui, tão somente de marcar a significativa proximidade temporal – e conceitual, por certo – entre os esboços iniciais sobre o princípio de autonomia e a recusa das soluções sensualistas e racionalistas com que Kant flertava nos anos 1760. 114 Apesar de na página de rosto do manuscrito estar indicado como data o semestre de inverno de 1784-1785, as lições anotadas pertencem à década de 70. Muitas informações sobre as datas e os manuscritos que restaram das lições de Kant na universidade de Königsberg são retiradas do site “Kant in the Classroom”: http://www.manchester.edu/kant/Home/index.htm., sob a coordenação de Steve Naragon.

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81

o quadro exposto acima, Kant opõe dois grandes grupos na solução dada ao problema

do “princípio da moralidade”: os empiristas e os intelectualistas.

Os sistemas empíricos se dividiriam em duas categorias: aquela cujos

proponentes defendem um fundamento interno, e aquela cujos proponentes defendem

um fundamento externo para a moralidade:

Quando o sistema da moral repousa sobre fundamentos empíricos, ele então repousa em

fundamentos ou bem internos, ou bem externos, de acordo com os objetos do sentido

interno ou externo. Se a moralidade <Moralität> repousa em fundamentos internos,

trata-se então da primeira parte do sistema empírico, se repousa sobre fundamentos

externos, trata-se então da segunda parte do mesmo (Vorl Collins. Ak XXVII: 253).

A primeira parte do sistema empírico, que dispõe de um fundamento interno,

encontra como solução para a base da moralidade seja um sentimento físico, seja um

sentimento moral:

A moralidade derivada dos fundamentos internos dos princípios empíricos supõe um

sentimento físico ou moral. O sentimento físico consiste no amor-próprio (...), a

vanidade e o autointeresse. Ele se dirige ao proveito próprio, e é um princípio egoísta

por meio do qual os sentidos são satisfeitos. Trata-se de um princípio da prudência. Os

autores dos princípios do amor-próprio são, dentre os antigos, Epicuro, que tinha em

geral um princípio da sensibilidade, e, dentre os novos, Helvetius e Mandeville. O

segundo princípio do fundamento interno do sistema empírico é aquele em que o

fundamento é colocado no sentimento moral, por meio do qual se pode distinguir o que

é bom ou mau. Os principais autores são Shaftesbury e Hutcheson (Vorl. Collins. Ak

XXVII: 253).

No que diz respeito àqueles que propõem um fundamento externo para a

moralidade, Kant afirma tratar-se de algo como uma solução “convencionalista” para a

mesma: os princípios da moralidade seriam determinados ou bem pela sociedade e pelos

preceitos morais aprendidos por meio da educação, ou bem pela influência direta do

Estado e das autoridades na determinação da conduta a ser seguida pelos súditos:

Ao sistema empírico da doutrina <Lehrbegriff> da moralidade pertencem, em segundo

lugar, fundamentos externos. Aqueles que assim definem a moralidade dizem: ‘toda

moralidade repousa em duas partes: na educação <Erziehung> e no governo

Naragon utiliza informações provindas não apenas da Akademie-Ausgabe, mas também de outras fontes, muitas vezes mais confiáveis do que as fornecidas para a edição canônica da Academia de Berlim.

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82

<Regierung>’. Toda moralidade seria apenas um hábito <Gewohnheit>, e nós

ajuizamos a partir do hábito sobre todas as ações segundo ou regras da educação, ou

leis das autoridades <Obrigkeit>. Portanto, os ajuizamentos morais surgem ou de

exemplos, ou de prescrições da lei. O primeiro é afirmado por Montaigne (...). O

segundo é afirmado por Hobbes (Vorl Coll. Ak XXVII: 253).

Não é preciso muito esforço para notar que Kant rejeita todas essas opções. A

resposta “relativista” à moral, como a de Hobbes e Montaigne, vai diretamente de

encontro à própria origem da moralidade, já discutida na Dissertação Inaugural,

localizada em mundo “intelectual” distinto do sensível e no qual encontra o fundamento

de sua obrigação incondicional: ora, afirmar junto com Montaigne que “no Brasil

enterram-se crianças vivas” (Vorl. Coll. Ak XXVII: 253) para, com isso, concluir pela

relatividade da moralidade dentre as culturas, significa, além de uma agressão ao senso

comum, afirmar a contingência das prescrições morais em virtude de relatos fornecidos

por uma experiência geográfica e culturalmente localizada, descurando por completo

das características comuns que, de forma geral, unificam o conceito de homem e agente

moral presente em todos os povos.

Já aqueles que partem de sentimentos físicos para deles extrair o fundamento da

moralidade, apesar de supostamente tomarem um conceito “geral” de ser humano em

sua análise, apostam igualmente em uma base física e, assim, contingente, da qual não é

possível compreender a necessidade absoluta da obrigação moral, discutida e defendida

por Kant desde a Investigação:

Se o princípio da moralidade <Moralität> repousa no amor-próprio, ele então repousa

em um fundamento contingente, pois a constituição <Beschaffenheit> das ações

segundo a qual elas podem ou não trazer-me proveito <Vergnügen> repousa em

circunstâncias contingentes (Vorl Coll. Ak XXVII: 253-254).

Por fim, Hutcheson e seu sentimento moral são rejeitados com base no

argumento de que a moralidade assim fundada se tornaria algo cambiante e instável, a

despeito da aparente desvinculação de toda empiria:

Não apenas não se deve citar o sentimento moral como um principium, mas também

não se deve deixar nenhum fundamento moral à decisão do sentimento, p.ex, suicídio, e

tampouco os motivos <Bewegungsgründe> aos fundamentos do sentimento, p.ex,

compaixão, repugnância. Pois o sentimento não tem nenhuma regra, ele é cambiável e

caprichoso <wetterwendisch> (Rx 6902. Ak XIX: 201. 1776).

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83

Apesar de não negar a existência de um sentimento moral não sensível que toma

lugar em toda e qualquer ação moralmente relevante, Kant inverte a ordem dos fatores e

defende que ele, na realidade, é produto da moralidade, e não fundamento de

determinação da mesma:

-

O sentimento moral se segue ao conceito moral, e não o produz; ele não pode substituí-

lo, mas antes o pressupõe (Rx 6757. Ak XIX: 150. 1772).

Ademais, a própria liberdade, condição de toda ação moral, se veria sujeita ao

capricho caso tivesse como fundamento um sentimento moral; ao não apoiar-se em

regras e princípios, a ação livre seria reduzida a resultado de um “instinto” ou

“inclinação”, redundando, como nas demais soluções empíricas, na instabilidade e

irregularidade das prescrições morais:

Há um sentimento moral; este, contudo, não é um fundamento do juízo, mas sim da

inclinação (Rx 6696. Ak XIX: 135. 1770-1771? (1773-1775?)).

A hipótese do sentimento ([que]não é nenhum sistema) é a da condução cega da

liberdade segundo um instinto moral (Rx 6863. Ak XIX: 184. 1776).

Como se percebe, é a contingência dos princípios empíricos, baseados nos

sentidos internos e externos, que leva Kant a rejeitá-los. Mesmo o sentimento moral,

anteriormente tomado como um fundamento material da moralidade e, enquanto tal,

como base imediatamente certa de todo ajuizamento moral, é reduzido nesse período a

um “instinto” cambiável e caprichoso, que tampouco poderia ser considerado como

adequado à necessidade vinculada à obrigação moral, sendo, dessa maneira, incluído ao

lado das demais equivocadas respostas empiristas ao problema da moralidade115.

115 Henrich resume em quatro pontos o cerne da crítica de Kant a Hutcheson: “Universalidade, caráter vinculante, fundamentação transcendental e o conteúdo da consciência moral. De acordo com Kant, nenhuma destas questões foi propriamente abordada ou mesmo reconhecida por Hutcheson. Torna-se já bem óbvio que a objeção mais importante de Kant diz respeito à necessária universalidade do juízo em relação ao bom moral. Para Kant, o elemento de universalidade exige incontestavelmente que busquemos na razão mesma a origem do ético e da forma de discernimento <Einsicht> que ele envolve”. Henrich, D. “Kant and Hutcheson” Op. cit. 34. O artigo, de forma geral, apresenta uma completa análise da interpretação de Hutcheson feita por Kant, recorrendo tanto às Reflexões e Lições de Kant, como às obras do próprio Hutcheson. Discordamos de Henrich quando este argumenta que os dois primeiros pontos da crítica kantiana à solução de Hutcheson, a saber, a falta de universalidade e força vinculante no sentimento moral, estariam presentes já no período de redação da Investigação, isto é, por volta de 1762 (Henrich, D. “Kant and Hutcheson”. Op. cit. p. 36). Ora, como tentamos mostrar, Kant, embora hesitante,

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84

O outro caminho possível, o “intelectualismo” da escola de Wolff e seus

princípios formais, supre parte das insuficiências da opção empirista: trata-se aqui de

localizar a moralidade não nas circunstâncias sensíveis em que se encontra o agente,

mas antes no próprio “entendimento”, e, portanto, fazer jus à origem a priori que

caracteriza o princípio supremo da moralidade e sua universalidade e “constância”:

O segundo sistema moral é o intelectual. Segundo ele, o filósofo ajuíza que o principio

da moralidade tem um fundamento no entendimento e pode ser discernido

<eingesehen> completamente a priori. P.ex: [o dever] ‘tu não deves mentir’; caso este

repousasse no princípio do amor-próprio, ele então diria ‘tu não deves mentir somente

caso isso te prejudique; caso, contudo, isso te traga proveito, é então permitido fazê-lo’.

Se ele repousasse no sentimento moral, seria então permitida a mentira àquele que tem

um sentimento moral pouco afiado a ponto de a mentira não lhe proporcionar repulsa.

Repousasse na educação e no governo, então seria livre para mentir aquele cuja

educação ou cujo governo assim o permite. Se, contudo, ele repousa num princípio que

tem lugar no entendimento, então ele diz simplesmente: ‘tu não deves mentir

independentemente do que possam ser as circunstâncias’. (Vorl. Coll. Ak XXVII: 254).

Os sistemas intelectuais, portanto, apostam na determinação do dever pelo

“entendimento”, tomando este último como algo não dependente da experiência e,

assim, a priori e incondicional:

De fato, a lei moral <moralische Gesetz> expressa a necessidade categórica e não uma

tal que seja extraída da experiência. Todas as regras necessárias precisam ser fixadas

<feststehen> a priori, por conseguinte, os princípios são intelectuais. O ajuizamento da

moralidade não ocorre em absoluto através de princípios empíricos e sensíveis, pois a

se inclinava no período de redação da obra às ideias da escola escocesa, tentando mesclá-las às da escola racionalista de Wolff. De resto, para apoiar seu argumento Henrich utiliza apenas reflexões (Rx 6755, 6841, 7253, 6770, 6749, 6623) datadas por Adickes como posteriores à redação da Investigação, o que, portanto, invalidaria suas conclusões. O erro de Henrich foi o de ter dado muita ênfase aos Comentários às Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, supondo já estar prefigurado neles como que o “espírito” dessas Reflexões mais tardias. Mesmo admitindo, a favor do argumento de Henrich, um possível erro na datação de Adickes, há outro equívoco mais significativo: Henrich descura das datas de redação das obras em questão: os Comentários, a despeito do que possa estar contido neles, foram redigidos cerca de 2 anos após a redação Investigação, publicada em 1764 porém escrita em 1762. A tentativa de Henrich de relativizar a discrepância de datas das Reflexões (p. 41) não consegue invalidar os argumentos apresentados acima. Contra Henrich, cf. Kuehn, M. “Ethics and anthropology in the development of Kant’s moral philosophy” In: Timmerman, J. (ed). Kant’s Groundwork of the Metaphysics of Morals. A Critical Guide. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. pp. 10-11. Kuehn argumenta que os primeiros indícios concretos da recusa definitiva por parte de Kant da solução de Hutcheson ao problema do fundamento da moral remontam a 1770-1771, mais precisamente a Reflexões datadas por Adickes como pertencentes a esse intervalo de tempo, por exemplo, Rx 6693-6696. Ak XIX: 124-125. Utilizamos acima uma dessas Reflexões.

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85

moralidade não é absolutamente um objeto dos sentidos, mas antes ela é um objeto

meramente do entendimento (Vorl. Coll. Ak XXVII: 254).

Aqui também Kant divide a solução intelectualista em dois grupos, segundo o

mesmo esquema de oposição interno/externo utilizado na solução empirista. O primeiro

deles localiza o princípio da moralidade no entendimento do próprio agente moral, e o

segundo, no entendimento de um outro “ser”; em outras palavras, ou “na medida em

que ele [princípio da moralidade] repousa na constituição <Beschaffenheit> interna da

ação, na medida em que ela é considerada pelo entendimento; ou ele pode ser um

princípio externo, na medida em que nossas ações têm uma relação com um outro ser

estranho” (Vorl. Coll. Ak XXVII: 254).

O segundo grupo, representado, entre outros, por Crusius, defende que Deus é o

procurado entendimento exterior que determinaria o valor moral da ação e, assim, o

fundamento da moralidade. Segundo Kant, tratar-se-ia de uma solução “teológica” para

a moral, e, enquanto tal, à semelhança das teses correlatas sobre um “influxo

hiperfísico” no terreno teórico como a de Malebranche, uma solução circular quando

não completamente desvairada116.

Restaria, aparentemente, apenas a solução de Wolff e seus acólitos: um princípio

intelectual formal interno que, de modo a priori e segundo o entendimento do próprio

agente, estipularia determinada ação como moralmente boa. Kant, contudo, não

encampa a proposta wolffiana. Tendo como alvo um seguidor heterodoxo de Wolff,

Baumgarten, cujo compêndio utilizava em suas lições sobre filosofia moral, Kant ataca

os dois princípios tidos pela escola wolffiana como supremos na moral: fac bonum et

omitte malum e quaere perfectionem quantum potes, ou seja, “faze o bem e evita o

mal”, e “procura a maior perfeição que consigas”. Segundo Kant, Baumgarten apostaria

em princípios tautológicos e indeterminados, a despeito de sua origem intelectual.

116 “O Deus ex Machina é o que de mais absurdo <ungereimteste> pode ser escolhido na determinação da origem e validade de nosso conhecimento, e, além de produzir um círculo vicioso na cadeia de conclusões de nosso conhecimento, tem ainda como ponto negativo encorajar fantasias, desvarios devotos ou vãs meditações” Carta a Herz de 21/02/1772. Ak X: 131. Sobre a crítica específica ao recurso de Crusius a Deus na fundamentação da moralidade, além da Carta a Herz citada, Cf. KpV Ak V: 40-41. p. 65- 67. Cf . Gr Ak IV: 441-443. pp. 145-147. Henrich, D. “Über Kants früheste Ethik”. Op. cit. pp. 414ss. É curioso notar como Kant na década de 60, mais precisamente nas Lições de filosofia moral anotadas por Herder provavelmente entre 1763 e 1764, aproxima o modelo intelectualista externo ao modelo empirista externo: ambos, “o voluntarismo teológico e o positivismo jurídico [como, grosso modo, o de Hobbes]”, seriam “cúmplices do mal-entendido acerca das condições impostas por uma ação normativa”, ou seja, localizar a base da obrigação em uma imposição arbitrária no limite voluntarista, seja do Estado, seja da vontade divina (Figueiredo, V. 1762-1772. Estudo sobre a relação entre método, teoria e prática na gênese da Crítica kantiana. Op. cit. p. 108).

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86

Quanto ao primeiro, Kant afirma que “bom” e “mau” são deixados

indeterminados pelo princípio proposto. Lembrando o argumento utilizado já na

Investigação, algo pode ser considerado “bom” tanto como meio para um fim, quanto

como fim mesmo da ação. Dessa maneira, a obrigação estritamente moral permanece

intocada, confundindo-se regras de habilidade e prudência, que prescrevem determinada

ação como boa com vistas a um fim qualquer, e leis morais, como a já mencionada “não

mintas”, que obrigam incondicionalmente a uma ação boa por si mesma, considerada,

assim, como um “fim em si mesmo”. Dessa forma, por não determinar o que seja o

“bom” visado pela ação, tal princípio é vago. Ademais, na melhor das hipóteses tratar-

se-ia de um princípio tautológico, que apenas enuncia algo que todo agente racional

busca em sua ação: fazer aquilo que considera “bom” que seja feito.

[A] proposição ‘Fac bonum et omitte malum’ não pode ser um princípio moral para a

obrigação, pois o bom pode ser determinado de muitas maneiras <vielfältig> para fins

dados, já que ele é um principio da habilidade e da prudência; se, contudo, ele é bom

para ações morais, nesse caso seria um princípio moral. Esse princípio, portanto, é

vago. Ademais, ele é também um principium tautológico. (Vorl Coll. Ak XXVII: 264).

O outro princípio racionalista, “procura a maior perfeição que consigas”,

tampouco pode ser aceito como princípio supremo da moralidade. Mesmo admitindo

que essa proposição é menos indeterminada do que a anterior, Kant afirma que ela

desconsidera o conteúdo mesmo da perfeição, deixando em aberto se o mesmo é ou não

moral:

[A] proposição do autor: ‘Quaere perfectionem quantum potes’ é menos

indeterminadamente expressa; aqui não há uma tautologia total e [ela] tem, assim, um

grau de utilidade <Brauchbarkeit>. O que é, pois, perfeito <vollkommen>? A perfeição

das coisas e a dos homens são distintas. A perfeição das coisas é a adequação

<Hinlänglichkeit> de todos os requisitos <requisitorum> para constituir a coisa, isso,

portanto, significa generaliter a perfeição. Porém, a perfeição do homem não significa

ainda moralidade <Moralität>. A perfeição e o ser bom <Bonität> moral são coisas

distintas (Vorl. Coll. Ak XXVII: 265).

Para Kant, a simples exortação a “procurar a perfeição” é insuficiente para

fundar a moralidade pois não inclui apenas e tão-somente a “perfeição moral”, mas

também a adequação completa a outras potencialidades e faculdades do indivíduo,

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87

dentre elas aquelas de caráter explicitamente não moral. Não obstante, embora

incompleto, trata-se de um princípio propício à moralidade, nem que seja de maneira

“indireta”:

Portanto, podemos dizer que a perfeição é indireta e, nessa medida, pertence à

moralidade. Assim, a proposição é indiretamente moral. (Vorl. Coll. Ak XXVII:

266).117

Em suma, os princípios estritamente formais oferecidos pelos autores

racionalistas não servem para a fundamentação da moral procurada por Kant. Eles

invertem a questão, implicitamente pressupondo aquilo que, na realidade, deveriam

determinar de modo a fundar a validade incondicional da proposição proposta. Esta,

assim, torna-se vazia:

O princípio de Wolff é não-filosófico pois ele toma proposições vazias por princípios e

fornece o abstractum de toda busca <quaesitis> antes da razão de conhecimento

<Erkenntnisgrund> do buscado <quaesiti>. Assim como quando se pretende buscar o

fundamento da fome no desejo por felicidade <den Grund des Hungers in den Begierde

nach Glückseeligkeit> (Rx 6634. Ak XIX: 120. 1769-1770? (1764-1768?)).

Se não completamente equivocada, como a dos empiristas, a solução de Wolff et

alia é ao menos incompleta:

Wolff fez da tomada <Nahme> geral da perfeição o fundamento para determinar a

razão, e não nomeou as condições sob as quais ações e fins são bons ou podem oferecer

a tomada da perfeição (Rx 6625. Ak XIX: 116. 1769-1770 (1764-1768?)).

De modo significativo, o princípio de perfeição, uma constante ao longo da

década de 1760, mostra-se insuficiente no intento de fundamentar a moral118. Embora

não seja explícito a respeito, Kant já prenuncia aqui o cerne de sua crítica a Wolff e sua

Philosophia practica universalis que seria feita no prefácio à Fundamentação119: a

escola wolffiana partiria de um conceito geral de querer humano, no qual se misturam

dados empíricos e considerações racionais. Surge daqui a própria indeterminação do seu

117 E, de fato, Kant manterá em sua Doutrina da Virtude a exigência de perfeição própria, seja moral, seja física, como “derivada” do imperativo categórico, e, assim, para empregar as expressões utilizadas acima, “indiretamente moral”. Cf. MS VI: 391-394. pp. 301-303. 118 Cf. Schmucker, J. pp. 290-293 119 Cf. infra. 6.1

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88

princípio diretor, o de perfeição: ora, como saber o que é o “bom moral” se o ponto de

partida da análise não é uma vontade pura, completamente apartada da sensibilidade e,

assim, diretamente disposta para o mundo moral? Não adviria desta confusa mescla

wolffiana um princípio cuja vagueza e indeterminação seriam proporcionais à ampla e

indevida extensão de sua base? De modo a encontrar um princípio supremo da moral

não seria necessário partir de um conceito mais preciso, o de razão pura, para indicar-

lhe o funcionamento específico?

Como saldo do embate com a tradição moral anterior, cumpre agora a Kant

encontrar um princípio moral “intelectual” porém não vazio, que estipule de modo a

priori determinada ação como imediatamente boa e que não dependa de algum

pressuposto sub-reptício e ad hoc quanto ao que seria “moral” na ação prescrita – trata-

se, portanto, de preencher a lacuna na esboçada taxonomia dos sistemas morais com

algum princípio moral puro e positivo proveniente da razão.

2.2.2. Razão pura, princípio moral e a comunidade de seres racionais sob

leis da liberdade.

O caminho em que Kant se envereda na busca por um princípio incondicionado

da moral passa necessariamente pela razão pura como determinante da ação segundo

uma prescrição não tautológica ou vazia. As Reflexões e Lições do período dão mostra

de que Kant pensava a obrigação moral, incondicionada e imediatamente vinculante,

lançando mão de um modelo de inspiração eminentemente jurídica de uma comunidade

de seres racionais unificados ou harmonizados por meio de um nexo entre lei prática,

liberdade, universalidade e origem na razão pura depurada de elementos empíricos. O

princípio da moralidade começa aqui a delinear-se como um princípio de autonomia de

clara influência rousseauísta.

Retomando uma ideia presente já na Investigação, Kant opõe uma “necessidade

categórica” a uma “necessidade condicional” da ação, agora, porém, atribuindo a

primeira não à apreensão imediata do “bom” a partir de algum sentimento moral, mas

antes à sua vinculação a “regras da vontade pura”:

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89

A necessitas categórica (objetiva) de ações livres é a necessidade segundo regras da

vontade pura, a [necessitas] condicional [hipotética:riscada]: segundo leis da vontade

afetada (através de inclinações). (Rx 6639. Ak XIX: 122. 1769-1770? (1764-1768?)).

A vontade “afetada” por inclinações apenas pode fornecer uma regra

condicionada do dever. A universalidade da prescrição moral, já refletida em sua

incondicionalidade, é incompatível com a particularidade e variância das inclinações:

As prescrições morais valem para todos os seres racionais e livres, independentemente

das inclinações que eles possam ter (Rx 6698. Ak XIX: 135. 1770-1771? (1773-1775?)

(1769?)).

De que maneira, contudo, essas prescrições morais podem determinar

categoricamente a vontade de um ser racional livre e, assim, comandá-lo a ações de

modo incondicional? O raciocínio de Kant no período é o de que, em oposição à

simples necessidade condicional e contingente de algum princípio apoiado na

sensibilidade, numa regra moral universalmente válida e estipulada pela razão pura a

vontade livre concorda ou harmoniza-se consigo mesma:

Em doutrinas pragmáticas, a liberdade está, com efeito, sob regras, mas não sob leis.

Pois a regra prescreve as condições sob as quais um fim qualquer pode ser atingido. A

lei, contudo, determina a liberdade incondicionalmente.

Leis da liberdade em geral são aquelas que contêm as condições unicamente sob a quais

é possível que ela harmonize-se consigo própria <mit sich selbst zusammenstimmen>:

condições da unidade no uso da liberdade em geral. Elas são, portanto, leis racionais e

não empíricas ou contingentes, mas antes contêm necessidade prática absoluta (...). A

vontade livre, que se harmoniza consigo mesma segundo leis universais, é uma vontade

pura e simplesmente boa <schlechthin Guter Wille> (Rx 7063. Ak XIX: 240. 1778.

grifos nossos).

À parte a prefiguração do início da primeira seção da Fundamentação da

Metafísica dos Costumes, notemos apenas que a busca de Kant pelo fundamento da

necessidade prática incondicionada o conduz a uma lei da razão pura que faz com que a

liberdade e a vontade livre harmonizem-se consigo mesmas. A condicionalidade de uma

regra prática baseada em algum aspecto da empiria, seja algum sentimento, seja algum

elemento externo ao sujeito, reflete um desacordo da liberdade consigo própria que

obstrui seu exercício:

Page 90: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

90

A liberdade segundo princípios de fins empíricos não tem uma concordância completa

consigo própria <durchgängige Einstimmung mit sich selbst>; por meio disso, não

posso me representar nada confiável relativamente a mim mesmo (Rx 7204. Ak XIX:

284. 1776-1783).

Lei é a limitação da liberdade por meio de condições universais da concordância da

mesma consigo própria (Rx 6767. Ak XIX: 155. 1772? 1769? 1764-1768?).

A submissão da liberdade à legislação da razão pura (partir das condições universais

dos fins em geral para chegar às dos fins particulares). A razão pura, isto é, depurada de

todos os móbiles (sensíveis), tem, em relação à liberdade em geral, um poder

legiferante que precisa ser conhecido por todo ser racional, pois, sem as condições do

acordo universal [de todo ser racional] consigo mesmo em relação a si próprio e aos

outros, não pode existir nenhum uso da razão em relação a ela mesma (Rx 6853. Ak

XIX: 179. 1776-1779?)

Essa concordância da liberdade do arbítrio escapa, para Kant, do vazio

formalismo de Wolff e da particularidade dos sentimentos ao permitir que haja, sob um

ponto de vista universal, a unificação formal dos fins visados, tornados, assim,

“públicos” e “compartilhados”120.

O principal problema em moral é este: a razão mostra que a unidade completa

<durchgängige Einheit> de todos os fins de um ser racional em relação tanto a si

mesmo quanto aos outros, portanto a unidade formal no uso de nossa liberdade, ie, a

moralidade <Moralität>, caso fosse exercida por todos, produziria a felicidade através

da liberdade e seria derivada do universal para o particular; a razão também mostra que,

inversamente, quando o arbítrio universal deve determinar cada arbítrio em particular,

ele somente poderia proceder segundo princípios morais (...).

[A]s condições restritivas do uso da liberdade são absolutamente necessárias.

Moralidade <Moralität> a partir do principium de unidade. (...). Que se obedeça a um

120 Sobre algo análogo, cf: Rx 6598 Ak XIX: 103. 1769-1770 (1764-1768?): “[S]e a liberdade é uma faculdade de agir, mesmo se isso não nos apraz, ela então não está ligada à condição de um sentimento privado; visto que, contudo, ela não obstante sempre se refere ao que é desejado <beliebt>, ela então tem uma relação com o sentimento e pode ter uma relação universalmente válida com o sentimento em geral”. E Rx 6796. Ak XIX: 163-164. 1773-1775? 1772? “A moralidade <Sittlichkeit> repousa na regra das ações a partir do ponto de vista (station) de um participante <Teilnehmer> ou representante <Stellvertreter> universal: 1) Do participante da natureza em relação a si próprio. 2) Do participante da liberdade em relação aos outros. No último caso, ou o representante da liberdade do arbítrio de outros, ou do bem-estar <Wohlfahrt> dos mesmos”.

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91

princípio que se possa admitir publicamente <öffentlich>, portanto, que valha para

todos. Perfeição segundo a forma: harmonização <Zusammenstimmung> da liberdade

com as condições essenciais de todos os fins, ie, conformidade a fins a priori (Rx 7204.

Ak XIX: 283-4. 1776-1783. Grifos nossos).

Aquele que age de forma particular, segundo um princípio que impede, de saída,

a possível unificação formal de fins, contraria a necessária universalização presente em

toda ação moral e, com isso, deixa a liberdade em desacordo consigo mesma. A

comunidade de seres racionais livres e em harmonia se submeteria dessa maneira a

particularismos que rompem o vínculo que une seus membros. O bom moral partilhado

deve ser identificado com aquilo que pode ser compartilhado publicamente, ou seja, de

forma universal e não contraditória:

Bom é aquilo cuja máxima pode ser sustentada publicamente. Portanto, todo

moralmente mau está em oposição à verdade, pois assume tacitamente outra máxima do

que a que ele confessa (Rx 6642. Ak XIX: 122-123. 1769).

A noção de uma comunidade de seres racionais e livres determinados segundo

leis morais públicas e incondicionalmente vinculantes é, assim, condutora no percurso

de purificação da razão. A “concordância” da liberdade consigo mesma ocorre por meio

de uma lei prática cujo modelo é o da lei que rege uma sociedade “bem-ordenada” na

qual a vontade de cada indivíduo concorda formalmente com a dos demais ao ser

publicamente formulada e, assim, acolhida potentialiter por todos. Como afirma Kant,

por meio da universalidade de sua lei pura tornada comunitária, a “autossatisfação da

razão compensa a perda dos sentidos” (Rx 7204. Ak XIX: 283. 1776-1783).

O vínculo entre a comunidade de seres racionais sob leis morais e uma possível

comunidade jurídica sob leis coativas é flagrante. Segundo Christian Ritter, faz-se

presente aqui a clara marca jurídica do formalismo kantiano em moral, e não apenas

isso: o “conceito de direito” seria a “raiz do formalismo da filosofia moral kantiana”121.

121 Cf. Ritter, C. Op. cit. pp. 97ss. Busch, W. Op. cit. pp.76ss e Sänger, M Op. cit. pp. 28ss. Trata-se de uma tese cuja completa extensão deixaremos em aberto. Segundo Sänger, “os resultados da investigação genética sobre a filosofia prática não apenas fazem conhecer uma independência do direito em relação à ética, mas também demonstram o desenvolvimento do imperativo categórico a partir do princípio do direito, e, por conseguinte, garantem a este último o primado em relação ao princípio moral. Disso pode ser inferido que a problemática da liberdade desenvolvida na doutrina das antinomias da Crítica da Razão Pura surgiu do trabalho filosófico-jurídico de Kant” (Sanger, M. Op. cit. p. 30). Evitando as “inferências” de Sanger, tomadas de Oberer (“Zur frühgeschichte der Kantischen Rechtslehre”. Op. cit. 101), apenas retemos aqui a ligação imediata entre formalismo jurídico e purificação do princípio supremo da moral

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92

Para o comentador, já na negação do recurso ao sentimento moral estaria presente a

incondicionalidade atribuída por Kant inicialmente ao dever jurídico: a opacidade da

“interioridade” e da “materialidade” do fundamento da ação exigidas pelo sentimento

moral contrasta com a exatidão e o rigor extraídos da “exterioridade” e da

“formalidade” do princípio do direito. Com efeito, há Reflexões que sugerem

fortemente esta conexão:

Os juízos sobre direito <Recht> e devido <Schuldigkeit> consideram as regras da

voluntatis purae, e são, portanto, os mais fáceis; aqueles sobre o que é bom

<Gütigkeit> tratam de inclinações, relações de bem-estar <Wohlbefinden> e são

difíceis. A praecisio iustitae é direta e reta <schlecht und recht>. (Rx 6672. Ak XIX:

129-130. 1769-1770? (1764-1768?)).

As leis morais, visto que elas valem para a vontade pura em geral, são também válidas

para a humana; contudo, as regras puras do dever, aplicadas às fraquezas da natureza

humana, não permitem, com efeito, nenhuma exceção ou atenuação (estas ocorreriam

também para prejuízo da natureza humana e dos outros homens), mas elas, através da

consciência de sua própria injustiça, não meramente a partir de um ser bom

<Gütigkeit>, mas sim a partir de fundamentos do direito <Gründen des Rechts>, não

servem para levantar todas as pretensões que, do contrário, teriam sido levantadas

segundo as rígidas autorizações <Befugnissen> da justiça de uma pessoa que por si

mesma seria justa. Por exemplo, constituição do Estado <Staatsverfassung>. Não se

deve exigir que todos sejam justos para conosco caso nós não o sejamos, com toda

certeza, para com os outros (Rx 6715 Ak XIX: 139. 1772? (1771?))

para Kant e desconsideramos os problemas metafísicos tradicionais envolvidos no conceito de liberdade. De resto, tampouco afirmamos que, com a identificação da raiz jurídica do formalismo do principio supremo da moralidade, não haveria uma moral ou uma filosofia jurídica crítica. Embora a discussão precisasse abordar temas como o conceito negativo de liberdade como não submissão ao arbítrio alheio, e o conceito positivo de liberdade como autodeterminação da vontade, entendemos que a “inspiração jurídica” da moral kantiana não implica necessariamente uma filosofia jurídica pré-crítica ou independente do princípio de autonomia, como é a tese de, por exemplo, Sanger, M.. Op. cit. p. 31-32. Aqui vale o que foi afirmado anteriormente: a continuidade de temas não implica a continuidade do método. A inclusão do direito em uma Metafísica dos Costumes ainda precisará esperar os marcos conceituais expostos a partir da Crítica da Razão Pura. Por fim, notemos que a identificação de uma decisiva matriz jurídica na filosofia kantiana remonta à recepção imediata da própria Crítica da Razão Pura e da metáfora do “tribunal da razão” por Herder e Hamann; deste juízo inicial chega-se quase naturalmente à condenação da “juridificação” indevida da filosofia moral kantiana, cativa da “exaltação da lei e do dever” e indiferente à concretude e multiplicidade da vida prática efetiva. Contudo, a exemplo de Leonel dos Santos (Op. cit. pp. 561ss), preferimos reter aqui a experiência jurídica de base da filosofia prática kantiana crítica como uma “originária vivência prática” (Santos, L.R. Op. cit. p. 569) e modelo de uma comunidade de seres racionais vivendo segundo leis autonomamente impostas, e não como sintoma de algum vício ou vezo que deveria ter sido extirpado.

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93

Apenas segundo “fundamentos do direito” seria possível manter a pretensão de

universalidade que exclui considerações particulares, “exceções e atenuações”,

presentes em considerações a respeito de inclinações e outras “fraquezas da natureza

humana”. Reciprocidade e formalismo são as marcas próprias ao direito que fazem

deste o modelo ideal para as “leis puras do dever” pertencentes à “vontade pura em

geral”.

Outra prova do lastro jurídico da filosofia moral kantiana seria justamente a

exigência jurídica correlata de “harmonização das vontades” numa determinada

comunidade humana reconfigurada em exigência da moralidade. A concordância da

vontade com o “princípio formal de identidade da moral”, isto é, a exigência de

“universalidade” da vontade, é condição não apenas da concordância do indivíduo

consigo mesmo, mas também da concordância de “todos os homens como seres

racionais entre si” (cf. Rx 6802. Ak XIX: 166-167. 1773-1776? 1772?), ou ainda, o

“princípio de identidade” da liberdade como a “ideia do todo” de uma vontade

(comunitária) comum de todos os homens como seres livres.

Toda ação livre é conforme ao direito ou correta <recht> a não ser na medida em que se

opõe à vontade dos outros e torna impossível a ação segunda a regra da vontade

comunitária <gemeinschaftlichen Willens> (Rx 6666. Ak XIX: 127-128. 1769-1770?

1772?).

Ou seja, nesse período Kant vê um vínculo íntimo entre, por um lado, a

concordância da liberdade do arbítrio consigo mesma em sua submissão a leis

universais da razão pura e, por outro, a “união social” da comunidade político-jurídica

exemplificada na “vontade comunitária” que possibilita que todos os arbítrios “entrem

em harmonia”122.

No entanto, a concepção kantiana de um acordo da liberdade consigo mesma em

uma comunidade harmonizada de vontades possui outras fontes. Segundo Josef

Schmucker, é possível retraçar essa ideia a Thomasius e ao movimento do

esclarecimento alemão de secularização de uma noção originariamente teológica. Para

Thomasius, a pretensão de harmonização das vontades aparece inicialmente sob a forma

122 Para Busch, o formalismo da filosofia moral crítica tem como matriz não apenas o “formalismo da obrigação intelectual e jurídica”, mas também o conceito crítico de liberdade tanto negativa quanto positiva. Ambos, por sua vez, seriam tomados como condição de possibilidade da sociabilidade de seres racionais (Busch, W. Op. cit. p. 80).

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de uma comunidade religiosa de amor recíproco: encontramos aqui a exigência

fundamental de amor racional ao próximo estendida a uma teoria da vontade comum

como princípio constitutivo da vida comunitária civil:

o homem é destinado <bestimmt> a abdicar de sua vontade privada em prol da vontade

comum (…). Por conseguinte, segundo Thomasius a moralidade <Sittlichkeit> consiste

diretamente na transformação do homem em cidadão, isto é, em um ser que se sente

como parte de uma comunidade e encontra sua maior realização <Erfüllung> servindo-

a. Sem dúvida, esta concepção permanece mais próxima à ética kantiana do que a de

Rousseau, pois se refere à vontade <Wollen> enquanto tal e não meramente ao uso

externo da liberdade123.

Contudo, Schmucker localiza não em Thomasius, mas sim em Rousseau o

“estímulo decisivo” para a noção kantiana de acordo da liberdade consigo mesma em

uma vontade comunitária. Segundo ele,

a solução kantiana do problema da obrigação incondicional da lei moral aparece (...)

como uma mera transposição da concepção político-filosófica de Rousseau ao mundo

interno dos seres espirituais de vontade livre124 .

De acordo com Schmucker, portanto, se Thomasius representa uma secundária

inspiração “ético-religiosa” para a concepção kantiana de moralidade como o acordo

universal das vontades livres, teria sido Rousseau a central inspiração de matriz

“político-jurídica”.

Com efeito, Rousseau foi decisivo para a incipiente concepção da autonomia

dos seres racionais que começava a se consolidar no pensamento moral de Kant125. A

123 Schmucker, J. Op. cit. p. 253. 124 Idem. pp. 254. 125 Curiosamente, para Schmucker, Kant, a partir dessa “intuição inicial” acerca de uma vontade comunitária como fonte da obrigação incondicional para seres racionais e livres, teria desenvolvido sua definitiva concepção de autonomia da vontade independentemente de Rousseau: “Kant encontra independentemente de Rousseau o princípio de autonomia da vontade em sentido genuíno como o único princípio possível de uma obrigação incondicional” (Schmucker, J. Op. cit. p. 251). O motivo para tanto seria uma diferença crucial que oporia a concepção kantiana de autonomia à vontade geral de Rousseau: ao passo que este aceita um “acordo autointeressado” dos homens no pacto social, Kant exige que a razão prática pura e autônoma seja determinada tão-somente pela ideia de dever e não por alguma inclinação ou interesse empiricamente determinado. Segundo Schmucker, a exigência rousseauísta de alienação dos direitos naturais em prol da comunidade política somente ocorre com base no “princípio naturalista do amor-de-si e de instinto de autoconservação”; nessa perspectiva, “o direito da natureza precisaria permanecer um simples devaneio caso fosse fundado na mera razão, e não em uma carência natural do coração humano” (p. 250). De fato, à diferença de Rousseau, para Kant tanto a exigência moral de concordância da vontade privada com a vontade comunitária, formulada no período aqui analisado,

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concepção de uma educação moral voltada à independência e à autodeterminação do

indivíduo, desenvolvida no Emílio, bem como a pretensão de Rousseau em seu

Contrato Social de fornecer os “princípios do direito político”, isto é, as diretrizes

normativas para uma convivência política justa e livre, marcaram profundamente o

pensamento moral kantiano durante seu desenvolvimento durante os anos 1760126. No

que particularmente nos interessa aqui, a concepção de autonomia sendo deslindada a

partir de intuições político-jurídicas ao longo da década de 1770, a concepção

rousseauísta de uma volonté genérale pode ser considerada uma fonte central para o

pensamento moral de Kant.

Em seu Contrato Social, Rousseau tomava como base de uma sociedade política

legítima a ideia de uma vontade geral, surgida de um ato de associação, um pacto ou

contrato social por meio do qual cada indivíduo aliena seus direitos naturais em nome

da comunidade política assim erigida. A vontade geral formada por meio desse processo

seria constituída pelo que “existe de comum” nos vários interesses particulares dos

membros associados, formando, assim, o “liame social” <lien social> que une as

quanto a pretensão normativa de determinação desinteressada da vontade por uma lei autoimposta e válida para todos os seres racionais, exposta inicialmente na Fundamentação, estão fundadas em uma pretensão racional não dependente das particularidades empíricas da natureza humana. Contudo, não acreditamos ser possível concluir disso que Kant tenha retirado de Rousseau a exigência de universalidade da vontade, como é a tese de Schmucker, mas não o princípio de autonomia – a despeito das diferenças que possa haver entre as formulações de ambos, o núcleo da questão é o mesmo: a normatividade de determinada situação prática não pode ser extraída dos particularismos de uma “vontade privada”, mas apenas a partir da universalidade da lei de uma vontade que, ao propô-la, impõem-na a si e aos demais seres racionais. Que Kant tenha desenvolvido essa exigência normativa de forma distinta da de Rousseau (como de fato o fez, o que, de resto, marca sua posição central no interior da história da filosofia moral) não implica que essa influência de base possa ser apagada, como quer Schmucker. No fundo, a questão que nos opõe a Schmucker revolve em torno da oposição entre principium diiudicationis e principium executionis, discutidos na nota 11 da introdução – como dito nesta, adotamos o primeiro princípio como o condutor para a nossa reconstrução do desenvolvimento do pensamento prático de Kant, ao contrário de Schmucker, que, nestas passagens sobre Rousseau, adota o ponto de vista do segundo princípio. 126 Cf. sobretudo Velkley, R Freedom and the End of Reason. On the moral foundations of Kant’s critical philosophy. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1989. Embora Velkley argumente que a obra de Rousseau que de fato marcou Kant foi o Emílio, preferimos aqui discutir o Contrato Social, sobretudo para ressaltar a origem político-jurídica da noção de autonomia que se desenha neste período, talvez em oposição ao que ocorria nos anos 1760 – de resto, a discussão empreendida no Emílio a respeito da vontade geral conserva o mesmo tom presente no Contrato Social. Mencionemos aqui também a interessante análise de Gerhard Krüger, em Critique et morale chez Kant. Paris: Beauchesne, 1961. pp. 83-88. Para o autor, Rousseau seria o responsável não apenas por uma decisiva inflexão no pensamento moral de Kant, mas também para a sua própria concepção mundana de filosofia <Weltbegriff der Philosophie> e, por conseguinte, a nova visada crítica da metafísica como “ciência dos limites da razão humana”, exposta já nos Sonhos de um visionário. Como veremos, trata-se de uma interpretação parecida com a de Delbos e que ressalta o valor de Rousseau na “nova metafísica prática” kantiana, entendida no sentido lato de uma filosofia para a liberdade que se baseia “na experiência moral fundamental [na qual] se encontra a unidade original da filosofia kantiana” (Krüger. G. Op. cit. p. 88). Preferimos, aqui, limitar-nos à marca rousseauísta na concepção kantiana de autonomia, sem pretender estender o alcance metafísico dessa influência.

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vontades privadas numa comunidade127 - percebe-se que aquilo que caracteriza a

essência da vontade geral rousseauísta é a universalidade e a reciprocidade das relações

políticas obtidas a partir do despojamento de particularidades que impossibilitariam o

acordo entre os cidadãos:

(...) aquilo que generaliza a vontade é o interesse comum que os [cidadãos] une, pois

nesta instituição cada um necessariamente se submete às condições que impõe aos

outros 128

Analogamente à busca de Kant por um princípio da moral universal e positivo,

portanto, Rousseau propunha em seu Contrato Social

encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada

associado com toda a força comum, e pela qual cada, unindo-se a todos, só obedece

contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes129.

Tratava-se da exigência de que fosse formada uma comunidade política regida

por leis autônomas emanadas da vontade geral que une seus membros, cada qual, desse

modo, se reconhecendo tanto como autor quanto como endereçado da norma comum a

todos. Para Kant, essa exigência político-jurídica fundamental proposta por Rousseau se

transverte em exigência moral suprema - em outras palavras, as condições estipuladas

por Rousseau para a existência de uma liberdade civil plena em uma comunidade

política de cidadãos livres são redefinidas por Kant como condições para a possibilidade

mesma da liberdade positiva de um ser racional numa possível e ideal comunidade

racional regida por uma “vontade comunitária”. Em suma, em uma comunidade

idealizada, pedra de toque da legitimidade de uma condição moral fundamental, um ser

livre e racional deve necessariamente considerar as leis que a regem tanto como

originadas de, quanto como endereçadas a si – em outras palavras, as leis da vontade

comunitária da qual participa seriam leis autônomas, produzidas pelos próprios

concernidos e que permitem o acordo recíproco e universalmente válido das vontades

particulares.

127Rousseau, J.J. Do Contrato Social, In: Textos Seletos, Vol I (Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 85 (Livro II, Cap 1) 128 Rousseau, J.J. Do Contrato Social. Op. cit. p. 70. (Livro I, Cap VI). Cf. por exemplo, Gr Ak IV: 431. p. 137. 129 Rousseau, J.J. Do Contrato Social. Op. cit. 70 (Livro I. Cap. VI). Para uma formulação muito semelhante na Doutrina do Direito em Kant, cf. MS Ak VI: 315-316. p. 182.

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Desse modo, a incipiente teoria da autonomia e a concepção de liberdade

política de Rousseau exerceram uma influência decisiva para a “virada” kantiana sobre

a incondicionalidade do dever moral e do “pathos da liberdade da autodeterminação”

como marca do valor absoluto na pessoa humana130, em contraponto à filosofia prática

de Wolff, que “via no conhecimento teórico e no desenvolvimento das capacidades de

pensamento o sentido genuíno e o verdadeiro objetivo da natureza espiritual”131. A

exigência crítica, esboçada no período aqui analisado, de que a boa vontade seja aquela

determinada tão-somente por uma lei universal e autonomamente imposta, teria como

sua “genuína raiz (...) a condição de que a vontade, quando tomada universal e

reciprocamente, não possa anular-se”132, numa clara referência à vontade geral de

Rousseau transposta ao núcleo normativo da filosofia moral.

Quem faz um juízo semelhante é Victor Delbos, que ressalta a centralidade de

Rousseau para o pensamento moral de Kant. Segundo ele, muito mais do que os

britânicos, teria sido Rousseau o responsável pela ruptura definitiva de Kant com a

escola wolffiana e a consequente radicalização da autonomia da filosofia prática em

relação aos parâmetros especulativos.

Se Kant, de fato, já havia experimentado a dificuldade de justificar pelos procedimentos

do racionalismo ordinário os conceitos fundamentais da moral, ele não havia admitido

durante um longo tempo, sem criticá-la diretamente, uma noção da moralidade que ele

considerava como um dado real, apenas mal explicado. Essa noção supunha a

superioridade do pensamento especulativo até mesmo na ordem da ação; ela tendia a

representar a ciência como a virtude par excellence da qual derivam todas as outras

virtudes; ela estabelecia, entre os princípios imediatos da vontade moral e as verdades

suprassensíveis que pareciam ser a justificação deles, ligações de significação antes de

tudo intelectuais, suscetíveis de serem determinadas pelo entendimento teórico133

Para Delbos, portanto, os escoceses, a exemplo dos racionalistas, ainda

permaneceriam presos a uma visada teórica, limitando-se a observar os homens e

discernir os sentimentos nos quais se baseia a moralidade humana; teria sido

primeiramente Rousseau que, desde os anos 60, despertara Kant de seu sono “moral-

dogmático”, fazendo-o introjetar a consideração moral do homem e tornar motrizes

aqueles sentimentos morais antes apenas observados de forma externa e indiferente, e, 130 Schmucker, J. Op. cit. pp. 254-255. 131 Idem. p. 35. 132 Idem. p. 247. 133 Delbos, V. Op. cit. 97.

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98

por fim, mostrando-lhe como “erigir sobre fundamentos indestrutíveis a nova

metafísica, a metafísica da liberdade e da razão prática”134.

Lewis White Beck chega mesmo a mencionar uma “revolução rousseauísta” em

filosofia moral numa analogia com a revolução copernicana em filosofia teórica.

Segundo ele, Kant teria aprofundado o “cerne ético” da concepção eminentemente

política de Rousseau, dando-lhe contornos não apenas morais, mas também metafísicos

e religiosos:

Ao passo que Rousseau estabelecia o laço essencial entre lei e liberdade

primordialmente no domínio político, onde sua doutrina foi adotada com algumas

mudanças por Kant, a doutrina do governo autônomo pelos cidadãos livres de uma

república é aprofundada por Kant em uma concepção moral, metafísica e mesmo

religiosa135

134 Idem. p. 106. Por mais que a influência de Rousseau tenha sido de fato central nos aspectos acima mencionados por Delbos e Schmucker, acreditamos que a ruptura de Kant com a tradição ensejada, dentre outras coisas, pelo pensamento político-moral de Rousseau, não ocorre ainda em definitivo no momento sugerido pelos dois comentadores, a saber, 1765, nos Comentários às Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, e tampouco que, embora decisiva, a influência genebrina tenha sido a única. Contra a tese geral de Delbos e Schmucker, cf. Schilpp, P.A. Op. cit. pp. 49-50. Segundo ele, não é possível dar todo crédito a Rousseau pela ideia kantiana sobre o “valor absoluto da dignidade do homem” e, por conseguinte, a “virada moral” no pensamento de Kant: “muito antes que travasse conhecimento com Rousseau, Kant, como um jovem pietista, havia sido doutrinado com a noção do valor inerente a todo ser humano” (p. 49). Contra Schilpp, cf Kuehn, M. Kant. A Biography. Op. cit. pp. 34-45. esp. p. 40. Kuehn defende a relativização da influência da criação pietista de Kant em suas concepções morais. Dieter Henrich defende que já em Hutcheson está presente a ideia de que o “valor moral” do homem não depende de suas capacidades intelectuais, e, que, portanto, Kant poderia ter retirado dele esta “intuição moral” (Henrich, D. “Kant and Huctheson”. Op. cit. p. 44). Ademais, como já foi dito acima, teria sido Hutcheson quem dera o impulso para Kant romper o “monismo” da escola wolffiana e entrar definitivamente no caminho para “autonomizar” o âmbito moral em relação ao teórico (Henrich, D. “Kant and Hutcheson” Op. cit. pp. 49ss). (Contudo, em outro lugar [“Ethics of Autonomy” Op. cit. p. 97], Henrich destaca o papel decisivo de Rousseau na ideia kantiana de que o “homem comum” pode reconhecer principium diiudicationis da moral). Quem tem uma posição semelhante à de Henrich é Vinícius de Figueiredo. Para ele, teriam sidos os moralistas britânicas que deram o impulso decisivo para que Kant reconhecesse “que os aspectos relativos às questões prático-morais não devem ser reconduzidos a uma abordagem teórico-especulativa”, ou seja, para que “o fundamento da filosofia teórica” se emancipasse “da função anteriormente atribuída à razão teórica em determinar a vontade” (Figueiredo, V. 1762-1772. Estudo sobre a relação entre método, teoria e prática na gênese da Crítica kantiana. Op. cit. pp. 99-100). Preferimos localizar a ruptura definitiva de Kant com a tradição e a consequente autonomização da filosofia prática no momento analisado: década de 1770. Numa perspectiva estritamente “prática”, levaram a ela tanto a influência inicial dos britânicos quanto a “intuição” rousseauísta, mas a “consecução teórica” se deu apenas com o diagnóstico do contágio entre conhecimento sensível e intelectual e a distinção dos mundos, ambos ocorridos no final da década de 1760 e desenvolvidos ao longo da década de 1770. Os esboços do princípio de autonomia da vontade, que apresentamos aqui, seriam o produto concreto e “crítico” da autonomia da filosofia prática em relação à teórica. 135 Beck, L. W. “Deux concepts kantiens du vouloir dans leur contexte politique”. In: La Philosophie Politique de Kant. PUF: Paris, 1960. p. 130.

Page 99: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

99

Com efeito, a multifacetada “intuição rousseauísta” ocorrida nos anos 1760

desvencilha-se das impregnações sensualistas, presentes, por exemplo, nos Sonhos de

um visionário e em reflexões do final dos anos 1760, até atingir o molde político-

jurídico delineado aqui e base para a futura concepção moral de autonomia da

vontade136.

Após esse breve excurso, voltemos agora aos próprios escritos kantianos. É

perceptível o modo como Kant nas Reflexões que vimos discutindo ressalta a

normatividade inerente ao acordo livre possibilitado através da unificação das vontades

em uma comunidade de seres racionais, a exemplo do que ocorre por ocasião da

vontade geral na condição política legitima. A própria racionalidade “pura” desse

acordo prova não se tratar de alguma constatação factual a respeito das relações efetivas

(jurídicas ou éticas) dos homens entre si, mas antes de uma exigência normativa que

torna primeiramente possível uma convivência justa, ou ainda, “correta” <recht> entre

os arbítrios:

Direito <Recht> (...) é o que é possível através da vontade comunitária

<gemeinschaftlichen Willen>. (Dever <Schuldigkeit> é denominado o que é necessário

através da mesma). Alguém tem um direito em relação a outrem (afirmativo) quando

sua vontade privada <Privatwille> pode ser considerada idêntica à comunitária. A

necessidade de uma ação por virtude da regra do direito chama-se dever formal

<formale Schuldigkeit>, e, por virtude do direito de outrem, porém, dever material

<materiale Schuldigkeit>. A regra que se liga de modo necessário à vontade

comunitária em geral é encontrada ao se buscar a condição da vontade considerada

necessária para que esta seja universalmente válida (Rx 6667. Ak XIX: 128. 1769-

1770? 1772) 137

136 Conforme se tornará claro em 8.3.4, a noção rousseauísta de uma vontade geral como índice normativo da legitimidade da condição jurídico-político é igualmente tomada por Kant em sua filosofia do direito: “Somente a vontade concordante e unificada de todos, portanto, na medida em que cada um decida a mesma coisa sobre todos e todos sobre cada um, isto é a vontade do povo <Volkswille> universalmente unificada, pode ser legisladora” (MS Ak VI: 314-315. p. 179). Cf. dentre outros, Gemeinspruch Ak VIII: 297. Trata-se de mais um indício de que um tema político-jurídico transforma-se na “pista” que Kant utilizou para desenvolver seu princípio de autonomia da vontade. Ritter localiza a influência inicial da volonté générale de Rousseau para o conceito kantiano político de allgemeine Wille entre os anos de 1764-1765, concluindo disso que já aqui estaria formulado, ao menos in nuce, o princípio de autonomia da vontade. Cf. Ritter, C. Op. cit. pp. 78-86. Como já discutido, discordamos do comentador em relação à data da consolidação desta influência central de Rousseau no pensamento moral, e não político-jurídico de Kant. 137 A Reflexão prossegue: “é possível comparar as relações do direito com aquelas dos corpos. Cada corpo está em repouso em relação aos demais a não ser na medida em que é movimentado através de outros, e, de fato, cada pessoa tem um dever de omissão para com os demais a não ser na medida em que estes ou bem constituam com ela um vontade unânime <mit ihm einen Einstimmigen Willen machen>, ou bem alterem o estado dela contra sua vontade. Actio est aequalis reactione. Quanto mais um corpo grande

Page 100: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

100

Como afirma Werner Busch, trata-se de algo como um “imperativo categórico

da sociabilidade” que funda a condição de possibilidade de um acordo universal entre

vontades livres: “Aja racionalmente segundo as regras da sociabilidade e de modo tal

que não seja impedida a possibilidade do teu próprio uso da razão e do uso da razão dos

outros”138. A sociabilidade aqui evocada não se esgota em uma perspectiva meramente

jurídico-política, mas antes constitui o núcleo normativo em que deve basear-se toda e

qualquer pretensão moral evocada em uma situação prática relevante. Torna-se claro,

assim, como desse hipotético imperativo da sociabilidade Kant possa ter passado a seu

imperativo categórico e ao princípio de autonomia da vontade.

Com efeito, as ideias presentes nos Sonhos de um visionário são retomadas com

modificações significativas139: analogon do “mundo material” regido por leis

newtonianas, o “mundo moral” de então, no qual a “vontade privada” concordava com a

“vontade universal” através de uma força de ligação representada pelo “sentimento

moral”, é agora reconfigurado numa espécie de comunidade racional e formal

publicamente unificada em que se faz presente a exigência normativa de que a liberdade

do sujeito concorde consigo mesma e com a dos demais ao determinar-se segundo leis

que em nada dependem da sensibilidade ou do sentimento, mas antes apenas da razão e

da universalidade decorrente da mesma:

A lei prática suprema e universal da razão é a seguinte: a razão precisa determinar as

ações livres. Nós somente podemos ter um agrado <Wohlgefallen> com isso assim que

a vejamos concordar com ele. É necessário a um ser racional trazer, antes, a liberdade

sob a lei universal da razão. Isso consiste em que a intenção <Gesinnung> da ação

universalmente tomada concorde com o livre arbítrio (consigo mesma) e que a

liberdade primeiramente deixe de ser sem leis <Gesetzlosigkeit> e sem limites

<Ungebundenheit>. Appetite não dão nenhuma lei universalmente concordante

<stimmig>; ou a natureza ou o arbítrio em geral fornece o fundamento de conexão

<Beziehungsgrund> em relação ao qual pode ocorrer uma concordância universal das

afeta um pequeno, tanto mais este reage ao maior. O centro de gravidade comunitário <gemeinschaftliche Schwerpunkt>, i.e, a vontade comunitária, é idêntico antes e depois da ação”. 138 Busch, W. Op. cit. p. 81. Cf. também Ritter: “A denominação ‘regra de uma vontade comunitária’ não significa que ela dependa de um consenso detectável empiricamente; ela aponta apenas para uma precondição racional de toda sociedade possível: a subordinação geral à lei universal da razão prática”. Ritter, C. Op. cit. 270. 139 Cf. pp. 59-62 supra. Schilpp vê já na referência à “vontade geral” e a uma “comunidade imediata dos espíritos” dos Sonhos de um visionário (Träume Ak II: 336. p. 168) a cada vez mais aparente “natureza social e autotranscendente” da “concepção kantiana de reflexão moral” (Schilpp, P. A. Op. cit. pp. 78-87. esp. p. 84). .

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101

ações. Em que, pois, repousa o agrado na concordância das ações com aquilo que,

universalmente tomado, necessariamente agradaria? E por que essa universalidade nos

agrada? De onde somos determinados a derivar o particular do universal? Ora, o motivo

é que nós, tanto no juízo prático quanto no juízo teórico, consideramos a razão como

sua condição necessária.

As ações não são corretas <richtig> [e] a liberdade é sem regras <regellos> quando esta

não permanece sob tal limitação a partir da ideia do todo. Nós mesmos a desaprovamos.

Isto é a condição necessária da forma <Form> prática, assim como o espaço o é da

intuição (Rx 6802. Ak XIX: 166-167. 1773-1775; 1772? Grifos nossos).

Como se percebe, nessa “ideia do todo” de uma comunidade de seres racionais a

concordância da vontade livre de cada segundo uma lei que comanda universal e

incondicionalmente somente pode ocorrer através da “purificação” da fonte dessa lei, a

razão:

Quando considero meu arbítrio livre, há uma concordância do arbítrio livre consigo

próprio e com os outros. Trata-se, portanto, de uma lei necessária do arbítrio livre. Os

princípios, contudo, que são universalmente constantes <beständig> e devem valer

necessariamente não podem ser derivados da experiência, mas antes da razão pura

(Vorl. Coll. Ak XXVII: 254. Grifos nossos).

Lançando mão de um modelo jurídico, portanto, Kant chega a contornos

significativos de sua nova concepção da moralidade como decorrendo de leis da razão

pura. O princípio da moral em geral, por enunciar como a “vontade pura” concorda

consigo mesma através de leis objetivas e categoricamente necessárias, deve ser uno –

dele devem depender os princípios da ética e do direito, que, enquanto tais, tomam a

liberdade “purificada” de impulsos sensíveis como sua base judicativa140. O que começa

a ser esboçado no período é o próprio princípio de autonomia dos seres racionais sob

leis da liberdade como base normativa de um sistema de deveres.

Em suma, “os primeiros fundamentos da moralidade” (Untersuchung Ak II: 300.

p. 140; Nachricht Ak II: 311. p. 178) nos quais se assentaria a “filosofia moral pura”

(Dissertatio Ak II: 396. p. 243), ou a tão prometida Metafísica dos Costumes, parecem

ter sido encontrados na razão pura e em sua lei incondicionada baseada num modelo de

comunidade de seres racionais sob leis autônomas da liberdade:

140 “Isso, contudo, coage Kant (...) à ampliação do princípio jurídico à filosofia moral em geral” (Ritter, C. Op. cit. p. 227).

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102

O que não pode estar sob uma regra universal da vontade pura é moralmente incorreto

<unrichtig>. A concordância da ação livre com a universalidade da vontade pura é

moralidade <Moralität> (Rx 6762 Ak XIX: 153. 1772).

A razão e sua “personalidade” assim purificada exigem que cada agente se

coloque num “ponto externo” coincidente com uma perspectiva comunitária na qual

cada vontade se harmoniza com as demais: trata-se do “ponto de vista universal”, no

qual cada sujeito racional se considera e se sente autônomo, ou, por assim dizer, na

“personalidade da razão pura” (Rx 6598 Ak XIX: 103. 1769-1770 (1764-1768?)).

* * *

Embora Kant já tenha chegado aos contornos da sua futura moral crítica, não há,

no período analisado, nenhuma formulação precisa da lei da liberdade: o imperativo

categórico e suas várias fórmulas ainda não surgem de forma explícita neste momento.

A década de 70, a despeito dos progressos obtidos, ainda não apresenta algum princípio

determinado em que se basearia o sistema moral kantiano; mesmo já rejeitando o

sentimento moral e as vazias fórmulas racionalistas, Kant, com a ideia primitiva de um

“reino dos fins” composto por sujeitos racionais, livres e autônomos, ainda não chega a

um princípio de moralidade estabelecido e formulado a servir de base normativa

definitiva e segura sobre a qual assentar seu sistema de deveres. Será necessário esperar

até 1785 com a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, ou, a rigor, 1788, com a

Crítica da Razão Prática, para que a fundamentação crítica da moral atinja sua

formulação madura. Contudo, o tom das obras futuras já se cristaliza aqui de maneira

definitiva: a recusa das soluções sensualistas e racionalistas para o problema dos

“primeiros princípios da moralidade” conduz ao esboço do princípio da autonomia

como o genuíno princípio crítico da moral ao mesmo tempo em que consolida a

autonomia da filosofia moral em relação à metafísica tradicional.

De todo modo, com a formulação de um princípio supremo da moral, Kant

atingiria apenas a primeira etapa de sua Metafísica dos Costumes: restava ainda

debruçar-se sobre os temas éticos e jurídicos de que trata a obra e investigar possíveis

expedientes de aplicação do princípio de autonomia da vontade à natureza humana

exigidos pelas metafísicas específicas do direito e da virtude. Sobre isso, contudo,

falaremos apenas nas partes seguintes da dissertação. Por ora, retomemos as referências

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103

à Metafísica dos Costumes que aparecem antes de sua publicação, já na Crítica da

Razão Pura e nos esboços sobre o “sistema vindouro da metafísica”. Voltemo-nos,

portanto, ao período crítico e ao percurso aqui tomado pelos planos sempre “iminentes”

de redação da obra que coroaria o desenvolvimento da filosofia moral kantiana.

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104

3. 1781-1797 – A MORAL CRÍTICA E A EMPRESA DOUTRINAL.

DE SÍSIFO A TÂNTALO OU: A “IMINENTE” METAFÍSICA DOS

COSTUMES?

Não sei se, em esforço semelhante de minha parte, o fado que me acomete não lhe pareceria ainda mais doloroso caso você se colocasse em meu lugar; pois, ainda que fisicamente me sinta razoavelmente bem, pareço como que paralisado para os trabalhos do espírito. Vejo diante de mim a conta ainda em aberto das coisas que dizem respeito ao todo da filosofia (no que toca tanto aos fins quanto aos meios), embora esteja consciente da factibilidade da tarefa: um suplício de Tântalo, em relação ao qual, contudo, ainda não perdi as esperanças (Ak XII: 257).

A publicação da Crítica da Razão Pura em fim de maio ou começo de junho de

1781 marca o início do período crítico no percurso filosófico de Kant. Culminação dos

mais variados esforços empreendidos ao longo da década silenciosa, essa “metafísica da

metafísica” (Carta a Herz, depois de 11/05/1781. Ak X: 269) representa uma verdadeira

e duradoura medida “profilática, catártica e terapêutica”141 contra o “contágio” entre

conhecimento sensível e racional diagnosticado na Dissertação Inaugural 11 anos

antes. A razão doravante vê esquadrinhada sua extensão, delimitados seus limites e

fixadas suas pretensões legítimas. O “tribunal da crítica” (KrV A XI-XII. p. 5; A 751/ B

779. p. 604) convoca a metafísica para comparecer diante de si e desnuda-lhe as vãs

presunções de conhecer os objetos da razão; esta, “purificada” de sua enfermidade

congênita, agora apenas admite legitimamente um uso prático daqueles - Sísifo, liberto

de sua Schwärmerei, é exortado a largar sua rocha e pôr-se a “agir”.

No interior dessa nova etapa do pensamento kantiano, a Metafísica dos

Costumes ressurge modificada no horizonte. Ao lado de uma Metafísica da Natureza, a

obra é contada como pertencente à “empresa doutrinal” que se seguiria ao esforço

crítico propedêutico de “purificação” do conhecimento humano. Contudo, a demarcação

precisa dos limites de atuação da Crítica custou a Kant um trabalho não antevisto em

1781: tanto uma Crítica da Razão Prática quanto uma Crítica da Faculdade de Julgar

não estavam previstas no momento da publicação da primeira edição da Crítica da

Razão Pura, e o trabalho envolvido na redação de ambas retardou ainda mais a entrega

daquela que seria a doutrina dos costumes a seguir-se “imediatamente” à obra de 1781.

Em lugar de Sísifo e seu paranoico labor, Kant assume a figura do faminto e sequioso

141 Santos, L. R. Op. cit. p. 150.

Page 105: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

105

Tântalo no malogrado esforço de saciar seu desejo. Não apenas a etapa crítica se

prolonga para além da intenção inicial, mas também a empresa doutrinal parece

envolver-se em “impurezas” necessárias para “completar o sistema”.

Nessa seção retraçaremos o percurso da Metafísica dos Costumes no interior do

período crítico, atentando às cada vez mais enfáticas exigências de pureza ligadas à

obra, e aos diversos empecilhos que se lhe impuseram nas décadas de 1780 e 1790. A

Metafísica dos Costumes “pura”, anunciada já na década de 1760 e retomada em

momentos do período crítico, ganha corpo até atingir sua forma madura. O que surge

diante de Kant é o problema mesmo da relação entre fundamentação e aplicação da

moral, que, ao lado de questões políticas relativas à censura sofrida por Kant no período

e novos problemas surgidos no “acabamento” da “empresa crítica”, em muito explica o

retardamento na redação da obra que constituiria a “forma final” de sua filosofia moral.

Entretanto, reservaremos uma discussão detida a respeito da relação entre etapa

transcendental e etapa metafísica somente para a segunda e a terceira partes da

dissertação, limitando-se aqui apenas a analisar o modo como a redação da Metafísica

dos Costumes é obstruída pelo inesperado alargamento do projeto crítico e pelos

entraves de ordem “pragmática”. Este capítulo, assim, assume, de modo temerário, um

tom mais narrativo do que propriamente analítico. Em resumo, o leitor que busca as

conexões entre os conceitos desenvolvidos na Fundamentação e na Crítica da Razão

Prática e retomados na Metafísica dos Costumes terá de esperar a discussão

empreendida nas próximas partes da dissertação.

Num primeiro momento, analisaremos, recorrendo sobretudo à correspondência

de Kant, o percurso do projeto de uma Metafísica dos Costumes até o acabamento da

“empresa” ou “trabalho” crítico <kritisches Geschäft> (3.1). Na sequência,

analisaremos algumas questões conceituais e problemas de censura enfrentados por

Kant que podem ser considerados os últimos responsáveis pelo adiamento na redação

definitiva da Metafísica dos Costumes, publicada em 1797 (3.2).

3.1 - A Metafísica dos Costumes antes do término da “empresa crítica”

Na Crítica da Razão Pura, a filosofia moral é discutida especialmente no

interior na Doutrina Transcendental do Método, no capítulo sobre o Canon da Razão

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106

Pura. Relembremos uma Reflexão já transcrita e datada da metade final da década de

70:

Na metafísica dos costumes precisamos abstrair de todas as características humanas, da

aplicação e de seus impedimentos in concreto, e precisamos buscar apenas o canon, que

é uma ideia pura e universalmente válida. (Rx 6822. Ak XIX: 172. 1776. Grifos

nossos).

Escrevendo a Herder em 17/05/1779, Hamann reforça essa ideia, afirmando que

Kant trabalhava em uma “moral da razão pura”142. É de se imaginar, portanto, que no

momento inicial do período crítico o Canon da Razão Pura esboçasse em grande medida

aquilo em que, futuramente, consistiria a Metafísica dos Costumes anunciada na

Arquitetônica da Razão Pura:

A Metafísica divide-se em metafísica do uso especulativo e metafísica do uso prático

da razão pura e é, portanto, ou Metafísica da Natureza ou Metafísica dos Costumes.

(...) [Esta] contém os princípios que determinam a priori e tornam necessários o fazer e

o não fazer. Ora, a moralidade é a única conformidade à lei das ações que pode ser

derivada inteiramente a priori de princípios. Por isso, a Metafísica dos Costumes é, de

fato, a moral pura, onde não se toma por fundamento nenhuma antropologia (nenhuma

condição empírica) (KrV A 841-842/ B 869-870. Grifos nossos).

A passagem citada testifica a exigência de pureza da moral desenvolvida ao

longo da década de 1770 e coligida na Reflexão transcrita acima: no início do período

crítico, Kant concebia sua futura Metafísica dos Costumes como um “canon”, uma ideia

pura abstraída das características humanas empiricamente detectáveis, e que conteria as

diretrizes para o uso prático da razão pura.

Com efeito, o próprio Canon da Razão Pura reforça ainda mais essa conclusão.

Aqui, Kant define um canon como “o conjunto dos princípios a priori do uso legítimo

de certas faculdades de conhecimento em geral” (KrV A 796/ B 824. p. 634). A razão

pura, cujos objetos encontram-se todos além dos limites da experiência, não pode ter

seu canon na especulação: ora, não há um uso constitutivo legítimo da razão no âmbito

da experiência, seus princípios aqui são apenas regulativos, não servindo, sem que se

caia em uso “completamente dialético” (KrV A 796/ B 824. p. 634), para ampliar

142 Apud Kraft, B & Schönecker, D. “Einleitung”. In: Kant, I. Grundlegung zur Metaphisik der Sitten. Hamburg: Felix Meiner, 1999. p.VII.

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107

sinteticamente o conhecimento dos objetos dados aos sentidos. Resta a ela, portanto, o

uso prático, onde seus princípios cobram legitimidade e podem – de forma diferente da

que ocorre com o entendimento, por certo – adquirir um uso sintético.

No âmbito prático, onde se define o que se deve fazer ou deixar de fazer, o

arbítrio livre não pode depender de condições empíricas para ser exercido. Neste último

caso,

a razão só pode ter um uso regulativo e apenas pode servir para efetuar a unidade de leis

empíricas; assim, na doutrina da prudência <Lehre der Klugheit>, a unificação de todos

os fins, dados pelas nossas inclinações num fim único, a felicidade, e a concordância

dos meios para alcançá-la constituem toda a obra da razão que, para esse efeito, não

pode fornecer outra coisa senão leis pragmáticas da nossa livre conduta, próprias para

nos alcançarem os fins recomendados pelos sentidos, mas de modo nenhum leis puras

completamente determinadas a priori (KrV A 800/ B 828. p. 636. Grifos nossos).

Uma ideia presente desde a Investigação é agora adaptada e transfigurada no

novo marco crítico. As regras pragmáticas, ou seja, que enunciam não uma obrigação

moral estrito senso, mas apenas uma prescrição prática condicionada, dependente de

algum fim previamente dado, são caracterizadas como sujeitas a um fim único estranho

à atividade da razão pura: a felicidade. Submetida a esse constructo de nossa natureza

sensível, nada resta à razão senão unificar sob certas regras a miríade de fins

particulares estipulados pelas inclinações. O uso da razão aqui, portanto, é apenas

regulativo, e não constitutivo e sintético como deve ocorrer caso de fato lhe corresponda

um canon. Este, Kant prossegue, somente é atingido quando as inclinações e, de modo

geral, as condições empíricas são abstraídas e sobrepujadas pela razão pura:

Em contrapartida, as leis práticas puras, cujo fim é dado completamente a priori pela

razão e que comandam, não de modo empiricamente condicionado, mas absoluto,

seriam produtos da razão pura. Ora tais são as leis morais <moralische Gesetze>; por

conseguinte, pertencem somente ao uso prático da razão pura e admitem um canon

(KrV A 800/ B 828. p. 636. Grifos nossos).

O canon da razão pura conteria, portanto, os princípios que a guiam em seu uso

prático, em outras palavras, as leis práticas puras que em nada dependem da

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108

sensibilidade143. A Metafísica dos Costumes, que seria a “metafísica do uso prático da

razão pura”, ou ainda, uma “ideia pura e universalmente válida”, começava a ser

delineada no interior de um projeto crítico mais amplo, que, no momento (1781), não

parecia prever a necessidade das obras preparatórias que surgiriam na sequência - na

primeira edição da Crítica da Razão Pura não há uma menção sequer a uma

Fundamentação da Metafísica dos Costumes e tampouco a uma Crítica da Razão

Prática.

Em 11/01/1782, Hamann escreve a Hartknoch, o editor da Crítica da Razão

Pura, para anunciar-lhe que “Kant trabalhava em uma Metafísica dos Costumes – para

qual editora não sei”144. Em 1783 Kant partilha com Moses Mendelssohn seus planos de

naquele inverno “terminar, se não completamente, ao menos em sua maioria a primeira

parte” de sua moral145. É impossível saber ao certo o estágio em que Kant se encontrava

no desenvolvimento de sua filosofia moral no período: os “trabalhos” a que Hamann e o

próprio Kant se referem poderiam ou não já estar configurados como uma

Fundamentação, e não como a própria Metafísica dos Costumes146. O fato é que em

19/09/1784 Hamann relata a Scheffner que Kant havia recentemente entregue a seu

editor o manuscrito de seu escrito sobre filosofia moral, já devidamente caracterizado

como Fundamentação da Metafísica dos Costumes147 – a obra, contudo, demora a ser

impressa, tendo vindo a público apenas seis meses mais tarde, já em 1785148.

143 Passamos por cima das questões centrais do Canon, a saber, o acolhimento no âmbito prático daqueles objetos da razão pura que tiveram seu conhecimento negado no âmbito teórico, Deus, liberdade e imortalidade da Alma (KrV A 803/ B 831. p. 638), o ideal do Sumo Bem (KrV A 810-811/ B 838-839. pp. 642-644) e o modo de “assentimento” <Führwahrhalten> envolvido no uso prático da razão (KrV A 828ss/ B 856ss. p. 654ss). Nosso objetivo aqui é apenas analisar as exigências de pureza na moral kantiana, e não outros temas que dela podem decorrer. De resto, ressaltemos aqui que não abordaremos no restante do trabalho a relação possível entre Metafísica dos Costumes e esses outros temas tratados no Canon e retomados, dentre outros, na Crítica da Razão Prática. 144 Apud Ludwig, B. “Einleitung”. In: Idem (Ed). Immanuel Kant. Metaphysische Anfangsgründer der Rechtslehre. Hamburg. Felix Meiner Verlag. 2009. p. XVII. 145 Idem. Ib. 146 Em uma série de cartas de meados de 1784, Hamann relata a diversos interlocutores que Kant iniciara seu manuscrito sobre “filosofia moral” como uma “anticrítica” ao livro de Christian Garve, Philosophische Anmerkungen und Abhandlung zu Cicero’s Büchern von den Pflichten, lançado no outono de 1783, mas que gradualmente o escrito “se transformou em um Prodomum da Moral”. Apud Kraft, B & Schönecker, D. “Einleitung”. Op.cit. p. IX-X. Não há relatos do próprio Kant que atestem ou contradigam a “tagarelice” <Schwatzhaftigkeit> de Hamann (Kraft, B & Schönecker, D. “Einleitung”. Op. cit. p. XI-XIII). 147 Apud. Ludwig, B. “Einleitung”. In: Idem (Ed). Immanuel Kant. Metaphysische Anfangsgründer der Rechtslehre. Hamburg. Felix Meiner Verlag. 2009. p. XVII. 148 Segundo Beck, é possível conjecturar a respeito dos motivos que levaram Kant à redação de um Fundamentação da Metafísica dos Costumes após o Canon da Razão Pura e as discussões relativas à terceira antinomia. Para ele, haveria três razões principais: 1) O fragmento 6 das Löse Blätter sugere que Kant não estava satisfeito com os caminhos sugeridos pela Crítica da Razão Pura para a resolução do problema de juízos sintéticos a priori na moral, que exigem um modo de justificação diferente daquele

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109

Na obra, como veremos com mais detalhes na terceira parte da dissertação, Kant

é explícito ao dizer que sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes deveria ser

compreendida da maneira sugerida pelo seu título, a saber, como uma mera

“fundamentação”, ou ainda, uma “propedêutica” à futura Metafísica dos Costumes (Gr

Ak IV: 391. p. 106). Em todo caso, conforme indica a correspondência kantiana do

período, o escrito de fundamentação da moral parecia a Kant ter sido suficientemente

bem sucedido em seu propósito. Em meados do ano de publicação da Fundamentação

da Metafísica dos Costumes, 1785, Kant termina seus Primeiros Princípios Metafísicos

da Ciência da Natureza, e, em carta a Schütz (13/09/1785. Ak X: 406-407149), comenta

que, após o término dessa obra, passaria sem tardar <ungesäumt> ao “tratamento

completo de sua Metafísica dos Costumes” (Ak X: 406), embora se comprometesse

nessa mesma carta a resenhar a segunda parte das Ideen zur Philosophie der Geschichte

der Menschheit, de Herder. Em 13 de novembro do mesmo ano, um empecilho análogo

se interpôs aos planos de redigir sem tardar a Metafísica dos Costumes: Schutz (Ak X:

421-424) reforça o pedido já feito para que Kant resenhasse a Versucht über das

Naturrecht, de Gottlieb Hufeland para o Allgemeine Literaturzeitung, do qual era editor

e onde, naquele mesmo mês, saíra a resenha sobre o livro de Herder. Kant aquiesce ao

pedido e publica em 18/04/1786 seu primeiro escrito estritamente sobre direito,

retardando ainda mais o - aparentemente - cada vez mais próximo tratamento

sistemático dos deveres.

Após essa série de resenhas inesperadas, Kant parecia finalmente poder dedicar-

se à sua Metafísica dos Costumes. Em 14/05/1787, Jenisch confidencia “aspirar

fortemente” pela obra150; contudo, a exemplo de todos aqueles que ainda aguardavam a

publicação, ele se frustra: nesse ano Kant ocupou-se prioritariamente com a preparação

da segunda edição da Crítica da Razão Pura e com a redação da Crítica da Razão

empreendido por ocasião dos juízos sintéticos a priori na filosofia da natureza; 2) a não influência do problema da liberdade na discussão realizada no Canon, que deveria ser suprida pela nova obra; e 3) por fim, mas nem por isso menos importante, a ausência completa do princípio da autonomia nos momentos da Crítica da Razão Pura em que questões morais são apresentadas deveria ser revertida na Fundamentação. Beck, L. W. A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Op. cit. pp. 10-13. 149 Nessa carta Kant escreve que seus Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza precederiam a Metafísica da Natureza, consistindo numa “mera aplicação” desta última e pressupondo um “conceito empírico” - uma Metafísica da Natureza, porém, “se deve ser homogênea, precisa ser pura”. Os Primeiros Princípios apenas apresentariam “exemplos in concreto” necessários para que a “apresentação <Vortrag> fosse compreensível” (Ak X: 406). Retomaremos esse tema na segunda parte da dissertação, em que será discutido o caráter “a priori não puro” de uma metafísica kantiana, mais especificamente a Metafísica dos Costumes. 150 Apud Ludwig, B. Op. cit. p. XVIII

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110

Prática, publicadas em 1787 e 1788, respectivamente, e não parecia ter avançado no

projeto da obra sobre filosofia moral prometida desde 1768.

É patente, assim, que no intervalo entre a publicação da Fundamentação e da

Crítica da Razão Prática, para além dos escritos de ocasião, novos problemas relativos

à filosofia moral e, sobretudo, à sua filosofia crítica de modo geral, se interpuseram à

ambição kantiana de redigir em breve ou sem tardar sua Metafísica dos Costumes. Quer

pelas dificuldades sentidas na dedução do princípio supremo da moralidade, quer pela

descoberta de uma antinomia no uso prático da razão, quer ainda pela busca da unidade

da razão em seus usos prático e especulativo, o fato é que a necessidade de redigir uma

Crítica da Razão Prática se impôs a Kant de modo irresistível, retardando ainda mais o

seu projeto de uma Metafísica dos Costumes. A Crítica da Razão Prática surgira mais

como uma exigência nascida de problemas internos ao acabamento de sua filosofia

crítica do que como algum ajuste de contas propedêutico para os temas éticos e jurídicos

que seriam tratados na futura Metafísica dos Costumes ou para a questão de uma moral

aplicada151 - a doutrina dos deveres, assim, ainda deveria esperar o acabamento do

edifício crítico.

3.2. Da “empresa crítica” à “empresa dogmática” – problemas conceituais

e empecilhos políticos.

Com efeito, ao invés de passar “sem tardar” à metafísica, o problema que

ocupava Kant no período parecia de fato ser o de finalmente “dar cabo” à sua filosofia

crítica. Em 11/09(?)/1787 (Ak X: 493-495), Kant afirma a Jakob estar envolvido em um

novo projeto, uma “Crítica do Gosto”, que, segundo o tão recorrente otimismo kantiano,

surgiria antes da páscoa seguinte. Esta obra constituiria o término de sua “kritisches

Geschäft” e após sua redação esperava poder prosseguir “imediatamente” à

151 Os comentadores divergem a respeito dos possíveis motivos que levaram Kant a redigir sua Crítica da Razão Prática. Segundo Heiner Klemme, o estopim para a redação de uma crítica da razão prática teria sido a descoberta de uma dialética própria ao uso prático da razão (Klemme, H. “The origin and aim of Kant’s Critique of Practical Reason”. In: Reath, A. & Timmerman, J (orgs). Kant’s Critique of Practical Reason. A Critical Guide. Cambridge, Cambridge University Press, 2010). Já para Beck foram problemas relativos à unidade da razão prática e teórica e à conexão entre a lei moral e os sentimentos que conduziram Kant à redação da obra. Beck, L.W. A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Op. cit. p. 15. Ambos os comentadores, no entanto, concordam, a exemplo de Kuehn, que no período de redação da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant não tinha em vista o plano de uma Crítica da Razão Prática (Kuehn, M. “Metaphysics of Morals. The History and significance of its deferral”. Op. cit. pp. 13-14).

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111

“dogmatisches” (Ak X: 494), ou seja, à tão aguardada Metafísica dos Costumes, bem

como à Metafísica da Natureza. Kant, no entanto, se viu envolto em diversas

dificuldades na composição da obra, retardando sua publicação em três anos, agora sob

a forma de uma “Crítica da Faculdade de Julgar”152.

Em meados de 1789, mais precisamente em 26 de maio, Kant escreve a Herz e

conta-lhe sobre o estágio atual de suas investigações (Ak XI: 48-56). Além de estar

próximo da entrega de sua “Crítica do Gosto”, já devidamente renomeada Crítica da

Faculdade de Julgar, Kant afirma estar “em parte” trabalhando na preparação de seu

“sistema da metafísica”, “tanto da natureza quanto dos costumes, segundo as exigências

152 Sobre a tumultuada gênese da obra, bem como as diversas interpretações a respeito, cf. Terra, R. “Reflexão e sistema: a propósito da Primeira introdução e da gênese da Crítica do juízo”. In: Passagens. Estudos sobre a filosofia kantiana. Rio de Janeiro, Editora UFRJ. 2003. O autor argumenta que um dos motivos – senão o principal – para o retardamento da redação da Metafísica dos Costumes reside no “momento aporético” imanente ao pensamento kantiano, que leva o filósofo a um estendido, laborioso e contínuo movimento de incorporação de temas e construção de passagens no interior de seu sempre inacabado sistema crítico (idem. pp. 43ss). Nesse sentido, a composição da Crítica da Faculdade de Julgar ocupa posição central e paradigmática: trata-se da obra em que as figuras da reflexão são unificadas e em que o juízo reflexionante, “motor aporético” do traçado filosófico de Kant, finalmente surge com toda força e com o expresso e explícito “direito de cidadania crítico” já previamente insinuado no Apêndice à Dialética Transcendental da Crítica da Razão Pura, ou, numa leitura mais radical, na própria da Analítica Transcendental (cf. Longuenesse, B. Kant and the Capacity to Judge – Sensibility and Discursivity in the Transcendental Analytic of the Critique of Pure Reason. Op. cit). Terra parece filiar-se à leitura de Gérard Lebrun, para quem o “movimento reflexionante” da empresa crítica atravanca a “obra doutrinal”, mais notadamente a Metafísica dos Costumes – segundo Lebrun, esta, sugada pela reflexão, simplesmente desaparece do horizonte de Kant (cf. Lebrun, G. Kant e o Fim da Metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 393-395). O sobrepeso conferido à Crítica da Faculdade de Julgar e aos temas da obra no retardamento da redação da Metafísica dos Costumes, com todas as conclusões que disso podem ser extraídas, também é compartilhado - com modificações - por Alain Renaut (“L’Application et les limites de la philosophie pratique”. In: Kant Aujoud’Hui. Paris: Aubier, 1997. 287-292) e Simone Goyard-Fabre. (La Philosophie du Droit de Kant. Paris: Vrin, 1996. 23-25. Esta autora chega mesmo a afirmar que a Doutrina do Direito, transfigurada pela Crítica da Faculdade de Julgar em responsável pela passagem da “cultura” à “moralidade”, teria como função “arrematar a crítica em doutrina”. p. 24). Embora aceitemos tal modalidade de interpretação, acreditamos que ela, se levada às últimas conseqüências - ou seja, entender a reflexão e o movimento aporético como uma espécie de sorvedouro allumfassend de temas filosóficos em Kant -, obscurece e enfraquece o rico confronto temático de Kant com a tradição (aqui, ética e jurídica) na formulação de sua filosofia (aqui, prática). Não foram apenas questões internas ao pensamento kantiano e a dificuldade de “concluir” seu sistema que levaram ao contínuo diferimento da Metafísica dos Costumes, e tampouco é somente a forma de acomodar novas ideias ao quadro crítico-transcendental que molda – e/ou obstrui – a composição de novas obras. No caso da Metafísica dos Costumes, como já vimos e veremos com mais detalhes, é o confronto com a Philosophia practica universalis da escola wolffiana e seu connubium rationis et experientiae, bem como a influência da tradição britânica e de Rousseau, que caracteriza a longa e conturbada busca kantiana por uma “purificação prévia” (e “crítica”, ressalte-se) das proposições morais para então aplicá-las à “natureza humana”, um problema já presente no período pré-crítico e, portanto, bem anterior à “descoberta da reflexão” e à Crítica da Faculdade de Julgar – sequer mencionemos aqui a “ética material” racionalista, as “pré-noções estéticas” sensualistas e a “readaptação” do “princípio de perfeição” wolffiano na Doutrina da Virtude, assim como toda a rearticulação da tradição jusnaturalista na Doutrina do Direito. Movimento aporético? Certamente, mas já presente no momento doutrinal, anterior ou posterior ao momento crítico. Em suma, a consecução da metafísica kantiana é retardada não apenas pelo vacilante percurso da reflexão crítica, mas também pelas dificuldades conceituais encontradas no confronto direto com os temas especificamente tratados na e pela tradição. Mesmo em seu “sono dogmático” Kant pode sonhar aporeticamente.

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112

críticas” (Ak XI: 49). É possível conjecturar sobre quais seriam algumas das

preocupações de Kant no momento quanto à sua Metafísica dos Costumes. Em carta do

mesmo período (posterior a 01/03/1789. Ak XXIII: 494-495), Kant escreve a Jung-

Stilling e, após esboçar uma aplicação das categorias às leis que regem a sociedade

civil, conta-lhe sobre aquele que considera o “problema universal da união civil”: como

“ligar a liberdade com uma coerção que, contudo, possa concordar com a liberdade

universal e com a manutenção da mesma. Dessa forma, surge um estado de justiça

externa (status iustitae externae) por meio do qual é realizado aquilo que, no estado

natural, era apenas uma ideia, a saber, o direito como mera autorização <Befugnis> para

coagir” (Ak XXIII: 495).

Imagina-se que seriam essas as preocupação centrais de Kant – tanto o

“problema universal da união civil” quanto sua adequação ao “fio condutor das

categorias” – quando, no “fim do verão” daquele ano (Ak XXIII: 495), como afirma a

Jung Stilling e reforça a Herz, começasse a trabalhar em sua Metafísica dos Costumes,

ou, mais especificamente, em sua Doutrina do Direito. A esse período pertencem

também as últimas lições sobre filosofia moral oferecidas por Kant na década de 80, no

semestre de inverno de 1788/9, bem como as suas derradeiras lições sobre direito

natural, proferidas no semestre de verão 1788153, o que talvez justifique e explique o

entusiasmo de Kant e os temas abordados nas cartas. Após isso, no entanto, Kant

permaneceria quase 5 anos sem lecionar sobre filosofia moral em geral e sem publicar

nada diretamente relacionado ao direito e à ética154.

Um ano após o “término de sua empresa crítica” com a publicação da Crítica da

Faculdade de Julgar em 1790, a obra sobre a Metafísica dos Costumes ainda era

esperada com ansiedade pelos “filósofos críticos” que já se avolumavam em torno de

Kant. Kieserwetter, em 14/06/1791155, relata de Berlim que a Metafísica dos Costumes

fora esperada com nervosa agitação na feira anual, e a frustração por seu não

surgimento não havia sido menos intensa. Jakob (10/05/1791)156 escutara que Kant

brindaria em breve o público com uma moral e um direito natural, o que infelizmente,

como Kieserwetter verificaria, não ocorreu.

153 Não há manuscritos preservados de nenhuma delas. 154 Além da Crítica da Faculdade de Julgar, dentre as obras do período há o “Escrito contra Eberhard” (1791) dentre outras. 155 Apud Ludwig, B. Op. cit. p. XVIII 156 Apud Ludwig, Op. cit. p. XIX

Page 113: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

113

No ano seguinte, no entanto, o trabalho na Metafísica dos Costumes parecia

progredir. Em 21/12/1792 (Ak XI: 398-399), Kant compartilha com Erhard a evolução

do escrito, afirmando estar envolvido na obra e referindo-se à doutrina dos “deveres

para consigo mesmo” e à maneira pela qual esta estava recebendo em suas investigações

um tratamento “bem diferente” do habitual (Ak X: 399). Cerca de 6 meses mais tarde,

em maio do ano seguinte, Kant escreve a Fichte queixando-se da lentidão nos

desenvolvimentos de sua Metafísica dos Costumes e culpando por isso a proximidade

de seu 70º aniversário, que seria completado no ano seguinte.

Contudo, a “morosidade senil” de Kant não pode ser a única culpada pelos

atrasos do período. Em setembro de 1793 o escrito sobre a Gemeinspruch é lançado, e,

após 5 anos de intervalo, Kant volta a lecionar sobre filosofia moral no semestre de

inverno de 1793/4, o que, bem provável, levou-o a demorar-se mais detidamente no

tema157. Um motivo adicional e mais importante para a lentidão na composição do

escrito é dado por Friedrich Schiller. Após travar contato com Kant, ele escreve a

Erhard em 26/10/1794 e relata: “A derivação do direito de propriedade é, agora, um

ponto com o qual muitas cabeças pensantes se ocupam, e de Kant mesmo escutei que

devemos esperar algo a respeito em sua Metafísica dos Costumes. Ao mesmo tempo,

contudo, escutei que ele ainda não está satisfeito com suas ideias sobre o tema, e, por

isso, deixou a edição de lado”158.

Além de questões puramente conceituais – para não mencionar os sempre

alegados motivos de saúde –, circunstâncias políticas desempenharam um papel

significativo no adiamento da publicação da Metafísica dos Costumes. Em carta de

157 Há uma cópia preservada de uma anotação de aluno relativa a esse semestre: Vigilantius. Ak XXVII: 477ss. Cf. Ludwig, B. Op. cit. p. XIX. e Kuehn, M. “Kant’s Metaphysics of Morals”. Op. cit. p. 15. Kuehn especula que o curso deu ensejo a que Kant iniciasse a redação “definitiva” da Metafísica dos Costumes. 158 Apud Ludwig, B. Op. Cit. pp. XIX-XX. Segundo Ludwig, “de fato, se percorrermos as notas de Vigilantius, não encontramos nada que merecesse o nome de uma tal derivação. Mesmo já na Gemeinspruch esse problema é deixado completamente de lado, de modo que Kant – com plena consciência desse desiderato – precisava encetar novamente o trabalho”. Os Vorarbeiten zur Rechtslehre (Ak XXIII: 271-336) contêm as reflexões preparatórias de Kant sobre o tema. A doutrina kantiana do direito privado, à qual pertence a discussão sobre a propriedade, é, sem dúvida, a parte da Doutrina do Direito que, num nível mais específico, adota de forma mais clara a démarche transcendental do período crítico. Além do claro emprego das categorias de relação para a divisão do direito privado em direito real, direito pessoal e direito pessoal de caráter real (MS Ak VI: 247-248. pp, 70-72), o “idealismo transcendental” e a doutrina dos dois mundos são centrais para a distinção entre posse “empírica”, ie, a mera detenção <Inhabung> de algo junto a alguém, e a posse “inteligível”, ie, a posse meramente jurídica de algo mesmo seu proprietário não estando em sua posse empírica atual (MS Ak VI: 249-252. pp. 75-80). Conforme demonstram claramente os Vorarbeiten, os problemas envolvidos na “adaptação” dessas noções centrais do criticismo ao quadro estritamente jurídico podem, sem dúvida, ser contados como uma das causas do retardamento da obra. Para uma exposição da doutrina kantiana do direito privado que fartamente lança mão dos Vorarbeiten, cf. Kersting, W. Op. cit.. pp. 177-250.

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114

14/11/1794 ao editor da Crítica da Faculdade de Julgar, François Theodore de La

Garde (Ak XI: 530-532), Kant enumera dois “obstáculos” <Hindernisse> que o

impedem de fazer vir a público novos escritos: primeiro, em sua “assaz avançada idade”

seus “trabalhos de escrita avançam lentamente e com interrupções ocasionadas por

indisposições, de modo que (ao menos por agora) é impossível determinar com certeza

um prazo para o término dos mesmos”; segundo, seu “tema é realmente a metafísica em

seu significado mais amplo, e, enquanto tal, compreende teologia, moral (e, com ela,

religião), assim como direito natural <Naturrecht> (e, com ele, direito político

<Staatsrecht> e das gentes <Völkerrecht>), muito embora apenas segundo aquilo que a

razão deles pode dizer; contudo, como a mão da censura pousa pesadamente sobre esses

temas, não se pode estar certo se todo um trabalho que se deseja empreender nesses

campos não será frustrado por um golpe da caneta do censor” (Ak XI: 531)159. Kant se

diz esperançoso de que a liberdade de publicação retornasse após a “paz”160. “Até lá,

estimado amigo, você precisará ter paciência enquanto continuo meu trabalho com

esperanças otimistas” (Ak XI: 531).

Os apelos de Kant parecem justificar-se – ou ao menos em parte. Em agosto de

1795 Zum ewigen Frieden era lançado, mas nenhum sinal de uma Metafísica dos

Costumes. Temas abordados nesta, sobretudo jurídicos e religiosos, saiam a conta-gotas

da pena kantiana.

No ano seguinte voltam a circular em Königsberg notícias de que a Metafísica

dos Costumes seria publicada em breve: sua primeira parte, os Primeiros Princípios

Metafísicos da Doutrina do Direito, deveria aparecer em outubro de 1796.161. Tratava-

159 Em carta de 14/08/1795 a G.F. Seiler, Kant insinua ainda haver “significativos e poderosos indícios <Winke>” que impedem que se levem a cabo escritos “desse tipo”, ie, sobre religião – Kant referia-se a uma obra de seu interlocutor, “A Crença Racional” (Ak XII: 37). Alain Renaut discute a situação política prussiana que fez com que Kant, temeroso das conseqüências que seus escritos, sobretudo sobre religião, pudessem causar, adiasse por alguns anos a publicação da Metafísica dos Costumes: “depois da morte de Frederico II (1788), a política de censura desenvolvida pelo ministro Wöllner (cujos editos repressivos, tomados desde a unção de Frederico Guilherme II, somente tiveram suas verdadeiras consequências a partir da instituição, em 1791, da comissão de exame imediato) expôs Kant, desde a aparição de A Religião nos limites da simples razão (1793), a disputas tais que se tornou duvidoso poder publicar livremente obras tratando de moral e política (...). A situação deveria felizmente mudar com a unção de Frederico Guilherme III, em novembro de 1797” (Renaut, A. “L’Application et les limites de la philosophie pratique”.Op. cit. p. 291), ou seja, o ano de publicação da Metafísica dos Costumes. Para maiores detalhes e farto material documental sobre a relação de Kant com a política de censura de Wöllner, cf. Kuehn, M. Kant. A Biography. Op. cit. pp. 361-385. Kuehn argumenta que o ensejo inicial das disputas entre Kant e as autoridades foi, na verdade, o escrito Über das Misslingen aller philosophischen Versuche in der Theodizee, surgido em setembro de 1791 na Berlinische Monatsschrift. 160 Trata-se do fim da “Guerra da Primeira Coalizão” (1793-1797) movida contra a França bonapartista e que teve seu cessar-fogo em 1795, com a assinatura dos tratados de Paris, Basileia e Haia – após estes, a Prússia retirou-se do confronto, restando apenas a Inglaterra na antiga coalizão. 161 Ludwig, B. Op. cit. p. XXI.

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115

se de uma suspeita procedente. Kant escreve em 19/11/1796 a Konrad Stang dizendo

que “seus Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito [foram] há algumas

semanas levados ao prelo e devem sair por volta do natal” 162. Contudo, os primeiros

registros de que a obra havia sido publicada datam de 1797, mais precisamente de 28 de

janeiro. De La Garde escreve a Scheffner rejubilando-se de que os Primeiros Princípios

Metafísicos da Doutrina do Direito de Kant haviam causado uma “sensação

extraordinária” em Berlim163. Já em 18/02/1797 surge a resenha de Boutwerk no

Göttingschen Anzeigen Von Gelehrten Sachen164. Cerca de 6 meses depois, no mais

tardar em 28/08/1797, como anuncia o Königsbergischen Anzeigen von Gelehrten

Sache, surgia a segunda parte da Metafísica dos Costumes, os Primeiros Princípios

Metafísicos da Doutrina da Virtude.165. Uma edição da Metafísica dos Costumes

contendo as suas duas partes somente aparece após a morte de Kant, em 1804.

* * *

A Metafísica dos Costumes foi um dos últimos escritos publicados pelo próprio

Kant, e, sem dúvida, o principal de sua produção pós-Crítica da Faculdade de Julgar.

Tratava-se da obra que, em grande medida, guiara seus esforços filosóficos e que se lhe

afigurara como um “ponto de fuga” sistemático – ora, dos projetos prometidos pelo

próprio Kant, a Metafísica dos Costumes foi aquele que, ao menos “nominalmente”,

necessitou de mais tempo de maturação e que povoou as inquietações filosóficas

kantianas pelo período de tempo mais longo. Tendo em mente toda a distensão da

epopéia kantiana rumo à sua Ítaca que tentamos aqui narrar, Lewis White Beck confere

à Metafísica dos Costumes um papel proeminente no desenvolvimento do pensamento

de Kant, considerando-a até mesmo “objetivo central” dos seus esforços, e que,

curiosamente, teve como “produtos colaterais” as duas primeiras críticas:

Tal foi a longa série de planos prorrogados, percorrendo mais de trinta anos do ‘Ensaio

Premiado’ [Investigações sobre a evidência dos princípios da teologia natural e da

162 Apud. idem. ib. Segundo Ludwig, esta carta não se encontra na Akademie Ausgabe, mas apenas no “Catálogo da exposição ‘Immanuel Kant’ do Museu Gutemberg de Mainz, de 12/03 – 10/04/1974”. 163 Apud. idem. p. XXII. 164 A resenha está reproduzida no volume XX da edição da Academia nas páginas 445-453. A resposta de Kant à resenha é reproduzida na Doutrina do Direito como apêndice desde a sua segunda edição, publicada em 1798, ainda com Kant em vida. 165 Cf. Ludwig, B. “Einleitung”. In: Immanuel Kant. Metaphysische Anfangsgründer der Tugendlehre. Hamburg. Felix Meiner Verlag. 2008. p. XV.

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moral ] até a final Metafísica dos Costumes, e tendo quase como coprodutos a Crítica

da Razão Pura, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, e a Crítica da Razão

Prática. Mesmo se a Metafísica dos Costumes não fosse interessante e intrinsecamente

importante, é uma obra para a qual devemos ter um sentimento de gratidão. Como um

objetivo final, ela inspirou Kant a trabalhos que produziram outras e maiores obras

primas166.

No entanto, como já mencionado, para Beck e muitos outros o valor da

Metafísica dos Costumes resume-se de fato a ser tão-somente isto: a “inspiração” dos

esforços de Kant; ela não seria “interessante e intrinsecamente importante”,

representando, antes, a “grata” recaída dogmática de Kant, logo lá onde isto menos

poderia ocorrer: na moral. Tentaremos agora reverter este juízo desdenhoso e mesmo

agressivo contra nosso objeto de estudos. A sequência da dissertação terá como objetivo

apresentar um retrato mais positivo da Metafísica dos Costumes, caracterizando-a como

um exemplar esforço sistemático de aplicação do princípio supremo da moral à natureza

humana e estágio crucial para a ultrapassagem do tão propagado e tão apressadamente

acusado “formalismo kantiano”. Antes disso, no entanto, será necessária mais uma

parada, agora no reino de Hécuba, a metafísica. Cumpre analisar de que maneira Kant

reformula o quadro da metafísica tradicional e insere no seu interior uma metafísica

aplicada, tanto da natureza quanto dos costumes. Veremos, na terceira parte da

dissertação, que o ineditismo e a peculiaridade de uma metafísica da moral surgem,

ironicamente, da derrocada da metafísica tradicional dogmática e da fundação de um

novo império no mundo da experiência.

166 White Beck, L. Op Cit. pp. 17-8.

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118

II

KANT E A REFORMULAÇÃO DA METAFÍSICA

Firmo os joelhos na areia, o esforço envido, Terceira haste acometo; eis de um sepulcro (Falar devo ou calar?) imo suspiro, Gemente som, no ouvido me estremece: “Ai! por que me laceras? poupa, Enéias, Um finado; as mãos pias não profanes” Virgílio. Eneida. III, 37-42

No prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura (KrV A VIII-IX. p. 4),

Kant compara o destino da metafísica àquele de Hécuba representado por Ovídio nas

Metamorfoses: a rainha de Tróia, outrora “tantas grandezas possuindo”, “hoje em

desterro, na indigência agora”, vocifera aos deuses a sina que pelas mãos de Aquiles

acometera a si e a seus domínios. Na sequência do trecho do poema de Ovídio evocado

por Kant, Hecuba, tomada de fúria e loucura pela derrocada de seu reino, investe contra

a multidão que a enxovalha e põe-se a morder as pedras que contra ela são

arremessadas. Trata-se da imagem também reproduzida por Dante de uma Hécuba

desalentada e ensandecida, “ladrando como um cão” no inferno e completamente

impotente diante do que lhe ocorrera. Não faltaram aqueles que pretenderam ver em

Kant um Aquiles da metafísica, o responsável por devastar o reino dessa “matrona

ofendida e abandonada”, antes tão poderosa e agora debilitada, resignada e

completamente desvairada. Contudo, outras representações feitas de Hécuba na

antiguidade expõem-na de forma menos jocosa. Eurípedes a retrata como a altiva e

vingativa escrava que tenta reverter sua sorte, e, consciente da impossibilidade de fazê-

lo, termina por cegar Polimester e matar seus dois filhos. Embora, conforme

prognosticado, o fatídico destino lhe fosse inexorável, a Hécuba narrada por Eurípedes

não tencionava ceder facilmente a uma opressão que se lhe afigurava odiosa e sobretudo

injusta. Não seria possível compreender sob uma chave semelhante o esforço kantiano

de reerguer das ruínas o império da rainha das ciências? A reação desesperada de

Hécuba mostra que o fado da metafísica não poderia ser sacramentado com a facilidade

que se queria fazer crer, e seu reino, devastado com o desembaraço propagado. Nessa

perspectiva, mais do que Hécuba, Kant não faria melhor as vezes de Enéias, que, após

reencontrar seus antigos conterrâneos troianos e aperceber-se da impossibilidade de

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119

reedificar o antigo domínio, funda em outras terras um novo império que traz a marca

da antiga estirpe? “Pois é crível (...) que almas sublimes / Aos tardos corpos,

ressurgindo, voltem? / Oh! desejo de vida insano e triste!”

Pretendemos nesta parte da dissertação avaliar a proposta de reformulação da

metafísica elaborada por Kant por sobre os destroços da antiga disciplina dogmática dos

racionalistas. Contra a figura simplista de uma Kant alleszermalmer, tentaremos expor o

seu esforço de retrabalhar a tradição por ele recebida e sua conclusão, talvez resignada,

de que, sob a perspectiva científica que lhe é própria, apenas seria possível uma

metafísica “dos objetos da experiência”, ou ainda, uma metafísica aplicada, que toma

por tema não o suprassensível, mas antes o mundo empírico do qual a razão detém um

domínio incontestável e publicamente reconhecido. Ao mesmo tempo em que reenvia a

um uso prático da razão os objetos tradicionais da metafísica e o interesse moral por

eles suscitados, Kant não abdica de sua ambição de formular uma “metafísica possível

como ciência”, ou seja, uma metafísica aplicada da natureza e da liberdade. Preparação

ou não para o escopo último da metafísica desde os gregos, a saber, “a passagem ao

suprassensível”, a metafísica aplicada elaborada por Kant abala o quadro que o assimila

a um puro e simples destruidor da tradição, ou àquele que, pelas portas do fundo de um

mundo inteligível, propôs um matrimonum in articulo mortis com a moribunda amada

que ajudava a eliminar.

Desse modo, as reformulações por que passaram as divisões habituais da

metafísica dogmática no interior do projeto crítico serão o tema do quarto capítulo da

dissertação. Ao mesmo tempo em que desabilita as disciplinas da metaphysica specialis

em suas pretensões científicas e redireciona os objetos desta ao uso prático da razão,

Kant reconfigura criticamente a metaphysica generalis, a ontologia, em uma “modesta

analítica do entendimento puro” e forja uma “nova” metafísica: a metafísica aplicada,

composta por uma Metafísica da Natureza e uma Metafísica dos Costumes.

No quinto capítulo, por sua vez, analisaremos o caso dos Primeiros Princípios

Metafísicos da Ciência da Natureza como exemplo do procedimento em operação em

uma metafísica aplicada, na qual figuram uma parte transcendental, que desempenha a

tarefa, análoga à da ontologia, de fundar as condições de possibilidade da objetividade

do conhecimento envolvido, e uma parte metafísica específica, em que os princípios

transcendentais fundados na etapa anterior são aplicados ao conceito empírico do objeto

particular de um âmbito determinado da experiência. Surgem aqui os princípios

metafísicos, que tornam explícito o objetivo de fundo de uma metafísica aplicada para

Page 120: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

120

Kant: conferir “sentido e significado” aos conceitos e princípios transcendentais,

“realizar” o momento excessivamente abstrato de fundamentação ao instanciá-los na

concretude a priori da experiência efetiva.

Esperamos, com esta análise, determinar o lugar sistemático ocupado pela

Metafísica dos Costumes na Arquitetônica da Razão Pura, definindo-lhe o papel de uma

metafísica aplicada, para, na parte seguinte da dissertação, compreender os contornos

gerais que lhe são devidos em virtude desta sua designação e de sua nobre linhagem.

Page 121: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

121

4. A QUESTÃO DE UMA “METAFÍSICA APLICADA” EM KANT

No prefácio aos Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza, na

conhecida nota em que discute as críticas lançadas à dedução transcendental das

categorias feita na primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant torna explícita a

proposição a partir da qual, escreve ele, todo o sistema crítico seria “construído”

<erbaut> e devido à qual deveria suscitar “certeza apodíctica”:

todo o uso especulativo da nossa razão nunca se estende além dos objetos da

experiência possível (MAN Ak IV: 474).

A confissão kantiana – uma resposta às acusações de que um suposto fracasso na

dedução transcendental levaria à deslegitimação de todo o projeto crítico – certamente

não surpreende um leitor mesmo que casual da Crítica da Razão Pura. Contudo, pode

causar certo desconforto o fato de ela ser feita numa obra em cujo título figura a rainha

das ciências: a metafísica. Ora, desde Aristóteles esta ciência não estaria dirigida, ao

menos em seu propósito último, ao suprassensível, ao conhecimento especulativo de

objetos que ultrapassam os limites da sensibilidade, justamente o que é posto em

questão pelo próprio Kant na passagem citada? Como, portanto, sustentar o projeto de

uma “metafísica”, como, por exemplo, uma Metafísica da Natureza ou dos Costumes,

depois de desabilitá-la como disciplina científica? À primeira vista, os planos, previstos

na Arquitetônica da Razão Pura, de uma Metafísica da Natureza e de uma Metafísica

dos Costumes parecem “pré-críticos”, quando não completamente despropositados após

a revolução copernicana – aos ouvidos dos contemporâneos de Kant, uma metafísica da

natureza poderia soar como algo parecido a uma cosmologia racional talvez ligada a um

ens realissimum que garantisse a prova última da realidade do mundo natural, e uma

metafísica da moral, algo como uma doutrina do direito natural calcada, em última

instância, na teologia natural. Não seria justamente contra isso que se dirige o esforço

crítico?

Page 122: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

122

Contra essa suspeita de fundo lançada sobre o projeto metafísico de Kant167,

tentaremos nesse capítulo compreender a posição da metafísica aplicada (Met. Dohna

Ak XXVIII: 617; Met. Mrongovius Ak XXIX: 752) ou metafísica doutrinal (Met.

Mrongorius. Ak XXIX: 753) no sistema kantiano, uma disciplina que pode arrogar-se

um caráter metafísico e, ao mesmo tempo, científico, pelo fato de dirigir-se não aos

objetos tradicionais da metafísica, Deus, alma e mundo, mas antes às condições de

possibilidade de constituição do objeto de um âmbito específico da experiência – trata-

se dos projetos de uma metafísica da natureza como doutrinal racional da substância

corporal, e de uma metafísica da moral entendida como uma moral para o homem (4.2).

Para tanto, contudo, é necessário analisar de antemão a maneira pela qual Kant

retrabalha as divisões e mesmo o significado da metafísica tradicional no interior do seu

projeto crítico, o que é feito de forma explícita e esquemática no capítulo sobre a

Arquitetônica da Razão Pura da Crítica da Razão Pura (4.1).

4.1. Sentidos de “metafísica” no projeto crítico kantiano

De um modo geral, não é tarefa fácil determinar em que medida Kant de fato

comprometeu-se com uma metafísica própria e, de forma mais específica, quais seriam

seus contornos168. Após ter, ao longo de toda Crítica da Razão Pura, mais notadamente

167 Cf. Lebrun, G. Kant e o Fim da Metafísica. São Paulo. Martins Fontes. 2002. p. 394: “A inquietação de Bering [interlocutor de Kant que, em carta, indaga sobre a tão prometida publicação da Metafísica dos Costumes] era portanto justificada: não haverá metafísica em Kant. Como se a Crítica devorasse o projeto que a tinha suscitado, à medida que o autor refletia sobre sua essência”. Por certo, a análise de Lebrun vai muito mais longe do que uma pura e simples recusa de uma “metafísica aplicada” em Kant. Contudo, tomamos esse comentador como exemplo paradigmático de uma leitura que nega de antemão a possibilidade sistemática de uma Metafísica dos Costumes em virtude do sentido estreito de “metafísica” assumido: “(...) o único tema da metafísica é a relação com o suprassensível” (Lebrun, G. Op. cit. pp. 50-51). Sim e não: como veremos mais adiante, mesmo admitindo que o propósito último da metafísica é a “passagem” ou o “trânsito” entre o sensível e o suprassensível, Kant admite metafísicas particulares que acolhem um elemento empírico e, assim, referem-se a objetos determinados. Para Kant, a lei de inércia, por exemplo, é uma “lei metafísica da natureza”, presente em uma Metafísica da Natureza, ou ainda, em uma metafísica da substância corporal, assim como o dever de beneficência é uma “lei metafísica da liberdade” por referir-se a um dever humano específico e, dessa forma, pertencer à Doutrina da Virtude. Ficam, decerto, algumas interrogações: em que medida isso caracteriza uma “torção” do sentido tradicional de metafísica e em quê a lei de inércia e a beneficência auxiliam no espoco final da metafísica, a passagem ao suprassasensível? – dessas questões tentaremos na sequência apenas responder a primeira. Em todo caso, preferimos não assumir uma posição simplista que afirma que Kant emprega o termo “metafísica” da natureza e dos costumes pelo único motivo de não ter encontrado nome melhor. 168 Não teremos oportunidade aqui de discutir a chamada “escola metafísica” de interpretação kantiana, composta, dentre outros, por Max Wundt, Martin Heidegger e Heinz Heimsoeth. No início do século XX, esses autores se levantaram contra a intepretação neokantiana da filosofia de Kant, que tentava ver no criticismo transcendental um mero “vestibulo das ciências positivas” e em Kant um antimetafísico

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123

na Dialética Transcendental, dado o golpe final na metafísica dogmática tradicional,

afirmando que seus objetos por excelência (Deus, alma e mundo) não poderiam ser

conhecidos por extravasarem os limites da experiência possível, Kant reconhece, não

obstante, que quando tratamos da metafísica não estamos lidando com uma ciência

acessória da qual se poderia abrir mão caso ela se demonstrasse impossível ou inviável

de um ponto de vista teórico. Muito pelo contrário, a metafísica, a ciência racional por

excelência, se constitui como uma “disposição natural da razão” <Naturanlage der

Vernunft> (Prolegomena Ak IV: 365. p. 163) intimamente ligada a um “interesse da

razão universal humana” (Prolegomena Ak IV: 257. p. 13. Cf. Prolegomena Ak IV:

327. pp 109-110; KrV A 779/ B 827. p. 635), de modo que, num ambiente que lhe é

cada vez mais refratário, nada restaria senão submetê-la a uma crítica da própria razão

pura169.

Contudo, se examinarmos essas passagens mais atentamente, percebemos que,

ao mesmo tempo em que afirma a inevitabilidade dessa ciência, Kant insiste em

desacreditar a pretensão especulativa da metafísica dogmática de possuir proposições

sintéticas a priori com respeito a seus objetos, o que, devido a uma impossibilidade de

base, enreda-a nas ilusões dialéticas que lançam desconfianças quanto ao valor da

metafísica como ciência. É nesse contexto que Kant afirma o duplo valor da Crítica:

negativa como uma exortação de “jamais ousarmos elevar-nos com a razão especulativa

acima dos limites da experiência” (KrV B XXV. p. 24-25), e positiva “na medida em

que ao mesmo tempo elimina (...) um obstáculo que limita ou até ameaça aniquilar o

uso prático (...) absolutamente necessário da razão pura (o moral) no qual esta se

empedernido. Para um registro exemplar das intenções da escola metafísica, ver a Introdução de Philosophie und Moral in der Kantischen Kritik, de Gerhard Krüger, publicado em 1931. Na senda aberta pelos estudos pioneiros sobretudo de Heidegger, Heimsoeth e Wundt, Krüger reafirma que Kant teria sempre se compreendido como um metafísico, e que, curiosamente, “a influência que exerceu foi, de fato, oposta à sua intenção” (Krüger, G. Critique et Morale chez Kant. Paris: Beauchesne, 1961. p. 23), a saber, ao invés da imagem de Kant como prolongador e reformulador da temática metafísica, surgira aquela de Kant como o “refutador” da metafísica e arauto dos positivismos da virada do século XIX para o XX. Não causava estranhamento algum a postura de Krüger. Ora, como sete anos antes Heimsoeth cravara, já se havia passado “o tempo em que era permitido acreditar ver em Kant o pioneiro de uma ‘crítica pura do conhecimento’ e o filósofo da ciência teórica com cuja ajuda se poderia combater todo tipo de questionamento metafísico e em cuja ‘postura crítica’ se veria o modelo para uma recusa de todos os problemas da metafísica” (Heimsoeth, H. “Metaphysische Motive in der Ausbildung des kritischen Idealismus” Op. cit. p. 121). Embora, por certo, a “metafísica” de Kant que propomos redimensionar aqui seja distinta daquela sugerida pelos autores, a intenção de fundo pode ser considerada a mesma. 169 “Pois aquilo que até agora foi denominado metafísica não pode agradar a nenhum espírito investigador, mas, como também é impossível renunciar completamente a ela, logo é mister tentar uma crítica da própria razão pura, ou, se já existe uma, investigá-la e submetê-la a uma prova universal, pois do contrário não existe outro meio de satisfazer a esta necessidade premente, que é algo mais do que simples desejo de saber” (Prolegomena Ak IV: 367. p. 166)

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124

estende inevitavelmente acima dos limites da sensibilidade” (idem). Assim, como bem

mostram o Canon da Razão Pura e a Dialética da Crítica da Razão Prática, os objetos

da metafísica tradicional são e devem ser reabilitados do ponto de vista do uso prático

da razão, para o qual são imprescindíveis como postulados necessários para a realização

completa do objeto da lei moral, o Sumo Bem - ao invés de objetos de um saber teórico,

passíveis de um tratamento científico e sistemático como aquele pretendido pela

tradição racionalista clássica, Deus e imortalidade da alma são objetos duma fé racional,

ficando ao abrigo de objeções céticas quanto à possibilidade de provar sua existência

numa perspectiva especulativa ao mesmo tempo, contudo, em que fica vedada uma

ciência teórica dos mesmos (cf. KpV Ak V: 133ss. pp. 214ss; KrV A 795ss/ B 823ss.

pp. 633ss). A metafísica tradicional, desqualificada em suas pretensões especulativas, é,

não obstante, submetida à “proteção Crítica” que reconfigura em um uso prático o

inevitável interesse racional e moral ligado aos objetos metafísicos.

Isto posto, fica, no entanto, a pergunta: será esse o único sentido de metafísica

empregado por Kant quando coloca como pergunta crucial a ser respondida pela Crítica

aquela a respeito da possibilidade da metafísica como ciência (KrV B 22. p. 51.

Prolegomena Ak IV: 265ss. pp. 23ss), ou quando afirma que a Crítica deve servir-lhe

como propedêutica (KrV A 841/ B 868. pp 662-663), ou, sobretudo no que aqui nos

interessa, quando redige seus Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza

e sua Metafísica dos Costumes? Entendemos que não. Somente quando se compreende

que a noção de uma metafísica kantiana “científica” é mais ampla do que aquela outra

por ele criticada e também que o estabelecimento de uma metafísica nos moldes

kantianos constitui-se uma peça central no interior de sua concepção de sistema da

filosofia, é que podemos então redimensionar a contento, como aqui nos importa, o

conjunto da filosofia moral kantiana. A metafísica que Kant deseja desabilitar como

ciência e reenviar a um uso prático da razão corresponde a apenas um dos diversos

sentidos que essa disciplina essencial ao homem assume no interior do projeto crítico e,

de resto, na tradição filosófica. Em todas elas, contudo, o cerne racional dessa ciência é

preservado: nas diversas feições que assume, trata-se de uma disciplina filosófica cujo

conhecimento deve ser necessário e apodíctico em virtude de sua sede na razão.

Podemos, de forma geral, distinguir quatro significados que a metafísica adquire

durante o período crítico, todos eles implicitamente evocados acima170:

170 Seguimos aqui, com modificações, a classificação proposta por Renaut, A. “L’Application et les limites de la philosophie pratique”. Op. cit. p. 314.

Page 125: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

125

(1) a metafísica como metaphysica generalis, entendida como a análise crítico-

transcendental dos conceitos tradicionais da ontologia, e que, como veremos, se

transforma numa “modesta analítica do entendimento puro” (cf. KrV A 247/ B 303. p.

264);

(2) metafísica como metaphysica specialis, disciplina que investiga os objetos

par excellence da metafísica tradicional, a saber, Deus, mundo e alma, e que é

desconstruída sobretudo pela Dialética Transcendental nas pretensões científicas

observadas nas disciplinas tradicionais correspondentes a cada um desses objetos:

teologia transcendental (Deus), cosmologia racional (mundo) e psicologia racional e

empírica (alma) (cf. KrV A 334-5/ B 391-392. p. 321);

(3) metafísica como metaphysica naturalis (KrV B 21. p. 50), ou seja, como uma

“disposição natural da razão”, que indica a inevitável tendência do homem, ínsita à

estrutura lógica da razão e ao interesse moral despertado pelos objetos da metafísica, em

arrancar-se do mundo sensível em direção ao suprassensível e que, assim, o leva a um

contínuo e malogrado esforço em conhecer os objetos da metafísica especial (cf. KrV B

21. p. 50; Prolegomena Ak IV: 365. p. 163); e, finalmente,

(4) metafísica como metaphysica applicata, isto é, metafísica aplicada ou

metafísica doutrinal, incluindo uma Metafísica da Natureza e uma Metafísica dos

Costumes e caracterizada como uma disciplina racional que aplica um conjunto de

proposições a priori a um elemento empírico mínimo dado na experiência segundo as

duas partes em que se divide a filosofia: filosofia da natureza, cujo objeto são as leis da

natureza, e filosofia dos costumes, cujo objeto são as leis da liberdade (Met.

Mrongovius Ak XXIX: 750-751; Met. Dohna Ak XXVIII: 617; Fortschritte Ak XX:

285-286. pp. 53-54; KrV A 845-848/ B 873-876. pp. 665-667; MAN Ak IV: 469-470.

pp. 15-16). Trata-se, aqui, de disciplinas metafísicas particulares “cientificamente

legítimas” e, assim, passíveis de sistematização, em conformidade com a exigência

racional-especulativa de completude ligada idealmente a tal ciência (MAN Ak IV: 473.

p. 19. MS Ak VI: 218. p. 26).171

171 Omitimos aqui um possível quinto sentido de metafísica, exposto explicitamente nos Progressos da Metafísica como um sentido “prático-dogmático” da metafísica e que consiste no “conhecimento prático-

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126

As duas primeiras acepções de “metafísica” são facilmente atribuíveis à tradição

racionalista da qual Kant era herdeiro e contra a qual se levantou: trata-se, em (1), da

metaphysica generalis, ou ainda, ontologia, questionada pela Analítica Transcendental

da Crítica da Razão Pura, e, em (2), da metaphysica specialis, que se dividiria, segundo

Wolff, em theologia naturalis (Deus), psychologia rationalis (alma) e cosmologia

generalis ou transcendentalis (mundo), discutidas e desabilitadas em suas pretensões

científicas na Dialética Transcendental da Crítica da Razão Pura172. Deixando de lado o

significado de metafísica como disposição natural173 e passando ao largo dos detalhes

da crítica kantiana à metaphysica generalis e à metaphysica specialis desenvolvida na

Doutrina Transcendental dos Elementos, voltemo-nos ao quarto sentido de metafísica, a

metafísica aplicada kantiana, na qual os dois primeiros sentidos são retomados e

dogmático do supra-sensível” envolvido no uso prático da razão quando do acolhimento dos objetos da metafísica especial, criticamente reabilitados, como mencionado, sob a perspectiva moral com vistas ao fim último da razão humana (Fortschritte Ak XX: 293-296. pp. 63-68). Trata-se aqui do significado geral de “metafísica” discutido nos Progressos como o da “ciência que opera, mediante a razão, o trânsito do conhecimento do sensível ao do suprassensível <sie ist die Wissenschaft, von der Erkenntnis des Sinnlichen zu der des Übersinnlichen durch die Vernunft fortzuschreiten>” (Fortschritte Ak XX: 260. p. 12), em oposição à metafísica como “sistema de todos os princípios do conhecimento mediante conceitos da razão pura teórica” (Fortschritt Ak XX: 261. p. 15). Segundo Mario Caimi, Kant se refere à oposição entre os “conceitos clássicos de ‘metafísica como disposição natural’ e ‘metafísica como ciência’” (Caimi, M. La Metafísica de Kant. Buenos Aires: UEBA, 1989, p. 19 n. 4), oposição essa que remete àquela de Baumgarten entre metaphysica naturalis e metaphysica artificialis, ou seja, entre uma metafísica que se adquire pelo “uso” e outra que deve ser estudada sistematicamente (idem, p. 22). Para Caimi, portanto, esse quinto sentido de metafísica estaria estreitamente ligado ao terceiro, a metaphysica naturalis como a disposição natural da razão com vistas a seu fim supremo. Como já mencionado na primeira parte da dissertação, não discutiremos em pormenor a temática do sumo bem e dos postulados de que, grosso modo, tratam as passagens dos Progressos acerca de uma metafísica “prático-dogmática” e, portanto, deixaremos de lado esse possível quinto sentido de “metafísica” bem como o terceiro a ele relacionado. 172 Cf. Wolff, C. Einleitende Abhandlung über Philosophie im allgemein. Stuttgart: Frommann-Holzboog, 2006. Além da ontologia, ciência daquilo que é comum a todos os entes (§ 73), a metafísica seria dividida segundo a diferença dos entes que conhecemos: Deus, a alma humana e os corpos ou coisas extensas (§ 55). Portanto, daqui resultam 3 partes da metafísica, das quais uma trata de Deus, outra da alma humana e outra dos corpos ou coisas materiais (§ 56): respectivamente, teologia natural (§57); psicologia (§58) e cosmologia, parte da física geral que trata “dos corpos inteiros, do mundo e ensina de que maneira o mundo é composto por aqueles (...). A cosmologia, assim, é a ciência do mundo enquanto tal” (§ 77). Em suma, a metafísica compreende a ontologia, a cosmologia geral e a pneumática ou “ciência dos espíritos”, ou seja, a psicologia e a teologia natural (§ 79). Cf. também Wolff, C. Vernunftige Gedanken von Gott, der Welt und der Seele des Menschen, auch allen Dingen überhaupt. In: Gesammelte Werke, Jean École et al. (eds). Hildesheim-Zürich-New York: Georg Olms Verlag, 1962-. O segundo capítulo trata da ontologia geral, o terceiro e quinto da psicologia racional e empírica, o quarto da cosmologia racional e o sexto da teologia racional. Sobre a metafísica wolffiana e suas divisões, cf. École, J. La métaphysique de Christian Wolff. Hildesheim, Zürich & New York: Geog Olms Verlag, 1990. pp. 51-64. Notemos desde já como Kant desliga a física racional da cosmologia, bem como a filosofia prática das disciplinas metafísicas tradicionais, autonomizando-a, o que não ocorria em Wolff – para ele, os princípios da philosophia practica universalis dependiam das demais disciplinas metafísicas segundo a hierarquia por ele proposta (cf. Wollf, C. Einleitende Abhandlung. Op. cit. §§ 62-70 e 92). Cf. infra 6.1. 173 Cf. nota 171 supra.

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127

reformulados no interior do projeto crítico, surgindo disso uma Metafísica dos

Costumes como metafísica aplicada da moral.

4.2. O Sistema da Filosofia – Crítica e Metafísica Aplicada

Como dito acima, a preocupação de Kant na Crítica da Razão Pura não é pura e

simplesmente negar a existência e os direitos da metafísica tradicional, opondo-lhe a

Crítica e fazendo desta sua substituta; pelo contrário, o objetivo último de Kant na obra

inaugural do período crítico consiste em investigar a possibilidade de uma metafísica

em geral como disciplina científica da razão. Segundo Mary. J. Gregor, com esse intuito

Kant operacionaliza o significado tradicional de metafísica na questão que anima a

Crítica da Razão Pura, a saber, “como é possível a metafísica como ciência?”. Nessa

obra, segundo Gregor, Kant procura dotar a metafísica de um novo método que recupere

seu aspecto científico, método esse ensejado a partir da “completa revolução” da

metafísica, fazendo da Crítica uma espécie de “tratado sobre o método” de toda filosofia

futura (cf KrV B XXII-XXIII. p. 23).

Ora, aceitando como resultado da investigação crítica que aquilo legitimamente

tomado por um objeto do conhecimento tem de regular-se segundo nossas faculdades de

conhecimento, e não o inverso, surgindo, como consequência, o fato incontornável de

que somente podemos conhecer objetos dados à sensibilidade, conclui-se, portanto, que

os objetos da metafísica tradicional, todos eles dados para além das condições espaço-

temporais, devem ser rejeitados de um ponto de vista especulativo; a metafísica, nessa

esteira, se reconfigura nos novos termos críticos: “a análise mesma nos dará um novo

tipo de metafísica, um sistema de princípios cognitivos que tornam a experiência

possível e também tornam objetos da experiência possíveis”174. Ao passo que “a

metafísica tradicional consistia num conjunto de proposições sintéticas a priori sobre

objetos suprassensíveis (...), a metafísica kantiana é um sistema de conceitos e

princípios a priori que tornam possíveis os objetos da experiência”175, com a

peculiaridade de que tal metafísica deve ainda preocupar-se com a fonte de

possibilidade desses conceitos e princípios sintéticos a priori e com a aplicação dos

174 Gregor, Mary J. Laws of Freedom. Op. cit. p. 2 175 Ib. Idem.

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128

mesmos a um âmbito específico da experiência176. Trata-se, aqui, por um lado, da

disciplina crítica propedêutica que investiga os “extensão, das divisões, dos limites e de

todo o conteúdo” dos princípios da razão (Cf. KrV A XII. pp. 5-6), e, por outro, das

disciplinas sistemático-doutrinais que aplicam os princípios investigados e legitimados

na etapa anterior a um âmbito específico de objetos, sejam eles leis da natureza ou lei da

liberdade.

Na Arquitetônica da Razão Pura, onde é apresentado o “plano” de acordo com o

qual o “conjunto de todo o conhecimento da razão pura e especulativa”, seus

“elementos” e “materiais”, são erigidos no “edifício” sistemático da filosofia (KrV A

707/ B 735. p. 575), Kant parte da distinção inicial do conhecimento humano em

conhecimento histórico e racional. No primeiro tipo, o sujeito “conhece só tanto e na

medida em que lhe foi dado de fora, seja mediante experiência imediata ou uma

narração, seja mediante uma instrução (de conhecimento gerais)” (KrV A 836/ B 864, p.

659), em oposição ao conhecimento racional, que é constituído inteiramente pelo

indivíduo a partir de princípios e “fontes universais da razão (...), das quais também

pode emergir a crítica e até mesmo o repúdio daquilo que se aprendeu” (idem)177. Esse

segundo tipo de conhecimento, o racional, divide-se, por seu turno, em matemático, por

meio da construção de conceitos, e em filosófico, por meio de simples conceitos. É neste

último que Kant inclui a ciência metafísica.

Adotando uma divisão que seria retomada na Fundamentação da Metafísica dos

Costumes178, Kant escreve que a filosofia, “a legislação da razão humana”, ou ainda, “a

idéia de uma ciência que consiste num sistema de todo o conhecimento filosófico” (KrV

A 840/ B 868. p. 662), possui, por sua vez,

176 Cf. Sänger, M. Op. cit. pp. 60-61, que ressalta também as conseqüências disso para a Metafísica dos Costumes: “O ‘remodelamento da forma de pensamento’ torna possível uma nova metafísica, que não é mais o saber de objetos, mas sim, visto que os objetos se guiam agora segundo a organização específica das faculdades de conhecimento, a ciência das condições que possibilitam o saber de objetos (...). A Metafísica dos Costumes também precisa ser considerada a partir dessa virada crítica: ela não mais faz de um objeto como ‘liberdade’ algo cognoscível no sentido de um dado ontológico, mas antes surge como ciência das condições e legalidades <Gesetzlichkeiten> das capacidades humanas para a liberdade”. Contudo, Sänger omite aqui a metafísica aplicada, sobre a qual falaremos adiante. 177 Kant faz uma distinção semelhante nos Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza, opondo uma doutrina histórica da natureza, que se divide em uma “descrição da natureza” e em uma “história da natureza”, à ciência da natureza, ou ainda, uma doutrina racional da natureza composta por uma parte pura e outra empírica, e da qual se falará mais adiante na Arquitetônica (MAN Ak IV: 468. p. 14). 178 Cf. infra pp. 173-174.

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129

dois objetos, natureza e liberdade; contém (...) tanto a lei natural quanto também a lei

moral, inicialmente em dois sistemas separados, mas finalmente num único sistema

filosófico. A filosofia da natureza refere-se a tudo o que é; a filosofia dos costumes

concerne unicamente ao que deve ser (idem).

A filosofia, quando se ocupa de cada um desses dois objetos, divide-se tanto em

uma filosofia empírica (conhecimento racional baseado em princípios empíricos),

quanto em uma filosofia pura (conhecimento racional a partir da razão pura). Cada um

dos objetos da filosofia, a natureza ou a liberdade, pode, portanto, ser analisado no

interior de uma visada pura ou empírica, dependendo somente dos princípios a partir

dos quais são investigados – em suma, poderá haver tanto uma filosofia da natureza

pura ou empírica, quanto uma filosofia dos costumes pura ou empírica179.

A filosofia pura, que importa a Kant nessas passagens,

ou é uma propedêutica (exercício preliminar) que investiga a faculdade da razão no

tocante a todos os conhecimentos puros a priori e denomina-se crítica, ou constitui em

segundo lugar o sistema da razão pura (ciência), todo o conhecimento filosófico (tanto

o verdadeiro quanto o aparente) a partir da razão pura apresentado em sua conexão

sistemática, e chama-se metafísica (KrV A 841/ B 869. pp. 662-663. Grifos nossos).

179 Kant não especifica nesse trecho em que consistiriam uma filosofia da natureza empírica e uma filosofia dos costumes empírica. Como veremos por ocasião da discussão sobre o prefácio à Fundamentação, na filosofia da natureza empírica inclui-se a física empírica, que se baseia em princípios e conceitos retirados da experiência, ao passo que na filosofia dos costumes empírica deveria ser incluída uma antropologia prática, que supostamente retiraria preceitos morais de condições empíricas nas quais se encontra o homem (Gr Ak IV: 388. p. 103), diferenciando-se, assim, da antropologia moral, que se limita a analisar as condições subjetivas e empíricas em que as leis morais, discernidas na filosofia pura, encontram acesso ou impedimentos no ânimo humano (MS Ak VI: 217. p. 24). Notemos aqui que Kant, nas introduções à Crítica da Faculdade do Julgar, rejeitará por completo qualquer parte empírica da filosofia moral. Ora, esta deve basear-se na “legislação prática da razão segundo o conceito da liberdade” (KU, Ak V: 171. p. 15), o qual, pelo fato de não poder apresentar-se na experiência, não poderá ensejar qualquer parte empírica na filosofia. Há nessa última obra uma modificação significativa na caracterização do objeto de um ramo determinado da filosofia: não se trata mais apenas de objetos de legislações distintas da razão, mas também de “espécies de conceitos que precisamente permitem outros tantos princípios da possibilidade dos seus objetos” (idem), ou seja, do conceito de natureza e do conceito de liberdade. Assim, se determinado objeto da vontade é possível segundo o conceito de natureza – se o conceito que determina a causalidade da vontade é o conceito de algo dado empiricamente -, então os princípios que determinam a vontade, como preceitos técnicos e não morais, devem pertencer à filosofia teórica, e não à prática. O que ocorre é que a possibilidade de tais objetos é concebida como dependente não da liberdade, mas sim da natureza, tanto como meio da ação quanto como fundamento de determinação da vontade, cuja causalidade é então considerada como equivalente à de uma causa natural. Em suma, como veremos, uma antropologia prática parece ser rejeitada, conservando-se apenas a antropologia moral como uma disciplina descritiva das condições em que o agente humano se encontra, e não prescritiva de regras morais, como parecia ser a ambição de Kant anteriormente com uma antropologia prática.

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130

Não obstante, Kant escreve, a metafísica também pode nomear não apenas a

segunda parte da filosofia pura, o sistema da razão pura, mas mesmo toda ela, incluindo

aqui também a parte propedêutica ou crítica, “a fim de abarcar tanto a investigação de

tudo aquilo que pode ser conhecido a priori como também a exposição daquilo que

perfaz um sistema de conhecimentos filosóficos puros desta espécie, porém distinto de

todo o uso empírico e de todo o uso matemático da razão” (idem). Oposta à matemática

e a toda e qualquer disciplina empírica, a metafísica em sentido amplo contém, portanto,

uma parte crítica, que investiga a faculdade da razão e delimita seus usos legítimos e

ilegítimos, caracterizando-se assim como uma disciplina propedêutica, e um sistema da

razão pura, a ciência de todo o conhecimento racional a priori a partir de meros

conceitos, seja ele verdadeiro ou aparente, e que deverá ser dividida conforme o objeto

ao qual corresponde, se à natureza ou à liberdade.

Dessa maneira, a metafísica em sentido estrito, ou seja, entendida apenas como o

sistema da razão pura quanto a seus objetos, é dividida conforme o uso da razão

envolvido e o objeto específico a que ele se refere. Se se trata do uso especulativo

utilizado no conhecimento das leis da natureza, temos a Metafísica da Natureza; se,

pelo contrário, se trata do uso prático que determina as leis da liberdade, temos a

Metafísica dos Costumes:

a primeira contém todos os princípios puros da razão derivados de simples conceitos

(portanto excluindo a matemática) e que se referem ao conhecimento teórico de todas

as coisas; a segunda contém os princípios que determinam a priori e tornam necessários

o fazer e o deixar de fazer (KrV A 841/ B 869. p. 663).

Como já mencionado, na Crítica da Razão Pura Kant não trata ostensivamente

da Metafísica dos Costumes, limitando-se a concluir que ela deve ser a moral pura, isto

é, a parte da filosofia prática que não se funda em uma antropologia, e, assim, em

“quaisquer condições empíricas”. Na Arquitetônica, contudo, haverá uma primeira

exposição da Metafísica da Natureza, à qual agora nos voltaremos.

Segundo Kant, a Metafísica da Natureza, que diz respeito ao uso especulativo da

razão, divide-se em filosofia transcendental e fisiologia da razão pura:

a primeira considera apenas o entendimento e a própria razão num sistema de todos os

conceitos e princípios que se referem a objetos em geral sem admitir objetos que sejam

dados (ontologia); a segunda considera a natureza, isto é, o conjunto dos objetos dados

Page 131: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

131

(sejam dados aos sentidos, sejam dados, se se quiser, a uma outra espécie de intuição), e

é portanto uma fisiologia (KrV A 845/ B 873. p. 665).

A fisiologia da razão pura, por sua vez, é dividida segundo o caráter do uso

especulativo da razão envolvido: se se trata dum uso físico, ou seja, imanente, há uma

fisiologia imanente; ao contrário, se o uso da razão é hiperfísico, ou seja, transcendente,

há uma fisiologia transcendente. A fisiologia imanente considera a natureza na medida

em que seu conhecimento pode ser aplicado à experiência possível, ao passo que a

fisiologia transcendente volta-se à natureza na medida em que a conexão dos objetos

naturais envolvidos ultrapassa toda a experiência possível; desta última fisiologia

obtêm-se, portanto, duas doutrinas correspondentes ao tipo de conexão presente: se

interna, tem-se a cosmologia racional, ou seja, o “conhecimento transcendental do

mundo”; se, pelo contrário, se trata de uma conexão externa, surge a teologia racional,

“a fisiologia da interconexão inteira com um ente superior à natureza, ou seja, o

conhecimento transcendental de Deus” (idem). A fisiologia imanente, por seu turno,

visto que “encara a natureza como o conjunto de todos os objetos dos sentidos, portanto

tal como nos é dada, mas unicamente segundo as condições a priori sob as quais nos

pode em geral ser dada” (KrV A 846/ B 874. p. 666), divide-se conforme os tipos de

objetos que podem ser-nos apresentados aos sentidos, ou seja, em um física racional,

que lida com os objetos dos sentidos externos, a saber, a natureza corpórea, e em uma

psicologia racional, que assume o objeto do sentido interno, a natureza pensante180.

A Metafísica da Natureza tem, portanto, duas partes principais: a filosofia

transcendental e a fisiologia racional. À primeira Kant dá o nome de ontologia, visto

ela tratar de objetos em geral, sem que se especifique o modo como eles devem ser-nos

dados; não há aqui a consideração a respeito da distinção das (possíveis ou efetivas)

formas de intuição do sujeito, mas apenas do conjunto de princípios da razão e do

entendimento que torna primeiramente possível, de maneira inteiramente a priori, que

um objeto em geral possa ser legitimamente constituído. A segunda parte da metafísica,

a fisiologia racional, deve, por seu turno, levar em consideração uma espécie precisa de

objetos dados a uma forma específica da intuição. Para essa disciplina não basta a

referência às condições de possibilidade a priori de um objeto em geral já pressupostas

como dadas e estabelecidas, mas também uma espécie específica de objeto da

180 Cf. Hoppe, H. Kants Theorie der Physik. Eine Untersuchung über das Opus postumum von Kant. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1969. pp. 30-31.

Page 132: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

132

experiência deve ser levada em conta. Assim, vê-se claramente porque a parte relativa à

fisiologia transcendente é caracterizada como um conhecimento filosófico aparente:

não é possível aplicar aqueles princípios a priori pertencentes à filosofia transcendental

a objetos que extrapolam a experiência possível. Embora requeridas pela “ideia geral de

uma metafísica” (KrV A 850/ B 878. p. 668), a cosmologia e a teologia racionais não

são efetivos conhecimentos do campo teórico, passíveis de serem levados a cabo e

expostos de maneira sistemática – trata-se, assim, de saberes racionais aparentes, de

disciplinas de uma metafísica dogmática.

Por outro lado, existe uma possível disciplina científica efetiva: a fisiologia

imanente. Esta é dividida segundo o modo como os objetos nos são dados, isto é,

segundo as duas formas de intuição: espaço e tempo. É apenas sob essa condição que os

objetos de uma experiência possível podem ser constituídos pelo sujeito, e, portanto,

somente assim é possível haver uma aplicação legítima dos princípios apresentados pela

filosofia transcendental. Há, portanto, uma fisiologia referente ao objeto do sentido

externo, isto é, à natureza corpórea, e outra referente ao objeto do sentido interno, isto é,

à natureza pensante.181

Notemos a reformulação por que passam as divisões da metafísica tradicional no

sistema kantiano. A metaphysica generalis, ou ontologia, se reconfigura em “filosofia

transcendental”, ou, nos termos empregados na Analítica Transcendental, em uma

“modesta Analítica do entendimento puro” (KrV A 247/ B 303. p. 264), que deve

investigar não as determinações do ens in quantum ens entendido como uma coisa em si

cuja existência pode ser predicada através apenas da possibilidade de ser um cogitabile,

mas antes as capacidades de conhecimento do sujeito que inicialmente tornam possível

a constituição de um objeto em geral como fenômeno. Assim, a Analítica

Transcendental, que nada mais é do que “a análise <Zergliederung> de nosso inteiro

conhecimento a priori nos elementos do conhecimento puro do entendimento” (KrV A

64/B 89. p. 97), tem dentre os seus objetivos o de arrolar os conceitos e princípios

elementares e puros do entendimento, unicamente através dos quais é possível pensar a

forma “de um objeto em geral” (KrV A 51/B 75. p. 88), o que, como foi mostrado ao

longo da Crítica, apenas ocorre no interior dos limites da sensibilidade, isto é, espaço e

181 Para uma reprodução esquemática das divisões da filosofia expostas aqui, cf. Höffe, O. “Architektonik und Geschichte der reinen Vernunft”. In: Mohr, G & Willaschek, M (eds) Immanuel Kant. Kritik der reinen Vernunft. Klassiker Auslegen. Berlin: Akademie Verlag. 1998. p. 624.

Page 133: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

133

tempo como formas puras da sensibilidade182. Segundo o espírito da revolução

copernicana, a “soberba” ontologia se reconfigura em uma “modesta” ciência das

condições de possibilidade de um objeto (do conhecimento ou da experiência) em geral:

Ontologia é a ciência das coisas em geral, isto é, da possibilidade de nosso

conhecimento a priori de coisas, ou seja, independente da experiência. Ela não pode

ensinar-nos sobre as coisas em si mesmas, mas antes apenas sobre as condições a priori

sob as quais nós podemos conhecer coisas na experiência em geral, isto é, princípios da

possibilidade da experiência (Met. Volckmann Ak XXVIII: 394. Grifos nossos)183.

Por sua vez, a metaphysica specialis se transforma, de um ponto de vista

estritamente especulativo, em uma fisiologia da razão pura. A teologia e a cosmologia

racionais são contadas no interior de uma fisiologia transcendente da razão pura, que

visa à interconexão completa da natureza seja com relação a um ser superior, no caso da

teologia racional, seja com relação à completude absoluta das relações recíprocas dos

objetos naturais, no caso da cosmologia racional. Em ambos os casos, contudo, trata-se

de uma pretensão científica que extrapola os limites impostos pela “ontologia” crítica,

182A respeito da temática ontológica, os “predicáveis” discutidos na Analítica Transcendental atestam a ligação entre os conceitos ontológicos tradicionais e sua reformulação crítico-transcendental proposta por Kant: “Quanto aos conceitos derivados, cabe ainda observar: como os verdadeiros conceitos primitivos do entendimento puro, as categorias possuem também seus conceitos derivados, igualmente puros que de modo algum podem ser descurados num sistema completo da filosofia transcendental. Mas me contentarei, num ensaio meramente crítico, com a sua simples menção” (KrV A 81-2/B 108. p. 112). Trata-se dos Prädikabilien com cuja enumeração completa Kant nunca se ocupou. Segundo Kant, porém “tal propósito pode ser facilmente atingido caso se tenha à mão os manuais de ontologia”, como, por exemplo, “o de Baumgaurten” (Prolegomena Ak IV: 326n. p. 106n), subordinando-se “os predicáveis da força, da ação e da paixão à categoria da causalidade; os da presença e da resistência à da comunidade; os do surgimento, do perecimento e da modificação aos predicamentos da modalidade; e assim por diante. As categorias, ligadas aos modis da sensibilidade pura ou mesmo entre si, fornecem uma grande quantidade de conceitos derivados a priori que justificariam o empreendimento, proveitoso e nada desagradável, mas aqui dispensável, de anotá-los e, quando possível, enumerá-los de maneira completa” (KrV A 82/ B 108. p. 112). É sintomático, decerto, que Kant não tenha dedicado nenhuma obra particular ao tema. 183 É evidente que a discussão sobre a reformulação da ontologia na filosofia kantiana não se esgota nesse simples juízo – ela envolve, muito antes, toda a discussão sobre o estatuto do númeno, o objeto transcendental, o “algo em geral=X’ (KrV A 104-105. pp. 143-145), a Anfibolia dos conceitos de reflexão e mesmo o papel e limites da lógica formal e da transcendental. Cf. Codato, L. “Kant e o fim da ontologia” In: Analytica. vol 13. n. 1. 2009; Courtine, J.F. Suarez et le système de la métaphysique. Paris: PUF. 1990. pp. 250-257. Fichant, M. “L’Amphibologie des concepts de la Réflexion”. In: Almeida, G; Rohden, V e Terra, R (orgs). Recht und Frieden in der Philosophie Kants. Akten des X Internationalen Kant-Kongresses. Berlin: De Gruyter, 2008. Contudo, não entraremos nesse terreno ao mesmo tempo fecundo e espinhoso. Na análise dos Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza, retemos a noção “ontologia”, ou, como é denominado na obra, “parte transcendental” da “metafísica geral da natureza”, tão somente como o momento da ciência da natureza que investiga as faculdades de conhecimento do sujeito com vistas a discernir as condições de possibilidade de constituição de um objeto em geral como objeto da experiência, conforme, portanto, o teor geral e consensual do espírito da revolução copernicana.

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134

ou seja, que vai além do conhecimento possível do conjunto de fenômenos da natureza,

e, portanto, caracteriza-se como um saber racional aparente – assim como ocorria em

Wolff, em que os limites das disciplinas da metaphysica specialis eram estabelecidos

pela ontologia entendida como ciência das determinações do ser em geral184, também

para Kant a “ontologia crítica”, a analítica do entendimento puro, estipula os limites

permitidos à fisiologia da razão pura. Quanto à psicologia racional, esta é contada no

interior da fisiologia imanente da razão pura como a disciplina que investiga os

fenômenos dados ao sentido interno; porém, ao contrário da física racional, que tem por

objeto os fenômenos dos sentidos externos, a psicologia racional, conforme Kant

tornará mais claro nos Primeiros Princípios da Ciência da Natureza, não pode atingir o

nível de cientificidade exigido por uma metafísica, e, assim, ao lado das demais

disciplinas da metaphysica specialis, caracteriza-se por uma pretensa ciência metafísica

da razão pura185.

Sem mencionar explicitamente a fisiologia da razão pura como correlato crítico

da metaphysica specialis, Vleeschauwer resume da seguinte maneira os paralelismos

expostos acima:

Assim como a metaphysica generalis, a Analítica trata, portanto, das categorias e

princípios do ente; e para não restar a menor dúvida sobre seu propósito neste ponto,

Kant até mesmo acrescenta observações específicas sobre o motivo de ele não ter

184 Cf. Wolff, C. Einleitende Abhandlung über Philosophie im allgemein. Op. cit. § 73: “Há algo que é comum a todos os seres, que é dito tanto das almas quanto dos corpos, sejam eles naturais ou artificiais. A parte da filosofia que trata do ser em geral e dos atributos universais dele chama-se ontologia, algumas vezes também denominada filosofia primeira (…). Sem a ontologia, a filosofia não poderia ser tratada segundo o método demonstrativo”. Segundo Jean École, ao tomar como sinônimos “ontologia” e “ciência primeira”, ou seja, ao identificar a ontologia à disciplina que estabelece os princípios primeiros e as noções primeiras usadas no pensamento em geral, Wolff rompe com a tradição aristotélico-escolástica e com a filosofia cartesiana – para estas, a designação “filosofia primeira” convinha ao conjunto todo da metafísica, considerada pelos adeptos da primeira como “um estudo das condições gerais do ser e de sua fonte, e, por Descartes, como a disciplina que demonstra a existência de Deus e esclarece sua natureza, assim como a da alma, portanto, como uma teologia e uma psicologia”; já para Wolff, a ontologia “comanda” não apenas as outras partes da metafísica, mas também toda a filosofia, incluídas aí a lógica e mesmo as matemáticas (École, J. p. 52). 185 Cf. MAN Ak IV: 471. p. 17. KrV A 381ss. pp. 358ss; Caimi, M. Op. cit. p. 104. Segundo Kant, como não é possível aplicar a matemática aos fenômenos do sentido interno, tampouco é possível um tratamento sistemático da doutrina da substância pensante e, com isso, não é possível nenhuma metafísica da alma. A matemática é exigida para que o conceito de um objeto natural determinado (seja do sentido externo, seja do sentido interno) possa ser construído na intuição e, assim, seja tomado não mais como meramente possível, mas também como algo que “existe fora do pensamento” (MAN Ak IV: 470. p. 16). Para a aplicação completa do instrumental matemático é necessária, por sua vez, uma “dupla dimensão”, a saber, espaço e tempo, o que falta às representações do sentido interno, submetidas apenas ao tempo. Desse modo, da substância pensante apenas é possível dizer que ela está submetida à “lei de continuidade, para o fluir das mudanças interiores”, o que na matemática equivaleria tão-somente à “propriedade da linha reta relativamente a toda a geometria” (MAN Ak IV: 471. p. 17).

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135

tratado dos transcendentais <Transzendentalien> e dos predicáveis. A Dialética, por sua

vez, assume ponto por ponto a tríade da metafísica escolástica-wolffiana. Nós

concluímos disso que o objectum materiale da Crítica corresponde perfeitamente ao

objeto da metafísica wolffiana, que apresenta ela mesma a formulação definitiva de

uma tradição que, em última instância, remonta à escolástica espanhola do século XVI e

que, por sua vez, serve de modelo à vertente católica e à escolástica continental

protestante186

Uma passagem das Lições de metafísica anotadas por Mrongovius reconstrói de

forma sintética o procedimento kantiano de renovação da metafísica que expomos a

partir da Arquitetônica da Razão Pura:

[No sistema da metafísica] deve-se considerar a razão por si mesma. A primeira parte

[do sistema da metafísica] é a ciência que tem a razão como seu objeto. Ela lidaria com

as fontes, extensão e limites da razão pura (...): a) primeiro, iremos examinar se nosso

conhecimento racional pode conhecer algo a priori; ou seja, a possibilidade do

conhecimento a priori deve ser primeiramente investigada; b) na sequência, a extensão,

quão longe ele pode chegar, a quais objetos pode chegar sem a experiência; e,

finalmente, c) quando ele quer julgar sem a experiência, os limites que não ousa cruzar

sem se enredar em confusões e erros. Essa primeira parte pode ser chamada de filosofia

transcendental, ou Crítica da Razão Pura, (...) ou ainda metafísica pura (metaphysica

pura) (Met. Mrongovius Ak XXIX: 750-751. Grifos nossos).

A primeira tarefa da Crítica da Razão Pura, essa ciência que tem justamente a

razão por objeto, deve ser investigar a possibilidade mesma de se conhecer algo de

forma a priori, ou seja, a possibilidade de constituição de um objeto do conhecimento

segundo estruturas cognitivas que independem da experiência – trata-se do papel

desempenhado pela metaphysica generalis, ou, “ontologia”, reconfigurada em uma

“modesta analítica do entendimento puro”; em segundo lugar, a Crítica averigua a

extensão legítima dessa capacidade constitutiva da objetividade da experiência,

constatando a impossibilidade de expandí-la legitimamente para além dos limites da

sensibilidade – trata-se da desabilitação crítica da metaphysica specialis como um saber

ilusório e da transferência de seu lugar sistemático par excellence para o do uso prático

da razão. 186 Vleeschauwer, H.J. “Wie ich jetzt die Kritik der reinen Vernunft Entwicklungsgeschichte lese” In: Kant-Studien, 54, 1963. p. 355. Para uma completa análise do desenrolar da metafísica desde a “escolástica espanhola do século XVI” até Kant, cf. Courtine, J.F. Suarez et le système de la métaphysique. Op. cit.

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136

Contudo, Kant não para aqui. Segundo ele, além dessa metafísica pura

(metaphysica pura), que compreende as três etapas anteriores, haveria ainda uma

metafísica aplicada (metaphysica applicata), que trata de âmbitos específicos de objetos

e leis: os da natureza e os da liberdade.

A segunda parte [do sistema da metafísica], a aplicação dos princípios a priori a objetos

da experiência, seria a metafísica aplicada (metaphysica applicata) (Met Mrongovius

Ak XXIX: 751)

A segunda parte da metafísica é o sistema da razão pura. Filosofia significa um sistema

de conhecimentos racionais por conceitos. Aqui, a filosofia pura deve ser apresentada

em um sistema. Nossa razão tem de possuir objetos, que são de dois tipos: eles

pertencem ou à natureza ou à liberdade (...). Nós podemos conhecer ou (a) o que é ou

(2) o que deve ser. O primeiro pertence à natureza e o segundo à liberdade. Natureza é o

conjunto de tudo o que é, e os costumes, daquilo que deve ser. Temos, pois, duas partes

da filosofia. A filosofia da natureza considera coisas que são. A filosofia dos costumes

diz respeito a ações livres que devem acontecer. Visto que dissemos acima que há uma

metafísica em toda ciência, podemos também pensar em uma metafísica da natureza,

que contém os princípios das coisas na medida em que elas são, e uma metafísica dos

costumes, que contém os princípios de possibilidade das coisas na medida em que elas

devem acontecer (Met Mrongovius Ak XXIX: 753).

Ao lado da metafísica pura, que estipula a possibilidade, a extensão e os limites

do conhecimento possível e legítimo, haveria, portanto, uma metafísica aplicada, na

qual, conforme mostra a sequência da passagem acima transcrita, se incluem, no caso da

Metafísica da Natureza, as disciplinas pertencentes à fisiologia da razão pura descritas

no capítulo sobre a Arquitetônica – ou seja, ela trata da aplicação dos princípios tratados

no momento anterior a um dos objetos dados a uma intuição possível (Met Mrongovius

Ak XXIX: 754-756). No entanto, sobre a Metafísica dos Costumes, a exemplo do que

ocorre na Crítica da Razão Pura, Kant se cala aqui.

Portanto, após a Crítica e sua investigação sobre a possibilidade, extensão e

limites do conhecimento humano terem realizado a limpeza do terreno metafísico da

tradição racionalista, livrando-o do dogmatismo que a impregnava e deslegitimava seus

princípios187, restaria na filosofia três possíveis legítimas disciplinas metafísicas de

187 “Por dogmatismo em metafísica, a Crítica entende o seguinte: a confiança geral em seus princípios, sem uma crítica prévia da faculdade da razão mesmo, meramente com vistas a seu sucesso” (Entdeckung Ak VIII: 22). “O dogmatismo é, pois, o procedimento dogmático da razão sem uma crítica prévia da sua própria capacidade” (KrV B XXXV. p. 30). “Metafísica dogmática é a metafísica [realizada] sem a

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137

caráter científico para Kant: além da metafísica em sentido amplo, que abarca a Crítica e

o sistema da razão pura (filosofia da natureza e dos costumes), haveria as metafísicas

em sentido estrito, a saber, as metafísicas aplicadas, isto é, a Metafísica da Natureza,

dividida em duas outras subdisciplinas, a filosofia transcendental (ou ontologia) e a

física racional (ou fisiologia racional imanente da substância extensa), e, por fim, a

Metafísica dos Costumes, sobre cujos contornos sistemáticos precisos Kant pouco diz

nas obras aqui discutidas, bem como no restante de sua produção filosófica.

Analisemos na sequência os Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da

Natureza, em que Kant expõe o funcionamento e o procedimento crítico operante em

sua física racional. Desta análise surgirá um modelo a ser empregado na discussão sobre

a Metafísica dos Costumes, a metafísica aplicada da moral.

investigação crítica da pergunta principal: como é possível um conhecimento sintético a priori?” (Rx 5689 Ak XVIII: 327. 1780-1789? (1778-1779?)?).

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138

5. OS PRIMEIROS PRINCÍPIOS METAFÍSICOS DA CIÊNCIA DA

NATUREZA. O MODELO DE UMA METAFÍSICA APLICADA

Os Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza (doravante

PPMCN) são construídos sob uma dupla égide: os princípios da física newtoniana e a

nova metafísica proposta segundo o modificado modelo wolffiano. Como discutido no

capítulo anterior, Kant concebe uma Metafísica da Natureza como uma filosofia

racional a priori, portanto uma metafísica aplicada que toma por objeto a natureza como

o conjunto dos objetos dos sentidos. Trata-se, aqui, da construção de um sistema

metafísico, isto é, racional, a priori e por meros conceitos, que arrole as leis e os

princípios que regulam os objetos naturais tomados como objetos dos sentidos externos

e interno, ou seja, uma psicologia racional (que, na realidade, caracteriza-se como um

saber aparente, incapaz da sistematização exigida por toda e qualquer disciplina

metafísica) e uma física racional de matriz newtoniana caracterizada como o conjunto

sistemático das leis que determinam a matéria como um movente no espaço.

Nos PPMCN, Kant altera a nomenclatura empregada na Arquitetônica e inclui

no interior da Metafísica da Natureza uma parte transcendental (e não mais ontologia)

ao lado de uma ciência natural metafísica particular (e não mais fisiologia da razão

pura) (MAN Ak IV: 469-470). Não deixemos, no entanto, que os termos enganem:

trata-se de um e mesmo projeto de metafísica aplicada, que conta com um momento

transcendental de fundamentação das condições de possibilidade da objetividade do

conhecimento em geral, e um momento metafísico particular que acolhe um elemento

empírico específico necessário para que seja constituído um objeto determinado ao qual

são aplicados os princípios estabelecidos na etapa transcendental anterior.

Partiremos, assim, da distinção kantiana realizada no PPMCN entre uma parte

transcendental, onde se cristalizam as exigências de necessidade e apodicticidade

atribuídas a toda disciplina metafísica, e uma metafísica particular, em que os

princípios discernidos anteriormente são aplicados ao objeto específico de um âmbito da

experiência (5.1). Neste último momento, surge o conceito de matéria como o conceito

empírico de um objeto dos sentidos externos, em relação ao qual, portanto, ocorre o

procedimento de aplicação (5.2). Por fim, veremos como está operante aqui uma

distinção mencionada por Kant na Introdução à Crítica da Faculdade de Julgar entre

princípios transcendentais e princípios metafísicos. Através desse expediente

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139

conceitual, compreende-se, por exemplo, em que o princípio de causalidade discutido

no Sistema de Princípios da Crítica da Razão Pura se distingue da segunda lei da

mecânica ou lei de inércia - nesse sentido, como Kant sublinha em diversas passagens,

os princípios transcendentais, estabelecidos na etapa propedêutica de certificação das

condições de objetividade do conhecimento, são realizados ao encontrarem seus

correlatos metafísicos que os aplicam à experiência efetiva (5.3). Esperamos, com isso,

extrair um modelo de metafísica aplicada a ser empregado na elucidação da Metafísica

dos Costumes como moral aplicada ao homem realizada na seção seguinte.

5.1. A parte transcendental e a parte metafísica da Metafísica da Natureza

Kant concebe sua física racional, ou doutrina racional da substância corpórea,

como uma disciplina metafísica cujos princípios não podem ser extraídos da

experiência, mas que - e em conformidade com a revolução copernicana posta em

movimento pela Crítica da Razão Pura - são dispostos de forma a priori pela atividade

sintética do sujeito. Nesse sentido, é instrutivo comparar o procedimento atuante na

física e na química, segundo Kant. Na Introdução à Metafísica dos Costumes, embora já

reconhecendo a potencial revolução na ciência química ensejada pelos então recentes

trabalhos de Lavoisier, Kant opõe a universalidade estrita da física racional à mera

generalidade indutiva dos princípios químicos. A ciência racional da natureza, possível

apenas na física, deve ser contraposta às disciplinas que, como a química, obtêm seus

enunciados de forma meramente indutiva, confiando, para isso, nos testemunhos

fornecidos pela experiência e generalizados sob a pretensa forma de leis universais do

comportamento de determinados fenômenos. Embora a física em sua parte empírica (ou

seja, a ciência empírica da natureza) possa, a exemplo do que ocorre na química,

acolher princípios extraídos da observação da natureza, caso ela deseje constituir-se

como “genuína ciência”, essas proposições de universalidade meramente indutiva

devem estar, em última instância, fundadas em leis a priori:

[A física] pode aceitar (ao menos quando se trata, para ela, de preservar do erro suas

proposições) vários princípios como universais a partir do testemunho da experiência,

ainda que este último, se tem de valer universalmente em sentido estrito, tenha de ser

derivado de fundamentos a priori, assim como Newton admitiu como fundado na

experiência o princípio da igualdade de ação e reação na influência recíproca dos

Page 140: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

140

corpos e o estendeu, não obstante, à totalidade da natureza material. Os químicos vão

ainda mais longe e fundamentam inteiramente na experiência suas leis mais universais

de união e separação das matérias por meio de suas próprias forças, confiando tanto em

sua universalidade e necessidade, porém, que não temem a descoberta de um erro nos

experimentos nelas apoiados (MS Ak VI: 215. p. 21. Grifos nossos).

A universalidade obtida pelos químicos é ilusória ou, na melhor das hipóteses,

precária: essas regras gerais de comportamento de determinados fenômenos não são, na

realidade, leis da natureza que fundam a cientificidade da disciplina que sobre elas

repousa, constituindo-se, antes, como uma simples constatação de certas regularidades

sem o caráter necessário e apodíctico exigido em qualquer ciência que seja digna dessa

designação:

Ciência genuína só pode chamar-se aquela cuja certeza é apodíctica; o conhecimento

que unicamente pode conter certeza empírica só impropriamente se pode chamar saber

(...). Se os fundamentos e princípios são nela [ciência] apenas empíricos, como, por

exemplo, na química, e se as leis, em virtude das quais se explicam, mediante a razão,

os fatos dados, são simplesmente leis da experiência, não comportam então nenhuma

consciência da sua necessidade (não são apodicticamente certas) e, por isso, a totalidade

não merece, em sentido estrito, o nome de ciência; pelo que a química se devia chamar

antes arte sistemática, e não ciência (MAN Ak IV: 468).

A física racional, pelo contrário, é uma genuína ciência da natureza, cujas leis e

princípios são racionais e fundados de modo a priori. Ora, a própria noção de natureza

pressuposta (trata-se, lembremos, de uma metafísica da natureza corpórea ou pensante)

envolve “o conceito de leis e este implica, por sua vez, o conceito da necessidade de

todas as determinações de uma coisa, inerentes à sua existência” (MAN Ak IV: 468. p.

15)188. A necessidade exigida somente pode ser obtida através da parte pura dessa

188 A concepção de natureza assumida nos PPMCN é a conjunção dos significados formaliter e materialiter do conceito formal de natureza <Formale der Natur> exposto com detalhes nos Prolegômenos, ou seja, o conjunto de objetos da experiência determinados de modo a priori segundo sua conformidade a leis universais e constantes: “A natureza [formaliter] é a existência das coisas [tomadas como fenômenos] enquanto esta é determinada segundo leis universais” (Prolegomena Ak IV: 294. p. 65). No entanto, “a palavra natureza assume ainda outro significado, que determina o objeto, ao passo que na significação precedente ela indicava a conformidade a leis das determinações da existência das coisas em geral. Portanto, materialiter considerada, a natureza é a totalidade de todos os objetos da experiência” (Prolegomena Ak IV: 295. p. 67). Como resultado, portanto, “o elemento formal [formaliter e materialiter - D.K] da natureza, nesse sentido estrito, é a conformidade a leis de todos os objetos da experiência e, enquanto é conhecida a priori, a sua conformidade necessária a leis” (Prolegomena Ak IV: 196. p. 68. Cf. MAN Ak IV: 467. KrV B 163. p. 166). Perceba-se que, operando com uma concepção de natureza como o conjunto dos objetos da experiência, Kant se afasta ligeiramente da concepção exposta

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ciência, aquela que expõe, sem depender de testemunhos fornecidos pela experiência, os

princípios a priori que exprimem a regularidade e universalidade ligadas ao conceito

mesmo de uma natureza em geral como o conjunto ordenado dos fenômenos dados aos

sentidos internos ou externos.

Toda a ciência natural genuína precisa, pois, de uma parte pura, na qual se deve fundar

a certeza apodíctica, que a razão nela busca; e visto que esta, segundo seus princípios e

em comparação com os que são apenas empíricos, é inteiramente diversa, é da maior

utilidade, mais ainda, em virtude da natureza da coisa, é um dever imprescindível,

relativamente ao método, expor essa parte em separado e sem qualquer mescla com a

outra (MAN Ak IV: 469).

Em relação à Arquitetônica, Kant altera ligeiramente os momentos em que

consistiria essa parte pura da ciência da natureza, ou ainda, essa Metafísica da Natureza

como a “genuína ciência da natureza”189. Agora, ao invés de uma “filosofia

transcendental” entendida como ontologia, surge uma “parte transcendental”, e, em

lugar da fisiologia da razão pura, aparece uma “ciência natural metafísica particular”.

Em suma, a Metafísica da Natureza, a parte pura da ciência da natureza,

pode, porém, ou a) tratar, mesmo sem relação a qualquer objeto determinado da

experiência (por conseguinte, de modo indefinido em relação à natureza desta ou

daquela coisa do mundo sensível) das leis que tornam possível o conceito de uma

natureza em geral – trata-se da parte transcendental da metafísica da natureza; ou b)

então ocupa-se de uma natureza específica desta ou daquela espécie de coisas, de que

se forneceu um conceito empírico mas, no entanto, de maneira que, afora o que reside

neste conceito, nenhum outro princípio empírico se empregue para o conhecimento das

na Arquitetônica, segundo a qual a Metafísica da Natureza acolheria, ao menos potencialmente, objetos imanentes e transcendentes – objetos “sejam dados aos sentidos, sejam dados, se se quiser, a uma outra espécie de intuição” (KrV A 845/ B 873. p. 665). Quem chama atenção a isso é Hoppe, que acertadamente afirma que Kant, na Arquitetônica, está lidando com a “ideia geral de metafísica” (KrV A 850/ B 878. p. 668), a qual, como vimos, inclui necessariamente um saber não apenas verdadeiro, como o da física racional, mas também aparente, como o das disciplinas da metaphysica specialis exigidas pela “ideia” dessa ciência. Contudo, Hoppe conclui disso que a “ontologia” da Arquitetônica não corresponde à parte transcendental dos PPMCN (Hoppe, H. Op. cit. pp. 33-34), com o que, no entanto, não concordamos. Contra Hoppe, cf. Cramer, K. Nicht-reine Synsthetische Urteile a priori. Ein Problem der Transzendentalphilosophie Immanuel Kants. Heidelberg. Carl Winter Universität Verlag. 1985. p. 121n. 189 Segundo Konrad Cramer, Kant aqui se afasta de Newton, para quem a primeira e “genuína” parte da ciência da natureza não seria uma metafísica, mas antes uma “matemática da natureza” (Cramer, K. Nicht-reine Synsthetische Urteile a priori. Ein Problem der Transzendentalphilosophie Immanuel Kants. Op. cit. p. 119n). Como já mencionado, para Kant, a matemática entra apenas no segundo momento da ciência pura ou metafísica da natureza – trata-se de um expediente posterior, embora imprescindível, para a aplicação dos princípios transcendentais ao conceito empírico de matéria e/ou de alma (MAN Ak IV: 470-471).

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mesmas (por exemplo, ela toma como fundamento o conceito empírico de uma matéria,

ou de um ser pensante, e busca o âmbito do conhecimento que a razão é capaz a priori

acerca destes objetos): uma tal ciência deve, pois, chamar-se sempre metafísica da

natureza, a saber, da natureza corporal ou da natureza pensante; mas, então, não é uma

ciência natural metafísica universal <allgemeine metaphysische Naturwissenschaft>,

mas sim específica <besondere metaphysische Naturwissenschaft> (física e psicologia),

na qual aqueles princípios transcendentais são aplicados aos dois gêneros de objetos

dos nossos sentidos (MAN Ak IV: 469-470. pp. 15-16. Grifos nossos).

Desse modo, a parte transcendental da Metafísica da Natureza assemelha-se à

ontologia ou filosofia transcendental discutida na Arquitetônica; trata-se, aqui, da parte

da ciência pura da natureza que contém os princípios transcendentais que tornam

primeiramente possível o conceito de uma natureza em geral como o conjunto regulado

por leis de todas as coisas que podem ser um objeto em geral dos nossos sentidos, ou

seja, a totalidade dos fenômenos ordenados segundo leis a priori, ou ainda, o mundo

sensível, sem que ainda se diferenciem objetos do sentido externo ou interno, em outras

palavras, se se trata da natureza corpórea ou pensante específica190. Esse momento

transcendental, assim, corresponde à primeira parte da metafísica, a “ontologia” crítica

reconfigurada em analítica transcendental, que investiga os conceitos e princípios que

determinam as propriedades de um objeto em geral, tomado, contudo, sob a restrição

“crítica” de ser um objeto em geral pertencente ao conceito formal de natureza enquanto

o conjunto de coisas que podem ser apresentadas aos sentidos externo e interno numa

ordenação conforme a leis. Relembremos uma das muitas definições kantianas de

ontologia “crítica”:

A ontologia é a ciência (enquanto parte da metafísica) que constitui um sistema de

todos os conceitos do entendimento e dos princípios, mas só na medida em que se

referem a objetos que podem ser dados aos sentidos e, portanto, justificados pela

experiência (Fortschritte Ak XX: 260. p. 13. Grifos nossos).

190 Segundo K. Cramer, o pressuposto da parte transcendental é apenas o “ser-dado” <Gegebenheit> de algum diverso na intuição capaz de ser sintetizado pelas categorias em algum objeto da experiência em geral: “De fato, também a parte transcendental precisa referir-se ao ser-dado, de modo que a ela, como parte transcendental, possa ser previamente dado <vorgeben> apenas aquele diverso de certas representações que Kant, com suas formas apriorísticas da sensibilidade, denomina o ‘diverso puro dado’ da sensibilidade” (Cramer, K. Nicht-reine Synsthetische Urteile a priori. Ein Problem der Transzendentalphilosophie Immanuel Kants. Op. cit. p. 123). Não se trata, neste momento preciso, de considerar esse diverso como dado no espaço e/ou no tempo, mas antes apenas em algum dos dois, conforme é exigido para a constituição da objetividade do conhecimento.

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A segunda parte da Metafísica da Natureza, a “ciência natural metafísica

específica”, divide-se segundo os possíveis tipos de objetos dados aos sentidos: o objeto

dos sentidos externos ou o objeto do sentido interno. Assim como ocorria na fisiologia

imanente da razão pura discutida na Arquitetônica, nesse momento considera-se a

natureza particular de uma espécie determinada de objeto em geral que pode ser dado

aos sentidos: trata-se seja da natureza específica do objeto dos sentidos externos, a

matéria ou o ser extenso, seja da natureza específica do objeto do sentido interno, a

alma ou o ser pensante. O procedimento de determinação das propriedades de cada um

desses objetos é realizado através da aplicação dos princípios transcendentais ao

conceito empírico seja de matéria, seja de alma.

À parte teórico-dogmática da metafísica pertence igualmente a doutrina racional geral

da natureza, isto é, a filosofia pura sobre os objetos dos sentidos, os dos sentidos

externo, ou seja, a doutrina racional dos corpos, ou do sentido interno, a doutrina

racional da alma, pelo que se aplicam os princípios da possibilidade de uma experiência

em geral a uma dupla espécie de percepções, sem pôr nenhum outro fundamento

empírico além da mera existência de semelhantes objetos (Fortschritte Ak XX: 285. p.

53. Grifo nosso).

Como Kant esclarece no prefácio aos PPMCN, nessa etapa a Metafísica da

Natureza deve recorrer à matemática para que o conceito correspondente a cada um

desses objetos seja construído na intuição, fazendo com que se passe da possibilidade

para a existência dos mesmos, conforme se exige no conceito próprio de uma natureza

corpórea ou pensante – como já por diversas vezes mencionado, esta última é excluída

de uma Metafísica da Natureza por não ser possível aplicar de modo completo a

matemática a seu objeto191.

191 Cf. nota 185 supra. Não será discutida aqui a função da matemática em uma ciência da natureza. Apenas notemos que, ao passo que a Metafísica da Natureza exige procedimentos matemáticos para que os conceitos envolvidos sejam construídos na intuição e, assim, seus objetos tornem-se efetivos, a Metafísica dos Costumes tem como vantagem produzir de forma imediata o objeto a que suas leis se referem, sem a necessidade de intervenção de algum outro expediente: “[O]s conceitos práticos a priori tornam-se, em relação ao princípio supremo da liberdade, imediatamente conhecimentos e não precisam esperar por intuições para obter significado, e em verdade por esta singular razão de que eles mesmos produzem a efetividade daquilo a que se referem (a disposição da vontade), o que não é de modo algum o caso dos conceitos teóricos” (KpV Ak V: 66. p. 105). Na Doutrina do Direito há o recurso à matemática, porém apenas como uma analogia entre a lei de coerção recíproca envolvida na liberdade externa e a lei de simetria entre a ação e reação dos corpos (MS Ak VI: 232-233. p. 46-47). Não se trata, assim, de um “uso constitutivo” do expediente matemático como o observado na Metafísica da Natureza. Nessa medida, é legitimada uma Doutrina da Virtude como o conjunto de deveres da liberdade interna, o análogo ao “objeto do sentido interno” da Metafísica da Natureza e em relação ao qual, a exemplo do que ocorre com a doutrina racional da alma, não é possível a “precisão matemática” observada no direito (MS

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Desse modo, no restante de seus PPMCN Kant expõe sua metafísica da

substância corpórea, na qual são aplicados os princípios transcendentais ao conceito

empírico de matéria com auxílio do fio condutor das categorias:

Diferentemente da parte transcendental da metafísica da natureza, os PPMCN tratam

não das condições de possibilidade da experiência de uma natureza em geral, portanto

não de uma natureza extensa em geral, mas antes de como pode ser-nos dada uma

natureza cujas leis universais já conhecemos pois são constituídas enquanto tais através

das categorias e princípios do entendimento puro. E a metafísica específica é a

aplicação dos princípios transcendentais aos objetos dos sentidos externos pois ela

determina o caráter igualmente empírico de uma natureza extensa dado através do

conceito de matéria192

Terminemos essa subseção explicitando o aparente paradoxo da tarefa: a ciência

pura da natureza, mais particularmente a sua parte específica sobre a substância

corpórea, acolhe um conceito empírico, a matéria, do qual busca extrair de modo a

priori certas leis, as leis do movimento, que são - pela sua definição mesma apontada no

início do capítulo como sendo a que pertence a uma ciência “genuína” da natureza -

universais e necessárias em sentido estrito. Como, contudo, Kant pode fazê-lo? De que

maneira é possível determinar de forma a priori, ou seja, sem tomar o “testemunho da

experiência” como fundamento, o comportamento e as determinações de algo que

somente pode ser dado empiricamente? São as dificuldades próprias à definição do

conceito de matéria que se apresentam nesse momento dos PPMCN.

5.2. O Conceito empírico de matéria

Os PPMCN têm como objetivo definir as leis universais que regulam a matéria e

a determinam como um movente no espaço. A exemplo do que ocorre no restante da

metafísica aplicada, na metafísica da substância corporal trata-se de realizar uma

passagem do âmbito transcendental para o do empírico. Ou, dito de forma mais

adequada, “parcialmente empírico”: para Kant, apesar de o conceito de matéria (assim

Ak VI: 233. p. 47) ou na física racional. A despeito das analogias, cumpre, contudo, não confundir a liberdade interna com algum princípio interno vital dependente da alma ou da psicologia, como já advertido em outros momentos. 192 Hoppe, H. Op. cit. p. 43.

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como o de “natureza específica do homem”, como será discutido) ser um conceito

empírico, dele é possível discernir leis de modo completamente a priori, sem que, para

isso, se dependa da experiência ou se passe para uma ciência empírica da natureza193.

Konrad Cramer interpreta o conceito de matéria como um conceito “a priori não

puro”, isto é, um conceito que

precisa ser interpretável, por um lado, como não ‘abstraído da experiência’ e, nesse

sentido preciso, como um conceito a priori, e, por outro lado, como um conceito

referido, de uma forma específica, à intuição empírica e, nesse sentido preciso, como

conceito não-puro194.

Já Michael Friedman discute o aparentemente contraditório conceito de matéria

ressaltando a necessidade da “transição” ou “passagem” entre níveis de pureza discutida

acima:

os Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza são trazidos a uma

conexão a priori, por assim dizer, com a filosofia transcendental da Crítica por meio de

uma transição do conceito puro de matéria, como a descrição do espaço na intuição

pura, para o conceito empírico de matéria, como a determinação de um objeto no

espaço na intuição empírica195

Nas duas passagens citadas acima há a aparência de uma mera perífrase do

problema. A questão a ser respondida ainda permanece sendo a seguinte: o que seria o

estatuto “a priori não puro” do conceito de matéria, ou em que consistiria a “passagem”

entre os níveis de pureza da Metafísica da Natureza?

A tarefa inicial dos PPMCN com seu objeto preciso da metafísica da substância

corporal consiste em diferenciar o conceito empírico de matéria de duas outras

definições fornecidas na Crítica da Razão Pura para o conceito “geral” de matéria. Na

primeira delas, dada na Estética Transcendental, a matéria é definida como o mero

193 Há aqui apenas o primeiro nível das passagens internas à ciência da natureza. O problema de uma passagem dos PPMCN à física empírica ocupa parte do Opus Postumum de Kant, Ak XXI e XXII. Cf. Terra, R. “Sentidos de ‘passagem’ (Übergang)”. In: Passagens. Op. cit. 194 Cramer, K. Nicht-reine Synsthetische Urteile a priori. Ein Problem der Transzendentalphilosophie Immanuel Kants. Op. cit. p. 154. 195 Friedman, M. “Matter and Motion in the Metaphysical Foundations and the first Critique: The Empirical Concept of Matter and the Categories”. In: Fulda, H. F. e Stolzenberg, J. (orgs). Architektonik und System in der Philosophie Kants.. Hamburg. Felix Meiner. 2001. 341.

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material de uma sensação, em oposição à forma da mesma ensejada pelas intuições

puras de espaço e tempo:

Àquilo que no fenômeno corresponde à sensação eu denomino a matéria do mesmo,

mas àquilo que faz com que o diverso do fenômeno possa ser ordenado em

determinadas relações eu denomino a sua forma. Como aquilo que permite ordenar e

colocar as sensações sob uma determinada forma não pode, por seu turno, ser também

uma sensação, a matéria de todos os fenômenos, com efeito, nos é dada então a

posteriori, mas a forma dos mesmos tem de estar a priori já pronta para eles no ânimo

<Gemüt> e, portanto, tem de poder ser considerada separadamente de toda sensação

(KrV A 20/ B 34. p. 62).

Ora, em oposição ao simples e “estático” material de uma sensação, dado no

espaço e/ou no tempo, o conceito empírico de matéria pressupõe uma substância

corporal efetivamente dada e que afeta os sentidos através de seu predicado de

movimento <Bewegung>196. Somente através deste último podemos conhecer

verdadeiramente o conceito de matéria de que tratam os PPMCN:

A determinação fundamental de algo que deve ser um objeto dos sentidos externos [a

matéria] precisaria ser o movimento, pois só por ele esses sentidos [externos] podem ser

afetados. É a ele também que o entendimento remete todos os demais predicados da

matéria que pertencem à sua natureza (MAN Ak IV: 476-477. p. 22).

Nesse sentido, cumpre então distinguir o movimento como predicado nuclear da

matéria relativamente à definição dada na segunda dedução transcendental da Crítica da

Razão Pura sobre uma aparente “matéria pura” como a mera descrição, pela imaginação

produtiva, de um diverso “real” em movimento no espaço:

O movimento de um objeto <Object> no espaço não pertence a uma ciência pura,

portanto não também à geometria, pois não se pode conhecer a priori que algo esteja em

movimento, mas apenas por meio da experiência. O movimento como descrição do

espaço, porém, é um ato puro da síntese sucessiva do diverso em uma intuição externa

196 Hoppe, H. Op. cit. pp. 35-36. Jules Vuillemin chega mesmo a aproximar ao “travo” <Anstoß> dos pós-kantianos a peculiaridade empírica do conceito de matéria, que enseja a “consciência do movimento” e, com isso, afeta os sentidos externos: “É necessário um mínimo de dado, que os pós-kantianos chamarão de travo, para provocar a consciência do movimento e para transformar, naqueles, a intuição intelectual em intuição empírica ou a análise em síntese, e, em Kant, o conceito do Eu penso em princípios da experiência” (Vuillemin, J. Physique et métaphysique kantiennes. Paris: PUF, 1955. p. 24). Mais sobre isso adiante.

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em geral por meio da imaginação produtiva e, portanto, não pertence apenas à

geometria, mas também à filosofia transcendental (KrV B 155n. p. 155. Grifos nossos).

Ao passo que a segunda parte da passagem se refere ao ato do sujeito que traça

uma linha reta na intuição pura do espaço, e, assim, representa o movimento “não como

uma determinação de um objeto” (KrV B 155. grifo nosso) no espaço, mas apenas como

uma determinada síntese (sucessiva) do diverso da intuição no espaço, a primeira parte

menciona a percepção mesma de um objeto em movimento, e que, assim, pertence não à

filosofia transcendental stricto senso, mas antes à metafísica da substância corporal ou

ciência da matéria como submetida às leis do movimento. A primeira questão que se

põe a respeito da passagem entre esses dois modelos de movimento ou matéria,

portanto, gira em torno de saber em que consiste a peculiaridade empírica da metafísica

da substância corporal em relação à parte transcendental, ou ainda, o seria precisamente

essa matéria movente no espaço e seu conteúdo empírico.

Já na Arquitetônica da Razão Pura Kant mostrava-se consciente do aparente

paradoxo ínsito à tarefa sistemática de mediação ou passagem no interior de seu projeto

crítico. Discutindo o caso específico de uma Metafísica da Natureza, ele realça o

problema de fundo de uma metafísica aplicada ao mesmo tempo em que propõe uma

inicial definição do conceito empírico de matéria:

Como posso esperar um conhecimento a priori, portanto uma metafísica, de objetos na

medida em que são dados aos nossos sentidos, e portanto, a posteriori? (...). A resposta

é simples: da experiência nada mais tiramos do que o necessário para nos darmos um

objeto do sentido (...) externo (...). O objeto do sentido externo nos é dado pelo mero

conceito de matéria (extensão inanimada e impenetrável) (KrV A 847-7/ B 875-6. p.

667)197.

Bem entendido, a matéria não é tão-somente o objeto dado ao sentido externo.

Caso permanecêssemos aqui, nada a distinguiria da pura e simples matéria da sensação

externa como o diverso empírico dado no espaço:

Quando tenho de esclarecer o conceito de matéria não através de um predicado que

deve pertencer-lhe como objeto, mas antes apenas através da relação com as faculdades

de conhecimento na qual a representação pode ser-me primeiramente dada, a matéria

seria então todo objeto dos sentidos externos, e esta seria a explicação meramente

197 Cf também, KrV A 618/B 646. p. 517.

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metafísica da mesma (...). A matéria seria o genuinamente empírico das intuições

externas e sensíveis, em oposição à forma do que é objeto da sensação na intuição

externa (MAN Ak IV: 481).

Como está apenas sugerido na Arquitetônica, cumpre localizar propriedades

adicionais para caracterizar o conceito de matéria exigido em uma metafísica da

substância corpórea e assim distingui-lo da mera “explicação metafísica” – nesta última,

presume-se, entra apenas o conceito puro, e não empírico de matéria. Segundo a

passagem da Arquitetônica citada acima, em adição ao atributo de ser um objeto do

sentido externo, a matéria possui também como propriedades fundamentais, além da

extensão, também impenetrabilidade e a ausência de força vital <Lebslosigkeit>; destas

dependeria não apenas a sua determinação como “objeto do sentido externo”, mas

também seu predicado de movente que afeta os sentidos externos, diferenciando-a assim

de um simples material da sensação ou do diverso empírico dado no espaço e

sintetizado como sucessivo no tempo. São, em suma, esses predicados que inicialmente

caracterizam a matéria como movente no espaço de que tratam os PPMCN. Contudo, a

partir de quais particularidades destes atributos se funda a definição precisa do elemento

empírico mínimo desse conceito de matéria?

O predicado de impenetrabilidade pode auxiliar-nos nesta tarefa198. Segundo

Kant, haveria dois conceitos concorrentes de impenetrabilidade: por um lado, um

conceito meramente matemático, ou seja, “que não pressupõe nenhuma força movente

como originariamente inerente à matéria”, e, por outro, o conceito dinâmico de

impenetrabilidade, segundo o qual esta última “reside numa base física <physischer

Grund>; pois expandir a força é o que primeiro torna a matéria mesma possível, como

algo expansível preenchendo um espaço” (MAN Ak IV: 502. grifo nosso). Para a

metafísica da substância corpórea deve ser aceito apenas este segundo conceito de

impenetrabilidade como predicado da matéria, já que “tudo o que é real no espaço e,

não obstante, não é uma mera determinação do espaço (lugar, extensão e figura), deve

ser visto como uma força movente” (MAN Ak IV: 523. grifos nossos).

Ora, aparentemente o conceito matemático de impenetrabilidade convém apenas

ao “mero real no espaço”, tratado nas Antecipações da Percepção da Crítica da Razão

Pura e ao qual cabem os predicados de extensão e preenchimento como as “meras

determinações” de um espaço qualquer (lugar, extensão e figura) pertencentes a um

198 Seguimos em grande medida a interpretação de Friedman, M. Op. cit. pp. 332-334.

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puro e simples “objeto do sentido externo”199. Algo “matematicamente impenetrável”

não é ainda, no entanto, “fisicamente impenetrável”: aquele predicado parece convir

somente a um “objeto do sentido externo”, mas não a este considerado enquanto um

corpo que se move no espaço e afeta os sentidos externos. Com efeito, o mero objeto do

sentido externo distingue-se da matéria pois esta é o “movente, na medida em que este

preenche um espaço” (MAN Ak IV: 496), o que, por sua vez, ocorre não “através de sua

mera existência [da matéria], mas antes através de uma força movente particular”

(MAN Ak IV: 497. Grifo nosso), possível, como visto acima, apenas segundo o

conceito dinâmico de impenetrabilidade. Esta força movente é, na realidade, dupla: a

atração e a repulsão (MAN Ak IV: 498), as quais devem pressupor a impenetrabilidade

da matéria como residindo “numa base física”, e não em um ponto matemático qualquer

ou em algo meramente real no espaço. Esse conceito dinâmico de impenetrabilidade,

como se vê, é empírico, pressupondo um elemento sensível mínimo, uma “base física”,

para diferenciá-lo da impenetrabilidade matemática envolvida no mero real dado no

espaço e construída na intuição pura.

A noção de força movente200 e a correlata de impenetrabilidade dinâmica

definem, assim, o conceito empírico de matéria201. Segundo Kant, a possibilidade do

199 “[O] real no espaço (não o chamarei aqui de impenetrabilidade ou peso, pois estes são conceitos empíricos)” (KrV A 173/ B 215. p. 206. Grifos nossos) é a mera realidade de algo dado na intuição empírica do espaço, ou ainda, a grandeza intensiva ou o real de uma “sensação em geral” entendido como a “síntese numa consciência empírica em geral” (KrV A 175-176/ B 217. p. 207) e que, dessa maneira, opõe-se tão-somente à negação de algo qualquer dado à sensibilidade sem que com isso se afirme positivamente a afecção dos sentidos externos através desse “algo em geral”. 200 Bem entendido, não se trata de algo como uma “força vital”, excluída na definição mesma de matéria como um ser extenso inanimado, mas antes apenas das forças dinâmicas de atração e repulsão, que definem as relações recíprocas entre os corpos segundo leis puramente mecânicas. Discutindo a segunda lei da mecânica, Kant torna claro que à inércia corresponde a “ausência de vida” <Leblosigkeit> da “matéria em si mesma”, ou seja, faltam a esta “o princípio interno de uma substância finita em se determinar à mudança” e o “desejo <Begehren>” ou “o sentimento de prazer ou desprazer e o apetite <Begierde> ou vontade, que dele depende”, todos estes pertencentes apenas a um ser vivo (MAN Ak IV: 544). Ainda sobre isso, alguns anos depois, em 1790, Kant também opõe a matéria como “máquina” à finalidade interna presente apenas no organismo. Referimo-nos aqui à distinção feita na Crítica da Faculdade de Julgar entre uma força movente <bewegende> e uma força formadora <bildende> - esta última estaria presente apenas nos organismos, os produtos naturais organizados segundo uma finalidade interna: “Um ser organizado (...) não é simplesmente máquina: esta possui apenas força movente; ele, pelo contrário, possui em si força formadora e na verdade uma tal força que ele comunica aos materiais que não a possuem (ela organiza). Trata-se, pois, de uma força formadora que se propaga a si própria <eine sich fortpflanzende bildende Kraft> [ie, que não depende dos outros corpos para “se propagar”, como no caso da força movente regida pela lei de inércia - D.K] e que não é explicável tão-somente através da força movente (o mecanismo)” (KU Ak V: 374. p. 217). 201 “Quando atribuo a um corpo uma força movente (...) conheço-o simultaneamente, isto é, determino o conceito do mesmo como objeto em geral através daquilo que lhe pertence como objeto dos sentidos (...). Considere-se que a força movente que lhe atribuo é uma força de repulsão. Nesse caso o corpo recebe (enquanto eu ainda não coloque ao seu lado nenhum outro corpo contra o qual ele exerça sua força) um lugar no espaço, mais ainda, uma extensão, isto é, um espaço nele mesmo, e além disso o preenchimento do mesmo através de forças repulsoras das suas partes” (KU Ak V: 482-483. p. 332. Grifo nosso).

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conceito dinâmico de impenetrabilidade não pode ser explicada a priori pois a

possibilidade de forças fundamentais, dentre elas a força movente, não pode ser

elucidada sem o recurso à experiência. Ao contrário da física estritamente matemática,

que se apóia no conceito matemático de impenetrabilidade, a física metafísica proposta

por Kant, com a noção constitutiva de força movente, deve recorrer a algo que extrapola

a construção a priori de seu conceito na intuição sensível:

O conceito de matéria se reduz a meras forças moventes, e não seria possível esperar

algo distinto, pois no espaço não pode ser pensada nenhuma atividade, nenhuma

mudança que não seja movimento (...). Se o material <Stoff> mesmo é transformado em

forças fundamentais (...), falta-nos todos os meios para construir esse conceito de

matéria e apresentar o que pensamos universalmente como possível na intuição (MAN

Ak IV: 524-525. Grifo nosso).

Para ser formulado, o conceito empírico de matéria exige, assim, noções que

extrapolam a parte estritamente transcendental da Metafísica da Natureza, a saber, as

noções de força movente e de impenetrabilidade dinâmica como condições para o

movimento - ao contrário do que ocorre com o conceito puro de matéria como o real da

sensação em movimento num determinado intervalo de tempo e que, assim, pode ser

construído na intuição com auxílio do instrumental matemático, no conceito empírico

de matéria como o movente no espaço que afeta os sentidos há a necessidade de

recorrer-se à experiência para que seja possível discernir a presença daqueles predicados

empíricos que lhe são constitutivos e que não podem ser simplesmente construídos na

intuição. Com efeito, para Kant, conceitos como o de uma força em geral somente

podem ter sua realidade objetiva demonstrada pela experiência – e, por conseguinte, os

de força de atração e força de repulsão:

Nenhuma lei da força de atração ou de repulsão pode ser negada sob conjecturas a

priori; inversamente, tudo, mesmo a atração universal como causa da gravidade, deve

ser inferido, conjuntamente com suas leis, a partir de dados <Datis> da experiência.

(...). Pois está muito além do horizonte <Gesichtskreis> de nossa razão discernir

<einsehen> forças fundamentais de modo a priori segundo sua possibilidade (MAN Ak

IV: 534. Grifos nossos).

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Ao contrário de outras forças fundamentais, amiúde forjadas a partir de ilações

fantasiosas do investigador da natureza202, a repulsão e a atração são forças constitutivas

do conceito de algo movente no espaço, e, enquanto tais, ainda que seja necessário

recorrer ao relato da experiência para atestar sua realidade objetiva, são passíveis de

uma sistematização segundo princípios a priori – não, decerto, quanto à possibilidade

interna dessas forças, mas antes quanto aos “efeitos” das mesmas, ao seu “produto”: o

movimento da matéria e as leis que o regulam203. Isto não significa, bem entendido, que

as leis do movimento sejam fundadas empiricamente, ou que o “testemunho” da

experiência seja necessário para fundá-las – pelo contrário, como se tornará mais claro

na subseção seguinte, trata-se de princípios metafísicos e de leis, por assim dizer, a

priori não puras.

Definido o elemento empírico mínimo do conceito de matéria como a “base

física” que permite a impenetrabilidade dinâmica e a atuação das forças moventes de

atração e repulsão, Kant pode determinar os seus demais predicados com auxílio do fio

condutor das categorias. Deste modo, e aqui apenas reproduzimos os resultados da

análise kantiana, num primeiro momento “considera-se o movimento como puro

quantum, segundo sua composição, omitindo a qualidade do móvel” (trata-se da

“explicação meramente metafísica” da matéria, mencionada acima); num segundo

momento, “estuda-o [o movimento] como pertencente à qualidade da matéria, sob o

202 Cf KrV A 222-223/ B 269-270. p. 240: “Caso se quisesse, no entanto, sem emprestar à própria experiência o exemplo de sua conexão, fazer novos conceitos de substâncias, forças e reciprocidades a partir do material que a percepção nos oferece, cair-se-ia em meras fantasias cuja possibilidade não pode ser indicada por sinal algum, já que a experiência não é nelas assumida como mestra, nem esses conceitos são dela extraídos. Semelhantes conceitos imaginários não podem, como as categorias, receber o caráter de sua possibilidade a priori, enquanto condições de que toda experiência depende, mas sim a posteriori, como conceitos dados através da própria experiência; e a sua possibilidade ou é conhecida a posteriori e empiricamente, ou não é de modo algum conhecida. Uma substância que estivesse permanentemente presente no espaço, ainda que sem preenchê-lo (tal como aquela coisa intermediária entre a matéria e o ser pensante que alguns pretendem ter introduzido), ou um poder fundamental especial de nossa mente para intuir o futuro antecipadamente (em vez de apenas conjecturá-lo), ou ainda uma faculdade da mesma para entrar em comunidade de pensamento com outros seres humanos (por mais distantes que eles estejam): tais são conceitos cuja possibilidade é inteiramente infundada, já que não pode ser fundada na experiência ou em suas conhecidas leis e, sem estas, não passa de uma conjunção arbitrária de pensamentos que, mesmo não contendo qualquer contradição, não pode levantar nenhuma pretensão à realidade objetiva, nem portanto à possibilidade do objeto que se quer aí pensar. No que diz respeito à realidade, é evidente por si mesmo que não se pode pensá-la in concreto sem recorrer à ajuda da experiência, pois ela só pode referir-se à sensação como matéria da experiência e não concerne à forma da relação, com a qual se poderia jogar nas fantasias”. 203 Na Crítica da Faculdade de Julgar, Kant afirma que uma das possíveis tentativas de explicar a possibilidade interna da matéria como base das forças moventes de atração e repulsão redunda na postulação de um “primeiro motor” que comunica o movimento aos corpos. Trata-se, decerto, de um esforço vão: “eu não possuo absolutamente nenhuma determinação que me possa tornar compreensível a condição de possibilidade do movimento através desse ser [primeiro motor] tomado como princípio” (KU Ak V: 483. pp. 323).

Page 152: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

152

nome de uma força originalmente movente”; num terceiro momento, “considera-se a

matéria dotada desta qualidade em relação recíproca devido ao próprio movimento”; no

quarto e último momento, “determina-se o seu movimento ou repouso simplesmente em

relação com o modo de representação” (MAN Ak IV: 477. p. 22). O conceito empírico

de matéria é, assim, determinado completamente de acordo com as únicas formas pelas

quais algo “pode afetar os sentidos externos”, ou seja, através de sua subsunção,

respectivamente, às categorias de quantidade, qualidade, relação e modalidade,

ensejando as quatro partes que compõem os PPMCN: foronomia, dinâmica, mecânica e

fenomenologia, e instaurando-se, por fim, a completude do sistema metafísico dos

corpos externos como uma “teoria do movimento” (idem).

Em suma, o conceito de matéria é caracterizado como empírico não apenas pois

sua realidade objetiva somente pode ser demonstrada através da experiência204, mas

também pois seu conteúdo pressupõe uma base física mínima na qual se apóiam seus

predicados de impenetrabilidade e de força movente. Não obstante, trata-se de

características empíricas mínimas que não impedem que as leis que o regulam possam

ser determinadas de modo a priori, conforme exige o significado mesmo de uma

metafísica aplicada – consideram-se tão-somente as leis que o determinam de modo a

priori como movente, ou seja, como o dado mínimo exigido para que algo afete os

sentidos externos. Ocorre aqui a aplicação dos princípios transcendentais a esse conceito

empírico de matéria, uma aplicação, cumpre sublinhar, “intrametafísica”, ou seja, que

não depende de elementos empíricos adicionais àqueles pressupostos por aquele

conceito. Voltemo-nos agora mais detidamente ao sentido dessas “leis metafísicas”

envolvidas aqui.

5.3. Princípios transcendentais e princípios metafísicos

Como visto acima, os PPMCN têm como objetivo arrolar as leis que determinam

o conceito empírico de matéria como o movente no espaço que afeta os sentidos

externos. No interior desse projeto, os princípios transcendentais, que se limitam a

constituir um objeto em geral dos sentidos externos ou interno, devem ser especificados

204 Esta é a tese de Peter Plaass, influente comentador dos PPMCN. Cf. Plaass, P. Kants Theorie der Naturwissenschaft. Göttingen: Vandenhoeck u. Ruprecht, 1965. Contra Plaass, cf. Cramer, K. Nicht-reine Synsthetische Urteile a priori. Ein Problem der Transzendentalphilosophie Immanuel Kants. Op. cit. pp. 154-161. Friedman, M. Op. cit. p. 330n.

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153

como princípios que estipulam as leis que regulam a matéria enquanto leis do

movimento. Trata-se, assim, de ultrapassar o formalismo da etapa transcendental e

“concretizar” seus conceitos e princípios no molde empírico porém determinável a

priori exigido por uma metafísica aplicada a um âmbito específico da experiência.

Temos, aqui, a distinção entre princípio transcendental e princípio metafísico, discutida

na Introdução à Crítica da Faculdade de Julgar:

Um princípio transcendental é aquele pelo qual é representada a priori a condição universal

unicamente sob a qual as coisas podem ser objetos do nosso conhecimento em geral. Em

contrapartida, um princípio chama-se metafísico, se representa a priori a condição unicamente

sob a qual objetos, cujo conceito tem que ser dado empiricamente, podem ser ainda

determinados a priori (KU. Ak V: 181. p. 25. Grifos nossos).

Há a reprodução da diferença que opunha a parte transcendental da parte

metafísica específica de uma Metafísica da Natureza. Ao passo que um princípio

transcendental é caracterizado como aquele que estipula as condições sob as quais um

objeto qualquer é inicialmente determinado como um objeto da experiência em geral, ou

seja, como um objeto do “nosso conhecimento em geral”, um princípio metafísico deve

ser aquele que representa de modo a priori as condições sob as quais um objeto

específico da experiência, ou seja, que tem de ser dado empiricamente e, assim, não se

limita à pura e simples condição de ser um objeto em geral da experiência, pode, não

obstante, ser determinado de modo a priori e, portanto, necessário e universal – em

nosso caso, a maneira pela qual pode ser determinada de modo a priori a matéria, cujo

“conceito tem de ser dado empiricamente” através dos predicados de impenetrabilidade

dinâmica e força movente.

Na Crítica da Razão Pura, mais precisamente na discussão empreendida na

Disciplina da Razão Pura no Uso Dogmático contra a aplicação do método matemático

em filosofia, Kant escreve que proposições transcendentais

não se podem nunca dar por construção de conceitos [como no caso da matemática –

DK], mas apenas segundo conceitos a priori. Elas contêm simplesmente a regra

segundo a qual uma certa unidade sintética daquilo que não pode ser representado

intuitivamente a priori (das percepções) deve ser procurado empiricamente. Mas não

podem, em caso algum, apresentar a priori nenhum dos seus conceitos, apenas o fazem

a posteriori, mediante a experiência, que só se torna possível de acordo com essas

proposições sintéticas (KrV A 720-721/ B 748-749. p. 584).

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154

Um princípio transcendental, assim, é apenas a regra que preside a síntese a

priori de um diverso empírico dado à sensibilidade e que, dessa maneira, constitui um

objeto qualquer da experiência. Bem entendido, esse diverso somente pode ser dado

através de uma percepção empírica, ou seja, a matéria da percepção, que pode ser

conhecida apenas de modo a posteriori. Contudo, isso significa que o princípio

transcendental aqui descrito assemelha-se ao princípio metafísico discutido na Critica

da Faculdade de Julgar? De forma alguma. Nessa passagem da Crítica da Razão Pura,

Kant está apenas retomando a limitação imposta à “ontologia” crítica, a saber, que

através de uma proposição transcendental temos as condições a priori que constituem

um “objeto em geral”, o qual, como vimos, é tão-somente um “objeto da experiência

geral” e cujo conteúdo, enquanto tal, é dado de modo a posteriori:

A matéria dos fenômenos (...), pela qual nos são dadas coisas no espaço e no tempo,

pode apenas ser representada na percepção e, por conseguinte, a posteriori. O único

conceito que representa a priori este conteúdo empírico dos fenômenos é conceito de

coisa em geral e conhecimento sintético a priori desse conceito não pode fornecer mais

do que a simples regra da síntese daquilo que pode dar a percepção a posteriori, mas

nunca fornecer a intuição do objeto real, porque esta deve ser necessariamente empírica

(KrV A 720/ B 748. p. 584)

Como se vê, o conceito tornado como base da regra de síntese estipulada pelo

princípio transcendental é o conceito de coisa ou objeto em geral, entendido como o

conceito de objeto de uma experiência em geral e que, enquanto tal, representa, de

modo a priori e necessário, os limites no interior dos quais a matéria dos fenômenos

pode ser sintetizada em um objeto (empírico) da percepção em geral. Nessa medida, o

conceito de coisa em geral é dado a priori, muito embora a determinação do conteúdo

determinado do mesmo precise da matéria da sensação, a qual, por seu turno, somente é

dada posteriori. Trata-se aqui tão-somente do conceito que apresenta, de modo a priori,

a regra da síntese de representações que somente podem ser dadas a posteriori, no

espaço e no tempo205. Pelo contrário, em um princípio metafísico é o conceito mesmo

205 Essa peculiaridade dos princípios transcendentais é explicitada na discussão acerca dos princípios dinâmicos na Analítica dos Princípios da Crítica da Razão Pura, ou seja, nas analogias da experiência e nos postulados do pensamento empírico em geral. Segundo Kant, estes princípios seriam “regulativos”, e não “constitutivos” para a síntese do diverso empírico em geral: “Uma analogia da experiência, portanto, será apenas uma regra segundo a qual a unidade da experiência deve originar-se das percepções (não como percepção mesma, enquanto intuição empírica em geral) e valer como princípio dos objetos

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155

do objeto que precisa ser dado de modo a posteriori, ou seja, através de um recurso

“mínimo” à experiência – trata-se, como visto, do conceito empírico de matéria, que,

não obstante, pode ser determinado de modo a priori em suas determinações

fundamentais como movente através de princípios metafísicos.

Na sequência do trecho da Crítica da Faculdade de Julgar citado, o argumento

aqui avançado é confirmado. Como exemplo de um princípio transcendental, Kant

fornece o “princípio de conhecimento dos corpos como substância e como substâncias

suscetíveis de mudança <Veränderung>”, e como exemplo de um princípio metafísico,

o princípio da mudança “se com isso se significar que a sua mudança tem que ter uma

causa externa”, ou seja, se deve (de acordo, portanto, com a lei de inércia, como se

verá) ser movimento <Bewegung>. Segundo Kant,

[a] razão é que, no primeiro caso [princípios transcendentais], para se conhecer a

proposição a priori, o corpo só pode ser pensado mediante predicados ontológicos

(conceitos do entendimento puro), por exemplo como substância; porém, no segundo

[princípios metafísicos], o conceito empírico de um corpo (como de uma coisa que se

move no espaço) tem que ser colocado como princípio dessa proposição, embora então

possa ser compreendido completamente a priori <völlig a priori eingesehen> que o

último predicado (do movimento somente mediante causas externas) convém ao corpo

(KU Ak V: 181. pp. 25-6. Grifos nossos).

Ora, o conceito de “substância” assumido pelo princípio transcendental de

mudança é um conceito “completamente a priori”, pressuposto para que um objeto

qualquer, seja ele dos sentidos externo ou interno, possa ser tomado como objeto de

(fenômenos) não constitutiva, mas apenas regulativamente. O mesmo vale, porém, para os postulados do pensamento empírico em geral, que em seu conjunto dizem respeito à síntese da mera intuição (forma do fenômeno), da percepção (matéria do fenômeno) e da experiência (relação entre essas percepções) sendo, de fato, princípios apenas regulativos e se diferenciando dos matemáticos, que são constitutivos, não segundo a certeza, que em ambos permanece firme a priori, mas segundo o tipo de evidência, isto é, o que é neles intuitivo (e, portanto, também segundo o tipo de demonstração)” (KrV A 180/ B 222-223. pp. 210-211). Em outras palavras, os princípios transcendentais apresentam as condições de possibilidade de uma experiência em geral, e não o conteúdo efetivo da mesma, que, no entanto, deve ser sintetizado segundo a regra estipulada por aqueles. “As categorias, ou, dito mais tecnicamente, os princípios (isto é, as categorias mais o tempo) são constitutivos vis-à-vis à experiência possível (isto é, vis-à-vis à forma da experiência, ou ainda, à experiência em geral, o que Kant denomina ‘o objeto transcendental = X’); na medida, contudo, em que nada implica a priori que algum conteúdo efetivo venha incluir-se sob essa definição formal da objetividade (implicação a priori que acarretaria que o real fosse intrinsecamente racional, ou seja: a tese do idealismo absoluto), categorias e princípios somente são regulativos com relação às intuições (portanto, às experiências reais), ou, se se prefere, com relação à existência dos fenômenos, a qual, portanto, não pode ser construída a priori”. Renaut, A. Op. cit. p. 317.

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156

uma experiência possível – trata-se, aqui, da substância como o substrato que

permanece em toda sucessão temporal de determinações opostas:

tem de ser encontrado nos objetos da percepção, isto é, nos fenômenos, o substrato que

representa o tempo em geral, e no qual toda modificação <Wechsel> ou simultaneidade

pode ser percebida na apreensão por meio da relação dos fenômenos a ele. O substrato

de todo real, contudo, isto é, aquilo que pertence à existência das coisas, é a substância,

em que tudo que pertence à existência só pode ser pensado como determinação. O único

permanente, portanto, em relação ao qual todas as relações temporais dos fenômenos

podem ser determinadas, é a substância no fenômeno, isto é, o real do mesmo que,

como substrato de toda modificação, permanece sempre o mesmo (KrV B 225. p. 212.

Grifos nossos).

Há a presença apenas do “real do fenômeno” tomado como substância em

relações dinâmicas, ou seja, aquilo que, como vimos, apenas preenche um espaço e

permanece como substrato das mudanças na sucessão temporal das determinações que

lhe são seguidamente atribuídas. Contudo, para que essa substância seja caracterizada

como um movente cuja causa da mudança é externa, é necessário ainda considerá-la

como uma substância corporal, o que ocorre, como dito na passagem da Crítica da

Faculdade de Julgar, caso o “conceito empírico de um corpo” seja colocado como

“princípio da proposição”, o que, por seu turno, somente tem lugar na segunda lei da

mecânica, a lei de inércia, em oposição à segunda analogia da experiência, o princípio

de causalidade:

Segunda lei da mecânica. Toda mudança na matéria tem uma causa externa. (Todo

corpo persiste num estado de repouso ou movimento, na mesma direção e com a mesma

velocidade, se não for compelido por uma causa externa para deixar esse estado) (MAN

Ak IV: 543. Grifo nosso)

Segunda analogia [da experiência]. Princípio da sucessão temporal segundo a lei da

causalidade. Todas as mudanças acontecem segundo a lei da conexão de causa e efeito

(KrV B 232. p. 217).

O paralelo é confirmado por Kant na “prova” à segunda lei da mecânica:

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157

Da metafísica geral nós tomamos como base a proposição de que cada mudança tem

uma causa, e aqui [PPMCN] somente deve ser provado da matéria que sua mudança

precisa sempre possuir uma causa externa (MAN. Ak IV: 543).

Passando-se por cima dos detalhes, que aqui não nos interessam, torna-se claro

que o objetivo de Kant com esse argumento é indicar como os PPMCN, cuja função é

determinar de forma a priori o “conceito empírico” de matéria, devem lançar mão de

princípios metafísicos no sentido descrito na introdução à Crítica da Faculdade de

Julgar, em oposição aos princípios transcendentais presentes na Crítica da Razão Pura,

mais precisamente na Analítica dos Princípios. No caso específico da lei da inércia,

trata-se de tomar como a “substância” que muda não algum real da intuição externa,

mas antes a matéria com seus predicados empíricos de impenetrabilidade dinâmica e de

força movente, unicamente através dos quais é posta em movimento pelos outros corpos

e pode, ela mesma, afetá-los e movimentá-los.

Temos, assim, uma correspondência entre, por um lado, cada uma das categorias

e seus princípios transcendentais correlatos, e, por outro, os princípios metafísicos que

regulam o comportamento da matéria como movente no espaço: à categoria de inerência

ou substância e ao princípio de permanência da substância (KrV B 224. p. 212)

corresponde o princípio de constância da quantidade da matéria ou primeira lei da

mecânica (MAN Ak IV: 541); à categoria de causalidade ou dependência e ao princípio

de causalidade (KrV B 232. p. 217), como já discutido, o princípio de inércia ou

segunda lei da mecânica (MAN Ak IV: 543); à categoria de comunidade e ao princípio

de ação recíproca das substâncias (KrV B 256. p. 232), o princípio de igualdade de ação

e de reação, ou terceira lei da mecânica (MAN Ak IV: 544).206

Dessa maneira, as leis (newtonianas) do movimento, que compõem a metafísica

da substância corporal e determinam de forma a priori o conceito empírico de matéria

como movente, são todas “princípios metafísicos”, que “representam a priori a

condição, unicamente sob a qual objetos, cujo conceito tem que ser dado

206 Bem entendido: o termo “princípio” metafísico se aplica de modo mais apropriado às correspondências entre as categorias de relação, as analogias da experiência e as leis da mecânica. Contudo, o raciocínio empregado até aqui se estende até as demais categorias, ao restante da Analítica dos Princípios e às demais partes dos PPMCN, a foronomia, a dinâmica e a fenomenologia – contudo, não nos deteremos nessas questões. O livro de Vuillemin citado acima é exemplar nesse ponto. Além de localizar a física kantiana em um quadro histórico e discutir as modificações por que passou o pensamento de Kant quanto ao tema, o autor mostra passo a passo as correspondências aqui apenas mencionadas. Cf. Vuillemin, J. Op. cit. Para uma tabela com o esquema das correspondências aludidas acima, cf. idem, p. 29.

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158

empiricamente, podem ser ainda determinados a priori”, a saber, a matéria como o

conceito empírico de um movente no espaço.

O caráter ambíguo da ciência metafísica “pura” da natureza, aludido no início do

capítulo, é dissolvido quando se atenta à peculiaridade do conceito de matéria como

movente no espaço e dos princípios metafísicos que a determinam. Com efeito, a

posição da matéria é central para a definição precisa do caráter a priori não puro de

Metafísica da Natureza. Como deixam bem claro os Prolegômenos, a ciência pura da

natureza, por necessitar do conceito empírico de matéria, não seria, na verdade, uma

ciência “absolutamente pura” <ganz reine> da natureza, mas antes, se assim se deseja,

uma ciência a priori não pura do objeto do sentido externo. Vale a pena citar a longa

passagem dos Prolegômenos onde Kant torna explícito o caráter não “absolutamente

puro” da Metafísica da Natureza.

Ora, estamos realmente na posse de uma ciência pura da natureza, que apresenta a priori

e com toda aquela necessidade, que se exige das proposições apodictícas, leis a que a

natureza se encontra submetida. Permito-me aqui apelar apenas ao testemunho dessa

propedêutica da teoria da natureza que, sob o título geral de ciência universal natureza,

precede toda a física (que se funda em princípios empíricos). Encontra-se aí a

matemática aplicada a fenômenos, e também princípios puramente discursivos (por

conceitos), que constituem a parte filosófica do conhecimento puro da natureza. Mas

encontram-se aí também muitas coisas que não são absolutamente puras <ganz rein> e

independentes das fontes da experiência: como o conceito de movimento, de

impenetrabilidade (onde se funda o conceito empírico de matéria), de inércia, etc., que

impedem chamá-la uma ciência absolutamente pura <ganz reine> da natureza; além

disso, ela refere-se apenas a objetos dos sentidos externos e, por conseguinte, não

fornece nenhum exemplo de uma ciência universal da natureza em sentido forte, porque

deve conduzir sob leis universais a natureza em geral, quer se trate do objeto dos

sentidos externos ou do sentido interno (do objeto da física e do da psicologia). Mas,

entre os princípios dessa física universal, há alguns que possuem realmente a

universalidade que exigimos, como a proposição: que a substância permanece e persiste

<bleibt und beharrt>, que tudo o que acontece é sempre determinado previamente por

uma causa segundo leis constantes, etc. Estas são verdadeiramente leis universais, que

existem absolutamente a priori. Existe, pois, de fato, uma ciência pura da natureza

(Prolegomena Ak IV: 294-295. pp. 65-66).

Kant admite que a ciência “pura” da natureza, mais especificamente a metafísica

da substância corporal, não é, na realidade, uma ciência “absolutamente pura”, já que

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159

contém conceitos (movimento, impenetrabilidade, etc), que dependem “das fontes da

experiência” <Erfahrungsquellen>; por outro lado, há certas “leis absolutamente a

priori”, como o princípio da permanência da substância e o princípio da causalidade. A

Metafísica da Natureza, assim, por possuir em seu interior essas duas partes

implicitamente mencionadas na passagem dos Prolegômenos, a transcendental e a

metafísica, poderia ser considerada, em oposição à física empírica, como uma ciência a

priori não pura, ou ainda, que não é “absolutamente pura”.

* * *

Estamos agora em condições de compreender de maneira mais adequada o

objetivo de uma Metafísica da Natureza mencionado anteriormente e contido, de forma

não explícita, no próprio caráter a priori não puro desta disciplina. No momento em que

visam um corpo que se move no espaço, os princípios transcendentais, tornados

“metafísicos” ao assumirem por base o conceito empírico de matéria, realizam-se, ou

ainda, ganham “sentido e significado”. Relembremos o conhecido trecho do prefácio

aos PPMCN:

E assim uma metafísica separada da natureza corpórea presta um serviço excelente e

indispensável para a metafísica universal, fornecendo-lhe, por meio disso, exemplos

(casos in concreto) de como realizar os conceitos e princípios da última (genuinamente

a filosofia transcendental), isto é, fornecer significado e sentido <Bedeutung und Sinn>

a meras formas de pensamento (MAN Ak IV: 478. Grifos nossos).

Com efeito, o sucesso que Kant julgava ter obtido em seus PPMCN o fez alterar

e acrescentar partes significativas na segunda edição da Crítica da Razão Pura, dentre

elas a redação de uma Observação Geral ao Sistema dos Princípios, ausente na primeira

edição, justamente ao cabo do capítulo em que figuram os “princípios transcendentais”

aqui discutidos. Em determinado momento desse acréscimo à segunda edição da

primeira crítica, Kant escreve:

para expor a mudança <Veränderung> como a intuição correspondente ao conceito de

causalidade, temos de tomar o movimento <Bewegung> como exemplo de mudança no

espaço, que é o único modo, com efeito, de tornar intuíveis as modificações cuja

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160

possibilidade o puro entendimento pode compreender (KrV B 291. p. 254. Grifos

nossos).

A ideia é clara o suficiente: Kant afirma aqui que o princípio de causalidade, que

pressupõe o conceito de mudança, somente é tornado “intuível” <anschaulich> através

da segunda lei da mecânica, que, por seu turno, pressupõe o conceito de matéria como

movente no espaço. Em suma, o princípio de causalidade, cuja possibilidade pode ser

discernida de modo completamente a priori, somente ganharia “sentido” e “significado”,

ou, em outras palavras, se “realizaria”, em uma metafísica da substância corporal e seu

conceito empírico de matéria. Com efeito, Kant vai mais longe e afirma que a própria

realidade objetiva das categorias apenas pode ser demonstrada ou exemplificada

quando se toma uma intuição empírica qualquer ou uma matéria como movente no

espaço:

Mais curioso ainda, porém, é que, para compreender a possibilidade das coisas como

consequência das categorias e, portanto, estabelecer a realidade objetiva das últimas,

precisemos não apenas de intuições em geral, mas sempre também de intuições

externas (KrV B 291. p. 253).

O papel desempenhado pela metafísica da substância corporal não pode,

portanto, ser menosprezado: trata-se da disciplina que, a despeito de todo o esforço de

demonstração despedido nos capítulos sobre a dedução transcendental e o

esquematismo207, torna concreta a abstração dos princípios e conceitos da Analítica

Transcendental – em outras palavras, realiza a parte transcendental da Metafísica da

Natureza ou ontologia ao conceder-lhe significado concreto e um referente determinado

na experiência.

Segundo Jules Vuillemin haveria aqui uma marca central do que ele denomina

um movimento fenomenológico presente na filosofia teórica kantiana208. Para o

comentador, apenas em uma metafísica da substância corporal a “verdade” das etapas

207 Hoppe, H (Op. cit. pp. 36-41) argumenta que essas modificações introduzidas na segunda edição da Crítica da Razão Pura confundem o papel preciso desempenhado pela dedução transcendental e pelo esquematismo: ora, se uma metafísica da substância corporal é exigida para que seja demonstrada a realidade objetiva das categorias e dos princípios do entendimento puro, que função teriam então uma dedução transcendental e um esquematismo dos conceitos puros do entendimento? Hoppe ainda discute em que medida essa nova postura de Kant fez com que ele alterasse o capítulo sobre os paralogismos, bem como redigisse a nova parte sobre a refutação do idealismo. Veremos na sequência imediata como Vuillemin tem uma opinião semelhante à de Hoppe, se bem que mais elaborada e de conclusões mais abrangentes. 208 Vuillemin, J. Op. cit. pp. 14; 40.

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161

transcendentais anteriores seria definitivamente demonstrada, em virtude justamente do

processo de realização dos conceitos e proposições transcendentais levado a cabo

através do elemento empírico contido no movimento da matéria que afeta os sentidos

externos – tratar-se-ia de um “travo” <Anstoß> de que dependem sub-repticiamente a

realidade objetiva e a “verdade” de todo o arcabouço transcendental erigido na Crítica

da Razão Pura.

O procedimento descrito nesse capítulo acerca da formação gradativa de um

objeto do sentido externo como uma matéria movente evidenciaria, segundo Vuillemin,

o movimento fenomenológico exigido para se chegar à evidência dos princípios

transcendentais. O método kantiano pressuporia um “fio condutor” que perpassa a

análise da experiência: ao distinguir intuição e existência no interior de seu sistema,

Kant postula uma “constituição progressiva” que faz a passagem da “síntese

matemática” à “síntese física”; trata-se da “constituição progressiva do esquematismo”,

ou seja,

das mediações necessárias para fazer corresponder uma intuição ao conceito que a

determina, a exposição dos atos pelos quais o pensamento coloca de maneira a priori,

ainda que impura, e pelo procedimento do mínimo tomado de empréstimo à

experiência, os diferentes ‘dados’ que lhe são necessários, a constatação, enfim, de que

o progresso do esquematismo e a aproximação do objeto físico determinado obrigam a

reflexão a abandonar gradualmente a esperança de uma evidência imediata, tal como

aquela com a qual sonhava a filosofia de Descartes209.

De acordo com Vuillemin, o abandono de uma física cartesiana e mesmo o

“rebaixamento” da matemática em relação à física de Newton (e a boa parte da tradição

racionalista, ressalte-se) fazem com que para Kant a evidência exigida e procurada

somente ocorra de maneia indireta, por meio do distendido e progressivo desenrolar dos

níveis de pureza da Metafísica da Natureza: os conceitos do entendimento se

“realizariam” no esquematismo, este, por sua vez, no sistema dos princípios e estes, por

fim, nos princípios metafísicos dos PPMCN. Uma “fenomenologia” de molde hegeliano

instala-se, assim, no cerne do sistema transcendental:

Apenas no momento em que a filosofia transcendental, como sistema dos atos

constituintes do entendimento puro, coloca seu objeto concreto na fisiologia racional

209 Idem. p. 25.

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162

[ou metafísica da substância corporal – DKT], referindo-se ao dado mínimo da

sensação, é que essa posição esclarece suas próprias premissas e obriga o sujeito

transcendental a recorrer a um outro princípio, que engloba o primeiro e lhe confere sua

‘verdade’210

A despeito das claras marcas de um “cientificismo” ou “epistemologismo”211

que aproxima sua análise daquela empreendida pelos neokantianos e, assim, a nossos

olhos, a empobrece com vistas ao intuito mais amplo de compreensão dos objetivos de

fundo da filosofia crítica212, bem como resguardadas as diversas questões que essa

espécie de interpretação levanta quanto à sua adequação à “letra” kantiana, a leitura de

Vuillemin desperta interesse por ressaltar a necessidade de uma metafísica aplicada

como a disciplina na qual ocorre a efetivação dos enunciados transcendentais e na qual,

com efeito, ganha-se a concretude que falta ao tão acusado “formalismo” kantiano. A

“verdade” de um princípio transcendental deduzido precisaria a fortiori esperar a sua

realização na experiência, a sua instanciação em algum dado que extrapola a abstração –

“demonstrada transcendentalmente”, é bem verdade – da parte “propedêutica” da

filosofia da natureza.

Em que medida essa constatação pode auxiliar-nos na análise da Metafísica dos

Costumes que iniciaremos na sequência? Haveria também aqui alguma espécie de

“movimento fenomenológico” em que a “verdade” dos princípios práticos formais

apenas ocorreria nas Doutrinas do Direito e da Virtude? A pureza do princípio supremo

da moralidade, a tão duras penas obtida, precisaria esperar pela concretude da vida

prática efetiva? A impureza da natureza humana seria necessária para que a autonomia

da natureza racional se realize? Esperamos ao cabo da dissertação ter esboçado uma

resposta positiva às indagações que deixamos agora em aberto.

210 Idem. p. 39. 211 Cf. Lebrun, G. Op. cit. pp.19ss. 212 Cf. Vuillemin, J. Op. cit, pp. 40ss, em que Vuillemin, a exemplo de Cohen, identifica no sistema de princípios a “gênese” da Crítica: “É através dos Princípios que seria necessário ler a Crítica para compreender sua gênese e reproduzir, em nossa reflexão, o movimento imanente de sua arquitetônica” (p. 40). Trata-se, a nosso ver, de um sinal inequívoco de que Vuillemin lê a Crítica como, de fato, algo próximo a um “vestíbulo das ciências positivas” e, com isso, escamoteia o problema mesmo de uma metafísica pós-tradicional e a reabilitação dos seus objetos sob a perspectiva prática – embora, por certo, ao longo da dissertação estejamos aparentemente nos aproximando de uma condenada leitura “epistemologista” do problema mesmo de uma metafísica em Kant, tentamos, no capítulo 4, ao menos mencionar essas outras “raízes profundas” do projeto crítico que não podem ser desconsideradas numa consequente interpretação da filosofia de Kant.

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163

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164

III

A METAFÍSICA DOS COSTUMES COMO AUTONOMIA

JURÍDICA E AUTONOMIA ÉTICA

Hier sitz’ich, forme Menschen Nach meinem Bilde, Ein Geschlecht, das mir gleich sei, Zu leiden, weinen, Genießen und zu freuen sich, Und dein nicht zu achten, Wie ich. Goethe, Prometheus

Nesta parte da dissertação analisaremos a pretensão sistemática levantada por

Kant de que sua Metafísica dos Costumes seja um sistema de deveres enquanto deveres

humanos, ou seja, uma moral pura aplicada à natureza específica do homem.

Retomando brevemente aqui os resultados obtidos nas duas primeiras partes da

dissertação, vimos que, segundo uma analogia com a Metafísica da Natureza, em uma

Metafísica dos Costumes o estágio de fundamentação da moral crítica, obtido através da

progressiva purificação do princípio supremo da moralidade, deve assistir a seu

formalismo ser ultrapassado nesta etapa estritamente metafísica: trata-se aqui da marca

específica de uma metafísica aplicada para Kant, a saber, ser uma disciplina racional a

priori acerca de um âmbito particular da experiência, seja ela teórica ou prática, e que,

enquanto tal, deve acolher um elemento empírico mínimo sem que seu caráter

necessário e universal – decorrente de sua fundação a priori – seja comprometido por

essa intromissão sensível. Segundo seu objetivo e caráter sistemático peculiar, a essa

disciplina de aplicação devem pertencer uma parte transcendental de fundamentação das

condições iniciais da normatividade e objetividade do uso da razão envolvido, e uma

parte metafísico-específica na qual os princípios transcendentais fundados anteriormente

devem ser aplicados a um dado empírico constitutivo do âmbito da experiência tratado,

fazendo com que aqueles sejam “realizados”, ou ainda, obtenham “significado” e

“sentido”. No caso específico da Metafísica dos Costumes, a parte transcendental tem

por função fundamentar o princípio de autonomia como princípio transcendental que

estipula a condição da normatividade de um enunciado moral para o homem entendido

como ser racional finito, e a parte metafísica, por sua vez, aplicar (e, com isso,

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165

“realizar”) esse princípio supremo da moral a um conceito que até esse momento

definimos de forma ampla como o de uma “natureza especificamente humana”.

Uma possível objeção poderia ser levantada neste momento: ora, Kant, na

Crítica da Razão Pura, não exclui explicitamente a filosofia prática do âmbito de uma

filosofia transcendental?213 Sim, de fato. Contudo, nada nos impede de, seguindo o

“espírito” da amiúde vacilante letra kantiana214, propor algo como uma filosofia

transcendental em sentido amplo, e aqui não estaríamos sozinhos215. Em analogia à

filosofia transcendental do âmbito teórico, uma parte transcendental da filosofia prática

consistiria na investigação acerca da condição para que possa ser aferida a

normatividade de toda e qualquer ação que se pretenda moral. Em outras palavras, da

mesma forma como as pretensões iniciais à verdade de um enunciado teórico são

analisadas no momento transcendental de fundamentação da objetividade do

conhecimento, assim também em filosofia prática a etapa transcendental seria aquela em

que as pretensões de validade de proposições morais são primeiramente asseguradas, de

modo que o “conhecimento objetivo” ou a “experiência prática” seria o resultado da

satisfação das exigências estipuladas por esta filosofia transcendental prática para que

determinada ação seja inicialmente considerada “correta” <recht>. Porém, a referência

às condições iniciais da objetividade prática precisa, também na Metafísica dos

Costumes, ser complementada pelo componente especificamente metafísico desta

ciência: do mesmo modo como a “ontologia” da Metafísica da Natureza não basta, por

si só, para compreender o escopo do projeto metafísico kantiano na ciência da natureza,

também na filosofia prática o momento inicial de normatividade, assegurado, como

argumentaremos, pelo princípio de autonomia, não é per se suficiente para compreender

os objetivos de uma metafísica do direito e de uma metafísica da virtude.

213 Cf. KrV A 14-15/ B 28-29. pp. 55-56; A 801/ B 829. p. 637. 214 Por exemplo, na primeira passagem da Crítica mencionada na nota cima, o argumento para a exclusão da filosofia prática do interior da filosofia transcendental seria a ausência de uma moral genuinamente pura, e na segunda, o de que a filosofia transcendental teria a ver tão-somente com a faculdade de conhecimento. Ora, o primeiro motivo é continuamente contradito pelo próprio Kant, e o segundo procuraremos rebater na sequência como um sentido estreito de “transcendental”. 215 Beck. L.W. A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. op. cit. pp. 9-10; Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. pp. 12-17. Höffe, O. Introduction à la Philosophie Practique de Kant. Paris: Vrin, 1985. pp. 146-159; Idem. “Transzendentale oder vernunftkritische Ethik (Kant)” In: Dialetica. Vol. 35. No 1-2, 1981. Beck e Höffe discutem os motivos de Kant ter excluído a moral do escopo de sua filosofia transcendental e argumentam que, na realidade, Kant teria mudado de posição ser tê-lo explicitamente confessado. Beck chega mesmo a sugerir que o surgimento de uma Crítica da Razão Prática foi o produto desse alargamento da extensão de uma filosofia transcendental. Por sua vez, Gregor assume uma posição semelhante à nossa ao propor uma relação homológica entre as partes transcendental e metafísico-específica da Metafísica da Natureza e da Metafísica dos Costumes.

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166

Podemos compreender este ponto insistindo no repetidas vezes mencionado

paralelo com a Metafísica da Natureza. Segundo Kant, uma metafísica da substância

corporal, a única disciplina legítima da Metafísica da Natureza, tem como tarefa

realizar os princípios e conceitos abstratos da “ontologia” ou filosofia transcendental

entendida como a analítica dos conceitos e dos princípios do entendimento puro obtida

através do esforço crítico de separação dos elementos sensíveis e intelectuais do

conhecimento humano. Sem afirmar de modo categórico que a validade das categorias e

dos princípios do entendimento puro exija a sua aplicabilidade efetiva e atual à

experiência de um objeto que afeta os sentidos externos – como vimos, a

“possibilidade” das categorias é assegurada sem o recurso ao conceito empírico de

matéria –, Kant, não obstante, atribui a uma metafísica da substância corporal a função

de possibilitar uma “prova” da realidade objetiva daqueles ao conferir-lhes exemplos in

concreto que atestam que o esforço especulativo de fundamentação não foi em vão.

Relembremos uma conhecida passagem a respeito:

E assim uma metafísica separada da natureza corpórea presta um serviço excelente e

indispensável para a metafísica universal, fornecendo-lhe, por meio disso, exemplos

(casos in concreto) de como realizar os conceitos e princípio da última (genuinamente a

filosofia transcendental), isto é, fornecer significado e sentido a meras formas de

pensamento (MAN Ak IV: 478. Grifos nossos).

Dessa forma, o projeto kantiano de uma Metafísica da Natureza, mais

notadamente a metafísica da substância corporal, tem por objetivo aplicar e, por meio

disso, realizar as proposições transcendentais expostas na Crítica. Ao passo que a

possibilidade destas últimas é discernida exclusivamente em virtude da circunstância de

serem os únicos princípios através dos quais um objeto em geral (como objeto de uma

experiência possível) é constituído pelo sujeito, a exemplificação e a concretização

dessa condição de possibilidade da experiência são, por sua vez, fornecidas pelos

objetos de que se compõe o conjunto da natureza corporal tomada como o conjunto de

objetos moventes no espaço (cf. KrV B 154-155; B 291-292).

Tomando esse dado como uma indicação mais profunda a respeito do objetivo

mesmo de uma metafísica aplicada para Kant, mencionemos um breve exemplo a servir

de termo de comparação e pista para o leitor a respeito do caminho que será seguido

nesta última parte da dissertação: assim como, por exemplo, a segunda lei da mecânica,

a lei newtoniana de inércia, “realiza” e confere - de forma a priori - “sentido” e

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167

“significado” ao princípio transcendental de causalidade ao aplicá-lo ao conceito

empírico porém determinável a priori de matéria (MAN Ak IV: 543), também o

princípio supremo da doutrina da virtude realiza o princípio supremo da moralidade, a

autonomia da vontade, ao aplicá-lo a um conceito de natureza humana dado na

experiência e, não obstante, passível de ser determinado independentemente desta.

Trata-se, aqui, do correlato sistemático prático do conceito de matéria, a saber, o

conceito de ato do livre arbítrio como um conceito que contém elementos empíricos

mas que, não obstante, pode ser determinado de modo a priori, através do princípio

supremo da moral. Tomemos um exemplo: considerando o homem como um ser

propositivo, que inevitavelmente visa fins em suas ações, a Doutrina da Virtude obriga

o agente a abandonar a abstração do imperativo categórico e a considerar a realidade

prática efetiva em que deve desempenhar seu dever e cultivar sua disposição moral, ou

seja, exorta-o a não mais considerar o homem como um mero “fim independente

<selbständiger Zweck>, portanto só de maneira negativa” (Gr Ak IV: 427. p. 142),

como é o caso no momento transcendental, mas antes como um fim “positivo”, em

outras palavras, um fim obrigatório da razão, em oposição àqueles adotados por meio

da influência das inclinações sensíveis, no esforço de progressão ética de sua conduta:

Segundo este princípio [supremo da Doutrina da Virtude], o homem é fim tanto de si

mesmo quanto dos outros, e não basta que ele não esteja autorizado a utilizar nem a si

mesmo nem aos outros meramente como meio (pelo que ele, dessa forma, pode ser

contudo indiferente quanto a eles), mas antes se exige que seja por si mesmo um dever

humano fazer do homem em geral um fim (MS Ak VI: 395. p. 307. Grifos nossos).

O “sentido” e o “significado” da ação moral em geral apenas são cristalizados na

vida ética e jurídica efetiva em que a autonomia da vontade - base normativa formal das

duas partes da moral kantiana - é realizada nos âmbitos específicos da experiência

prática humana. Em suma, todo o esforço de fundamentação do princípio da autonomia

como “princípio supremo da moralidade” ou o “único princípio da moral” (Gr Ak IV:

440. p. 144), deve ser complementado pela sua aplicação à natureza humana, definida

inicialmente por meio do conceito de livre arbítrio, ou seja, a capacidade de produzir

determinados estados-de-coisa guiada pelo princípio de autonomia. A exemplo do que

ocorre no momento transcendental, em que da primeira formulação do imperativo

categórico, a da lei universal, passa-se gradualmente à terceira, a da autonomia da

vontade e a dos reinos dos fins, chegando, com isso, à totalidade ou a “determinação

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168

completa” do princípio da moral (Gr Ak IV:436. p. 141), também na parte metafísico-

específica da Metafísica dos Costumes, as metafísicas do direito e da virtude partem de

um princípio metafísico que estipula apenas a universalidade exigida nos usos externo e

interno da liberdade e chegam, por fim, ao conjunto completo de suas condições de

realização numa comunidade jurídica e numa comunidade ética composta por seres

racionais autônomos. Dessa maneira, ao invés de um “reino dos fins” ideal e abstrato

composto por seres racionais legisladores universais, ou seja, um mero padrão

normativo para a esfera moral de modo geral, obtêm-se, por um lado, uma comunidade

jurídica cosmopolita presidida por uma vontade geral que assegura as condições

legítimas para o uso da liberdade externa, e, por outro, uma comunidade ética do gênero

humano regida por um vontade pura divina, arquétipo moral para o homem, e composta

pelo conjunto das leis de virtude que garantem a plenitude da liberdade interna. Em uma

palavra, a vida moral humana efetiva “se realiza”, ganhando significado e sentido na

concretude a priori prática do direito e da ética.

Para chegarmos a esta conclusão, no entanto, devemos antes seguir o modelo de

uma metafísica aplicada discutido na seção anterior por ocasião da Metafísica da

Natureza e localizar, agora no interior da filosofia prática kantiana, possíveis momentos

análogos àqueles discernidos na filosofia da natureza. Dessa maneira, no sexto capítulo

analisaremos a parte transcendental da Metafísica dos Costumes, reconhecendo aqui a

exigência de um momento “puro” unicamente no qual o princípio da autonomia é

fundamentado como o princípio supremo da moral – a precondição para isso, como

mostramos na primeira parte da dissertação, consistiu na progressiva “purificação” da

base da moralidade em confluência com o objetivo de fundo de Kant de “purificação”

da razão que, dentre outras consequências, resultou na reformulação da metafísica

tradicional descrita no quarto capítulo e a nova Metafísica da Natureza sob as feições

discutidas no quinto capítulo. Veremos como na filosofia moral kantiana surge o

conceito de uma vontade santa ou divina como arquétipo para a vontade finita do

homem; através do contraste com este ideal de perfeição moral é definido um fato

antropológico fundamental, que exprime a peculiaridade <Eigentümlichkeit> inicial da

moral para vontade imperfeita, emergindo daqui a exigência de que esta se constitua

como legisladora universal de uma comunidade composta por todos os seres racionais.

No sétimo capítulo, será investigado o possível correlato na Metafísica dos

Costumes dos momentos metafísico-específico explicitamente incluído por Kant em sua

Metafísica da Natureza. Aqui algum dado empírico deve ser acolhido de modo a que o

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169

princípio formal da moral, cuja possibilidade e validade é demonstrada no momento

anterior, seja especificado na experiência prática efetiva; assim, à semelhança do que

ocorre na Metafísica da Natureza, será necessário encontrar um conceito dado na

sensibilidade mas determinável de modo a priori, a saber, o ato do livre arbítrio como

aquilo que primeiramente elucida as circunstâncias práticas fundamentais

especificamente humanas e desvela as condições empíricas mínimas requeridas para que

sejam constituídas uma metafísica do direito e uma metafísica da virtude.

Surgirá dessa análise, no oitavo capítulo, um conceito de autonomia jurídica,

que estipula os parâmetros normativos e as condições institucionais necessárias para que

o agente racional constitua e persiga fins quaisquer do seu arbítrio em uma comunidade

jurídica; ademais, há o conceito de autonomia ética, que reconhece nos fins

obrigatórios, ou fins que são ao mesmo tempo deveres, as condições iniciais necessárias

para o exercício progressivo da virtude e, com isso, a debilitação da influência das

inclinações e paixões na consecução da plenitude moral do agente racional em uma

comunidade ética. Em ambos os conceitos, está patente a dimensão social ou

comunitária em que a ação humana tem lugar, que, assim, apenas se sabe efetivamente

autônoma numa perspectiva que abrange todo o gênero humano.

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170

6. A METAFÍSICA DO COSTUMES E O MOMENTO

TRANSCENDENTAL. AUTONOMIA COMO PRINCÍPIO

SUPREMO DA MORAL

Muito já se escreveu a respeito da subordinação da Doutrina do Direito e da

Doutrina da Virtude ao princípio supremo da moralidade216. Na Introdução à Metafísica

dos Costumes, duas passagens atestam de modo explícito tal relação subordinativa: na

primeira delas, após discutir o conceito de liberdade, Kant se refere aos “conceitos que

são comuns a ambas as partes da Metafísica dos Costumes” e o primeiro deles é,

justamente, o de obrigação como “necessitação de uma ação livre sob um imperativo

categórico da razão” (MS Ak VI: 222. p. 31. Grifo nosso); na segunda passagem, Kant

escreve:

O princípio supremo da doutrina moral é pois: age segundo uma máxima que possa

valer ao mesmo tempo como lei universal (MS Ak VI: 226. p. 36).

Com efeito, se as Doutrinas do Direito e da Virtude são contadas no interior de

uma Metafísica dos Costumes, ou seja, como partes da doutrina dos costumes, há uma

exigência sistemática de que ambas estejam sob a alçada do princípio supremo da

moral, buscado e fixado na Fundamentação da Metafísica dos Costumes; desta

subordinação se seguiria a verificação da existência na Metafísica dos Costumes de toda

a constelação de conceitos centrais para a filosofia prática kantiana, a saber, dever,

obrigação, necessitação, etc. Contudo, a despeito da importância desta tarefa, em

nenhum momento Kant se deteve nos detalhes de tal subordinação; por esta razão, os

intérpretes adotam estratégias diversas para reconstruir a relação entre a Metafísica dos

Costumes e os demais escritos de Fundamentação, e, no caso específico da Doutrina do

Direito, muitos chegam até mesmo a duvidar de uma efetiva subordinação do direito

kantiano aos parâmetros da filosofia moral crítica, defendendo, inversamente, a

216 Os estudos sobre o tema são inúmeros. A maioria deles, no entanto, não se detém nas dificuldades envolvidas, ou, na melhor das hipóteses, discute tal relação subordinativa em apenas uma das duas partes da Metafísica dos Costumes, amiúde a Doutrina do Direito. Em todo caso, mencionemos alguns comentadores. Brandt, R. Immanuel Kant – Was bleibt?. Hamburg: Meiner, 2010. pp. 127-30. Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. pp. 1-33. Höffe, O. Kategorische Rechtsprinzipien. Ein Kontrapunkt der Moderne. Frankfurt: Suhrkamp, 1994. pp. 15-22. Malibabo, B. Kants Konzept einer kritischen Metaphysik der Sitten. Op. cit. pp. 107-122. Terra, R. Política Tensa. Op. cit. pp. 77-87.

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171

independência da Doutrina do Direito em relação à moral kantiana217. Teremos

oportunidade para rebater esta última postura interpretativa mais adiante; por ora,

notemos o caminho que estamos trilhando para responder afirmativamente à pergunta

sobre tal subordinação da Metafísica dos Costumes ao princípio supremo da moral.

Segundo o argumento até aqui empregado, a Doutrina do Direito e a Doutrina da

Virtude seriam as doutrinas metafísica específicas da Metafísica dos Costumes, em

analogia às doutrinas da substância corpórea e da substância pensante na Metafísica da

Natureza; nessa medida, ambas estariam ligadas a um momento transcendental de

fundamentação da normatividade dos enunciados morais, em paralelo ao que ocorre à

“ontologia” em relação à Metafísica da Natureza. De modo semelhante aos

comentadores que afirmam a unicidade do princípio supremo da moral e a subordinação

das duas partes da Metafísica dos Costumes a ele, propomos que o princípio da

autonomia deve servir como base normativa das Doutrinas do Direito e da Virtude,

exprimindo, desta maneira, a ideia de uma legislação universal dos sujeitos do direito

sob leis jurídicas, e dos sujeitos éticos sob leis de virtude; em uma comunidade jurídica

e em uma comunidade ética, o homem encontraria a “realização”, ou ainda, o “sentido”

e o “significado” de sua ação moral. Tal “aplicação metafísica” do princípio da

autonomia aos âmbitos jurídico e ético será tema do próximo capítulo.

Neste capítulo discutiremos o momento transcendental de fundamentação da

normatividade dos enunciados morais, localizando no princípio de autonomia e na ideia

de “reino dos fins”, que é “inerente” <anhängend> àquele, a base normativa donde

partem a autonomia jurídica e a autonomia ética. Para tanto, contudo, iremos

inicialmente discutir a peculiaridade do conceito mesmo de uma Metafísica dos

Costumes no interior da tradição. Esta disciplina surge dos escombros da metafísica

tradicional, e representa a autonomização do âmbito moral em relação às disciplinas às

quais a filosofia prática via-se sujeita na tradição: psicologia, racional e empírica, direito

natural, teologia, etc. Desta maneira, a Metafísica dos Costumes se propõe como uma

217 Cf. Wood, A. “Final Form”. Op. cit. esp. p. 9. Cf. também Wood, A. “Kant’s Doctrine of Right: Introduction”. In: Höffe (org). Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre. Berlin. Akademie Verlag. 1999. p. 35. Willaschek, M. “Which Imperatives for Right? On the Non-Prescritive Character of Juridical Laws in Kant’s Metaphysics of Morals”. In: idem. Para uma literatura mais antiga, ver Terra, R. A Polítca Tensa. Idéia e realidade na filosofia da história de Kant. São Paulo. Iluminuras. 1995. pp. 82-7. O partidário mais célebre da “tese da independência”, contudo, é Ebbinghaus que argumenta, dentre outras coisas, que o conceito de “liberdade negativa” no qual se apoiaria a Doutrina do Direito kantiana não dependeria da “autolegislação” da razão prática e, portanto, da “liberdade positiva” exigida por esta e base da filosofia moral kantiana. Ver a reconstrução (e a desmontagem) do argumento de Ebbinghaus por Kersting. Op. cit. pp 109-114. Tentaremos responder a essas crítica nessa parte da dissertação.

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172

filosofia moral pura, que toma por tema um princípio válido para todos os seres

racionais, dentre eles o homem (6.1). Num segundo momento, já no interior do

momento transcendental de uma Metafísica dos Costumes, discutiremos a ideia

constitutiva para Kant de uma vontade absolutamente pura ou santa como arquétipo

para a vontade humana. Surge aqui um primeiro nível de pureza, em que, por contraste

<Dagegenhaltung> com tal vontade perfeita, é inicialmente definida a peculiaridade do

momento transcendental da moral: a vontade humana é imperfeita, e a lei moral para o

homem deve se apresentar como um imperativo que leva em conta tanto a constituição

natural, quanto a natureza racional do homem (6.2). Deste fato antropológico inicial

explica-se a busca humana pela felicidade, e, com isso, a inevitável intromissão de

particularidades empíricas e sensíveis refletidas nos fins subjetivos dos agentes e que,

elevadas a princípios da moral, conduzem à heteronomia da vontade. Em oposição a

isso, surge o princípio da autonomia e o reino dos fins como decorrência da

universalidade da lei e da dignidade do ser racional legislador universal. Neste segundo

nível de pureza, a natureza racional deve sobrepujar a constituição física e as

circunstâncias empíricas em que se encontra o homem como condição para uma

possível comunidade de seres racionais sob leis autônomas (6.3). Por fim, um excurso

sobre dois possíveis sentidos de aplicação suscitados ao longo da obra crítica tentará

esclarecer o papel da antropologia no interior da arquitetônica da razão prática (6.4).

6.1. As exigências de pureza – A peculiaridade da concepção kantiana de

uma Metafísica dos Costumes

Como já mencionado por diversas vezes, na Crítica da Razão Pura, a despeito

da discussão preliminar empreendida no Cânon da Razão Pura e na Arquitetônica da

Razão Pura, Kant afirma que deixará para um momento posterior a definição precisa

dos contornos de sua futura Metafísica dos Costumes.

A metafísica da razão especulativa é (...) o que no sentido mais estrito se costuma

chamar metafísica. Na medida, porém, em que a doutrina pura dos costumes também

pertence ao ramo particular do conhecimento humano e filosófico derivado da razão

pura, conservar-lhe-emos essa designação, embora a coloquemos de parte por não ser

pertinente, por agora, ao nosso fim (KrV A 842/ B 870. p 663).

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173

Com efeito, no esboço de seu sistema da filosofia delineado nas páginas

seguintes a essa passagem do capítulo sobre a Arquitetônica da Razão Pura, Kant

comenta apenas aquilo em que consistiria sua Metafísica da Natureza (KrV A 845-851/

B 873-879), deixando totalmente em aberto o caráter e as divisões de sua futura

Metafísica dos Costumes. O ineditismo da disciplina em relação à tradição e aos

sistemas de filosofia prática contemporâneos de Kant talvez seja o motivo para tal

escrúpulo. É primeiramente na Fundamentação da Metafísica dos Costumes que Kant

começa a tornar mais claro o que seria sua metafísica “pura” da moral – o ponto de

contraste escolhido por Kant era facilmente reconhecido pelos seus contemporâneos:

além de críticas pouco veladas à filosofia popular218, o alvo explícito de Kant no

prefácio, como veremos na sequência, era a Philosophia practica universalis da escola

wolffiana.

No prefácio à obra, Kant ressalta claramente a função propedêutica que a

Fundamentação da Metafísica dos Costumes desempenha em relação à própria

Metafísica dos Costumes prevista na Arquitetônica da Razão Pura:

no propósito, pois, de publicar um dia uma Metafísica dos Costumes, faço-a preceder

desta Fundamentação (Gr Ak IV: 391. p. 106).

Logo no início da Fundamentação Kant retoma, de modo ligeiramente

modificado, o esquema sistemático já apresentado na Arquitetônica da Razão Pura.

Segundo ele, haveria uma filosofia estritamente formal, a lógica, e uma filosofia

material, isto é, uma filosofia que toma em consideração um âmbito específico de

objetos e que se dividiria em uma doutrina da natureza <Naturlehre>, ou física, ocupada

com as leis da natureza, e uma doutrina dos costumes <Sittenlehre>, ou ética, ocupada

com as leis da liberdade. Ao contrário da lógica, que é composta apenas por uma parte

pura, cada uma dessas divisões da filosofia material possuiria uma parte empírica ao

lado de sua parte pura. A parte empírica, que se apóia em princípios extraídos da

experiência, se dividiria em física e antropologia prática, correspondendo às “leis da

natureza como objeto da experiência”, no caso da doutrina da natureza, e às leis “da

vontade do homem enquanto ela é afetada pela natureza”, no caso da doutrina dos

218 Vale lembrar que, como mencionado, o ensejo decisivo para a publicação da Fundamentação da Metafísica dos Costumes fora, segundo o relato de Hamann, a contraposição de Kant ao livro de um representante da filosofia popular, Christian Garve, Philosophische Anmerkungen und Abhandlung zu Cicero’s Büchern von den Pflichten, uma tradução e adaptação da obra de Cícero, De Officiis. Cf. Kuehn, M. Kant. A Biography. Op. cit. pp. 277-283.

Page 174: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

174

costumes (Gr Ak IV: 387. p. 103). Por outro lado, a parte pura conteria apenas

princípios a priori, caracterizando-se, assim, como “filosofia pura” (Gr Ak IV: 387. p.

103). Esta nada mais seria do que a “metafísica”, e se dividiria segundo os objetos de

cada parte da filosofia material: no conjunto das leis “segundo as quais tudo acontece”

consistiria a Metafísica da Natureza, e no conjunto das leis “segundo as quais tudo deve

acontecer”, a Metafísica dos Costumes, a qual, assim, não poderia ser confundida com a

antropologia prática e seus princípios extraídos da experiência219 – trata-se, antes, das

leis morais que determinam a vontade humana independentemente da maneira como

esta pode ser ou é de fato afetada pela natureza.

Com efeito, Kant propõe uma verdadeira divisão de trabalho no interior da

filosofia moral a exemplo do que ocorre em outras ciências. Segundo ele, em todas as

artes e ofícios ganha-se muito quando vários homens se ocupam de tarefas distintas,

cada um deles demarcando seus próprios afazeres em oposição aos dos demais em prol

do todo que é assim erigido. Em questão morais não poderia ser diferente. Muito

atrapalham o estado geral das ciências práticas aqueles que, segundo Kant, “estão

habituados a vender o empírico misturado com o racional, conforme o gosto do

público” (Gr Ak IV: 388. p. 104), descurando, assim, da diferença fundamental que

opõe a filosofia prática empírica à pura. Nada mais injusto e equivocado, portanto, do

que a pecha de “meditabundo” <Grübler> posta àqueles que insistem em apenas

ocupar-se com o que é meramente racional em moral. Ora, escreve Kant,

limito-me aqui a perguntar se a natureza da ciência não exige que se isole

<abzusondern> sempre cuidadosamente a parte empírica da parte racional e que se

anteponha (...) à antropologia prática uma Metafísica dos Costumes, que deveria ser

cuidadosamente depurada <gesäubert> de todos os elementos empíricos, para se

chegar a saber de quanto é capaz em ambos os casos a razão pura e de que fontes ela

própria tira o seu ensino a priori. Esta última tarefa poderia, aliás, ser levada a cabo por

todos os moralistas (cujo nome é legião), ou só por alguns deles que se sentissem com

vocação para isso (Gr Ak IV: 388-389. p. 104. Grifos nossos).

Kant certamente se sentia como um dos escolhidos para tal tarefa sanitária de

depuração ou purificação da moral. Sua obra se propõe a buscar <aufsuchen> e fixar

<festsetzen> um princípio supremo da moralidade (Gr Ak IV: 392. p. 106) que expressa

uma “necessidade prática absoluta” unicamente possível em uma “filosofia moral pura”

219 Sobre o que seria esta antropologia empírica, cf. supra nota 179.

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175

totalmente apartada da antropologia, e, portanto, de elementos sensíveis quaisquer (Gr

Ak IV: 389. p. 104). Toda a filosofia moral, de resto,

assenta inteiramente na sua parte pura, e, aplicada ao homem, não recebe um mínimo

que seja do conhecimento do homem (antropologia), mas fornece-lhe como ser racional

leis a priori (Gr Ak IV: 389. pp. 104-105).

Ademais, a Metafísica dos Costumes, essa filosofia moral pura, é indispensável

não apenas pelo seu intuito “especulativo” de investigar e isolar o princípio moral

supremo que reside de modo a priori em todo homem, mas também para livrar os

costumes <Sitten> “de toda a sorte de perversão <Verderbnis>” que se lhes impõe

quando falta “aquele fio condutor e norma suprema do seu exato julgamento” (Gr Ak

IV: 390. p. 105). Ou seja, a exibição da “lei moral” em toda sua “pureza <Reinigkeit>

(...) não se deve buscar em nenhuma outra parte senão numa filosofia pura, e esta

(metafísica) tem que vir portanto em primeiro lugar, e sem ela não pode haver em parte

alguma uma filosofia moral” (Gr Ak IV: 390. p. 105). A suposta ciência que confunde

seus princípios, mesclando dados puros a elementos fundados na experiência, “merece

ainda muito menos o nome de filosofia moral, porque, exatamente por este amálgama

de princípios, vem prejudicar até a pureza dos costumes e age contra a sua própria

finalidade” (Gr Ak IV: 390. p. 105).

A exigência de pureza nutrida desde o fim da década de 1760 se impõe agora

com força inédita. Não apenas se trata de um erro “escolar” ou “especulativo” a

confusão de empírico e racional ou a fundação da moral em algum sentimento ou

circunstância sensível, mas antes, e de modo muito mais grave, o filósofo que assim

procede trai e macula o fim da ciência que busca tão insensatamente “fundar”.

Por mais estranho que possa parecer, o alvo explícito de Kant com essas

palavras não é Hutcheson, Montaigne, Hobbes, Mandeville ou qualquer outro

“empirista” ou filósofo popular. Muito pelo contrário, quem ultraja a própria moral ao

manejá-la levianamente no intento de colocá-la sob as vestes de ciência é “o célebre”

Wolff, a despeito de seu Geist der Gründlichkeit. Segundo Kant, a Metafísica dos

Costumes planejada não deve ser em absoluto confundida com a disciplina propedêutica

de matriz wolffiana denominada Philosophia practica universalis. Ora, esta, por se

propor “excessivamente universal”,

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176

não tomou em consideração nenhuma vontade de qualquer espécie particular –

digamos, uma vontade que fosse determinada completamente por princípios a priori e

sem quaisquer motivos empíricos, e a que se poderia chamar uma vontade pura –, mas

considerou o querer em geral <Wollen überhaupt> com todas as ações e condições que

lhe cabem nesta acepção geral, e por aí se distingue ela de uma Metafísica dos

Costumes exatamente como a lógica geral se distingue da filosofia transcendental, a

primeira das quais expõe as operações e regras do pensar em geral, enquanto que a

segunda expõe as operações e regras especiais do pensar puro, isto é, daquele pensar

pelo qual os objetos são conhecidos totalmente a priori (Gr Ak IV: 390. p. 105).

Com efeito, a ciência proposta por Kant deve atentar à origem pura das

prescrições racionais, e, dessa forma, ocupar-se não com um “querer humano” em

geral, no qual se confundem móbiles empíricos e motivos racionais, mas antes com a

ideia mesma de uma vontade pura analisada e exposta em toda a sua pureza:

[A] Metafísica dos Costumes deve investigar a ideia e os princípios duma possível

vontade pura, e não as ações e condições do querer humano em geral, as quais são

tiradas na maior parte da psicologia (Gr Ak IV: 390. p. 105. Grifos nossos).

Portanto, ao contrário da disciplina de Wolff, que padece da indevida

subordinação a ciências da tradição metafísica como a psicologia empírica e racional, o

direito natural, teologia natural e outras220, a Metafísica dos Costumes tem por objeto

uma vontade pura, e não um “desejar” em geral, considerando aqui o conjunto das

220 Segundo Wolff, a psicologia seria fundamental para a moral e também para as demais disciplinas às quais esta estaria subordinada; a necessidade da psicologia, racional ou empírica, é sentida “na teologia para precisar os atributos de Deus, no direito natural para estipular quais ações são boas e quais são más, na moral para fixar as condições da ação correta, na lógica (...) para dirigir o entendimento na descoberta da verdade”. École, J. Op. cit. p. 56. Ademais, além da subordinação à psicologia racional e empírica, Wolff considerava toda a filosofia moral dependente do direito natural e, assim, da teologia natural. Cf. Wolff, C. Einleitende Abhandlung über Philosophie im allgemein. Op. cit: “Denomina-se direito natural a parte da filosofia que ensina quais ações são boas e más” (§ 68). “No direito natural (...), são demonstrados os deveres dos homens para com Deus (...). Visto que todos os deveres para com Deus não podem nem ser demonstrados e nem ter a sua realização ensinada sem o conhecimento de Deus (...), e o conhecimento de Deus é extraído pelos filósofos a partir da teologia natural, esta portanto fundamenta o direito natural e a ética” (§ 92). Kant autonomiza a filosofia moral ao atribuir seu estudo a uma disciplina independente: a metafísica dos costumes. É sintomático que Kant, a partir dos anos 1770, tome como conteúdo da primeira parte de seus cursos sobre antropologia justamente o conteúdo da psicologia empírica da Metaphysica de Baumgarten. Cf. Zammito, J. Kant, Herder, and the birth of anthropology. Op. cit. p. 301 e passim. Trata-se, aqui, do estudo parcial da primeira parte da Antropologia de um ponto de vista pragmático, ou, de modo geral, das lições kantianas sobre antropologia, a saber, a didática antropológica, cujo objeto correspondia, na tradição racionalista clássica, ao tema da psicologia empírica. Em suma, não é por acaso que a recusa de uma fundamentação empírica da moral coincide com as primeiras formulações acerca do plano de uma Metafísica dos Costumes e com o surgimento de uma disciplina à parte no oferecimento de cursos por Kant na Universidade de Königsberg: a antropologia, primeiramente ministrada em 1772.

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177

faculdades práticas que determinam a ação humana livre em meio à influência recíproca

de elementos racionais e empíricos. Na filosofia prática universal wolffiana há

justamente aquela reprovável mistura de pureza e empiria condenada desde a

Dissertação Inaugural e que tanto prejudica a “dignidade dos costumes” e embota o

projeto de uma ciência prática consequente com seu próprio objetivo. Embora tratem de

conceitos pertencentes a uma genuína Metafísica dos Costumes, como leis morais e

deveres, Wolff e os partidários de sua filosofia

não distinguem os motivos de determinação que, como tais, se apresentam totalmente a

priori só pela razão e são propriamente morais, dos motivos empíricos, que o

entendimento eleva a conceitos universais só por confronto das experiências.

Consideram-nos, pelo contrário, sem atender à diferença das suas fontes, só pela sua

maior ou menos soma (tomando-os a todos como de igual espécie), e formam assim o

seu conceito de obrigação (Gr Ak IV: 391. pp 106).

Nesse momento vemos com mais clareza a importância decisiva do longo

processo de “isolamento” da razão e de conhecimento de sua “personalidade” que foi

reconstruído na primeira parte da dissertação: o caminho de “purificação” trilhado nos

anos 1770 tinha como alvo não apenas a escola britânica, mas também Wolff e sua

Filosofia Prática Universal na busca kantiana por um “novo início” na filosofia moral.

Ora, afirma Kant, o motivo do erro de Wolff foi ter mantido sua divisa: connubium

rationis et experientiae também no âmbito prático221 e, em decorrência disto, não ter

“purificado” a razão prática e assim não ter oposto uma metafísica da moral a uma

disciplina que mistura elementos antropológicos, psicológicos e racionais; trata-se de

um equívoco análogo àquele cometido por toda a metafísica tradicional, na qual não se

distinguem a lógica geral, com seus princípios de contradição, razão suficiente e

terceiro excluído válidos para todo o pensar, empírico ou puro, e a lógica

transcendental, que se ocupa tão-somente dos elementos puros do nosso conhecimento

e, portanto, das condições transcendentais de objetividade do mesmo. No caso

específico da filosofia prática, com seu desdém pela necessária purificação do princípio

da moral, a tradição não atentou à diferença específica e ao necessário isolamento da

moral relativamente à metafísica tradicional, mais particularmente a psicologia empírica

221 Cf. Arndt, H. W. “Zu Begriff und Funktion der ‘moralischen Erfahrung’ in Christian Wolffs Ethik”. In: École, J (ed). Autour de la philosophie Wolffienne. In: Wolff, C. Gesammelte Werke Bd 65. Jean École et al. (eds). Hildesheim-Zürich-New York: Georg Olms Verlag, 1962-.

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178

e racional, e também a própria teologia e as demais disciplinas da metaphysica generalis

e da metaphysica specialis, conforme a hierarquia das ciências propostas por Wolff e

sua escola222. Kant torna isto mais claro na segunda seção da Fundamentação.

Perguntando-se sobre como é possível que o princípio da moral seja absolutamente

vinculante à vontade humana, Kant escreve:

Mas para descobrir esta ligação é preciso, por bem que nos custe, dar um passo além,

isto é, para a metafísica, em um âmbito da mesma, contudo, que é distinto do da

filosofia especulativa, a saber, Metafísica dos Costumes. Numa filosofia prática, em que

não temos de determinar os princípios do que acontece, mas sim as leis do que deve

acontecer, mesmo que nunca aconteça, quer dizer, leis objetivas práticas; numa tal

filosofia, digo, não temos necessidade de encetar investigações sobre as razões por que

qualquer coisa agrada ou desagrada, por que, por exemplo, o agrado <Vergnügen> da

simples sensação se distingue do gosto, e se este se distingue de um prazer

<Wohlgefallen> universal da razão; não precisamos investigar sobre que assenta o

sentimento de prazer e desprazer, e como é que daqui resultam desejos e tendências, e

como destas, por sua vez, com o concurso da razão, resultam as máximas; porque tudo

isto pertence a uma psicologia empírica, que constituiria a segunda parte da ciência da

natureza se as considerássemos como filosofia da natureza, enquanto ela se funda em

leis empíricas. Aqui se trata, porém, da lei objetiva prática, isto é, da relação de uma

vontade consigo mesma enquanto esta vontade se determina só pela razão, pois que

então tudo o que se relaciona com o empírico desaparece por si, porque, se a razão por

si só determina o comportamento <Verhalten> (...), terá de fazê-lo necessariamente a

priori (Gr Ak IV: 426-427. pp. 133-134. Grifos nossos).

Em suma, ao não ter purificado a razão prática e desprezado o Verfahren der

sich selbst isolierenden Vernunft, Wolff perdeu de vista o único caminho possível para

uma verdadeira metafísica da moral através da determinação de um princípio supremo

da moralidade absolutamente vinculante para todo ser racional e, por consequência,

222 Cf. Riedel, M. Metafísica e metapolitica. Studi su Aristotele e sul linguaggio político della filosofia moderna. Bologna: Il Mulino, 1990. Cap. 8. “L’ ‘emendazione’ della filosofia pratica. La metafísica come teoria della prassi in Leibniz e Wolff”. Riedel localiza na “descoberta” da vontade pura o rompimento de Kant com Wolff e, de modo geral, com a tradição precedente: “A descoberta desta vontade faz com que, em lugar de uma fundação das partes ‘particulares’ da filosofia prática, Kant ponha a ideia de sua autofundação, a qual torna não apenas supérfluo, mas também metodologicamente impossível o recurso a conceitos e a referentes da tradição que se revelaram constitutivos à Philosophia practica universalis” (p. 240). Nessa “ideia de autofundação” racional repousa a exigência de autonomização do âmbito moral.

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179

também para o homem223– dito de forma diferente, toda a tradição pecou por não ter

obtido a autonomização da filosofia prática em relação aos âmbitos especulativos e

mesmo estéticos e a qual Kant acreditava ter atingido, ao menos de maneira “escolar” e

sistemática, por meio de uma Metafísica dos Costumes. Curiosamente, portanto, a

desabilitação da influência da metafísica tradicional na moral faz surgir uma

Metafísica dos Costumes224.

Em resumo, a pureza exigida é a marca que distingue o projeto da Metafísica

dos Costumes das diversas tentativas anteriores de fundamentação da moral:

Basta que lancemos os olhos aos ensaios sobre moralidade feitos conforme o gosto

preferido para breve encontrarmos ora a ideia da determinação <Bestimmung>

particular da natureza humana (...), ora a perfeição, ora a felicidade, aqui o sentimento

moral, acolá o temor de Deus, um pouco disto, mais um pouco daquilo, numa mistura

espantosa; e nunca ocorre perguntar se por toda a parte se devem buscar no

conhecimento da natureza humana (que não pode provir senão da experiência) os

princípios da moralidade, e, não sendo esse o caso, sendo os últimos totalmente a priori,

livres de todo o empírico, se se encontrarão simplesmente em puros conceitos racionais

e não em qualquer outra parte, nem mesmo em ínfima medida (Gr Ak IV: 410. pp. 121-

122. Grifos nossos).

Essa Metafísica dos Costumes, “completamente isolada <völlig isolierte>, que

não anda misturada nem com a antropologia, nem com a teologia, nem com a física ou a

hiperfísica” (Gr Ak IV: 410. p. 122), é um desiderato moral central cuja importância,

entretanto, fora totalmente desconsiderada pela tradição. A autonomização da moral em

relação a todas essas disciplinas enseja o projeto de uma metafísica da moral.

223 Cf. Gr Ak IV: 425. p. 132: “Pois o dever deve ser a necessidade prática incondicionada da ação; tem de valer portanto para todos os seres racionais (os únicos aos quais se pode aplicar sempre um imperativo), e só por isso pode ser lei também para toda a vontade humana”. 224 Sobre o ineditismo de uma metafísica dos costumes, cf. Schwaiger, C. “Die Anfänge des Projekts einer Metaphysik der Sitten zu den wolffianischen Wurzeln einer kantischen Schlüsselidee”. Op. cit. Brandt, R. “Kant como metafísico”. Op. cit. p. 42. Baseando-se em Max Wundt, Brandt afirma que o projeto de uma metaphysica moralis encontra um único precedente antes de Kant: Israel Kanz, um discípulo obscuro de Wolff; contudo, seria ainda “uma ideia errática e sem conseqüências”, ao contrário, decerto, do que ocorre com Kant. Segundo Malibabo, apoiado em Theo Kobusch, “as raízes da metaphysica moralis remontam à ontologia medieval. A nova metafísica (metafísica do ‘ens morale’) é pela primeira vez indicada em Samuel Pufendorf, pois ele deu o primeiro passo para a metafísica dos costumes ao falar de uma ‘Ethica universalis’ no sentido de uma disciplina competente para a teoria do homem enquanto homem, portanto, enquanto ser da liberdade” (Op. cit. p. 81). Teria sido a escola wolffiana a primeira a cunhar o termo metaphysica moralis, a partir do qual surgiu o correlato alemão Metaphysik der Sitten. Em todo caso, Malibabo não mostra se esta disciplina corresponde a uma disciplina autônoma da moral, como é o caso em Kant.

Page 180: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

180

Contudo, como obter essa pureza e autonomização tão desejada e necessária?

Segundo Kant, o caminho a ser seguido é o da consideração das leis morais como

válidas não apenas ao homem e à peculiaridade de suas faculdades prática e mesmo das

circunstâncias específicas em que se encontra sua razão, mas também – e antes de tudo

– a todos os seres racionais enquanto tais:

Aqui [Metafísica dos Costumes] não se deve, como a filosofia especulativa o permite e

por vezes mesmo o acha necessário, tornar os princípios dependentes da natureza

particular da razão humana; mas, porque as leis morais devem valer para todo o ser

racional em geral, é do conceito universal de um ser racional em geral que se devem

deduzir. Desta maneira toda a moral, que para sua aplicação aos homens precisa da

antropologia, será primeiro exposta independentemente desta ciência como pura

filosofia, quer dizer, como metafísica (Gr Ak IV: 411-412. p. 123. Grifos nossos).

A Metafísica dos Costumes, portanto, partiria não da “razão humana” ou das

faculdades práticas do homem enquanto ser racional ou natural, mas antes da “ideia de

uma vontade pura” (Gr Ak IV: 390. p. 105), do “conceito universal de um ser racional

em geral” (Gr Ak IV: 412. p. 123), e somente após ter sido exposta de forma

independente da antropologia poderia, com o auxílio desta, ser aplicada à natureza

humana225.

O que seria, no entanto, esta moral completamente “pura”, “isolada” e

“depurada” que partiria da ideia de uma razão perfeita e seria completamente apartada

da natureza humana? Ora, não haveria aqui um descompasso desconcertante entre essa

exigência estrita de pureza e o projeto mesmo de uma metafísica aplicada à natureza

humana dada “na experiência” verificado mais tarde, em 1797, na mesma Metafísica

dos Costumes?

É possível dissolver esta aparente contradição recorrendo a uma investigação

acerca dos níveis de pureza da filosofia moral kantiana, percebendo neste esboço da

“arquitetônica da razão prática” certas correspondências e analogias entre a Metafísica

dos Costumes e a Metafísica da Natureza, analisada na parte anterior da dissertação.

Através desse expediente, surgirão tanto o estágio propedêutico e puro de

fundamentação do princípio supremo da moral, que corresponde à parte transcendental

da Metafísica dos Costumes e que, na realidade, funciona como uma etapa de

225 Sobre a questão específica da “aplicação” nesta passagem e dos possíveis sentidos envolvidos, cf infra 7.5.

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181

fundamentação da normatividade de proposições morais segundo o “conceito de um ser

racional”, quanto o momento em que as proposições da etapa anterior são aplicadas a

um elemento empírico definidor da situação prática especificamente humana, ou seja, as

“ciência morais metafísicas específicas”, a metafísica do direito e a metafísica da

virtude. A forçosa conclusão, assim, é que, a exemplo do que ocorre em uma Metafísica

da Natureza, também na Metafísica dos Costumes, considerando-se aqui o conjunto de

seus dois momentos constitutivos, não há uma ciência metafísica “absolutamente pura”

<ganz reine>.

Antes, contudo, de analisar em pormenor o que seriam as partes transcendental e

metafísico-específica da Metafísica dos Costumes e seu caráter a priori não puro,

cumpre defender Kant das acusações acerca de uma fiat voluntas rationalis em sua

filosofia moral ao mesmo tempo em que, através disso, se desvela um elemento

constitutivo não apenas para a moral, mas também para o conjunto de sua filosofia

crítica – dito de maneira mais clara, cumpre antes compreender a função desempenhada

pelo conceito de vontade santa, ou perfeita, para a representação da lei moral como um

imperativo para seres racionais finitos, como, por exemplo, o homem.

6.2. Primeiro nível de pureza: A pureza irrestrita e a vontade santa

A parte transcendental, no momento “absolutamente puro” de uma Metafísica

dos Costumes, deve de antemão assumir a ideia de uma vontade pura, ou o conceito

universal de um ser racional em geral. Apenas sob essa pressuposição, que, contra

Wolff e sua escola, afasta o conceito de um querer humano ou mesmo uma vontade de

um ser racional imperfeito, seria possível compreender inicialmente a possibilidade não

do imperativo categórico tout court, mas antes da lei moral entendida como lei da

liberdade – segundo Kant, a lei moral em sua pureza irrestrita, que, descrevendo-o,

imediatamente determina o comportamento de uma vontade plenamente boa e perfeita,

deveria ser diferenciada do imperativo categórico, que expressa a necessidade prática

absoluta sob a forma de uma prescrição moral, um dever-ser <Sollen> para seres

racionais imperfeitos, cujo fundamento de determinação não é tão-somente a lei moral.

Ora, de acordo com Kant, a lei que rege o conceito de moralidade

Page 182: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

182

é de tão extensa significação que tem de valer não só para os homens mas para todos os

seres racionais em geral, não só sob condições contingentes e com exceções, mas sim

absoluta e necessariamente (Gr Ak VI: 408. p. 120).

O homem seria apenas um dentre os possíveis seres racionais, não podendo,

assim, servir de modelo para uma lei moral de tão vasto alcance e ampla validade. Vale

lembrar aqui a curiosa fascinação de Kant por possíveis formas racionais de vida

extraterrestres226 ou, num argumento filosoficamente mais convincente, a sua ideia de

que a constituição específica do aparato cognitivo humano (as duas formas da

sensibilidade, o entendimento discursivo) é logicamente compatível com a existência de

outros aparatos cognitivos igualmente finitos mas distintos do do homem, bem como

com um entendimento intuitivo e não discursivo como o humano.

A amplitude desta ideia, no entanto, é maior e mais radical do que aparenta ser.

Para Kant, a peculiaridade <Eigentümlichkeit> do entendimento humano, a saber, ser

apenas e tão-somente capaz de sintetizar um diverso dado alhures com vistas à

constituição de um objeto, pode ser mais bem compreendida comparando-o com a

representação (logicamente) possível e mesmo exigida de um entendimento divino, que

constituiria seu objeto de forma imediata a autosubsistente:

Na demonstração acima [na dedução transcendental das categorias], eu só não pude

fazer abstração de uma coisa, a saber, que o diverso tem de ser dado para a intuição

antes da síntese do entendimento e independentemente dela; como isso acontece,

porém, permanece aqui indeterminado. Se eu quisesse pensar um entendimento que

intuísse por si mesmo (como, digamos, um entendimento divino que não se

representasse objetos dados, mas tivesse os próprios objetos dados ou produzidos

através da sua representação), então as categorias não teriam absolutamente nenhum

significado em relação a tais conhecimentos. Elas são apenas regras para um

entendimento cuja faculdade consiste inteiramente no pensar, i.e. na ação de trazer à

unidade da apercepção a síntese do diverso, que lhe foi dado de outra parte na intuição

(KrV B 145. p. 144. Grifos nossos).

226 “Enquanto que o Kant maduro estava muito menos disposto do que o jovem Kant a especular sobre os modos de vida e as capacidades intelectuais dos seres racionais não humanos, ao longo de sua carreira ele assumiu como algo óbvio que existem outras formas de vida racional no universo e que os detalhes da moralidade seriam diferentes para eles do que o são para nós”. Cf. Louden, R. Kant’s Impure Ethics. op. Cit. pp. 12-3. Em p. 188, nota 30, Louden menciona diversas passagens em que Kant seriamente “pondera” a existência de seres extraterrestres.

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183

Com efeito, a oposição entre o entendimento discursivo humano e o

entendimento intuitivo divino é suscitada com o objetivo de marcar a diferença

específica das faculdades humanas finitas de conhecimento. Com essa constatação, no

entanto, não são ainda definidas as especificidades empíricas de nossas faculdades, as

características peculiares que definem o aparato cognitivo do homem na medida em que

ele se torna objeto de uma psicologia empírica ou, dito de maneira mais adequada ao

Kant crítico, antropologia pragmática227, ou ainda de uma lógica aplicada228; muito pelo

contrário, trata-se, à falta de termo melhor, do “constrangimento transcendental” a que

está submetido todo e qualquer intelecto finito, isto é, que opera com fontes separadas

de conhecimento (sensibilidade e entendimento), como é o caso do homem: a este nada

resta senão conformar-se às limitações advindas da clivagem entre sensibilidade e

entendimento e das múltiplas atividades sintéticas decorrentes desta não passível de ser

abstraída (“unabstrahierbar”) divisão originária e, nessa medida, necessárias para a

constituição da objetividade do diverso da intuição. A função central das categorias e

das formas puras da sensibilidade na constituição do nosso conhecimento somente é

plenamente compreendida por meio do contraste <Dagegenhaltung – cf. KU Ak V:

408. p. 249> com um suposto entendimento intuitivo divino229. De resto, em virtude

desta limitação que lhe é originariamente constitutiva, ou seja, por não ser capaz de

produzir por si só seu objeto e por depender de um diverso fornecido pela sensibilidade,

uma intuição portanto sensível e nunca intelectual, o homem não é capaz de conhecer

justamente aqueles objetos que mais lhe despertam interesse: os objetos da metafísica e

a noção de totalidade incondicionada pressuposta por eles.

No sinuoso parágrafo 77 da Crítica da Faculdade de Julgar, Kant se demora nas

distinções entre o entendimento humano e o entendimento divino: trata-se, aqui, da

relação entre um intellectus archetypus e um intellectus ectypus, à semelhança da

distinção, realizada na Estética Transcendental da Crítica da Razão Pura, entre um

227 Cf. a primeira parte da Antropologia de um ponto de vista pragmático, ou, de modo geral, das lições kantianas sobre antropologia, a saber, a didática antropológica, cujo objeto, como já dito acima, correspondia, na tradição racionalista clássica, ao tema da psicologia empírica. Cf. Zammito, J. Op. cit. p. 301 e passim. 228 Cf. Excurso em 6.4. infra. 229 “Talvez nosso conhecer <Erkennen> não seja o conhecer puro e simples, mas antes um modo de conhecer. Dado que, contudo, nós não conhecemos <kennt> nenhum outro modo [de conhecer], então a peculiaridade de nosso conhecimento, que é ligado à consciência da intuicidade <Erscheinungshaftigkeit> de nossa existência, somente pode ser obtida através de uma construção contrastiva de um outro conhecer (...). Kant constrói um adicional <ein Mehr>: um entendimento divino intuitivo” Jaspers, K. Kant. Leben, Werk, Wirkung. München: R. Piper & Co. Verlag, 1975. p. 71.

Page 184: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

184

intuitus originarius e um intuitus derivativus230. Segundo Kant, ao passo que o

entendimento discursivo humano, o intellectus ectypus, carece de um particular dado (o

diverso da intuição) de modo a determiná-lo segundo conceitos universais e assim

conhecê-lo, um entendimento intuitivo divino, o intellectus archetypus, segundo a

representação que dele pode ser feita por contraste, ou seja, negativamente, seria um

entendimento que partiria do universal, isto é, de um todo dado de forma imediata, até o

particular, um singular que seria imediatamente conhecido como uma determinada

limitação do todo (KU Ak V: 405-406. pp. 246-248)231. Sem entrarmos nos detalhes da

questão - o que apenas nos atrapalharia neste momento -, notemos apenas como a

representação desse intelecto intuitivo serve, de acordo com Kant, para “marcar”

<anmerken> a peculiaridade do entendimento humano e, assim, a “contingência de sua

constituição” <Zufälligkeit der Beschaffenheit (...) unseres Verstandes>:

Trata-se, por isso, do comportamento do nosso entendimento relativamente à faculdade

de julgar, de modo a procurarmos ai uma certa contingência da sua constituição, para

notar esta particularidade do nosso entendimento na respectiva diferença em relação a

outros possíveis (KU Ak V: 406. p. 247).

Essa peculiaridade do entendimento humano, como o próprio Kant ressalta na

passagem da Crítica da Razão Pura citada acima, é “a única coisa que não pode ser

230 “Também não é necessário que limitemos o modo de intuir no espaço e no tempo à sensibilidade do ser humano; pode ser que todo ser pensante finito tivesse necessariamente de coincidir nisso com o ser humano (por mais que não possamos decidi-lo), mas ela não cessa de ser sensibilidade, em virtude dessa validade universal, justamente porque não é uma intuição originária (intuitus originarius), mas derivada (intuitus derivativus), e portanto não é uma intuição intelectual – a qual parece pertencer, justamente pelas razões aduzidas, a um ser originário <Urwesen>, mas jamais a um ser dependente <abhängigen Wesen> tanto segundo sua existência como segundo sua intuição (que determina a sua existência em relação a objetos dados)” (KrV B 72. pp. 86-87). 231 São conhecidas as ressonâncias dessa ideia kantiana no idealismo alemão. O jovem e o velho Hegel, por exemplo, viam no entendimento intuitivo divino e no juízo reflexionante a ele ligado “uma antecipação do princípio especulativo da identidade de sujeito e objeto, pensamento e ser” (Allison. “Is The Critique of Judgment ‘Post-Critical’? In: Sedgwick, S. (ed). The Reception of Kant’s Critical Philosophy. Fichte, Schelling, and Hegel. Cambridge. Cambridge University Press. 2000. p. 78), ou ainda, o “universo concreto em si mesmo”: “a representação de um entendimento divino, de uma conformidade a fins interna, etc., é o universal pensado ao mesmo tempo como concreto em si mesmo” (§ 55). Hegel, G.W.F. Enzyklopädie der Philosophischen Wissenschaftten. Hamburg: Meiner, 1969. Hegel afirma que Kant não liga “a própria verdade” à conexão que estabelece entre o universal e o particular observada no intelecto divino (§ 56), o que, por sua vez, dá mais uma mostra do “falha fundamental” <Grundmangel> do “sistema dualista” kantiano, a saber, “a inconseqüência de unir o que, um momento antes, se esclareceu como independente <selbständig> e, portanto, como não unificável” (§ 56). Ao contrário de Hegel, preferimos ver no entendimento divino kantiano a representação por contraste da marca não de uma inconseqüência, mas antes da incontornável finitude de um entendimento que sabe que não pode conhecer tudo a que é impelido por sua natureza mesma e que, ao mesmo tempo e por esse mesmo motivo, renuncia, por exemplo, a provas pré-críticas da existência de Deus como a ontológica, que Hegel tenta resgatar (§ 51).

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185

abstraída” na “redução transcendental” do conhecimento humano – trata-se, se assim se

deseja expressar, de um fato antropológico fundamental que define a finitude humana

no campo teórico232.

É nesse sentido amplo de uma necessária representação “por contraste”

definidora da finitude humana que deve ser entendida, na Fundamentação da Metafísica

dos Costumes, a concepção kantiana a respeito da lei moral como válida para “todos os

232 Sobre isso, cf. também. KU Ak V: 401. p. 242: “(...) segundo a natureza da nossa faculdade de conhecimento (humano) ou segundo o conceito que podemos fazer da faculdade de um ser racional finito em geral”. O contexto específico desta passagem e da discussão a respeito do intellectus archetypus e intellectus ectypus é o da pressuposição necessária de um entendimento intuitivo divino de modo a entender a possibilidade de um fim natural e, de modo geral, um sistema teleológico da natureza concebidos segundo uma propósito (causa final) e cuja condição de possibilidade “interna” ultrapassa as capacidades do entendimento discursivo finito humano, para o qual são apenas compreensíveis (de um ponto de vista determinante) as condições causais envolvidas nas leis mecânicas. Nessa discussão a respeito da finitude do entendimento humano, não é possível deixar de mencionar a interpretação realizada por Heidegger em Kant e o problema da metafísica sobre a finitude do homem a partir da constatação das clivagens e dualismos de nosso aparato de conhecimento e a tentativa heideggeriana de encontrar na imaginação transcendental uma “raiz comum” de entendimento e sensibilidade, intuição e conceito (cf. Heidegger, M. Kant und das Problem der Metaphysik. Frankfurt. Vittorio Klostermann. 1991. pp. 20ss e passim). Para Heidegger, a própria interrogação metafísica, seja ela a da metaphysica naturalis, seja a da metafísica científica, reduz-se à compreensão da finitude humana, ou dito de modo mais fiel ao jargão heideggeriano, ao esforço do próprio Dasein em compreender o “fato metafísico original” <metaphysisches Urfaktum>, que consiste em que o “finito de fato se conhece <bekannt> em sua finitude, sem, contudo, ao mesmo tempo compreendê-la <begriffen>” (Idem. p. 233). Disso resulta, segundo Heidegger, que “a questão da essência da metafísica é a questão da unidade das faculdades fundamentais do ‘ânimo’ <Gemüt> humano. Da fundamentação kantiana resulta: a fundação da metafísica é um interrogar-se sobre o homem, isto é, é antropologia” (idem. p. 205. Grifos nossos), em suma, um interrogar-se sobre a finitude a partir da aparentemente insondável raiz comum das faculdades do homem. Segundo Henrich, a ânsia heideggeriana de identificar alguma “raiz comum” do conhecimento humano, que abriria a possibilidade para a própria autocompreensão da finitude do homem, não encontra eco no próprio Kant. O problema da raiz comum corresponde à temática do racionalismo tradicional concernente à vis repraesentativa universi na qual unificam-se todos os poderes e capacidades do ânimo. De acordo com Henrich, para Kant isso não se tratava de um problema propriamente dito, ou melhor, tratava-se de um problema sem solução possível, a exemplo daquele já aludido acerca da possibilidade interna e “raiz comum” das forças de atração e repulsão no conceito de matéria (Henrich, D. “On the unity of subjectivity”. In: The Unity of Reason. Op. cit. pp. 20ss). A despeito das possíveis interpretações a respeito, retemos aqui apenas o significado do fato incontornável da discursividade do entendimento como uma inquestionável marca da finitude do conhecimento humano em comparação ao intelecto divino, refletida, de resto, na mencionada impossibilidade de compreender um fim natural e, de modo geral, uma causa final a partir de leis mecânicas, o que, como mencionado, não ocorre por ocasião do intelecto intuitivo divino. Sem se considerar aqui a base histórica da questão, como quer Henrich, trata-se de um tema constitutivo da filosofia kantiana (cf. Krüger, G. Critique et morale chez Kant. Op. cit. pp. 39ss. Jaspers, K. Kant. Leben, Werk, Wirkung. Op. cit. pp. 71-72). Como será visto na sequência, a questão central da finitude reaparece na moral: estar submetido a um imperativo categórico, ou seja, não possuir uma vontade perfeita, é um fato antropológico fundamental agora com referência à vida prática humana (o qual, ressaltemos, não deve ser confundido com o “mínimo empírico” referente à natureza humana de que trata a Metafísica dos Costumes. Mais sobre isso na sequência). Distinguir esses dois fatos antropológicos fundamentais, o teórico e o prático, é necessário para que se evitem conclusões como a de Heidegger, para quem, em virtude da “raiz comum” da finitude humana na imaginação transcendental, a razão prática estaria “necessariamente fundada” nesta última (Heidegger, M. Op. cit. p. 156). Como bem nota Krüger, “ligar a razão prática pura à imaginação transcendental seria, para Kant, transmudar a moralidade em paixão” (Krüger, G. Op. cit. p. 94), perdendo-se com isso a própria noção de personalidade moral e de autoimputação envolvidas no conceito de autonomia, justamente a fórmula da lei moral “que mostra como devo fazer aquilo que devo fazer” (idem. Op. cit. p. 127).

Page 186: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

186

seres racionais em geral” (Gr. Ak IV: 408. p. 120). Como decorrência disso, o

imperativo categórico, que expressa essa lei moral sob a forma prescritiva, e não

meramente enunciativa como seria de se esperar para uma vontade “santa”, toma em

consideração uma “vontade imperfeita”, própria a uma razão finita (ou seja, imperfeita)

em geral:

Uma vontade perfeitamente boa estaria portanto igualmente submetida a leis objetivas

(do bem <des Guten>), mas não se poderia representar como necessitada <genötigt> a

ações conformes a lei <gesetzmäβigen>, pois que pela sua constituição subjetiva ela só

pode ser determinada pela representação do bem. Por isso, os imperativos não valem

para uma vontade divina nem, em geral, para uma vontade santa; o dever-ser <Sollen>

não está aqui no seu lugar, porque o querer <Wollen> coincide já por si necessariamente

com a lei. Por isso, os imperativos são apenas fórmulas para exprimir a relação entre

leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva deste ou daquele ser

racional, da vontade humana, por exemplo (Gr Ak IV: 414. p. 124. Último grifo

nosso).

Esta vontade perfeita, não submetida às carências <Bedürfnisse> que marcam a

finitude da razão humana, seria, com efeito, uma vontade divina:

Mas donde é que nós tiramos o conceito de Deus como sumo bem? Meramente da ideia

que a razão esboça a priori da perfeição moral e que liga indissoluvelmente

<unzertrennlich> ao conceito de vontade livre (Gr Ak IV: 408-409. p. 121).

Bem entendido, esta vontade divina é um arquétipo da plena santidade de uma

vontade que não está, em virtude de sua perfeição, acima de todas as leis práticas; pelo

contrário, trata-se de uma vontade à qual não aplicam todas as condições restritivas de

que temos consciência em nós mesmos e que, portanto, serve de tipo ideal para a

vontade humana imperfeita e mesmo para a própria lei moral.

Na inteligência sumamente suficiente, o arbítrio é com razão representado como

incapaz de uma máxima que não pudesse ser ao mesmo tempo objetivamente lei, e o

conceito de santidade que por isso lhe convém, na verdade, coloca-a para além

<wegsetzen über> não de todas as leis práticas, mas antes para além de todas as leis

práticas restritivas, por conseguinte, para além do dever e da obrigação. Esta santidade

da vontade é, todavia, uma ideia prática que necessariamente tem de servir como

arquétipo, cuja aproximação infinita é a única que compete a todos os seres racionais

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187

finitos e que a lei moral pura, que por isso mesmo se chama santa, lhes mantém

constante e corretamente ante os olhos (KpV Ak V: 32. pp. 54-55).

Tampouco esta vontade divina é o fundamento da lei moral, ou seja, a validade

desta para homem sendo como que deduzida da infinita perfeição de tal vontade (Gr Ak

IV: 441-443. pp. 145-147. KpV Ak V: 40-41. p. 65- 67). Ora, como Kant por diversas

vezes alerta, isto equivaleria a defender a heteronomia da vontade humana, dependente,

assim, da representação da perfeição de Deus para que se reconheça como sujeita a uma

lei absolutamente vinculante e, por meio dela, obrigada a ações morais. Pelo contrário,

esse conceito de uma vontade sumamente boa é decorrência da validade da lei moral

para todos os seres racionais, dentre eles o homem, finito e imperfeito, e Deus, infinito

e perfeito. Como Kant deixa bem claro no prefácio à Religião nos Limites da Simples

Razão, a religião e Deus surgem inevitavelmente da moral, e não o inverso (Rel Ak VI:

3-6. pp. 11-15).

Em contraste com a vontade absolutamente boa, conceitos como “dever-ser”,

“obrigação”, “dever”, “imperativo”, centrais para a teoria moral kantiana, ganham razão

de ser para uma vontade racional finita, ou seja, aquela que não é natural e

inevitavelmente determinada tão-somente pela representação da lei moral; uma vontade,

portanto, em cujos possíveis fundamentos de determinação estão incluídos outros

móbiles que não a própria lei moral – esta vontade está “necessitada” <genötigt> pela

lei moral em virtude de sua natureza racional e imperfeita.

Se a vontade não é em si plenamente conforme à razão (como acontece realmente entre

os homens), então as ações, que objetivamente são reconhecidas como necessárias, são

subjetivamente contingentes, e a determinação de uma tal vontade, conforme a leis

objetivas, é necessitação <Nötigung>; quer dizer, a relação das leis objetivas para uma

vontade não absolutamente boa representa-se como a determinação da vontade de um

ser racional por princípios da razão, sim, princípios esses porém a que esta vontade,

pela sua natureza, não obedece necessariamente (Gr Ak IV: 413. pp. 123-124).

Dessa maneira, na discussão a respeito da lei moral como uma lei naturalmente

acolhida por uma vontade perfeita, que “só pode ser determinada pela representação do

bem”, reside um primeiro nível de pureza da filosofia moral kantiana. O conceito geral

de ser racional absolutamente perfeito e a ideia de uma vontade santa são constitutivos

na determinação da validade da lei moral entendida na ampla significação de uma lei

Page 188: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

188

para seres racionais em geral. Segundo Kant, não é possível tomar como base

normativa da moral o conceito de uma razão humana, seja em suas especificidades

observadas na experiência, seja na finitude que compartilha com outros possíveis seres

racionais imperfeitos. A própria ênfase kantiana em conceber sua Metafísica dos

Costumes como “moral pura” pressupõe a representação ideal de uma vontade não

submetida às restrições e impedimentos a que o homem está sujeito:

com que direito podemos nós tributar respeito ilimitado, como prescrição universal para

toda a natureza racional, àquilo que só é válido talvez nas condições contingentes da

humanidade <Menschheit>. E como é que as leis da determinação da nossa vontade hão

de ser consideradas como leis da determinação da vontade de um ser racional em geral,

e só como tais consideradas também para a nossa vontade? (Gr Ak IV: 408. p. 120).

O raciocínio de Kant é claro: o respeito ilimitado <unbeschränkte Achtung> e a

validade da lei moral para nós, seres racionais imperfeitos, são uma decorrência de sua

validade para toda e qualquer natureza racional, cujo arquétipo ou tipo ideal é a vontade

santa divina, que, em virtude de seu conceito mesmo, não encontra os impedimentos

subjetivos, quaisquer que sejam, que constrangem a perfeição da vontade humana. A

exigência de validade absoluta e irrestrita, portanto, entrelaça-se com a recusa em

derivar a lei moral a partir de características necessárias ou contingentes da razão

humana e, a fortiori, do ser humano233. Trata-se, em suma, da pureza absoluta,

completa e irrestrita buscada desde o fim dos anos 1760.

A filosofia moral absolutamente pura partiria, assim, do conceito de uma

vontade irrestritamente boa, ou seja, aquela à qual não se aplica sequer o conceito de

dever, ele mesmo sujeito a “limitações e impedimentos subjetivos” (Gr Ak IV: 397. p.

112) e, portanto, cabível apenas a uma teoria moral para naturezas racionais finitas. Para

essa vontade divina, portanto, ao contrário do que ocorre com vontade imperfeita, a lei

moral seria descritiva de seu comportamento, e, assim, sua formulação surgiria de modo

analítico a partir da simples análise de seu conceito.

Segundo Konrad Cramer, apenas na Crítica da Razão Prática Kant teria levado

a cabo esse programa de formulação da lei moral a partir do conceito de uma vontade

absolutamente pura. Nesta obra, ao contrário do que ocorre na Fundamentação, mas

notadamente na primeira seção, Kant busca obter a formulação da lei moral a partir não

233 Cramer, K. “Metaphysik und Erfahrung in Kants Grundlegung der Ethik”. In: Schönrich, G & Kato, Y (orgs). Kant in der Diskussion der Moderne. Frankfurt: Suhrkamp, 1996. pp. 284-5.

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189

apenas do conceito de vontade boa sujeita ao dever234, mas também pela análise do

conceito de uma lei prática (KpV Ak V: 29-30. pp. 48-49), ou seja, nesse caminho

alternativo, a pureza do motivo (a mera forma legislativa da máxima) para a execução

da ação torna-se idêntica à pureza da vontade absolutamente boa, imediatamente sujeita

à lei moral; ademais, o conceito de vontade “pura” assumido é aquele de uma vontade

absolutamente boa (KpV Ak V: 62-63. pp. 99-100), ou seja, uma vontade em relação à

qual não há algo como “dever”. Sem que haja o recurso a este, como é o caso da

Fundamentação, na Crítica da Razão Prática há uma exposição do conceito de vontade

absolutamente boa e de lei moral que parte tão somente do conceito de uma lei da

liberdade como a regra prática que toma a forma legislativa da máxima como único

fundamento possível de determinação da vontade; esta exposição da lei fundamental da

razão prática pura é feita através de um argumento puramente analítico, que parte do

conceito de uma lei prática objetivamente válida para, assim, compreender seu

funcionamento. Este torna explícito que

a vontade determinada através de uma lei prática objetivamente válida é aquela cuja

máxima pode valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal para

todo caso possível de vontade [perfeita ou imperfeita – D.K]. A identificação da lei

fundamental da razão prática com a lei moral conduz a um enunciado adicional, a saber,

que a vontade absolutamente boa é exatamente aquela cuja máxima satisfaz essa

condição235

Ou seja, essa elaboração da moral para uma vontade divina exige apenas o

conceito de uma lei prática como princípio de uma legislação universal para seres

racionais livres em geral, sujeitos ou não a impedimentos advindos de sua eventual

finitude, como, por exemplo, aqueles expressos pelos conceitos de “dever”,

“obrigação”, “necessitação”, etc. Em suma, neste primeiro nível de pureza, a lei moral

não é prescritiva, mas antes descritiva da “constituição de uma vontade pura” ou do

conceito mesmo de bom moral. Em outras palavras, a formulação da lei moral neste

momento não deve assumir a forma imperativa, mas antes declarativa:

234 Cf. Gr Ak IV: 397. p. 112: “Para desenvolver (…) o conceito de uma boa vontade altamente estimável <hochzuschätzend> em si mesmo (...) vamos adotar o conceito de dever, que contém em si o de boa vontade, embora sob certas limitações e obstáculos subjetivos”. Cramer condena justamente essa subordinação do conceito de boa vontade ao de dever por meio da qual não é possível entendê-lo em toda a pureza aqui exigida. 235 Cramer, K. “Metaphysik und Erfahrung in Kants Grundlegung der Ethik”. Op. cit. p. 308.

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190

vontade pura é exatamente aquela vontade cuja máxima ao mesmo tempo pode sempre

valer como princípio de uma legislação universal236

Compreende-se, assim, a necessidade sistemática deste primeiro nível de pureza

no interior da arquitetônica da razão prática. Ora, apenas é possível compreender o

sentido mesmo de uma obrigação implicado no conceito de dever e de necessitação à

lei moral se, antes, se compreende a validade universal da lei moral que, enquanto tal,

não é uma prescrição, mas antes a descrição pura e simples da normatividade mesma de

uma ação moral qualquer. O valor da lei moral como uma prescrição, ou seja, como um

imperativo categórico, surge não da própria lei, mas antes da “consideração da

determinidade natural <natürlichen Bestimmtheit> de um sujeito de vontade, portanto,

de uma vontade cujo fundamento de determinação pode ser, em virtude desta mesma

determinidade, um outro que não o discernimento <Einsicht> da aptidão de sua máxima

para uma legislação universal”237.

O caráter imperativo da lei moral para o homem surge, assim, como decorrência

de um fato antropológico fundamental; que a forma legislativa de nossas máximas não

seja única e exclusivamente o fundamento de determinação de nossa vontade é

conseqüência de nossa vontade ser imperfeita e finita. Através da formulação do

imperativo categórico obtém-se a “experiência moral fundamental” do homem como ser

racional e natural238. A origem ou fonte deste fato antropológico fundamental será

discutida na subseção seguinte.

Antes de passar à discussão sobre o próximo nível de pureza da filosofia moral

kantiana, no qual devem ser levadas em conta as conseqüências deste fato antropológico

fundamental do âmbito prático, notemos uma curiosa similitude que surge das análises

do intelecto divino e da vontade santa. É justamente através do “contraste” com essas

representações ideais que se torna discernível ao homem a peculiaridade e a limitação

originárias (“a única coisa que não pode ser abstraída”) de sua situação prática e teórica

e que, de modo significativo, ensejam a “tarefa universal <allgemeine Aufgabe> da

razão pura: como são possíveis os juízos sintéticos a priori” (KrV B 19. p. 49). Ora, a

consideração da finitude exige que na moral seja respondida a pergunta crítica

fundamental sobre o caráter sintético a priori de um imperativo categórico para um

236 Idem. p. 311. Cf também Beck, L.W. A commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Op. cit. p. 122. 237 Cramer, K. “Metaphysik und Erfahrung in Kants Grundlegung der Ethik”. Op. cit. p. 314 238 Krüger, G. Critique et morale chez Kant. Op. cit. p. 153. cf. Jaspers, K. Kant. Leben, Werk, Wirkung. Op. cit. pp. 140-142.

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191

sujeito prático tanto racional quanto natural, assim como no âmbito teórico a questão

primeira e fundamental do conhecimento é aquela sobre como é possível uma ligação

sintética a priori entre o diverso da intuição e os conceitos puros do entendimento para

um sujeito do conhecimento que não produz por si só seu objeto. Tanto o ato do

intelecto divino por ocasião do conhecimento imediato do singular, quanto a

determinação da vontade santa por ocasião do acolhimento imediato da lei moral e da

representação do bem, são denominados por Kant como “analíticos”. Se, para o

intelecto intuitivo, o objeto é constituído de forma imediata através da limitação de um

todo previamente dado, também para a vontade divina o bom, o objeto da razão prática,

é-lhe imediatamente determinante. Assim como a peculiaridade e a contingência do

conhecimento humano (sensibilidade, discursividade) são primeiramente definidas

através do contraste com um possível intelecto divino, também a peculiaridade inicial

da moral humana (as limitações implicadas nos conceitos de obrigação, dever,

necessitação, imperativo, que desvelam as carências advindas da contingência de nossa

situação de seres racionais finitos) é determinada por meio do contraste com uma

vontade perfeita e divina. Sem estas limitações, que não podem ser abstraídas, sequer

faria sentido a pergunta inicial da Crítica. No caso específico do imperativo categórico,

sem o dado da finitude, não seria possível entender seu caráter “sintético-prático a

priori” (Gr Ak IV: 420. p. 129), que marca a dificuldade da pergunta pela sua

possibilidade:

Eu ligo à vontade, sem condição pressuposta de qualquer inclinação, o ato a priori, e

portanto necessário (ainda que só objetivamente, quer dizer, sob a ideia de uma razão

que teria pleno poder sobre todos os móbiles subjetivos). Isto é pois uma proposição

prática que não deriva analiticamente o querer <Wollen> de uma ação de um outro

querer já pressuposto (pois nós não possuímos uma vontade tão perfeita), mas que o

liga imediatamente com o conceito de uma vontade de um ser racional, como qualquer

coisa que nele não está contida (Gr Ak IV: 420n. p. 129n).

O “inicial” utilizado para definir essa limitação, contudo, serve para lembrar-nos

de que as peculiaridades práticas humanas não se encerram nessa constatação

“metafisicamente originária” de que somos finitos; na Metafísica dos Costumes, que é o

que aqui nos interessa, ainda deve ser levado em conta um elemento humano adicional,

que funda não a finitude do homem, compartilhada com outros possíveis seres

imperfeitos, mas antes o caráter mesmo de sua, digamos, Menschheit fundamental, e

Page 192: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

192

que justamente o distingue de outros seres racionais não divinos. Trata-se, decerto, do

mínimo empírico que distingue a parte transcendental, na qual conta tão somente o fato

antropológico fundamental, das partes metafísicas específicas, que consideram a

“natureza humana” determinável de modo a priori.

Temos, pois, de buscar na sequência um outro momento “puro” da Metafísica

dos Costumes que corresponda à parte transcendental da Metafísica da Natureza, ou

seja, que exponha e explicite o análogo prático às “condições de possibilidade da

objetividade” de que trata a “ontologia” teórica já circunscrita às limitações advindas da

peculiaridade do intelecto humano definida através do contraste com um intelecto

divino, para o qual “formas puras da sensibilidade”, “categorias”, “princípios”, etc., não

fazem o menor sentido. Em outras palavras, a parte transcendental da Metafísica dos

Costumes deve ter como objetivo estipular as condições iniciais da normatividade de

enunciados morais não para o homem em sua Menschlichkeit como sujeito ético e

jurídico, mas sim para seres racionais finitos, como por exemplo o homem.

6.3. Segundo nível de pureza: Moral para seres racionais finitos. O

princípio da autonomia e o reino dos fins.

6.3.1. Fato antropológico fundamental. A busca pela felicidade

A parte transcendental da Metafísica dos Costumes, de acordo com os paralelos

traçados entre esta disciplina e uma Metafísica da Natureza, deve ser composta por

aqueles princípios e conceitos que tornam inicialmente possível algo como uma

“objetividade” moral para uma vontade finita. Aqui entram em consideração não dados

psicológicos sobre como nossas faculdades práticas são determinadas, mas antes o fato

antropológico fundamental da finitude da vontade humana, ou seja, em virtude de não

sermos naturalmente determinados tão-somente pela lei moral, o princípio supremo da

moralidade carecer de uma formulação prescritiva categórica que pressupõe conceitos

centrais para Kant, tais como “dever”, “obrigação” e “necessitação”. Em uma palavra, o

fato bruto a respeito da dupla natureza do homem como ser natural e ser racional.

Page 193: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

193

Vejamos com mais detalhes os desdobramentos deste fato antropológico fundamental

para a teoria moral kantiana239.

Como Otfried Höffe ressalta acertadamente, este fato antropológico fundamental

não representa uma inadvertida introdução de elementos empíricos no momento

transcendental de fundamentação da normatividade de enunciados práticos, mas antes

apenas serve para tornar claro em que consiste o caráter de “dever-ser” da moral para o

homem: este fato antropológico fundamental <anthropologischer Grundfaktum>, a

saber, que a vontade humana está submetida ao dever e, assim, ao imperativo

categórico, apenas torna patente que

a boa vontade, sujeita a estímulos <Antriebe> concorrentes das inclinações brutas

<naturwüchsigen>, age ‘sob certas limitações e impedimento subjetivos’ (Gr Ak IV:

397; p. 112). Não é esse o caso de uma inteligência pura como a de Deus (KpV Ak V:

72 e 82. pp 115-6 e 132), mas antes meramente de seres naturais finitos (MS Ak VI:

379. p. 282), como o homem. No momento em que a Fundamentação opera com o

conceito de dever, ela persegue o interesse de conceitualizar o homem como ser moral

e, para esse fim, parte do fato antropológico fundamental de que o desejo <Begehren>

do homem não é necessariamente bom (...). [Esse fato antropológico fundamental] não

se introduz no ‘fundamento da obrigação’, mas antes é meramente responsável pelo

modo da moral peculiar do homem em seu caráter de dever-ser <Sollenscharakter>240.

Já para Konrad Cramer, a sujeição inevitável da vontade humana aos

constrangimentos envolvidos nos conceitos de dever e obrigação pode ser definida

como um “fato da natureza”, em analogia ao “fato da razão” que apresenta a

consciência da lei incondicionada do dever. Ora, que haja seres racionais imperfeitos

como nós decorre de um conhecimento <Kenntnis> advindo da experiência de nossa

própria vontade e das limitações a que ela está submetida:

239 Ressaltemos: neste momento, trata-se da consideração de um fato antropológico fundamental, e não dos detalhes a seu respeito – ou seja, considera-se aqui apenas que o homem não é determinado tão-somente pela razão prática pura. O aprofundamento da investigação a respeito das faculdades práticas humanas deve ficar a cargo da parte metafísico-específica, isto é, do momento em que a “natureza humana” é definida em seus contornos gerais. Há, decerto, a dificuldade de que, inevitavelmente, como o próprio Kant afirma (KpV Ak V: 9. p. 15), alguns elementos da psicologia empírica são “pressupostos” na parte transcendental, mesmo que sob a forma de um dado bruto não especificado. Em todo caso, deixamos uma análise mais detida da faculdade de desejar do homem para o próximo capítulo, mais especificamente na parte 7.2. infra, embora alguns dados a respeito das faculdades práticas humanas tenham que ser suscitados na discussão que empreenderemos a partir de agora. 240 Hóffe, O. Königliche Völker. Zu Kants Kosmopolitischer Rechts- und Frieden Theorie. Frankfurt: Suhrkamp, 2001. p. 108.

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194

que a razão surja na forma de uma tal prescrição [imperativo categórico] em relação à

nossa vontade não é algo que seja devido tão-somente à razão prática pura. Esse

discernimento <Einsicht> repousa no conhecimento de um fato <Faktum>, e este fato

não é um fato da razão, mas antes um fato da natureza – a saber, o fato de que nós todos

possuímos uma vontade que também pode ser determinada através de nossas

características físicas e sensíveis, e que não é determinada através da lei moral por

ocasião da realização desta possibilidade241.

Este fato da natureza, por sua vez, seria uma decorrência de um outro factum

mais originário: o fato antropológico fundamental <antropologischer

Grundsachverhalt> de nossa natureza sensível, a saber, que sentimos prazer pela

realidade de um objeto, o que, por sua vez, determina o estatuto empírico dos princípios

práticos materiais, que visam à produção do objeto desejado como o fim da ação:

que todo fundamento material de determinação da vontade seja definido através do

prazer esperado pela existência de um objeto que ainda não existe, ou seja, que o agrado

<Annehmlichkeit> do estado <Befinden> próprio sob a condição da existência desse

objeto, é algo que Kant reivindica como um fato antropológico fundamental que ele, na

verdade, em lugar algum fundamentou242

241 Cramer, K. “Metaphysik und Erfahrung in Kants Grundlegung der Ethik”. Op. cit. 315. 242 Idem. p. 298. Segundo Konrad Cramer, reproduz-se na filosofia moral kantiana a mesma inconsistência presente na filosofia teórica, a saber, a intromissão inadvertida de elementos empíricos mesmo no momento dito “puro”, o transcendental, fazendo com que mesmo este não possa ser adequadamente caracterizado como “puro” ou “absolutamente puro” <ganz reine> (cf. Cramer, K. Nicht-reine Synsthetische Urteile a priori. Ein Problem der Transzendentalphilosophie Immanuel Kants. Op. cit.). Para Cramer, a suposição mesma da “finitude” de uma vontade racional que enseja a forma prescritiva do imperativo categórico e sua submissão ao dever em geral implica a admissão de um mínimo empírico necessário para a constituição de uma vontade “imperfeita”, ou seja, sujeita tanto a motivos sensíveis e, portanto, “impuros”, quanto a motivos morais e, portanto, “puros”. O conceito de dever, ao qual está subordinado o conceito de uma vontade imperfeita, escreve Cramer, “somente pode ser compreendido através do recurso à representação de um impedimento (...) ou de um estímulo, que não devem ser tomados por motivo. Pois somente sob essa condição entende-se que uma vontade não repouse, desde o início, no eticamente bom, mas antes possa ser necessitada <genötigt> a ele”. Cramer, K. “Kants Bestimmung des Verhältnisses von Transzendentalphilosophie und Moralphilosophie in den Einleitungen in die ‘Kritik der reinen Vernunft’”. In: Fulda, H. F. e Stolzenberg, J. (orgs). Architektonik und System in der Philosophie Kants. Hamburg. Felix Meiner. 2001. p. 279. O conceito de uma vontade imperfeita é o conceito de uma vontade sujeita ao dever, e, assim, sujeita a fatores empíricos (inclinações, estímulos, paixões) que maculam seu caráter “puro” de capacidade de agir determinada unicamente pela razão. Trata-se, assim, de um “conceito a priori não puro”, cujo estatuto seria análogo ao do princípio de causalidade: “Quando desejamos tornar compreensível o conteúdo lógico do conceito de mudança <Veränderung>, precisamos recorrer àquele mínimo na diferença de intuições empíricas ou sensações que é condição necessária para constatar no que permanece <Beharrliche> a seqüência temporal de determinações contraditoriamente opostas. A ligação pensada nele é a de uma síntese de dados empíricos. Contudo, isso não faz do conceito de mudança um conceptus communis empiricus. Ele deveria ser caracterizado como um conceito a priori não puro. Nisso ele concorda com o conceito de dever. Pois este não é um conceito racional puro. Este conceito apresenta a lei fundamental da razão prática pura para um ser natural racional, de cuja natureza está excluído o fato de ser uma vontade santa. De modo correspondente, o princípio da causalidade precisa ser designado como um juízo sintético a priori não

Page 195: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

195

Na realidade, Kant não precisava ter “fundamentado” isto: trata-se de uma

decorrência da dupla natureza do homem, sensível e racional, que o expõe à

inevitabilidade de o desejo por algum objeto constituir um princípio possível ou mesmo

inevitável do agir, ou seja, o prazer pela existência de um objeto que procuramos

produzir por meio de nossas ações conduz forçosamente a que princípios materiais

sejam acolhidos pela nossa vontade, fazendo com que a lei moral, que, como será

discutido, exige que o componente meramente formal das máximas seja erigido a

fundamento de determinação da vontade, apareça a nós sob a forma de uma prescrição

categórica, um dever-ser incondicional que estipula algo a que não estamos

naturalmente dispostos. Há, aqui, a consideração da constituição <Beschaffenheit> tanto

racional quanto natural do ser racional imperfeito: diferentemente da vontade divina, ele

está sujeito a carências e necessidades que decorrem de sua constituição natural e não

racional; nesse momento, no entanto, não se leva em conta os detalhes ou as

particularidades desta sua natureza sensível, apenas se considera a inevitabilidade da

mesma e as decorrências disto para o modo como a lei moral surge inicialmente ao

homem.

Como Kant escreve, o pendor “natural” do ser racional finito que o leva a sentir

prazer pela existência de objetos e o impele a ações que buscam produzi-los, é

inicialmente sentido sob a forma de uma inclinação <Neigung> que o torna dependente

de “sensações”, e, na sequência, de um interesse que, por sua vez, o vincula aos

princípios racionais sob duas maneiras: seja através de um interesse prático na própria

racionalidade da ação, seja um interesse patológico, que se liga aos objetos a que se

dirigem as inclinações que são satisfeitas através de tais princípios racionais:

puro. O mesmo vale para o imperativo categórico quando este é considerado, como Kant ocasionalmente o faz, como um juízo. O imperativo categórico apresenta a um ser natural racional a lei fundamental da razão prática pura sob uma forma prescritiva, pois esse ser é um ser natural e sua natureza não pode ser identificada com a razão” (Cramer, K. “Kants Bestimmung des Verhältnisses von Transzendentalphilosophie und Moralphilosophie”. Op Cit. p. 285). Ao contrário de Cramer, contudo, preferimos designar o momento transcendental da Metafísica dos Costumes como “puro”, ao menos no sentido de que não são pressupostos elementos empíricos adicionais àqueles necessários para constituir a limitação ou finitude da vontade humana. Esta última é obtida pelo simples “contraste” com uma vontade divina, e não, na realidade, por meio do acolhimento “positivo” de dados físicos sobre o homem e suas inclinações. Reservamos, assim, a designação a priori não puro apenas para o segundo momento da Metafísica dos Costumes: as doutrinas do direito e da virtude. A rigor, a questão gira em torno de saber o que significa “puro” para Kant, e ele mesmo é ambíguo aqui. Cf Gebrauch. Ak VIII: 184, onde Kant afirma utilizar “puro” em dois sentidos na Crítica da Razão Pura. Com isso, sentimo-nos autorizados a empregar “puro” para designar tanto o “ganz reine” quanto o “nicht ganz reine”, aos quais aludimos no 5º capítulo.

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196

Chama-se inclinação a dependência em que a faculdade de desejar

<Begehrungsvermögen> está em face das sensações; a inclinação prova sempre

portanto uma carência <Bedürfnis>. Chama-se interesse a dependência em que uma

vontade contigentemente determinável se encontra em face dos princípios da razão.

Este interesse só tem pois lugar numa vontade dependente que não é por si mesma em

todo o tempo conforme à razão; na vontade divina não se pode conceber nenhum

interesse. Mas a vontade humana pode também tomar interesse por qualquer coisa sem

por isso agir por interesse. O primeiro significa ao interesse prático da ação; o segundo,

o interesse patológico no objeto (...). No primeiro caso interessa-me a ação, no segundo,

o objeto da ação (enquanto ele me é agradável) (Gr Ak IV: 413n. p. 124n. Grifos

nossos).

Em virtude de sua dupla natureza ou constituição, apenas em um ser racional

finito ambos, interesse e inclinação, estão presentes243. A inclinação pela existência do

objeto do prazer é aquilo que “prova” a carência que marca a imperfeição da vontade

humana, e atesta a dependência desta em relação ao empírico, à sensação244; caso esta

inclinação esteja ligada a princípios práticos, ou seja, caso o agente forme princípios

racionais (materiais) que têm por objetivo satisfazer estas inclinações que marcam sua

constituição natural, há um interesse patológico nas ações que deles surgem. Em última

instância, pois, é este fato antropológico fundamental que funda a busca do homem pela

felicidade245, na qual, assim, estaria fundado em última instância o princípio de

heteronomia da vontade, ou seja, a localização do princípio da moral não no próprio

agente, mas antes nos objetos desejados por ele, em uma palavra, em princípios

materiais em lugar de princípios formais. Por meio disso, podemos começar a

compreender de que maneira a autonomia da vontade torna-se o princípio supremo da

moral e base normativa em que se funda a parte transcendental da Metafísica dos

243 Infelimente, limitaremos a esta simples constatação a discussão acerca do “interesse” ligado seja ao bom moral, seja ao agradável. Como dissemos na introdução, não nos propomos uma análise mais detida acerca do principium executionis da moral kantiana, onde entram as considerações também sobre o interesse prático na ação autônomia. Cf, Rohden, V. Interesse da Razão e Liberdade. São Paulo: Editora Ática, 1981. pp. 47-91 e passim. 244 Allison afirma haver um “sentido amplo” de inclinação, que compreende tudo aquilo que se refere a um estímulo para a ação que se origina de nossa natureza sensível em oposição à racional. Allison, H. Kant’s Theory of Freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.p. 108. Em suma, seria isso que levaria a um “interesse patológico”, a princípio incompreensível. 245 Cf. Gr Ak IV: 441-446. pp. 145-148; KpV Ak V: 33-41. pp. 55-67. Na verdade, isto se torna mais claro na Crítica da Razão Prática, onde os “princípios racionais” da Fundamentação, os conceitos ontológico e teológico de perfeição, são contados como “princípios materiais objetivos”, ou seja, que expressam a “dependência da lei natural de seguir um impulso ou uma inclinação qualquer”, dando origem a “leis patológicas”, e que, em última instância, estão baseados na busca pela felicidade (KpV Ak V: 33. p. 56). Veremos isso com mais detalhes na sequência.

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197

Costumes – ao afirmar que o princípio da autonomia deve ser o princípio supremo da

moral, Kant está insistindo que as particularidades empíricas, seja do agente, seja das

circunstâncias em que sua ação toma lugar, não devem servir como base da moral.

Neste segundo nível de pureza, deve ser levada em conta, pois, a generalidade

deste fato antropológico fundamental: em razão de o homem inevitavelmente desejar a

existência de determinados objetos que lhe causam prazer e agrado, sua vontade não é

imediatamente determinada pela lei moral, mas antes também acolhe elementos

empíricos em suas máximas que, tomados como o fim a ser produzido pela ação,

determinam-na. Em suma, para seres racionais finitos, em virtude desta intromissão

empírica advinda de sua constituição imperfeita, a máxima, o princípio subjetivo do

querer <Wollen>, não coincide imediata e naturalmente com o princípio objetivo do

querer, válido para todos os seres racionais, a lei moral (Gr Ak IV: 401. p. 115), de

modo que esta se impõe à vontade imperfeita como um imperativo categórico, ela

“necessita” <nötigt> a vontade imperfeita (Gr Ak IV: 413. p. 124), que, assim, está

“dependente” de tal lei, ou ainda, esta dependência se lhe apresenta como “obrigação”

<Verbindlichkeit>, e as ações decorrentes desta, por possuírem uma necessidade

objetiva que decorre da lei, chamam-se “deveres” <Pflichten> (Gr Ak IV: 439. p. 144).

Cumpre a Kant, assim, formular a maneira pela qual o princípio supremo da moral se

apresenta a este ser racional imperfeito como princípio de autonomia em meio às

influências que os objetos desejados exercem sobre ele.

O argumento de Kant na primeira seção da Fundamentação, em que apela ao

“senso moral comum” ou à “razão humana comum” <gemeine Menschenvernunft> (Gr

Ak IV: 405. p. 118), parte da identificação do valor da vontade absolutamente boa não

nos objetos a que ela visa com suas ações, mas antes em sua “intenção” <Gesinnung>,

em outras palavras, a constatação de que o valor moral de uma ação reside não em seus

efeitos, ou seja, não no “propósito” <Absicht> ou objeto que se espera produzir por

meio dela, mas antes no “princípio da vontade” ou “princípio do querer” <Prinzip des

Wollens> (Gr Ak IV: 400. p. 114), o qual, abstraído de todo o objeto ou fim visado,

caracteriza-se como um simples princípio formal do querer, em oposição a um princípio

material do mesmo. Em suma, uma determinada ação é tida por moralmente boa não

em virtude dos objetos que causam prazer ao indivíduo ou que lhe despertam agrado, e

tampouco pelo sucesso ou insucesso em tal intento, mas antes reside no

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198

princípio da vontade independente dos fins que possam ser realizados pela ação; pois

que a vontade está colocada entre o seu princípio a priori, que é formal, e o seu móbil a

posteriori, que é material, por assim dizer, numa encruzilhada; e, uma vez que ela tem

de ser determinada por qualquer coisa, terá de ser determinada pelo princípio formal do

querer em geral <Wollen überhaupt> quando a ação seja praticada por dever, pois lhe

foi tirado todo o princípio material (Gr Ak IV: 400. p. 114).

Ora, todo homem reconhece que determinada ação detém valor moral não pelos

objetivos que por meio dela são atingidos: um agente que julga uma certa ação pode

avaliar que houve ali prudência, engenhosidade, astúcia na obtenção do objetivo

proposto; contudo, determinar se tal ação foi boa, ou melhor, moralmente boa,

independe dos objetivos desejados ou obtidos: entra em consideração aqui tão-somente

a intenção do agente, e não seu propósito ao agir.

[O] essencialmente bom <Wesentlich-Gut> na ação reside na intenção <Gesinnung>,

seja qual for o resultado (Gr Ak IV: 416. p. 126).

Segundo Kant, da abstração dos “propósitos”, em uma palavra, da matéria da

volição, resta tão-somente a forma de uma lei, ou ainda, a “conformidade a uma lei

universal das ações em geral que [deve] servir de único princípio à vontade, isto é: devo

proceder sempre de maneira que eu possa querer sempre que a minha máxima se torne

uma lei universal” (Gr Ak IV: 402. p. 115). Trata-se da formulação inicial do

imperativo categórico. Para passarmos desta primeira aparição do princípio supremo da

moral à sua formulação como autonomia da vontade, será necessário, contudo,

analisarmos mais detidamente a segunda seção da Fundamentação, obra à qual nos

ateremos.

Neste momento é proposta uma análise do “juízo filosófico” a respeito da

moralidade, ou seja, é invertido o modo expositivo realizado na primeira seção,

iniciando-se uma exposição sintética da “faculdade prática da razão” (Gr Ak IV: 412. p.

123). De modo a marcar a peculiaridade do imperativo categórico, Kant o opõe a outra

modalidade de imperativo: os imperativos hipotéticos (Gr Ak IV: 414. p. 125). Estes

apresentariam a necessidade prática (e não moral) de determinada ação com vistas a um

fim dado, o qual, por sua vez, pode ser de duas classes: um fim possível qualquer,

escolhido arbitrariamente pelo agente, e um fim “efetivo” <wirklich>, que se apresenta

de modo inevitável a toda e qualquer vontade imperfeita: a felicidade.

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199

Há no entanto um fim que pode ser pressuposto como efetivo <wirklich> em todos os

seres racionais (na medida em que lhes convém um imperativo, isto é, como seres

dependentes), e, portanto, como um propósito que não só eles podem ter, mas de que se

deve pressupor que o têm na generalidade de uma necessidade natural

<Naturnotwendigkeit>. Esse propósito <Absicht> é a felicidade (Gr Ak IV: 415. p. 125-

126. Grifos nossos).

Sem nos determos muito na primeira classe de imperativos hipotéticos, os de

habilidade <Geschicklichkeit>, examinemos a segunda, os imperativos de prudência

<Klugheit>. Estes fornecem uma prescrição dos meios possíveis para que o fim efetivo

pressuposto seja atingido pelo agente, ou seja, eles expressam a necessidade prática

daquilo exigido para que o agente obtenha a sua felicidade. Não é difícil notar que tal

classe de imperativo, a exemplo dos imperativos de habilidade, pressupõe um elemento

empírico como sua condição de possibilidade246. Ora, para ser formado, o conceito de

felicidade depende de circunstâncias e considerações empíricas a respeito do que agrada

o agente, do que convém à satisfação do seu “maior bem-estar <Wohlsein> próprio” (Gr

Ak IV: 416. p. 126). Kant ressalta o caráter tanto privado quanto indeterminado da

felicidade: aquilo que constitui o conceito de felicidade para um agente racional pode

muito bem ser rejeitado como estranho ou mesmo ruim por um outro; da mesma

maneira, em um mesmo homem, o que lhe apraz num momento pode, no momento

seguinte, ser-lhe indiferente ou mesmo indesejável.

Mas infelizmente o conceito de felicidade é tão indeterminado que, se bem que todo o

homem a deseje alcançar, ele nunca pode dizer ao certo e de acordo consigo mesmo o

que é que propriamente deseja e quer. A causa disto é que todos os elementos que

pertencem ao conceito de felicidade são na sua totalidade empíricos, quer dizer, têm

que ser retirados da experiência, e que portanto para a ideia de felicidade é necessário

um todo absoluto, um máximo de bem-estar, no meu estado presente e em todo o futuro

(Gr Ak IV: 418. p. 127. Grifo nosso).

Dessa maneira, para se expressar de modo mais adequado, o “fim efetivo” da

felicidade não enseja nenhuma lei prática, ou ainda, um imperativo no sentido rigoroso

do termo, mas apenas “conselhos” ou “recomendações”, de caráter transitório e relativo

apenas ao sujeito ao qual são endereçados:

246 Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. pp. 77-79.

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200

os imperativos de prudência, para falar com precisão, não podem ordenar, quer dizer,

representar as ações de maneira objetiva como praticamente necessárias; que eles se

devem considerar mais como conselhos (consilia) do que como mandamentos

(praecepta) da razão (...) [ou seja,] nenhum imperativo é possível que possa ordenar, no

sentido rigoroso da palavra, que se faça aquilo que nos torna felizes, pois que a

felicidade não é um ideal da razão, mas da imaginação, que assenta somente em

princípios empíricos dos quais é vão esperar que determinem uma conduta necessária

para alcançar a totalidade de uma série de conseqüências de fato infinita (Gr Ak IV:

418-419. p. 128. Grifos nossos).

Com efeito, o caráter incerto e subjetivo da felicidade é devido à base sobre a

qual repousa: a experiência. Ora, não é possível determinar com a exatidão exigida por

um princípio prático absolutamente vinculante aquilo que depende das circunstâncias

empíricas e das capacidades físicas das faculdades práticas do sujeito247.

A felicidade, assim, apenas pode dar ensejo a regras ou conselhos práticos que se

apóiam no esperado e desejado agrado ou bem-estar que determinados objetos podem

causar ao sujeito que visa produzi-los como fins das suas ações, sem que, contudo, ele

possa estar seguro de que esta constelação de objetos, circunstâncias empíricas e

faculdades práticas possa surtir o mesmo efeito esperado em todas as situações que se

lhe apresentam. Ora, de que maneira apoiar neste conceito cambiante de felicidade um

princípio moral que deve ser reconhecido por todo ser racional como um princípio

objetivo? Com efeito, os princípios subjetivos que acolhem por fim a felicidade não

podem, por repousar em bases empíricas e dependentes da natureza subjetiva do agente,

fornecer uma lei moral válida para todos os seres racionais enquanto tais – em outras

palavras, não se trata de um princípio puro, que independe de considerações

psicológicas, antropológicas ou físicas a respeito do homem e suas faculdades práticas

em meio às situações práticas em que sua ação ocorre.

Desse modo, o caminho de Kant para encontrar um princípio moral válido para

todo ser racional deve necessariamente abstrair da consideração do objeto desejado, ou

ainda, do efeito esperado de sua ação. Nesse momento, o argumento da primeira seção

da Fundamentação, que admitia tão somente o “senso moral comum”, encontra-se com

247 “Satisfazer o (...) preceito empiricamente condicionado da felicidade raramente [está em poder de cada um], e nem de longe é possível a qualquer um, sequer com vistas a um único objetivo. A causa disso é que (...) se depende das forças e da faculdade física de tornar um objeto desejado” (KpV V: 37. p. 61).

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201

o da segunda seção, ou seja, com o “juízo filosófico” sobre a moralidade: trata-se, aqui,

de formular um princípio que comanda ações cujo valor moral reside tão somente na

“intenção” daquele que as realiza, e não no “propósito” das mesmas.

É, decerto, no imperativo categórico que deve ser buscada a necessidade exigida:

Só o imperativo categórico tem o caráter de uma lei prática (...) porque o mandamento

incondicional não deixa à vontade arbitrariedade <Belieben> em relação ao contrário do

que ordena, só ele tendo, portanto, em si aquela necessidade que exigimos na lei (Gr Ak

420. p. 129).

Apenas em um imperativo categórico abstraem-se dos efeitos aguardados da

ação, ou seja, do objeto do desejo e, com isso, do possível agrado esperado pela

existência do objeto a ser produzido. Como já mencionado, da abstração do objeto ou

propósito da ação resta apenas a forma da máxima, ou seja, a conformidade a leis que já

expressava a necessidade prática hipotética dos imperativos que visavam um fim

possível ou efetivo. Desse modo, o imperativo categórico

contém, além da lei, a necessidade da máxima de ser conforme a esta lei, e não

contendo a lei nenhuma condição à qual seria limitada, então nada mais resta então

senão a universalidade de uma lei em geral à qual a máxima tem de ser conforme,

conformidade essa que apenas o imperativo nos representa propriamente como

necessária (Gr Ak IV: 420-421. p. 129. Grifos nossos).

Ora, ao desconsiderar-se o propósito da ação suprime-se a “condição” através da

qual era limitada a “lei”248 que estipulava os meios para atingi-lo. Esta condição eram

248 Aqui Kant entende por “lei” o sentido bem lato de um princípio que estipula a regularidade de certos eventos, analogamente, pois, às leis da natureza já mencionadas no 5º capítulo: “tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática” (Gr Ak IV: 412. p. 123). Ora, mesmo nos imperativos hipotéticos havia o simulacro de uma lei: um princípio prático que estipulava a regularidade exigida por um agente caso ele quisesse produzir o fim pressuposto; se, por exemplo, a riqueza fosse minha máxima, meu princípio subjetivo, um imperativo hipotético deveria prescrever o comportamento que, caso exercido com a regularidade e constância “de uma lei da natureza”, atingiria tal objetivo. Neste caso, no entanto, havia uma “condição” que limitava a validade irrestrita do princípio, ou da “lei”, a saber, a peculiaridade de minha natureza subjetiva que deseja a riqueza. Para outrem, a riqueza pode não ser um fim, de modo que tal imperativo não poderia ser válido para todos os seres racionais, isto é, não poderia ser a lei que estipula a regularidade no comportamento de seres racionais exigida pelo conceito mesmo de lei. Em suma, o princípio subjetivo não se torna objetivo; a representação subjetiva de uma “lei” encontra “condições” que impedem que esta se torne, de fato, uma lei válida para todos os seres racionais. É nesse sentido de “lei” como “regularidade incondicional dos eventos” que devemos entender a formulação “da lei da natureza” do imperativo categórico: “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua

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202

justamente as peculiaridades subjetivas e empíricas implicadas no propósito e no agrado

ou prazer esperado para determinado agente racional finito; tal condição reduzia esta lei

a um mero “conselho” ou “prescrição”, sem o caráter necessário inerente a um princípio

prático incondicionado válido a todos os seres racionais. Em outras palavras, no

imperativo categórico suprime-se o elemento subjetivo e empírico, refletido no

propósito da ação, que, como condição, limitava a validade irrestrita da lei moral. Da

incondicionalidade obtida resulta a universalidade exigida: o princípio subjetivo, a

máxima, torna-se princípio objetivo, lei:

Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se

torne lei universal (Gr Ak IV: 421. pp. 129-130).

6.3.2 – Natureza racional como fim em si mesmo

Em que, contudo, consiste esta “abstração” dos “propósitos” de que trata o

imperativo categórico e a universalidade por ele exigida? Isto significa que toda e

qualquer referência a fins está excluída do princípio supremo da moral? Em absoluto.

Se, como veremos no próximo capítulo, a referência a fins é central para a distinção

entre Doutrina do Direito e Doutrina da Virtude, Kant admite também a presença de

um “fim” mesmo no momento transcendental da moral – trata-se não do “propósito da

ação”, isto é, de um fim a ser produzido que dependa das circunstâncias empíricas e

subjetivas do agente, mas antes de um fim “objetivo” que, na verdade, caracteriza-se

não como efeito da ação, mas antes como índice restritivo de todos aqueles outros fins

que devem ser abstraídos para que o imperativo categórico possa ser formulado em sua

universalidade249. Vejamos agora como isto se dá inicialmente, reservando para o

vontade, lei universal da natureza” (Gr Ak IV: 421. p. 130), que, segundo Kant, seria ligada à sua primeira formulação, a da “lei universal”, que apresentaremos na sequência. 249 Willaschek propõe um “conceito puramente funcionalista de fim” em Kant, que incluiria todos os possíveis conceitos de fim que discutiremos na sequência: “Quando ações práticas se ‘unem’ ao livre arbítrio ‘como consequências’, e um livre arbítrio é a faculdade de agir segundo conceitos de fins independentemente de uma ‘inclinação direta através de estímulos sensíveis’, então um conceito de fim pertence, claramente, a toda ação” (Willaschek, M. Praktische Vernunft. Handlungstheorie und Moralbegründung bei Kant. Stuttgart: J.B. Metzler Verlag, 1992. p. 55). Este conceito “funcional de fim” seria oposto ao mero desejo <Wunsch>; no entanto, o que Willaschek propõe aqui não é o mesmo de que se trata o conceito de fim como índice negativo do uso da liberdade que propomos na sequência, mas, antes, de um fim “subjetivo”, aqui entendido como um fim “positivo” acolhido na máxima. Ressaltemos que a discussão sobre “fins” será retomada no próximo capítulo, sobretudo em sua relação ao livre arbítrio. Por enquanto estamos apenas interessados em entender o que significa a “ausência de fins” no imperativo categórico na qual Kant insiste neste momento transcendental de fundamentação da moral.

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203

próximo capítulo uma discussão mais detida a respeito dos fins da ação e suas

implicações para a Metafísica dos Costumes.

Como Kant ressalta por diversas vezes, ter um fim é algo próprio à natureza

racional e, se ele for “objetivo”, deve ser um fim válido para todos os seres racionais:

[A]quilo que serve à vontade de fundamento <Grund> objetivo da sua

autodeterminação é o fim, e este, se é dado pela só razão, tem de ser válido igualmente

para todos os seres racionais (Gr Ak IV: 427. p. 134).

Os imperativos hipotéticos, conforme já discutido acima, apresentam duas

classes diferentes de fins: possíveis e efetivos; o imperativo categórico, por sua vez,

deve apresentar um fim “necessário”, ou seja, um fim que independa das circunstâncias

casuais (um fim possível qualquer) ou inevitáveis (o fim efetivo: a felicidade) de um ser

racional finito. Há aqui uma clara referência aos juízos de modalidade discutidos na

Crítica da Razão Pura: problemáticos, assertóricos e apodíticos (KrV A 70/ B 95. p.

104). Com efeito, Kant propõe uma classificação semelhante para os imperativos:

O imperativo hipotético diz apenas que a ação é boa em vista de qualquer propósito

possível ou efetivo. No primeiro caso é um princípio prático problemático, no segundo,

um princípio prático assertórico. O imperativo categórico, que declara a ação como

objetivamente necessária por si, independentemente de qualquer propósito, ou seja, sem

qualquer outro fim, vale como princípio prático apodítico (Gr Ak IV: 414-415. p. 125.

Grifo nosso).

Com efeito, a primeira classe de imperativos hipotéticos, os imperativos de

habilidade, apenas assumem um fim qualquer, que poderia muito bem não ser adotado

pelo agente; trata-se, pois, de um princípio prático problemático, que depende do ato

arbitrário do agente em acolher tal fim meramente possível250. Os imperativos de

prudência, por sua vez, visam não a um fim qualquer, mas antes a um fim inevitável aos

seres racionais finitos: a felicidade; trata-se de um princípio prático assertórico, que se

baseia em um fim efetivo para tais naturezas racionais finitas251. Por fim, o imperativo

categórico, o princípio prático apodítico, deve visar a um fim necessário por si mesmo,

250 “Juízos problemáticos são aqueles em que se atribui à afirmação ou negação um valor apenas possível (arbitrário)” (KrV A 74/ B 100. p. 107. Grifos nossos). 251 “Assertóricos são os juízos em que esse valor [da cópula] é considerado efetivo (verdadeiro)” (idem. Grifos nossos).

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204

que não dependa de alguma escolha arbitrária ou mesmo efetiva do agente, mas que,

inversamente, decorre de sua própria natureza racional, finita ou não252. Notemos um

detalhe da passagem: o imperativo categórico deve abstrair de qualquer propósito, ou

seja, sem qualquer outro fim. Há, por certo, a referência a um fim necessário por si

mesmo, que não se confunde com um propósito qualquer de uma ação253.

Segundo a universalidade e incondicionalidade dele exigida, o fim pressuposto

pelo imperativo categórico deve ser válido para todos os seres racionais, e não apenas

para próprio agente que o propõe. Kant ilustra esse ponto na Fundamentação recorrendo

a uma distinção entre móbil <Triebfeder> e motivo <Bewegungsgrund>:

O fundamento subjetivo do desejar <Begehren> é o móbil, o fundamento objetivo do

querer é o motivo; daqui a diferença entre fins subjetivos, que se assentam em móbiles,

e objetivos, que dependem de motivos, válidos para todos o ser racional. (Gr Ak IV:

427. p. 134).

Os fins “subjetivos”, ou propósitos, são aqueles que dependem das

circunstâncias particulares em que se encontra o agente; bem entendido, esses fins

podem ser fins tanto possíveis quanto reais. Ora, o que importa neste momento é a

relação deste fim com o “fundamento subjetivo do desejar”, ou seja, a sua relação com a

constituição natural do ser racional que o propõe. Por outro lado, os fins “objetivos”

(que, apesar da terminologia por vezes não tão rigorosa de Kant254 não podem ser

confundidos com o “propósito” da ação) são fins necessários, que decorrem da própria

natureza racional do agente255. Na sequência da passagem, a esses fins “objetivos” Kant

também opõe fins “materiais” ou “relativos” como sinônimos para fins “subjetivos”:

252 “Apodíticos são aqueles [juízos] em que se considera esse valor [da cópula] como necessário” (idem. Grifos nossos). 253 Este “fim necessário” ou “objetivo”, como se tornará mais claro no próximo capítulo, pode ser tanto um fim negativo, como o que será discutido na sequência, quanto um fim positivo, como aquele exigido pelos deveres de virtude. 254 Quem também nota isto é Willaschek, M. Praktische Vernunft. Handlungstheorie und Moralbegründung bei Kant. Op. cit.. pp. 53-55. Segundo ele, Kant não distingue o conceito de fim como “coisa individual ou estado de coisa proposicionalmente estruturado”; ademais, não há uma diferenciação suficiente entre fim como objeto da vontade e o “conceito de fim como a representação deste objeto (como estado-de-coisa)” – este último seria o “Absicht” ou “propósito”. 255 Cf. Wood, A. “Humanity as End in Itself”. In: Guyer, P (ed). Kant’s Groundwork of the Metaphysics of Morals. Critical Essays. New York & Oxford: Rowman & Littlefield Publishers. 1998, p. 167. Wood nota que Kant altera os termos na Crítica da Razão Prática (KpV Ak V: 21-22. pp. 33-35). Aqui o motivo, “fundamento objetivo do desejar”, torna-se “forma legislativa” da máxima, acolhida como fundamento de determinação da vontade, ao passo que um fim qualquer da ação, seja ele, segundo os termos da Fundamentação, “móbil” ou “motivo” é tomado como base de princípios materiais. Segundo Wood, “quando a segunda Crítica diz que o fundamento dos princípios formais é a ‘forma legislativa da

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205

Os princípios práticos são formais, quando fazem abstração de todos os fins subjetivos;

mas são materiais quando se baseiam nestes fins subjetivos e portanto em certos

móbiles. Os fins que um ser racional se propõe arbitrariamente <nach Belieben> como

efeitos da ação (fins materiais) são na totalidade apenas relativos; pois o que lhes dá o

seu valor é somente a sua relação com uma faculdade de desejar do sujeito com

características específicas <besonders geartetes>, valor esse que por isso não pode

fornecer princípios universais para todos os seres racionais, que sejam também válidos

e necessários para todo o querer, isto é, leis práticas. Todos estes fins relativos são, por

conseguinte, apenas a base de imperativos hipotéticos (Gr Ak IV: 427-428. p. 134.

Grifos nossos).

A oposição entre princípios formais e materiais é retomada aqui: formais são os

princípios que abstraem não de todo e qualquer fim, mas apenas daqueles fins

subjetivos, materiais ou relativos, válidos para um determinado agente ou para uma

classe específica de agente racional256; ora, o valor “relativo” destes fins funda-se na

relação que travam com as faculdades práticas do agente dotadas de “características

específicas”, nessa medida, mesmo que se trate de um fim “efetivo”, ou seja, inevitável,

será sempre algo ligado às particularidades empíricas e subjetivas que impedem que ele

se torne válido para todos os seres racionais, ou seja, um fim que independente das

“características específicas” destes. Ora, tais fins, em sua totalidade, apenas podem

fornecer princípios materiais, eles mesmos apoiados no efeito esperado (o objeto

produzido que desperta prazer ou agrado) e, assim, relativos ao agente que os propõe;

são, em suma, “a base dos imperativos hipotéticos”, seja os de habilidade, seja os de

prudência257.

Disto se conclui que um princípio formal, que abstrai dos fins “subjetivos”,

“relativos” ou “materiais”, pode, não obstante, acolher um fim “objetivo”, “absoluto” ou

máxima’, isto é, ‘a mera forma de uma lei universal qualquer’, a Fundamentação somente nos conta que essa forma, quando nos motiva, constitui-se como um certo tipo distinto de fim”, a saber, a humanidade como fim em si mesma tomada como índice restritivo da ação. Cf. sequência da argumentação. 256 Sobre esta recusa dos fins subjetivos, cf Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. p. 79. Ao negar a consideração a fins no princípio supremo da moral, Kant “apenas afirma que, ao decidir sobre o que constitui nosso dever, nós não podemos levar em consideração nosso desejo pelos resultados da ação, e que, ao realizar nosso dever, nós não podemos tornar nosso desejo por resultados como a condição sob a qual nós iremos agir em conformidade com o dever”. 257 “No caso dos imperativos condicionados, não é o fim mesmo que é racionalmente necessário; o fim é considerado como dado com base em nossas inclinações, e o princípio da razão diz respeito apenas à ação, como meio para tal fim” (Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. p. 87).

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206

“formal”, em resumo, um fim “necessário”258 – ou melhor, não apenas pode como

também deve fazê-lo. Este fim objetivo não pode ser dependente das “características

específicas” das faculdades práticas do agente racional, não pode ser decorrência de sua

natureza imperfeita e finita, a qual lhe confere um valor meramente relativo, ligado ao

agrado esperado pela sua existência. Ora, tal fim “necessário”, base dos princípios

formais, é o homem, ou dito de maneira mais rigorosa, a natureza racional259

[os seres racionais] não são portanto meros fins subjetivos cuja existência tenha para

nós um valor como efeito da nossa ação, mas sim fins objetivos, quer dizer, coisas cuja

existência é em si mesmo um fim (Gr Ak IV: 428. p. 135).

A natureza racional em geral é, portanto, um fim com características peculiares.

Não se trata de um “efeito” que esperamos produzir com nossas ações, algo cuja

existência desejamos com vistas ao prazer de que disto pode resultar. Ora, neste caso

haveria um fim subjetivo, material, relativo às características físicas do agente, e, assim,

dependente das carências que definem sua imperfeição; a natureza racional seria, deste

modo, um fim para um agente ou uma classe de agente racional, ou seja, um meio para

a satisfação das suas carências particulares, mas nunca um fim em si mesmo:

se, pois, deve haver um princípio prático supremo e um imperativo categórico no que

respeita à vontade humana, então tem de ser tal que, da representação daquilo que é

necessariamente um fim para toda a gente, porque é fim em si mesmo, faça um princípio

objetivo da vontade, que possa por conseguinte servir de lei prática universal. O

258 Segundo Wood, devemos entender este fim “necessário” sob três formas: a) como fim em si, isto é, um fim objetivo, cujo valor é incondicional, constituindo-se, assim, como fundamento do imperativo categórico, em oposição ao fim condicionado pela constituição específica de um sujeito racional; b) como fim “existente”, “autosuficiente”, “independente”, ou seja, cuja existência independe da causalidade de um agente, em oposição a um “fim a realizar”, um estado-de-coisas a ser produzido pela ação; c) como fim cujo valor é absoluto, isto é, como dignidade, em oposição ao fim relativo, que tem “preço de afecção <Affektionspreis> e de sentimentos”, ou seja, que pode encontrar equivalentes. Wood, A. “Humanity as End in Itself”. Op. cit. pp. 168-170. 259 Para Wood, o valor da humanidade como fim em si mesmo funda-se em sua “capacidade de propor-se fins, de selecionar meios para eles e avaliá-los e combiná-los num conceito de nosso bem-estar geral”, numa predisposição “técnica” que, ao lado das predisposições à animalidade e à moralidade (Anthropologie Ak VII: 322-324; pp. 216-219; cf. Religion Ak VI: 26-27. pp. 32-33), caracteriza a “humanidade” (Wood, A. “Humanity as End in Itself”. p. 172). Wood peca ao incluir características antropológicas, relativas à “espécie humana”, como nos mostra a passagem da Antropologia referida acima, no momento transcendental em que não são permitidas informações a respeito do homem. Ora, ser um fim em si mesmo é características da natureza racional, e não do homem apenas; este é fim absoluto em virtude de sua razão, e não em virtude de sua animalidade. Toda natureza racional age segundo certos “fundamentos objetivos de autodeterminação”, isto é, fins necessários, tomados como algo que possui valor absoluto (Gr Ak IV: 427. p. 134); a particularidade humana desta posição de fins será discutida nos próximos capítulos.

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207

fundamento deste princípio é: a natureza racional existe como fim em si mesmo (....).

“Age de tal maneira que uses a humanidade <Menschheit>, tanto na sua pessoa como

na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca

simplesmente como meio” (Gr Ak IV: 428-429. p. 135).

Bem entendido, neste momento transcendental, o princípio da natureza racional

como fim em si mesmo deve deter um valor meramente negativo, ou seja, servir tão

somente como índice restritivo das ações. Como Kant se expressa, há aqui apenas a

“condição suprema limitante <oberste einschränkende Bedingung> da liberdade das

ações de cada homem” (Gr Ak IV: 430-431. p. 137), ou, dito de outra maneira, trata-se

de um “fim independente”, e não um fim “positivo”, tomado como efeito da ação ou

algo a ser realizado:

A natureza racional distingue-se das restantes por se pôr a si mesma um fim. Este fim

seria a matéria de toda a boa vontade. Mas como na ideia de uma vontade

absolutamente boa, sem condição restritiva (o fato de alcançar este ou aquele fim), se

tem de abstrair inteiramente de todo o fim a realizar <bewirkenden Zweck> (o que faria

toda a vontade só relativamente boa), o fim aqui não deverá ser concebido como um

fim a ser realizado, mas sim como fim independente <selbständig>, portanto só de

maneira negativa; quer dizer: nunca se deverá agir contra ele, e não deve ser avaliado

nunca como simples meio, mas sempre ao mesmo tempo como fim em todo o querer.

Ora este fim não pode ser outra coisa senão o sujeito de todos os fins possíveis (Gr Ak

IV: 437. p. 142).

Vê-se de maneira clara aqui a exigência de exclusão de todo elemento material

como base da moral. O princípio supremo da moral deve acolher, pois, a natureza

racional como um “fim formal”, ou seja, um “fim em si mesmo” de onde advém a

própria forma da universalidade da lei moral e que deve servir como medida restritiva

de todos os “outros” fins. Chegamos, aqui, ao princípio de autonomia da vontade.

6.3.3. Princípio da autonomia e o reino dos fins.

Refaçamos brevemente o percurso desta subseção. No momento transcendental

da Metafísica dos Costumes vem à superfície o fato antropológico fundamental de que,

em virtude de nossa natureza sensível possuir carências que se apresentam sob a forma

do desejo pela existência de determinados objetos, nossa vontade não é determinada

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208

tão-somente por princípios práticos incondicionados válidos para todos os seres

racionais, e, assim, a lei moral se nos apresenta sob a forma de um imperativo

categórico. Ao contrário dos imperativos hipotéticos, que contêm referência a um fim

possível ou efetivo, este último ligado à busca pelas condições completas de satisfação

de nossa natureza sensível e carente <bedürftig>, ou seja, à felicidade, o imperativo

categórico deve assumir um fim necessário, independente de nossa constituição natural

e, portanto, válido para todos os seres racionais. Surge, aqui, o ser humano ou a

natureza racional como um fim em si mesmo, um índice restritivo de todos os fins

subjetivos, ou seja, relativos aos agentes particulares e tomados como efeitos de ações;

este “sujeito de todos os fins”, a natureza racional, deve possuir uma dignidade, um

valor intrínseco, em outras palavras, deve deter o estatuto de “fim em si” ou “fim

formal” do qual decorre a própria forma de universalidade da lei moral. Trata-se da

figura de um sujeito racional autolegislador, tomado como fonte da normatividade de

uma lei válida para todos os demais seres racionais e que, enquanto tal, deve abstrair das

particularidades empíricas que maculam seu caráter universal e necessário; em suma,

surge aqui o princípio da autonomia.

O fundamento de toda legislação prática reside objetivamente na regra e na forma da

universalidade que a torna capaz (...) de ser uma lei (...); subjetivamente, porém, reside

no fim; mas o sujeito de todos os fins é (...) todo o ser racional como fim em si mesmo:

daqui resulta o terceiro princípio prático da vontade como condição suprema da

concordância desta vontade com a razão prática universal, quer dizer, a ideia da vontade

de todo o ser racional concebida como vontade legisladora universal (Gr Ak IV: 431.

p. 137).

Segundo Kant, o princípio de autonomia é uma síntese dos dois primeiros

princípios: o da universalidade da lei e o da dignidade da natureza racional como fim

em si mesmo. Ora, da concepção de um princípio que, objetivamente, considera a

universalidade de uma lei prática que abstrai da possível matéria visada, ou seja, que

toma apenas a forma de uma legalidade universal, independente dos objetos

possivelmente produzidos através disto, e, subjetivamente, acolhe, como sujeito da lei,

um ser que não pode ser tomado como meio ou como fim para outrem, conclui-se

forçosamente que este sujeito é o autor (“subjetivamente”) e destinatário ou

endereçado (“objetivamente”) daquela lei universalmente válida que não visa a nenhum

objeto particular –, ele é o próprio legislador da mesma, fonte de sua normatividade.

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209

Em suma, as duas primeiras formulações do imperativo categórico somente adquirem

pleno significado com o princípio de autonomia260. Naturalmente, pois, o imperativo

categórico também pode ser formulado como princípio da autonomia, ou seja, como o

princípio

segundo o qual toda a vontade humana seria uma vontade legisladora universal por

meio de todas as suas máximas (Gr Ak IV: 432. p. 138).

Um pouco mais adiante na Fundamentação, o mesmo princípio da autonomia é

formulado segundo a fórmula imperativa:

nunca realizar uma ação senão de acordo com uma máxima que se saiba poder ser uma

lei universal, isto é, só de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa

considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal (Gr Ak IV: 434. p.

139).

Assim, para Kant o princípio de autonomia torna patente aquilo que ainda estava

latente ou pressuposto nas demais formulações discutidas. A submissão do sujeito

racional à lei tem de ser pensada como a submissão a uma lei promulgada por ele

próprio, ou seja, “a vontade é legisladora por si mesma e exatamente por isso e só então

submetida à lei (de que ela se pode olhar como autora)” (Gr Ak IV: 431. p. 137. Grifos

nossos). Nesta terceira formulação do princípio supremo da moralidade, portanto, fica

claro aquilo que era exigido de um tal princípio: a recusa ou renúncia a qualquer

elemento provindo da sensibilidade, que, para a vontade imperfeita, vinha sob a forma

de uma inclinação “que prova sua carência” ou de um interesse patológico pelo objeto

260 Neste momento se entende melhor, por exemplo o motivo de a natureza racional ser “fim em si mesmo”: ora, ela é o sujeito de uma lei universal, isto é, sua autora, e “objeto” desta lei, isto é, sua destinatária. Neste sentido, a natureza racional e o homem detêm “dignidade” por serem autores e endereçados de leis universais. Aqui, pois, discordamos de Wood quando ele atribui o valor absoluto da natureza racional ao fato de esta ser a “fonte” do “goodness” de todos os fins, ou seja, um fim objetivo que por meio de seus fins (relativos) confere valor às coisas (Wood, A. “Humanity as End in Itself”. Op. cit. pp. 173-177 e passim). A nosso ver, tal modalidade de interpretação pressupõe de modo sorrateiro o argumento da Crítica da Faculdade de Julgar, a saber, o homem, ou melhor, a “cultura da habilidade”, ao lado da cultura da disciplina, como a capacidade de propor-se fins e, assim, como fim último <letzter Zweck> da natureza (KU Ak V: 430ss. pp. 270ss). Ora, a “dignidade” de um ser seria medida, segundo Wood, por sua capacidade de propor-se fins e, desse modo, conferir “valores” à natureza através destes fins postos – algo semelhante, pois, ao que ocorre na argumentação da Crítica da Faculdade de Julgar e a cultura da habilidade como fim último da natureza. Deste modo, há, em Wood, uma sobredeterminação de planos: o estritamente moral e o teleológico – Paton também comete um erro semelhante (Paton, H. The Categorical Imperative. Op. cit. pp. 185-198). Ora, o próprio Kant ressalta que a plena significação da dignidade do homem é obtida não pela sua capacidade de propor-se fins, mas antes pela sua capacidade de tornar-se legislador universal em uma comunidade de todos os seres racionais.

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210

da ação (Gr Ak 413. p. 124) e que conduzia, no limite, ao princípio de amor próprio

como o princípio autointeressado da felicidade. Ora, como escreve Kant, na noção de

um mesmo ser como autor e destinatário261 de determinada lei, está excluída a

consideração de possíveis proveitos próprios, ou exceções à regra, que maculariam o

caráter universal exigido:

Pois quando pensamos uma tal vontade [legisladora universal], se bem que uma

vontade subordinada a leis possa estar ainda ligada a estas leis por meio de um

interesse, não é no entanto possível que a vontade, que é ela mesmo legisladora

suprema, dependa, enquanto tal, de um interesse qualquer; pois que uma tal vontade

dependente precisaria ainda de uma outra lei que limitasse o interesse do seu amor-

próprio à condição de uma validade como lei universal (Gr Ak IV: 432. p. 138).

É a “renúncia a todo interesse no querer por dever [que marca o] caráter

específico de distinção do imperativo categórico em face ao hipotético” (Gr Ak IV: 432.

p. 138). Esta vontade que é legisladora universal prescinde de alguma inclinação ou

interesse patológico para estar subordinada à lei que promulga – ora, ela é a autora da

mesma, não depende de um objeto que lhe desperte prazer ou agrado para agir de

acordo com ela. Segundo Kant, o erro das tentativas anteriores de fundar o princípio

supremo da moralidade era, portanto, esse: embora admitissem algo como dever, as

doutrinas morais perdiam de vista que o homem somente admite este dever pois está

“sujeito só à sua própria legislação, embora esta legislação seja universal” (Gr Ak IV:

432. p. 138). A obrigação para o cumprimento da lei, o estímulo ou constrangimento

para que sua vontade fosse determinada pela lei, provinha de “qualquer outra coisa” que

não a própria vontade (Gr Ak IV: 433. p. 138). “O que se obtinha não era nunca o dever,

mas sim a necessidade da ação partindo de um determinado interesse, o qual podia ora

ser próprio, ora alheio” (Idem). Em suma, a pureza do princípio coincide com sua

capacidade de ser formulado por todo e qualquer homem, o que, por sua vez, implica

admiti-lo como fundado apenas em sua natureza racional, e não na variância e no

“capricho” de sua natureza sensível.

261 “O tema dessa terceira formula é a identidade do legislador e do endereçado da lei. Ela justifica o caráter imperativo do imperativo, na medida em que entende a vontade referida pelo imperativo como a vontade legisladora, de modo que para esta não é necessário que seja efetivo nenhum interesse exterior à lei <außergesetzlich> como seria o móbil da ação para a vontade” (Kaulbach, F. Immanuel Kants ‘Grundlegung zur Metaphysik der Sitten’. Op. cit. p. 85).

Page 211: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

211

Ademais, há, de acordo com Kant, uma ligação íntima e necessária entre o

princípio da autonomia e a ideia de uma comunidade de seres racionais regida por leis

comuns e promulgadas idealiter por todos e para todos – trata-se da ideia de um reino

dos fins, uma ideia “inerente” <anhängen> ao princípio de todos os seres racionais

como legisladores universais:

[Reino é a] ligação sistemática de vários seres racionais segundo leis comunitárias. Ora,

como as leis determinam os fins segundo a sua validade universal, se se fizer abstração

das diferenças pessoais entre os seres racionais e de todo o conteúdo dos seus fins

particulares, poder-se-á conceber um todo do conjunto dos fins (tanto dos seres

racionais como fins em si, como também dos fins próprios que cada qual pode propor a

si mesmo) em ligação sistemática, quer dizer, um reino dos fins (Gr Ak IV: 433. p.

139).

Este reino dos fins é a comunidade de seres racionais considerados em abstração

de suas “diferenças pessoais” <persönliche Unterschiede>, que, com efeito,

introduziriam particularidades que tornariam impossível a “ligação sistemática”

<systematische Verbindung> segundo “leis comunitárias” <gemeinschaftliche Gesetze>.

Desse modo, há aqui o ideal de “uma ligação sistemática de seres racionais por meio de

leis objetivas comunitárias, isto é, um reino que, exatamente porque estas leis têm em

vista a relação recíproca destes seres como fins e meios, se pode chamar um reino dos

fins” (Gr Ak IV: 433. p. 139). Os membros deste reino dos fins são os seres racionais

tomados como legisladores universais (autores) e também como submetidos à lei que

promulgam (endereçados ou destinatários) (Gr Ak IV: 433. p. 139). Da ideia de um

princípio puro da moral, surgem, assim, o princípio de um ser legislador universal e o

ideal de uma comunidade constituída através da relação de seus membros como fins e

meios recíprocos e, assim, composta por seres racionais regidos por leis das quais todos

são tanto autores como endereçados.

A ideia de um reino dos fins compostos por seres racionais legisladores

universais e autônomos é, assim, a “determinação completa” do princípio supremo da

moralidade (Gr Ak IV: 436. p. 141). Com efeito, a dignidade de todo ser racional como

fonte da lei moral apenas é explicada

pela possibilidade [de este ser racional] de participar <Anteil an> na legislação

universal, tornando-o por este meio apto a ser membro de um possível reino dos fins,

Page 212: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

212

para que estava já destinado <bestimmt> pela sua própria natureza como fim em si e,

exatamente por isso, como legislador no reino dos fins, como livre a respeito de todas

as leis da natureza, obedecendo somente àquelas que ele mesmo se dá e segundo as

quais as suas máximas podem pertencer a uma legislação universal (à qual ele ao

mesmo tempo se submete) (Gr Ak IV: 435-436. pp. 140-141).

Lembremos neste momento o que foi discutido no segundo capítulo, mais

precisamente na seção 2.2.3: ora, na progressiva purificação do princípio supremo da

moral, Kant ligou a exigência de universalidade à possibilidade de um acordo recíproco

das vontades particulares em uma comunidade possível segundo leis válidas para todos

– apenas desta maneira a “liberdade se harmonizaria consigo mesma”, adquiriria o

sentido de uma concordância com a lei promulgada pela legislação universal de seres

racionais. Vemos agora de maneira mais clara que isto somente pode ocorrer quando se

reconhece que cada sujeito racional é o legislador universal desta comunidade:

abstraindo-se das diferenças pessoais, da constituição natural e das particularidades

empíricas de cada um dos envolvidos, surge a noção da autonomia dos seus membros,

que se reconhecem como autores e endereçados de uma lei que não leva em conta seus

interesses particulares ou “patológicos”, em poucas palavras, uma lei universal de uma

possível comunidade de seres racionais em relações recíprocas. Algo próximo, como

vimos, da exigência rousseauísta de uma vontade geral onde é considerado apenas

aquilo que há de comum nas vontades particulares262. Para Kant, trata-se da exigência

normativa nuclear que caracteriza de maneira mais adequada o momento transcendental:

os fins subjetivos advindos das carências individuais dos sujeitos racionais imperfeitos e

que visam objetos determinados devem ser limitados no interior de uma comunidade de

membros autônomos regida por leis universalmente válidas, ou seja, leis

comunitárias263. Somente desta maneira é atingida a base da normatividade moral para

Kant:

262 Cf. pp. 94-99. supra. 263 Bem entendido: “limitar” os fins subjetivos não implica suprimi-los. Não se trata de alguma comunidade “totalitária” que não deixa espaço para as particularidades individuais. Bittner ressalta esta ideia opondo duas modalidades de autonomia: uma autonomia “pré-moral” ou “natural” e uma autonomia “moral”. A primeira diz respeito à capacidade independente e espontânea da vontade de propor-se máximas, ou seja, de propor-se regras ou “planos” e “orientações” de vida” para si mesmo sem influência externa e que conteriam em si inúmeras ações ou prescrições que expressariam de múltiplas maneiras a orientação geral acolhida autonomamente. Esta autonomia “pré-moral”, no entanto, apenas se “realiza” na autonomia “moral”, quando as máximas ou “planos de vida” da vontade individual são universalizáveis. Assim, no interior destes “planos de vida” universalizados haveria espaço para fins subjetivos advindos de ações particulares condizentes com a orientação geral e, por certo, distintas em cada homem. Cf. Bittner, R. “Máximas”. In: Studia Kantiana 5, 2004. Como veremos no próximo capítulo, mais

Page 213: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

213

A moralidade é, pois, a relação das ações com a autonomia da vontade, isto é, com a

legislação universal possível por meio das suas máximas. A ação que possa concordar

com a autonomia da vontade é permitida; a que com ela não concorde é proibida (...). A

dependência em que uma vontade não absolutamente boa se acha em face do princípio

da autonomia (a necessitação moral) é a obrigação (...). A necessidade objetiva de uma

ação por obrigação chama-se dever (Gr Ak IV: 439. pp. 143-144. Grifo nosso).

A heteronomia é caracterizada, com efeito, como o oposto da autonomia, a

saber, como o princípio que toma algo diferente do poder legiferante do indivíduo como

sua base normativa, ou seja, quando

a vontade busca a lei que deve determiná-la em qualquer outro ponto que não seja a

aptidão das suas máximas para a sua própria legislação universal, quando, portanto,

indo além de si mesmo, busca esta lei na constituição de qualquer dos seus objetos (...).

Não é a vontade que então se dá a lei a si mesmo, mas é sim o objeto que dá a lei à

vontade pela sua relação com ela (Gr Ak 441. p. 145).

Os princípios apoiados num objeto que, por despertar o agrado do sujeito e

impeli-lo a tomá-lo por fim, serve-lhe como fundamento de determinação da vontade,

são denominador por Kant “princípios materiais”, ou ainda, “fundamentos de

determinação materiais práticos” que fazem as vezes de princípios supremos da

moralidade (KpV Ak V: 40. p. 65). Ora, assumir um princípio material como princípio

supremo da moralidade significaria a heteronomia da vontade. Tais princípios,

discutidos na subseção 2.2. desta dissertação, a saber, os hábitos, a educação, a

constituição civil ou governo, o sentimento físico, o sentimento moral, etc., são, todos,

fundados no princípio da felicidade, mesmo aqueles de Wolff e Crusius, ou seja, os

princípios “intelectuais” baseados seja na perfeição interna do agente, seja na perfeição

de um ser externo: Deus. Segundo Kant, a perfeição num sentido prático é definida seja

como a aptidão do próprio homem para fins quaisquer, isto é, o talento e a habilidade

em realizar seus fins, seja como a suficiência divina para todo e qualquer fim, deste

modo, sua onipotência (KpV Ak V: 41. p. 66). Tais fins “materiais”, caracterizados

precisamente em 7.2, há aqui a referência implícita à dificuldade de conciliar, por um lado, a “liberdade negativa”, ou seja, a espontaneidade em propor-se fins ou acolher máximas, o que já implica a independência em relação à natureza, e, por outro, a “liberdade positiva”, que seria a autonomia da vontade em acolher aquelas máximas possíveis de seres universalizadas.

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214

como objetos da vontade, devem precedê-la e determiná-la segundo o agrado esperado

pela sua existência, ou seja, segundo a felicidade que deles deve resultar:

Se, pois, tiverem de ser-nos dados antes fins, em relação aos quais o conceito de

perfeição (de uma perfeição interna em nós próprios ou de uma externa de Deus) pode

unicamente tornar-se fundamento de determinação da vontade, todavia, um fim

enquanto objeto, que tem de preceder a determinação da vontade mediante uma regra

prática e conter o fundamento da possibilidade de uma tal determinação, por

conseguinte, a matéria da vontade tomada como fundamento de determinação desta é

sempre empírica (...). Do mesmo modo como talentos e sua promoção, somente porque

contribuem para as vantagens da vida, ou a vontade de Deus, se a concordância com ela

foi tomada como objeto da vontade sem um precedente princípio prático independente

de sua ideia, podem tornar-se causa motriz <Bewegursache> da vontade somente pela

felicidade que disso esperamos (KpV Ak V: 41. pp. 66-67).

Assim, mesmo os princípios materiais racionais são, em última análise,

empíricos e heterônomos. Eles partem de um princípio, o de perfeição, no limite

apoiado em fins subjetivos que, por sua vez, apenas determinam a vontade conforme o

agrado que se espera obter por meio deles. Mesmo aqui, pois, faz-se notar o fato

antropológico fundamental de uma vontade imperfeita que é determinada segundo a

representação de objetos que lhe despertam prazer e agrado. O princípio supremo da

moral, pelo contrário, deve abstrair da particularidade dos propósitos e objetos

desejados e partir da noção de um sujeito legislador universal em um reino dos fins

regido por leis comunitárias, e, assim, universais. Insistindo numa possível metáfora

político-jurídica, uma comunidade heterônoma seria aquela cujas leis emanam não da

vontade de cada um dos envolvidos tomados como legisladores universais, mas antes da

vontade de um terceiro, um déspota ou ainda um ser sobrenatural à parte do conjunto de

seus membros.

* * *

A exposição do que denominamos “momento transcendental” da Metafísica dos

Costumes chega, assim, à conclusão de que a normatividade da ação moral é obtida

através da pura autolegislação do membro de uma comunidade de seres racionais que

recusa a particularidade das circunstâncias empíricas a que está sujeito. O momento

transcendental encontra o princípio de autonomia como essa condição da normatividade

Page 215: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

215

da ação moral; ora, esta somente pode ser obtida por meio de um princípio que guia um

agente racional e natural que se considera como um legislador universal de uma

ordenação moral não sujeita a particularismos decorrentes das características subjetivas

de cada um dos membros; nesse “reino dos fins” puramente formal, cada um dos

membros se vê como autor e endereçado da lei que dele emana e à qual está sujeito.

Bem entendido, a universalidade da lei e a dignidade de todo ser racional somente são

plenamente elucidadas na autonomia da vontade – em outras palavras, as duas primeiras

formulações do imperativo categórico apenas encontram sua concretude na terceira: a

que enuncia o princípio da autonomia e o princípio do reino dos fins, que é “inerente”

àquele. Dessa maneira, apoiada nesta base normativa sobre a qual repousam todos os

conceitos centrais do momento transcendental da filosofia prática kantiana, a seguinte

conclusão é forçosa: toda ação, seja ela jurídica, seja ela ética, deve ser considerada

como decorrente de uma lei de uma possível comunidade, jurídica ou ética, composta

por membros autônomos, isto é, legisladores universais. A não satisfação deste critério

normativo estipulado significaria heteronomia e, com ela, a incorreção ou a proibição

das ações que dela decorrem.

O resultado de nossa análise da Fundamentação é, assim, o ideal de uma

comunidade de seres racionais regida por leis universais autônomas que regulam os fins,

sejam estes os próprios sujeitos da lei, sejam os fins que estes efetivamente têm. Este

ideal normativo, base para a normatividade das ações humana, precisa agora ser

“realizado” ou ganhar “sentido” e “significado” na vida prática do homem. Como

afirma Paton:

é absolutamente claro que, na visão de Kant, este quadro conceitual abstrato de unidade

sistemática deve ser preenchido por meio de uma referência a necessidades efetivas,

desejos, poderes e fins dos homens264.

Com efeito, esta “concretude a priori” do princípio supremo da moral é obtida na

Metafísica dos Costumes, mais precisamente no direito e na ética. O homem se

reconhece como efetivamente autônomo apenas em meio aos outros homens, como

autor e endereçado de leis jurídicas e de virtude que regulam a comunidade jurídica e a

comunidade ética. Com isso, no entanto, entramos no momento metafísico-específico da

Metafísica dos Costumes.

264 Paton, H.J. The Categorical Imperative. Op. cit. p. 193.

Page 216: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

216

6.4. Excurso. Antropologia e moral aplicada.

Discutiremos neste excurso o significado de uma aplicação das proposições

morais fundamentais à natureza humana em curso numa Metafísica dos Costumes

contrastando-a com uma outra modalidade de aplicação, utilizada para descrever o

projeto kantiano de uma antropologia moral. No limite, trata-se aqui de delimitar o

sentido de “antropologia” ou “natureza que o homem efetivamente detém” exigido por

uma Metafísica dos Costumes como metafísica da moral.

Há dois sentidos distintos de aplicação suscitados ao longo do projeto crítico:

um sentido metafísico-constitutivo, empregado nos Primeiros Princípios Metafísicos da

Ciência da Natureza e na Metafísica dos Costumes (MAN Ak IV: 470. p. 16; KpV Ak

V: 8. p. 14; MS Ak VI: 216-7. p. 23-24), e outro subjetivo-motivacional, utilizado na

Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Gr Ak IV: 410n. p. 122.n), e que, no

interior da filosofia prática, diz respeito a uma antropologia moral conforme a definição

desta disciplina feita na Introdução à Metafísica dos Costumes (MS Ak VI: 217. p. 24).

O primeiro modo de aplicação faz-se presente no projeto kantiano em metafísica, seja

da natureza, seja dos costumes, e diz respeito, no primeiro caso, ao procedimento de

constituição de um sistema de leis da natureza corpórea entendidas como leis do

movimento, e, no segundo, de um “projeto constitutivo de desenvolver um sistema a

priori de princípios de modo a produzir um sistema de deveres para um agente racional”

específico: o homem.265 Já o segundo modo de aplicação caracteriza-se como uma

investigação de teor psicológico sobre condições empíricas que promovem ou impedem

o exercício de determinada faculdade ou predisposição humana. A primeira modalidade

de aplicação já foi discutida na segunda e terceira partes da dissertação. Voltemo-nos

rapidamente agora à segunda, que conduz ao projeto kantiano de uma antropologia

moral que se seguiria à Metafísica dos Costumes.

Além da passagem da introdução à Metafísica dos Costumes já citada em que

são explicitamente exigidos princípio de aplicação em uma filosofia moral (MS Ak VI:

216-7. p. 23-24), Kant discute uma moral aplicada em outros momentos de sua

265 Schmidt, C. “The Anthropological Dimension of Kant’s Metaphysics of Morals”. In: Kants-Studien, 96, 2005. p. 70. Tomamos de empréstimo à autora as denominações das duas modalidades de aplicação envolvidas.

Page 217: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

217

produção crítica, não raro empregando, no intuito de esclarecer os contornos daquela,

analogias com outras disciplinas aplicadas, sobretudo a lógica.

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, em uma das muitas menções à

pretensão de pureza de sua filosofia moral, Kant escreve:

Pode-se querendo (assim como se distingue a matemática pura da aplicada e a lógica

pura da aplicada), distinguir igualmente a pura filosofia dos costumes (Metafísica) da

filosofia dos costumes aplicada (à natureza humana). Esta terminologia lembra-nos que

os princípios morais não se fundam nas peculiaridades da natureza humana, mas que

têm de existir por si mesmos a priori, porém que deles se podem derivar regras práticas

para qualquer natureza racional (Gr Ak IV: 410n. p. 122.n).

Seria essa “filosofia dos costumes aplicada à natureza humana” de que Kant fala

na Fundamentação a Metafísica dos Costumes conforme as exigências expostas na

introdução à mesma e na Crítica da Razão Prática? Ao contrário do que alguns

comentadores creem266, acreditamos que não é possível assimilar a Metafísica dos

Costumes a esse sentido preciso de moral aplicada, entendida como uma aplicação

subjetiva-motivacional que consiste em fazer com que as leis morais encontrem

“acesso” ao ânimo humano em meio a condições empíricas contingentes que favorecem

ou atrapalham a recepção do homem aos seus deveres.

Para compreender melhor esse ponto, é necessário averiguar mais detidamente o

paralelo estabelecido por Kant entre a moral aplicada mencionada e a lógica aplicada.

Esta última é definida por Kant como uma disciplina que analisa não as leis universais

do pensamento, como é o caso da lógica geral “pura”, mas antes as condições empíricas

e contingentes que fomentam ou obstruem o pleno exercício e aprendizado das leis

estipuladas pela lógica geral:

Aquilo a que dou o nome de lógica aplicada (ao invés da significação comum desta

palavra, segundo a qual deveria conter certos exercícios, para os quais a lógica pura dá

a regra), é uma representação do entendimento e das regras do seu uso necessário in

concreto, ou seja, sob as condições contingentes do sujeito, que podem impedir ou

fomentar este uso e que são todas elas dadas só empiricamente. Trata da atenção, seus

obstáculos e conseqüências, da origem do erro, do estado de dúvida, de escrúpulos, etc

(KrV A 54/ B 78-79. p. 91. Grifo meu).

266 Gregor, M. Laws of Freedom. Oxford: Basil Blackwell. p. 8. Paton, H.J. Op.cit. p. 32. Schmidt, C. Op. cit.. p. 69. Wood, A. Kant’s Ethical Thought. Cambridge: Cambridge University Press. 1999. p. 383, n.1.

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218

A lógica aplicada tem como objetivo, portanto, examinar as várias características

empíricas e contingentes do conhecimento humano, tais como a atenção, as fontes do

erro, os vários graus de convicção subjetiva, que tendem a influenciar o exercício do

entendimento em juízos particulares que dizem respeito a objetos empíricos, de modo a

auxiliar-nos a progredir no conhecimento humano empírico: um projeto de

aperfeiçoamento que Kant descreve como um “catártico do entendimento comum”, e

que é em grande medida levado a cabo no primeiro livro da Antropologia de um ponto

de vista pragmático267. Trata-se das circunstâncias empíricas e subjetivas que impedem

ou fomentam o correto aprendizado das regras puras da lógica geral pelo intelecto

humano.

Essa definição de lógica aplicada utilizada por Kant na citação da

Fundamentação como ilustração para a moral aplicada assemelha-se àquela de

antropologia moral, fornecida por Kant na introdução à Metafísica dos Costumes268.

Segundo Kant, uma antropologia moral seria a “contraparte” <Gegenstück> de uma

Metafísica dos Costumes e

conteria as condições subjetivas tanto impeditivas como favorecedoras da realização

das leis da primeira [Metafísica dos Costumes] na natureza humana: a produção,

difusão e consolidação dos princípios morais (na educação e no ensino escolar e

popular) e, de igual modo, outros ensinos e prescrições fundados na experiência (MS

Ak VI: 217. p. 24).

267 Schmidt, C. Op. cit. p. 71. Trata-se, como já mencionado, a didática antropológica, que corresponde à psicologia empírica da tradição racionalista. 268 Suprimimos aqui o problema que a sequência do trecho da Crítica da Razão Pura citado traz para a compreensão do percurso da Metafísica dos Costumes no desenvolvimento do pensamento moral kantiano. Segundo Kant, a lógica aplicada se relaciona com a lógica geral e pura “assim como a moral pura, que só contém as leis morais necessárias de uma vontade livre em geral, se relaciona com a verdadeira doutrina da virtude, que só leva essas leis em consideração sob os obstáculos dos sentimentos, inclinações e paixões a que os seres humanos se encontram mais ou menos submetidos, e que não poderia fornecer jamais uma ciência verdadeira e demonstrada porque, exatamente como aquela lógica aplicada, necessita de princípios empíricos e psicológicos” (KrV A 54-55/ B 79 p. 91. Grifos nossos). Embora oponha a “moral pura” a uma doutrina da virtude, assim como ocorre com a obra de 1797 e seus princípios de aplicação à natureza humana, Kant parece fazer com que sua doutrina da virtude dependa de princípios e elementos empíricos adicionais àqueles de que fala na Metafisica dos Costumes de 1797, identificando-a, portanto, à antropologia moral que discutiremos na sequência, e não a uma disciplina a priori não pura, ou seja, uma metafísica da moral, conforme será analisada na segunda parte da dissertação. Quem atenta a isso é Louden, R. Kant’s Impure Ethics. Op. cit. p. 184. Sem que atribuamos o descompasso das passagens seja a um “descuido” de Kant, seja a uma mudança significativa em sua concepção de Metafísica dos Costumes no período crítico, apenas notemos a “singularidade” do trecho da Crítica da Razão Pura com vistas aos contornos gerais da arquitetônica da razão prática de Kant.

Page 219: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

219

A exemplo da lógica aplicada, a antropologia moral analisa as condições

empíricas sob as quais as leis morais, estabelecidas na Metafísica dos Costumes, são

favorecidas ou obstruídas em seu acesso ao homem, seja por meio de instituições que

auxiliam ou impedem o ensinamento e consolidações dos deveres, seja através de

exemplos e instruções que aproximam ou afastam os princípios morais do ânimo

humano. Assim, tanto a lógica aplicada quanto essa moral aplicada ao homem, ou ainda,

a antropologia moral, diriam respeito apenas às condições empíricas e contingentes que

contribuem ou prejudicam tanto o correto uso do entendimento, no caso da lógica

aplicada, quanto a assimilação e o desenvolvimento da conduta moral pelo sujeito, no

caso da antropologia moral; ambas as disciplinas não podem furtar-se ao estudo das

faculdades humanas na medida em que estas sejam dadas a partir de uma visada

antropológica ou psicológica269.

Em todo caso, como o próprio Kant escreve na sequência do trecho transcrito,

essa antropologia moral, por mais importante que seja, não pode ser confundida com ou

incluída no interior uma Metafísica dos Costumes entendida como o sistema dos

deveres humanos tomados como leis da liberdade:

Desta antropologia moral não se pode prescindir, mas ela não deve de modo algum

preceder aquela metafísica dos costumes ou ser a ela misturada, porque então se corre

o perigo de extrair leis morais falsas, ou ao menos indulgentes, que fazem com que

pareça inacessível o que precisamente por isso não é alcançado – ou porque a lei não foi

discernida nem apresentada em sua pureza (enquanto aquilo em que consiste também

sua força), ou porque são utilizados móbiles totalmente inautênticos ou impuros para o

que em si é bom e conforme ao dever, móbiles que de resto não deixam nenhum

princípio moral seguro nem como fio condutor do juízo, nem como disciplina da mente

no cumprimento do dever, cuja prescrição tem de ser dada absolutamente a priori

apenas pela razão pura (MS Ak VI: 217. p. 24. Grifos meus).

A insistência de Kant em ressaltar que essa antropologia moral não deve ser

misturada à Metafísica dos Costumes lembra o vigor com que, na Fundamentação, a

exigência de “depuração” completa de elementos antropológicos era atrelada à

metafísica prática. Com efeito, ao contrário do sentido subjetivo-motivacional de

aplicação, o sentido metafísico-constitutivo deve assumir um conceito de natureza

humana amplo e abstrato o suficiente para que dele possam surgir princípio metafísicos,

269 Para um amplo estudo acerca do que seria essa antropologia moral em Kant, cf. Louden, R. Kant’s Impure Ethics. Op. cit.

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220

como o do direito e o da virtude, a partir do princípio transcendental que lhe

corresponde: o imperativo categórico entendido como princípio da autonomia. A

“antropologia” em jogo em uma Metafísica dos Costumes deve ser mais específica do

que aquela do “fato antropológico fundamental” da imperfeição de um ser racional

finito, e mais ampla do que aquela exigida pela ideia de uma antropologia moral (Cf.

MS Ak VI: 468-469. pp. 422-444).

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221

7. O LIVRE ARBÍTRIO COMO OBJETO DE UMA METAFÍSICA

DOS COSTUMES

O projeto de uma Metafísica dos Costumes não poderia estar completo sem que

a “natureza humana” seja considerada aqui. A exemplo do que ocorre na filosofia

teórica, o “sistema da crítica” deve ser complementado pelo “sistema da ciência”, ou

seja, por um sistema de deveres para o homem. No prefácio à Crítica da Razão Prática

Kant é claro a respeito:

[A] determinação específica dos deveres como deveres humanos, para dividí-los,

somente é possível se antes o sujeito dessa determinação (o homem) for conhecido

segundo a natureza que ele efetivamente detém, embora apenas na medida em que é

necessário com relação ao dever em geral; tal determinação, porém, não pertence a

uma Crítica da razão prática em geral, que só deve indicar completamente os princípios

de sua possibilidade, de seu âmbito e limites, sem referência particular à natureza

humana. Portanto a divisão pertence aqui ao sistema da ciência e não ao sistema da

crítica (KpV Ak V: 8. p. 14. Grifos nossos).

Se o “sistema da crítica” apenas estabeleceu e fixou o “princípio geral do dever”

(KpV Ak V: 8. p. 13) como princípio da autonomia da vontade, o “sistema da ciência”

em filosofia prática, por seu turno, tem como função compor sistematicamente um

“sistema de deveres” enquanto “deveres humanos”, necessitando, para tanto, que a

natureza do homem seja conhecida enquanto ela é “necessária em relação ao dever em

geral”, ou seja, em relação ao princípio supremo da moral, o princípio de autonomia.

Trata-se, pois, de um objetivo análogo àquele da Metafísica da Natureza, mais

especificamente a metafísica da substância corporal apresentada nos Primeiros

Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza: aqui não se tratava de forjar um sistema

dos princípios transcendentais como em uma mera expansão ou extensão da Analítica

dos Princípios da Crítica da Razão Pura, mas antes de expor o sistema dos princípios

metafísicos que regulam a matéria como movente no espaço, isto é, um sistema das leis

do movimento, que tomam a “natureza que a matéria efetivamente détem”, na medida,

contudo, em que ela se põe relação necessária com os princípios estabelecidos no

momento transcendental. A “segunda parte” da Metafísica dos Costumes, portanto, deve

levar em consideração a natureza empírica mínima do homem, para, desse modo, e a

exemplo do que ocorre com as leis do movimento, determinar quais são as leis da

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222

liberdade para o homem que decorrem do princípio da autonomia. Como, no entanto,

determinar este conceito mínimo da natureza humana?

Novamente chamamos em nosso auxílio o procedimento empregado na

Metafísica da Natureza. Ora, similarmente ao que se passa com o conceito de matéria

em uma metafísica da substância corporal, será necessário na Metafísica dos Costumes

localizar um conceito dado na experiência porém determinável de modo a priori – trata-

se do “mínimo empírico”, a “base física” do conceito que funda um certo âmbito da

experiência. Se na Metafísica da Natureza, como vimos no 5º capítulo, era o conceito

de matéria como movente no espaço que fazia as vezes de um conceito a priori não

puro, no caso da Metafísica dos Costumes argumentaremos que tal conceito será o ato

do livre arbítrio como uma capacidade de agir em conformidade a fins em seu uso

externo e interno, com a peculiaridade de que ele, na realidade, serve como indicação

inicial acerca dos elementos empíricos necessários270 para que se constituam uma

metafísica do direito e uma metafísica da virtude como as condições de realização da

autonomia externa e da autonomia interna em uma comunidade jurídica e em uma

comunidade ética.

Dessa maneira, iniciaremos esse capítulo localizando no conceito de ato do livre

arbítrio o conceito supremo da Metafísica dos Costumes, que, assim, cumpre um papel

análogo ao conceito de objeto em geral na filosofia transcendental e ao de matéria na

metafísica da substância corporal (7.1). Na sequência, analisaremos o caráter a priori

não puro do livre arbítrio, caracterizado como uma faculdade prática do homem

enquanto ser natural, pertencente ao mundo sensível, mas cujo fundamento de

determinação pode ficar a cargo da razão prática pura, através de uma lei universal que

define sua liberdade positiva (7.2). Neste momento, o conceito de fim, intimamente

ligado ao funcionamento do arbítrio como faculdade de desejar e de produzir objetos na

sensibilidade, servirá como um instrumento de distinção inicial entre Doutrina do

Direito e Doutrina da Virtude, a ser aprofundada no capítulo seguinte (7.3). Em

conformidade à dimensão sistemática abordada até aqui, a caracterização do livre

arbítrio como uma faculdade prática de agir em conformidade a fins e determinada pela

razão pura ensejará a sua qualificação como um princípio metafísico - de modo análogo

às leis do movimento da Metafísica da Natureza - e do qual surgem os princípios

270 Cf. Gregor. M. Laws of Freedom. Op. cit. p. 14. Gregor ressalta acertadamente que o elemento empírico admitido em uma Metafísica dos Costumes é mais extensivo do que aquela da Metafísica da Natureza. Contudo, a autora não se detém na Metafísica da Natureza, ao contrário do que tentamos fazer no 5º capítulo. Desse modo, seu juízo parece mais uma asserção do que a conclusão de uma investigação.

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223

supremos do direito e da virtude como derivados do imperativo categórico, o princípio

transcendental da filosofia moral de Kant (7.4). Por fim, um excurso sobre o conceito de

legalidade discutirá a legitimidade de uma disciplina jurídica no interior da filosofia

moral kantiana, revelando, ademais, como o próprio conceito de ato do livre arbítrio

pressupõe uma perspectiva intersubjetiva tomada como um dado em ambas as partes de

uma Metafísica dos Costumes (7.5).

7.1. O ato do livre arbítrio como conceito supremo da Metafísica dos

Costumes.

O uso de alguns paralelos com procedimentos operantes na Metafísica da

Natureza revela-se um possível caminho na nossa busca por um conceito a priori não

puro na Metafísica dos Costumes, a partir do qual se extrai o elemento empírico mínimo

necessário para definir o conceito de natureza humana de que depende a aplicação do

princípio supremo da moral. Ora, na Metafísica da Natureza, vimos que o conceito de

“objeto em geral” e de “matéria” serviam como pista para que entendêssemos o

funcionamento desta metafísica aplicada. Vejamos agora, pois, o que disso podemos

extrair para nossa análise da Metafísica dos Costumes.

Ao final do apêndice relativo à Anfibologia dos Conceitos de Reflexão, a poucas

linhas do término da Analítica Transcendental da Crítica da Razão Pura, Kant escreve:

Antes de deixarmos a Analítica Transcendental, temos ainda que acrescentar algo que,

embora não sendo em si de particular relevo, poderia parecer necessário para a

completude do sistema: o mais alto conceito, com o qual se costuma começar uma

filosofia transcendental consiste unicamente na divisão em possível e impossível.

Todavia, visto que toda a divisão pressupõe um conceito dividido, tem que ser indicado

um conceito ainda mais alto, e este é o conceito de um objeto em geral (tomado

problematicamente e sem decidir se é alguma coisa ou nada). Já que as categorias são

os únicos conceitos que se referem a objetos em geral, procede a distinção, se um objeto

é alguma coisa ou nada, segundo a ordem e indicação das categorias. (KrV A 290/ B

346. p. 292).

Nesse trecho, Kant afirma que a identificação de um conceito supremo no

sistema transcendental enseja uma preciosa indicação sistemática que, embora não tenha

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224

sido explicitamente levada a cabo por ele na Analítica Transcendental, pode parecer

atraente àquele que busca reconstruir de forma completa o sistema da filosofia

transcendental. A Analítica Transcendental, que nada mais é do que “a análise

<Zergliederung> de nosso inteiro conhecimento a priori nos elementos do

conhecimento puro do entendimento” (KrV A 64/ B 89. p. 97), tem dentre os seus

objetivos o de arrolar os conceitos elementares e puros do entendimento, unicamente

através dos quais é possível pensar a forma “de um objeto em geral” (KrV A 51/ B 75.

p. 91). Se, como repetidas vezes foi ressaltado ao longo da Analítica, as categorias

apresentam as condições de possibilidade de um objeto da experiência, parece evidente

que, de uma perspectiva lógica, o sistema da filosofia transcendental deva possuir como

conceito supremo aquele de um objeto em geral271, restando às categorias determinar de

que forma esse conceito poderia legitimamente constituir-se como um objeto da

experiência sensível - trata-se, como vimos na segunda parte dessa dissertação, do

projeto de substituição da “soberba” ontologia por uma “modesta” analítica do

entendimento puro (cf. KrV A 247/ B 303 . p. 206). Dessa maneira, com a identificação

de um “conceito supremo” da filosofia transcendental, Kant nos alerta sobre um de seus

objetivos com a Analítica Transcendental: a “ontologia crítica”, a parte transcendental

da Metafísica da Natureza, tem como função estipular os princípios e conceitos através

dos quais é inicialmente possível pensar e efetivar a “forma de um objeto em geral”.

A identificação entre ontologia e sistema cujo conceito supremo é o objeto em

geral se repete alhures, agora, significativamente, numa nota de rodapé da Introdução à

Metafísica dos Costumes. Discutindo as dificuldades em definir um conceito supremo

num sistema, Kant escreve:

271 Segundo Courtine, com isso e em sua “tabela da divisão do conceito de nada” que vem na sequência do trecho citado da Crítica da Razão Pura, o alvo de Kant seria Baumgarten, que parte do possível e do impossível como noções preliminares na ontologia, o que, para Courtine, seria parcialmente correto: na verdade, Baumgarten toma um conceito mais geral, “simples e fácil”: o de nada (nihil). Este, como nihil negativum (repugnans), constitui o “pano de fundo da elaboração escolástica da metafísica, da qual, por conseguinte, a ontologia é mais o estudo do aliquid (algo) do que do ens, na medida em que este se opõe diretamente ao non-ens. O termo mais geral que nomeia esse aliquid, antes de sua disjunção em ens/non-ens, é o de res, ou de objeto (Objekt). O aliquid, no sentido de non-nihil, é, portanto, o primeiro conceito positivo da ontologia, para o qual o conteúdo básico ontológico, o entitas mínima, é, contudo, suficiente de modo a responder às exigências da noção e da representação, e, por isso, já é ‘objeto’. Este, por sua vez, pode ser qualquer coisa ou nada, determinado ou indeterminado, atual ou possível. Esse objeto em geral em sua determinação é atual (actuale-wirklich); ele é propriamente ens. Em sua indeterminação, ele é non-ens, ou nihil, mas no sentido de nihil-privatium; dito de outro modo, ele é ao menos possível – ein mögliches Nichts –, como escreve Baumgarten” (Courtine, J-F. Suarez et le système de la métaphysique. Op. cit. pp. 252-253). Contudo, Courtine não menciona o trecho da Introdução à Metafísica dos Costumes que transcreveremos na sequência e no qual Kant afirma que o conceito de objeto em geral é o conceito supremo da divisão do algo (aliquid) e do nada (nihil), e não do possível e do impossível, de acordo, pois, com o manual de Baumgarten e sua noção “simples e fácil” de nihil, ou nada.

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225

Assim acontece aos mestres de ontologia, que começam por algo ou nada como o

primeiro [conceito], sem advertirem que são já membros de uma divisão, cujo conceito

dividido falta, e que só pode ser o conceito de um objeto em geral (MS Ak VI: 218n. p.

26n).

Em suma, e aqui apenas recordamos o que foi discutido na segunda parte da

dissertação, a filosofia transcendental, entendida como uma ontologia, deve ter como

objetivo determinar as condições através das quais se torna possível conhecer algo como

um objeto da experiência sensível, donde o seu conceito supremo ser justamente o de

um “objeto em geral”. Relembremos uma passagem significativa nesse sentido:

Ontologia é a ciência das coisas em geral, isto é, da possibilidade de nosso

conhecimento a priori de coisas, ou seja, independente da experiência. Ela não pode

ensinar-nos sobre as coisas em si mesmas, mas antes apenas sobre as condições a priori

sob as quais nós podemos conhecer coisas na experiência em geral, isto é, princípios da

possibilidade da experiência (Met. Volckmann Ak XXVIII: 394).

De forma análoga, nos Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da

Natureza, que trata não de objetos em geral ou de objetos conforme estes são dados a

uma intuição sensível em geral, mas de objetos conforme estes são dados ao sentido

externo, “põe-se como fundamento uma análise <Zergliederung> completa do conceito

de uma matéria em geral” (MAN. Ak IV: 472. p. 17), o qual, portanto, a exemplo do

que ocorre com o conceito de objeto em geral na filosofia transcendental, assume o

posto de “conceito supremo” do sistema metafísico da natureza corpórea. Como vimos,

os Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza tinham como função

determinar as leis da natureza que regulavam um objeto em geral do sentido externo.

Definindo este como o conceito de matéria, Kant deduz as leis envolvidas como leis do

movimento ao subsumi-lo sob as categorias, ensejando assim as quatro partes que

compõem a obra. O procedimento aqui é análogo ao da “ontologia”: a determinação

completa de um “objeto do sentido externo” como uma “matéria movente no espaço”

ocorre quando o conceito supremo dos Primeiros Princípios da Ciência da Natureza é

subsumido sob as quatro classes de categorias, da mesma forma como o “objeto em

geral”, conceito supremo da “ontologia”, era determinado como “objeto em geral de

uma experiência sensível” através de sua “subsunção” aos conceitos puros do

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226

entendimento e ao sistema dos princípios. Em suma, assim como a “ontologia” é a

disciplina que dispõe dos princípios necessários para a constituição de um “objeto em

geral” como objeto da experiência sensível (em geral), a metafísica da substância

corpórea, de que tratam os Primeiros Princípios da Ciência da Natureza, deve ser a

disciplina que investiga os princípios que tornam possível a constituição de um “objeto

em geral do sentido externo”, isto é, que permitem a “experiência de algo externamente

dado” - em uma palavra, as leis do movimento.

E quanto à Metafísica dos Costumes? Haveria também aqui um “conceito

supremo” que nos forneça referências acerca de como proceder na distinção de suas

duas partes, a Doutrina do Direito e a Doutrina da Virtude? Quem dá a pista é o próprio

Kant na já citada nota de rodapé presente na introdução à Metafísica dos Costumes:

A dedução da divisão de um sistema, isto é, a prova da sua completude, como também

da sua continuidade – a saber, que a passagem dos conceitos divididos para os membros

da divisão ocorra na série completa das subdivisões sem nenhum salto (divisio per

saltum) -, é uma das condições mais difíceis que o construtor de um sistema deve

satisfazer. Difícil é também determinar qual é o conceito supremo dividido na divisão

do correto e do incorreto <Recht oder Unrecht> (aut fas aut nefas). É o ato do livre

arbítrio em geral <Akt der freien Willkür>. Assim acontece aos mestres de ontologia,

que começam por algo ou nada como o primeiro, sem advertirem que são já membros

de uma divisão, cujo conceito dividido falta, e que só pode ser o conceito de um objeto

em geral (MS Ak VI: 218n; DD p. 28n. Grifos nossos).

Kant aqui sugere que o conceito de ato do livre arbítrio, a exemplo do que ocorre

com o conceito de “objeto em geral” na ontologia crítica proposta, serviria como

“conceito supremo” de uma Metafísica dos Costumes, e do qual, portanto, partiria o

sistema de deveres projetado na obra272. Contudo, um olhar mais detido nos revela que,

272 Neste momento poderiam ser introduzidas considerações a respeito das categorias da liberdade (KpV Ak V: 66. p. 106) como modo de sistematização da Metafísica dos Costumes, a exemplo do que ocorre na Metafísica da Natureza e as categorias do entendimento como fio condutor das leis do movimento. Trata-se do projeto de, por exemplo, Alain Renaut e Monika Sanger (Renaut, A. “L´Énracinement Critique de la Métaphysique des Moeurs”. In: Goyard-Fabre, S. e Ferrari, J (orgs). L´Année 1797. Kant. La Métaphysique des Moeurs. Paris. Vrin. 2000. Sänger, M. Die kategoriale Systematik in den ´Metaphysischen Anfangsgründe der Rechtslehre´. Op. cit.). No entanto, acreditamos que aqui há nem tanto algum expediente profícuo de análise da Metafísica dos Costumes do que, na realidade, o leito proscruteano de que fala Schopenhauer por ocasião da sanha sistemática kantiana e sua tábua das categorias (Schopenhauer, A. Die Welt als Wille und Vorstellung. Bd I. Werke in Fünf Bänden. Op. cit. p. 549). Há inúmeras dificuldades envolvendo a elucidação do estatuto das categorias da liberdade no interior mesmo da Crítica da Razão Prática. Mencionemos algumas: em que consistem precisamente os “conceitos” da razão prática, a saber, “bom” e “mau”, aos quais Kant vincula as categorias da liberdade; como compreendê-las como “modos” da categoria da causalidade; de que maneira o “múltiplo dos

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227

na realidade, o conceito de ato do livre arbítrio se aproxima mais ao de matéria como

um conceito a priori não puro, ou seja, um conceito que possui uma “base sensível”

mínima e que, em razão desse elemento empírico elementar, caracteriza-se como

fundamento da metafísica da substância corpórea: um conceito “empírico” do qual é

possível extrair conhecimentos a priori. De modos mais preciso, em uma Metafísica dos

Costumes não se parte de um “ato da vontade livre”, entendido como a condição de

possibilidade de uma objetividade moral “divina”, mas, antes, da objetividade de um ato

que pode ser dado no “mundo”, isto é, no espaço e no tempo. Em suma, o uso externo e

interno da liberdade, que tem o princípio de autonomia como seu princípio supremo.

Ora, com efeito, como atestam diversas passagens dos Vorarbeiten zur

Rechtslehre, o “conceito supremo” da Metafísica dos Costumes comporta-se como um

autêntico objeto de uma metafísica particular no sentido kantiano do termo: o arbítrio é

a faculdade prática do homem considerado não como númeno, mas sim como

fenômeno, ou seja, trata-se de algo “sensivelmente verificado”, dado na experiência,

mas que, não obstante, pode ser determinado de forma a priori, a saber, pela razão

desejos” se comporta em face de cada momento da tábua; como a razão prática “produz” a efetividade seu objeto ao aplicá-lo imediatamente às categorias da liberdade, tornando os “conceitos práticos” objetivamente válidos, em oposição ao procedimento teórico indireto, que precisa de um “terceiro termo”, a saber, o múltiplo dado pela intuição, para além das categorias e da espontaneidade sintética do sujeito; qual a relação entre categorias da liberdade e o imperativo categórico, entendido como guia do “juízo moral” (Gr Ak IV: 436. p. 141); e, por último mas nem por isso menos importante, onde haveria uma “dedução metafísica” dessas categorias, a exemplo do que ocorre com a derivação da tábua das categorias do entendimento a partir das formas lógicas do juízo, e mesmo uma “dedução transcendental” das mesmas, o que é aparentemente negado pelo recurso ao fato da razão? São essas apenas algumas das perguntas que ficam sem resposta no tratamento das categorias da liberdade que Kant fornece na Crítica da Razão Prática. Para agravar a situação, a literatura sobre o tema é extremamente exígua e incompleta: ver, por exemplo, Beck (Beck, L.W. A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Op. cit. pp.144-54), que, no término de sua exposição sobre cada um dos momentos da tábua, escreve: “Assim termina nosso tedioso exame da tábua das categorias [da liberdade]: ela é apresentada com hesitação, e contém mais questões do que respostas, mais conjecturas do que decisões. Nós lastimamos que Kant não a tenha formulado com sua costumaz habilidade arquitetônica” (p. 153). Com efeito, o laconismo de Kant ao tratar de suas categorias da liberdade é exasperante. Certamente não é função ou objetivo desta dissertação de mestrado resolver um problema que ainda permanece em aberto na Kant-Forschung. Por fim, como justificativa derradeira ao não uso do “fio condutor das categorias da liberdade” na Metafísica dos Costumes, citemos os seguintes motivos: 1) Por um lado, é fato que os Vorarbeiten zur Rechtslehre, presentes no volume XXIII da Akademie Ausgabe, demonstram um esforço de aplicação das categorias ao direito análogo em intenção àquele presente nos Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza – Kant buscou definir o quadro de deveres e direitos a partir da aplicação das categorias, sobretudo as de relação, ao conceito já “esquematizado” de ato do livre arbítrio nas relações externas, de modo semelhante à aplicação das categorias do entendimento ao conceito de matéria em geral como objeto do sentido externo. Ver Sänger (Op. Cit. esp. pp. 178-241), que busca reconstruir os fragmentos contidos nos Vorarbeiten e investigar a possibilidade de uma sistemática categorial na Doutrina do Direito. Contudo, por outro lado, Kant não emprega de forma exaustiva essa sistemática categorial na sua obra publicada, do que podemos inferir de modo nem um pouco constrangido que ele estava suficientemente satisfeito com sua versão impressa; 2) a Doutrina da Virtude permanece não explorada em sua estrutura categorial, seja na obra impressa seja nos Vorarbeiten zur Tugendlehre, o que torna supérflua qualquer menção às categorias da liberdade na tentativa de elucidar o caráter crítico da obra.

Page 228: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

228

prática pura. Neste último caso, ele se torna um arbítrio livre. Vejamos algumas dessas

passagens:

É necessário distinguir arbítrio de vontade: a primeira faculdade prática refere-se a

objetos que podem ser dados, e são, por conseguinte, objetos da sensibilidade; o

homem considera-se a si mesmo, segundo seu arbítrio, como fenômeno (Vorarbeiten

zur Rechtslehre Ak XXIII: 249. Grifos nossos).

A vontade de um homem é a legislação incondicional de sua própria razão prática pura.

Pelo contrário, o arbítrio é a faculdade sensivelmente determinável de fazer para si

máximas de certas regras de ações (Vorarbeiten zur Rechtslehre Ak XXIII: 256).

A vontade do homem precisa ser distinguida do arbítrio. Apenas o último pode ser

denominado livre, referindo-se meramente a fenômenos, isto é, a atos que são

determinados no mundo dos sentidos. Pois a vontade não está sob leis, mas antes é ela

mesma legisladora para o arbítrio e é espontaneidade prática absoluta na determinação

do mesmo. Justamente por isso a vontade é boa em todos os homens e não há nenhum

querer <Wollen> contrário à lei <gesetzwiedriges> (Vorarbeiten zur Rechtslehre Ak

XXIII: 248).

Analogamente, pois, ao conceito “empírico” de matéria, conhecido através de

uma referência mínima à experiência e à “base sensível” em que repousa, o arbítrio é

uma faculdade prática empiricamente dada, pertencente ao homem enquanto ser

sensível, e, portanto, conhecida inicialmente mediante a referência à experiência

possível - os atos humanos têm lugar no mundo dos sentidos, no espaço e no tempo, ou

dito de maneira mais adequada, o uso de sua liberdade ocorre em uma perspectiva

externa e interna, causando efeitos sensíveis, produzindo ou visando objetos da

sensibilidade. Contudo, a despeito dessa impregnação sensível, o arbítrio pode ser

determinado de forma a priori, contanto que a lei da vontade, ou seja, a razão pura, se

torne seu fundamento suficiente de determinação - sob essas circunstâncias, ele se

caracteriza como um livre arbítrio, um poder de produzir objetos sensíveis determinado

de modo a priori. Trata-se, pois, de algo semelhante ao que ocorre com o conceito

empírico de matéria determinada pelas leis do movimento.

Nesse sentido, a primeira seção273 da Introdução à Metafísica dos Costumes, em

que o arbítrio é inicialmente discutido, denominada “Da relação das faculdades do

273 Segundo a edição de Bernd Ludwig, trata-se da segunda seção.

Page 229: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

229

ânimo humano com as leis morais”, pode auxiliar-nos aqui. Neste momento, Kant

realiza algo semelhante ao que fizera nos Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência

da Natureza em relação ao conceito de matéria como movente no espaço: define o

caráter a priori não puro do livre arbítrio humano. Se, no capítulo anterior, já definimos

aquilo em que deve consistir o “a priori” da ação humana, resta agora determinar o que

seria o “não puro”, o elemento empírico mínimo exigido na Metafísica dos Costumes.

7.2. As faculdades práticas humanas. O aporte da psicologia.

No prefácio à Crítica da Razão Prática (KpV Ak V: 9n. p. 15n), Kant rebate as

possíveis críticas de que ele, na Fundamentação, não teria fornecido definições de

conceitos centrais para sua filosofia prática, tais como faculdade de desejar e sentimento

de prazer e desprazer. Ora, replica Kant, as censuras seriam infundadas, na medida em

que tais conceitos devem ser discutidos não num estudo sobre a fundamentação pura da

moral, mas antes na “psicologia” e, portanto, seriam “pressupostos” na investigação que

empreendera. Com efeito, podemos entender isso a partir do quadro de uma Metafísica

dos Costumes que traçamos até aqui: a análise das faculdades práticas humanas não

deve ser tema da parte transcendental desta disciplina, exposta na Fundamentação, mas

apenas de sua parte metafísico-específica, em que a natureza humana é disposta como

um elemento empírico mínimo, passível de ser determinado a priori pelo princípio

supremo da moral. Neste momento, conforme nos informa o mesmo prefácio da Crítica

da Razão Prática, “a natureza que o homem efetivamente detém” é mostrada enquanto

se põe numa relação “necessária com o dever em geral” (KpV Ak V: 8. p. 14), ou ainda,

de acordo com a Introdução à Metafísica dos Costumes, segundo as “conseqüências nela

dos princípios morais universais” (MS Ak 216-217. p. 24). A psicologia, por certo,

surge neste momento como uma disciplina auxiliar no esforço metafísico de aplicação

das proposições morais ao homem: ela deve fornecer dados relativos às suas faculdades

práticas, o modo como ele é determinado à ação em meio a estímulos sensíveis e

princípios da razão pura. Deste auxílio da psicologia surge o conceito a priori não puro

de livre arbítrio, que, forçando um pouco os termos, cumpre uma função mediadora

análoga àquela realizada pelo conceito de matéria: trata-se de um “objeto” tanto da

psicologia quanto da moral pura aplicada ao homem. Como Kant ressalta após definir

alguns conceitos extraídos da psicologia e que serão retomados na sequência, “para o

Page 230: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

230

propósito da Crítica, não necessito de mais nenhum conceito tomado de empréstimo à

psicologia; a Crítica realiza o restante” (KpV Ak V: 9. p. 15. Grifo nosso). Com efeito,

notamos claramente a restrição da atuação de considerações psicológicas quando

comparamos os conceitos discutidos na Introdução à Metafísica dos Costumes com

aqueles de que trata a Antropologia de um ponto de vista pragmático, mais

especificamente em “Da faculdade de desejar”, livro terceiro de sua primeira parte, a

Didática Antropológica, correlato daquilo que, na tradição racionalista, correspondia à

psicologia empírica274. De todo o objeto de estudos próprio à psicologia, Kant extrai

apenas um mínimo necessário para estabelecer o conceito das faculdades práticas

humanas de que precisa. Há através disso o detalhamento daquele que seria o fato

antropológico fundamental que opõe a vontade finita à divina: da constatação pura e

simples da imperfeição da vontade do homem deve-se passar àquilo que caracteriza a

particularidade desta vontade específica: a humana.

No interior do âmbito da psicologia chamado em apoio à análise crítica, Kant

inicialmente define o conceito de “vida” <Leben> como a faculdade de agir em geral

conforme representações, e o de “faculdade de desejar” <Begehrungsvermögen> como a

faculdade de ser causa dos objetos representados (MS Ak VI: 211. p. 15)275. Há, aqui,

referência ao fato antropológico fundamental, relativo à constituição natural do homem,

a saber, que há uma ligação do prazer (ou desprazer) ao desejo <Begehren> (ou aversão

<Verabscheuen>) pela existência do objeto representado. Esta característica de, por

meio do prazer que a representação de determinado objeto provoca, ser a causa de sua

produção, é compartilhada pelo homem com todos os outros seres vivos, em oposição à

pura e simples matéria sem vida <leblos>:

Vida significa a faculdade de uma substância de determinar-se para a ação a partir de

um princípio <Prinzip> interno, [a faculdade de] uma substância finita de determinar-se

à mudança, e [a faculdade de] uma substância material de determinar-se ao movimento

ou repouso como mudança de seu estado. Ora, não conhecemos nenhum outro princípio

274 Cf. Zammito, J. Kant, Herder, and the birth of anthropology. Op. cit. p. 301 e passim. 275 Cf. KpV Ak V: 9n. p. 15n. Grifo nosso: “Vida é a faculdade de um ser de agir segundo leis da faculdade de desejar. A faculdade de desejar é a faculdade desse mesmo ser de, através de suas representações, ser causa da efetividade dos objetos destas representações”. A menos que entendamos as “leis” mencionadas em um sentido amplo de “representações” ou mesmo “princípios”, haverá um problema em conciliar esta caracterização de “vida” e “faculdade de desejar” com aquela fornecida pela Metafísica dos Costumes. Como veremos, Kant inclui o livre arbítrio como a faculdade de desejar guiada por princípios da razão pura, ou seja, por leis universais. Ora, em um animal há “vida”, ou seja, a faculdade de agir por representações de objetos que causam prazer, mas não “livre arbítrio”, ou seja, a faculdade de desejar guiada por leis, como sugere a passagem da Crítica da Razão Prática.

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231

interno de uma substância de mudar seu estado senão o desejo e, em geral, não existe

nenhuma outra atividade <Tätigkeit> interna senão o pensamento <Denken> [ligado]

com o sentimento de prazer ou desprazer e apetite <Begierde> ou vontade (MAN Ak

IV: 544. Grifos nossos)

Em suma, a vida é algo que liga primitivamente o homem à sua determinação

como ser natural. O elo sensível com esse elemento natural do homem é obtido através

do sentimento <Gefühl>, a inevitável receptividade à sensação de prazer ou desprazer

provocada por um objeto (MS Ak VI: 211. p. 15). Esse sentimento é ligado à

sensibilidade, e mais: àquilo que da sensibilidade somente pode ser dito do sujeito, e

não do objeto representado subjetivamente na sensibilidade. Tentando dizer o mesmo de

maneira um pouco mais clara: o sentimento diferencia-se do sentido <Sinn>, ou seja,

daquilo que é subjetivo na representação mas que, não obstante, pode ser referido a um

objeto com vistas ao conhecimento. Deve-se lembrar aqui a Estética Transcendental da

Crítica da Razão Pura: os objetos que conhecemos são todos dados no espaço e tempo,

ou seja, nas formas puras da sensibilidade; nesta medida, um objeto é dado através de

uma representação da sensibilidade, referida, por certo, a algo “externo” que pode ser

conhecido. No caso do sentimento, contudo, não há essa remissão a um “objeto”, ou

melhor, não a um objeto a ser conhecido: não se trata, no sentimento, de uma

“representação objetiva”, mas antes de algo puramente subjetivo ligado à faculdade de

desejar, e não às faculdades de conhecimento (MS Ak VI: 211. pp. 15-16).

Ainda com respeito ao “prazer prático” relacionado ao sentimento, ou seja, o

prazer por uma representação do objeto ligada não às faculdades estéticas do sujeito

(trata-se, neste último caso, de um prazer “meramente estético”, não referido a um

desejo ou interesse pela existência do objeto que o desperta276), mas antes à faculdade

de desejar, Kant nomeia “inclinação <Neigung>” à determinação da faculdade de

desejar pelo prazer que precede tal determinação e serve-lhe como causa (MS Ak VI:

276 Cf. KU Ak V: 177-179. pp. 20-23; EEin Ak XX: 201-209. pp. 170-174. Kant opõe aqui o sentimento de prazer e desprazer à faculdade de desejar como faculdades distintas do ânimo <Gemüt> humano, atribuindo os princípios a priori do primeiro à faculdade de julgar e os da segunda à razão. A questão do “interesse desinteressado” na mera contemplação do objeto envolvido no ajuizamento estético próprio à faculdade reflexionante do juízo, e o “interesse interessado” pelo mesmo objeto, agora em sua referência ao agrado esperado pela sua existência e que o liga à faculdade de desejar, está no pano de fundo para a distinção entre o “prazer prático” e o “prazer meramente estético”, desenvolvida sobretudo na Analítica do Belo da Faculdade de Julgar. Embora profícua, não entraremos nesta discussão. Cf. Rohden, V. Interesse da Razão e Liberdade. Op. cit. pp. 63-67.

Page 232: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

232

212. p. 17)277. Ser determinado pela natureza significa, pois, ser determinado a causar a

existência de um objeto da representação por meio de uma inclinação sensível que põe

em movimento a faculdade de desejar, servindo-lhe como fundamento de determinação.

O arbítrio é definido por Kant no interior desta complexa trama conceitual

relativa às faculdades práticas humanas. Vejamos a passagem que ele figura pela

primeira vez:

A faculdade de desejar segundo conceitos se chama faculdade de fazer ou não fazer à

sua própria escolha <nach Belieben zu tun oder zu lassen>, na medida em que o seu

fundamento de determinação para a ação se encontra nela mesma, não no objeto. Na

medida em que está ligada à consciência da capacidade de sua ação para a produção do

objeto ela se chama arbítrio; mas, se não está unida a esta consciência, então o seu ato

se chama mero anseio <Wunsch>278. (MS Ak VI: 213. p. 18).

Percebe-se aqui o modo como Kant define o arbítrio no interior de um quadro

antropológico ou psicológico das faculdades práticas humanas. Ele seria uma faculdade

ligada não meramente à faculdade de desejar279, mas antes à faculdade de desejar por

conceitos, ou seja, à faculdade de fazer ou deixar de fazer “nach Belieben”, isto é, “à

seu bel prazer”, “à sua discrição”, “à sua própria escolha”, em que o fundamento de

determinação da ação encontra-se não no objeto, mas antes nesta própria faculdade.

277 Há, ainda, uma “inclinação não-sensível”, relacionada ao prazer que sucede a determinação da faculdade de desejar por um princípio da razão pura. Aqui Kant retoma o conceito de interesse, conforme expusemos brevemente por ocasião da discussão da Fundamentação. Cf. pp. 195-196. supra. Além do interesse da inclinação, o interesse “patológico”, ou seja, referido ao prazer da inclinação que precede e causa a determinação da faculdade de desejar segundo um princípio racional baseado em tal inclinação, haveria ainda um “interesse da razão” refletido no “prazer intelectual” que se segue à determinação da faculdade de desejar pela própria razão, ou seja, tal prazer seria não a causa, mas o efeito do interesse prático da razão; segundo Kant, tal “prazer intelectual” seria uma “inclinação não-sensível (propensio intellectualis)” (MS Ak VI: 213. pp. 17-18). 278 Optamos por traduzir “Wunsch” por “mero anseio” na falta de opção melhor. Wunsch se opõe a Begehren (“desejo”) na medida em que este está ligado à capacidade de produzir o objeto cuja representação impele o arbítrio ou a faculdade de desejar. Esta distinção será importante para a Doutrina do Direito, que regula a relação externa entre “arbítrios”, ou seja, entre “desejos” <Begehren> e não “meros anseios” <Wünsche>. Estes, por não impelirem o agente à ação com vistas à produção do objeto, não produzem efeitos externos e, portanto, não interferem na liberdade externa dos demais sujeitos. 279 Kant não esclarece o que seria a faculdade de desejar tomada não enquanto faculdade de fazer ou não fazer “à sua própria escolha”, ou seja, não como a faculdade de desejar guiada “por meros conceitos”. Podemos conjecturar tratar-se de algum instinto incontornável ou um estado patológico em que o sujeito não consegue mais evitar a influência do objeto sobre suas faculdades práticas, ou seja, no caso de o fundamento de determinação da faculdade de desejar encontrar-se não nela própria, mas antes no objeto, e, assim, o agente não ser mais capaz de agir “à sua própria escolha” <nach Belieben>. Algo próximo à noção de “paixão” discutida na Antropologia (Anthropologie Ak VII: 251ss. p. 149ss) – neste caso, a inclinação, cuja influência pode ser em princípio sobrepujada pela razão, transforma-se em “paixão”, ou seja, em “uma inclinação que a razão do sujeito dificilmente pode dominar, ou não pode dominar de modo algum” (Anthropologie Ak VII: 252. p. 149). Neste último caso, o fundamento de determinação da faculdade de desejar reside no próprio objeto da paixão, e não no sujeito acometido por ela.

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233

Caso essa faculdade de agir à seu bel prazer estiver ligada à consciência da produção do

objeto desejado, trata-se do arbítrio, caso contrário, de um mero anseio pela existência

do objeto e não o efetivo desejo pela sua produção que impele o agente à ação com este

objetivo.

Na sequência, Kant opõe o arbítrio à vontade:

A faculdade de desejar cujo fundamento interno de determinação – portanto a escolha

<Belieben> mesma – encontra-se na razão do sujeito chama-se vontade. A vontade é,

portanto, a faculdade de desejar considerada não tanto em relação à ação (como o

arbítrio), mas muito mais em relação ao fundamento de determinação do arbítrio à ação,

e não tem ela mesma nenhum fundamento de determinação perante si própria, mas é

antes, na medida em que pode determinar o arbítrio, a razão prática mesma (MS Ak VI:

213. p. 18).

A vontade, pois, seria a faculdade de desejar cujo fundamento de determinação

encontra-se não apenas no interior desta faculdade de desejar (ora, isto pode ocorrer em

animais irracionais), mas antes na própria razão. Nessa medida, a vontade não

determina uma ação em particular, o que é função do arbítrio, mas antes considera o

possível fundamento de determinação para as ações empreendidas pelo arbítrio. Trata-

se, aqui, de uma espécie de “divisão de poderes” no interior da faculdade de desejar

enquanto faculdade de fazer ou deixar de fazer à sua própria escolha: o arbítrio seria o

“poder executivo”, ao passo que a vontade, o “poder legislativo”. O arbítrio executaria

aquilo ditado pela vontade, ou ainda, na medida em que esta fornece a lei para o

arbítrio, pela razão prática280.

De fato, Kant opõe duas possíveis acepções de arbítrio: um arbítrio animal,

determinável apenas pela inclinação, e um arbítrio livre, determinável também pela

razão prática pura – neste último caso, o arbítrio estaria “contido sob” <enthalten unter>

a vontade:

280 Cf. Beck. L. W. “Deux concepts kantiens du vouloir dans leur contexte politique”. Op. cit. p. 125. Beck afirma ainda que o arbítrio é um “poder executivo espontâneo” que, contudo, “somente é plenamente espontâneo se sua ação for governada pela razão prática pura”, ou seja, quando ele executa a lei promulgada pela vontade. Fica, no entanto, a dificuldade de compreender a existência de duas modalidades de “espontaneidade”, aparentemente impensáveis a partir da concepção kantiana de liberdade transcendental (cf. p.ex. KpV Ak V: 97. pp.156-157). Mais sobre isso abaixo. Contudo, como já dito, cumpre insistir que não entraremos nessa dissertação nos problemas interpretativos relativos à possibilidade da liberdade em Kant, e tampouco nas diferentes formulações a respeito fornecidas ao longo do período crítico.

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234

Na medida em que a razão pode determinar a faculdade de desejar em geral, o arbítrio

(...) pode estar contido sob a vontade. O arbítrio que pode ser determinado pela razão

pura se chama livre arbítrio. O que só é determinável pela inclinação (impulso sensível,

stimulus) seria arbítrio animal (arbitrium brutum) (MS Ak VI: 213. pp. 18-19).

Ser determinado pela razão é o oposto de ser determinado pela inclinação, pela

sensibilidade. No primeiro caso, temos um livre arbítrio, no segundo, um arbítrio

animal, afetado sensivelmente – aqui, podemos imaginar algo como um poder executivo

agindo “à seu bel prazer”, isto é, sem estar submetido às limitações impostas pela lei do

legislativo ou por um mecanismo de check-and-balances. Segundo Kant, ao contrário

dos outros animais, que são determinados tão-somente pelas inclinações, ou seja,

através de um prazer prático que inevitavelmente precede e causa a determinação da

faculdade de desejar, o homem está numa “encruzilhada” (Gr Ak IV: 400. p. 114): ele

pode ser determinado ou bem pela razão pura, ou bem pela natureza:

O arbítrio humano (...) é um arbítrio tal que é certamente afetado, mas não

determinado, pelos impulsos, e não é, pois, puro por si mesmo (sem uma destreza

<Fertigkeit> adquirida da razão), ainda que possa ser determinado às ações por uma

vontade pura (MS Ak VI: 213. p. 19).

O homem não é perfeito: seu arbítrio não é determinado tão-somente pela razão,

ele não é “puro por si mesmo”, como, por exemplo, a vontade divina; contudo, o

homem tampouco é um mero animal, guiado apenas pelas inclinações que os objetos lhe

despertam. O homem pode ser determinado pela razão pura, ele pode ser livre. Esta

liberdade, segundo a Introdução à Metafísica dos Costumes, é dupla: negativa ou

positiva.

A liberdade do arbítrio é aquela independência de sua determinação pelos impulsos

sensíveis: este é o seu conceito negativo. O positivo é: a capacidade da razão pura de

ser prática por si mesma. Isso não é possível de outro modo, porém, que não o da

subordinação da máxima de cada ação à condição de aptidão da primeira para a lei

universal. Pois, como razão pura aplicada ao arbítrio sem ter em conta este seu objeto, e

como faculdade dos princípios (e aqui dos princípios práticos, portanto como faculdade

legisladora), ela só pode, já que a matéria da lei lhe escapa, transformar a forma da

aptidão da máxima do arbítrio em lei universal, ou mesmo em lei suprema e

fundamento de determinação do arbítrio, e prescrever essa lei simplesmente como

imperativo de proibição ou de comando, dado que as máximas do homem a partir de

Page 235: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

235

causas subjetivas não coincidem por si mesmas com aquelas objetivas (MS Ak VI: 213-

214. p. 19).

A liberdade positiva, de que se trata na determinação do arbítrio pela vontade,

isto é, pela razão, deve ser distinguida da liberdade negativa: ao passo que esta é a

simples espontaneidade, a possível independência em relação a estímulos sensíveis, a

liberdade positiva é a própria legislação universal da razão, a forma da máxima do

arbítrio transformada em lei universal, ou “lei suprema e fundamento da determinação

do arbítrio”. Ao passo que a liberdade negativa do arbítrio é consequência da sua

capacidade espontânea de agir por princípios subjetivos, por máximas para cuja

formulação os estímulos sensíveis podem ou não ser decisivos, a liberdade positiva

consiste em que tais máximas possam ser universalizadas, ou seja, concordar com a

legislação da razão prática pura281.

Assim, as ações empreendidas de modo espontâneo pelo arbítrio (a “produção de

objetos”) podem ou não ser executadas através de leis fornecidas pela razão. Em suma,

aquilo que o homem compartilha com outros animais, o arbítrio (com a particularidade

de que no homem este arbítrio é per se espontâneo, ou seja, negativamente livre), ou

ainda, a possibilidade de ser causa da produção de determinados objetos, pode ou não

ser resultado de uma determinação da razão pura – em termos políticos, o poder

executivo pode ou não agir à revelia do legislativo, com a diferença de que no caso dos

animais este último está completamente ausente.

Contudo, Kant prossegue, o arbítrio pode ser dito livre em ainda outras duas

perspectivas: externa e interna. Ou seja, as “leis da liberdade” ou “leis morais” que a

281 Como já insinuado acima, há dificuldades em conciliar estas duas concepções de liberdade, repetidas, de resto, ao longo do período crítico. Segundo Allison, a própria espontaneidade do arbítrio já é marca da liberdade, mas a liberdade positiva, a autonomia da vontade, somente ocorre quando esta espontaneidade “é exercitada de uma determinada maneira”, ou seja, quando a máxima, que é o fruto desta espontaneidade, possua uma característica adicional: ser apta à universalização. Cf. Allison, H. Kant’s Theory of Freedom. Op. cit. pp. 132-3. Para os problemas que a introdução do conceito de “arbítrio” introduz no quadro geral da filosofia moral kantiana, cf. Idem. 129-145. Segundo Allison, a “aparição” do arbítrio apenas faz confundir ainda mais o sistema kantiano no interior do qual devem ser conciliadas a noção da liberdade como espontaneidade absoluta e a de liberdade “como moralidade”, ou seja, a determinação de um arbítrio livre única e exclusivamente pela lei moral. É conhecida a tentativa de Allison de solução desse problema a partir da “tese de reciprocidade”. cf. Allison, H. Kant’s Theory of Freedom. Op. cit. pp. 201-213. O próprio Allison resume a tese apresentando suas duas premissas: “(1) dado que um agente (transcendentalmente) livre é também um agente racional, as escolhas <choices> de tal agente são sujeitas à exigência de justificação, isto equivale a dizer que elas precisam ser justificadas por meio de um princípio que seria aplicável a outros agentes racionais em circunstâncias similares relevantes; e (2) a lei moral, como a única lei prática incondicionada, fornece esse princípio”. Allison. H. “Kant’s doctrine of obligatory ends”. In: Idem. Idealism and Freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p.161. Há aqui, de resto, ressonâncias das duas acepções de autonomia sugeridas por Bittner: a autonomia “natural” e a autonomia “moral”. Cf. supra nota 263.

Page 236: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

236

vontade fornece para a atuação executiva do arbítrio podem ser leis jurídicas ou leis

éticas:

Essas leis da liberdade, à diferença das leis da natureza, chamam-se morais. Na medida

em que se refiram apenas às ações meramente exteriores e à conformidade destas à lei,

elas se chamam jurídicas; mas, na medida em que exijam também que elas próprias

devam ser os fundamentos de determinação das ações, então são éticas. Diz-se,

portanto: a concordância com as primeiras é a legalidade <Legalität>, com as segundas

a moralidade da ação. A liberdade a que se referem as primeiras leis só pode ser a

liberdade no uso externo do arbítrio, enquanto aquela a que se referem as últimas pode

ser a liberdade em seu uso tanto externo como interno, desde que ela seja determinada

pela lei da razão (MS Ak VI: 214. pp. 19-20).

Notemos como Kant se refere a uma pluralidade de leis morais. Não se trata

mais de estabelecer o princípio supremo da moral, a lei moral conforme esta se

apresenta ao ser racional finito em sua feição prescritiva. Agora entram em cena as leis

da liberdade, as leis morais que regulam a atuação do arbítrio em suas ações externas e

internas. Ora, a vontade “promulga” uma lei que pode se especificar em diversas

situações práticas humanas, de acordo com as circunstâncias em que o arbítrio se

manifesta: no uso externo e no uso interno da liberdade, isto é, na legalidade ou na

moralidade da ação. Desse modo, a lei moral se especifica em leis morais que podem

ser ditas leis externas ou leis internas, leis jurídicas ou leis éticas que regulam o uso

externo e interno da liberdade do arbítrio, respectivamente. Em ambos os casos,

contudo, a fonte das mesmas é a razão, que estipula o parâmetro para a liberdade

positiva do arbítrio: a autonomia externa ou interna.

Nesta medida, como Kant escreve em outro momento da Introdução à Metafísica

dos Costumes, apenas é lícito denominar “livre” o arbítrio, e não a própria vontade:

As leis procedem da vontade; as máximas, do arbítrio. Este último é, no homem, um

livre arbítrio; a vontade que se refere apenas à lei não pode ser denominada nem livre

nem não livre, porque ela não se refere às ações, mas imediatamente à legislação para

as máximas das ações (portanto à razão prática mesma), e por isso é absolutamente

necessária e insuscetível, ela mesma, de necessitação. Somente o arbítrio, portanto,

pode ser denominado livre (MS Ak VI: 226. p. 37).

Page 237: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

237

Aparentemente há algo novo em relação ao que fora exposto na Fundamentação:

na realidade, não é a vontade humana que é imperfeita, mas, antes, o homem é que

possui um livre arbítrio. Talvez possamos compreender esta aparente desconcertante

mudança na teoria de Kant tendo em vista o lugar preciso em que ela é exposta. Ora,

aqui está em jogo a filosofia prática não para seres racionais imperfeitos em geral, mas

sim para o homem, um ser racional finito que age no mundo sensível. É possível que a

imperfeição ou finitude de uma outra vontade seja demarcada de um modo distinto, que

não através de uma faculdade de desejar afetada patologicamente, ou melhor, que não é

afetada deste modo particular humano, ou mesmo que possua intuições puras que não as

de espaço e tempo. Contudo, isto não é importante aqui. O que importa neste momento

para Kant é definir de que maneira o livre arbítrio deve agir no mundo sensível segundo

leis externas e internas, leis jurídicas e leis éticas, em outras palavras, de que maneira o

homem em sua situação jurídica e ética elementar deve agir de acordo com leis

universais, ou seja, segundo o princípio de autonomia válido para todos os seres

racionais. Que outros seres racionais finitos possuam um livre arbítrio como o humano,

isto é algo que não pode ser decidido. Que o homem o possui, isto é certo. Que ele

encontra obstáculos externos para seu uso livre de objetos e obstáculos internos para o

uso pleno de sua liberdade, isto tampouco pode ser negado. Trata-se de decorrências de

sua “natureza específica” dada no mundo sensível e não passível de ser obtida por

contraste com uma vontade divina ou com outra vontade imperfeita. Nesse momento, o

livre arbítrio marca a especificidade humana e o ponto de partida para a definição dos

elementos empíricos que devem ser acolhidos em uma Metafísica dos Costumes: trata-

se de avaliar os obstáculos e impedimentos para o uso externo e interno do arbítrio, algo

supérfluo para Deus e incerto para outros seres racionais finitos. Em outras palavras, de

que maneira o arbítrio humano pode ser livre, isto é, agir, produzir objetos no mundo

sensível segundo leis da razão, ou mais especificamente, leis jurídicas e leis éticas? No

momento em que o homem se põe a agir nas circunstâncias empíricas a que está

submetido, não é sua razão tout court que está operando. Ou melhor, ela, anunciando

quais devem ser as leis da liberdade, interfere no mundo de modo indireto, por

intermédio do arbítrio, de suas ações e seus objetos produzidos.

O problema do arbítrio é que, na altura da produção do objeto da ação, em sua

efetividade, é uma máxima que ele coloca em marcha nas condições de sensibilidade. A

Page 238: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

238

escolha entre fazer ou omitir, fazer isto ou aquilo, não é dita da vontade, que,

identificada à razão prática pura, pronuncia o que deve ser282

O livre arbítrio, assim, é o conceito a priori não puro de uma Metafísica dos

Costumes, que demarca seus momentos metafísico-específicos – como afirma Beck283,

o arbítrio é uma “parte da natureza” que pode ser determinada de modo a priori,

segundo leis da liberdade. Sua “base física” coincide com a própria natureza sensível

desta faculdade: a capacidade humana de produzir objetos por meio de ações é

compartilhada com os demais animais, e seu campo de atuação é o mundo sensível dos

objetos naturais. No limite, possuir “vida” ou “força vital prática” é a marca da

empiricidade mínima do arbítrio humano, ou seja, o princípio interno de movimento da

substância finita em meio aos objetos animados ou inanimados do mundo, assim como,

curiosamente, a “força movente” da matéria era o “mínimo empírico” que demarcava o

âmbito da metafísica da substância corporal. No homem, a “vida” se insere numa

complexa trama de faculdades práticas; o arbítrio, em sua faticidade empírica de uma

faculdade de desejar afetada por estímulos sensíveis, reflete a atuação no mundo

sensível de um ser vivo tanto natural quanto racional.

Desta maneira, se na parte transcendental foi definido no princípio de

autonomia o critério pelo qual uma ação moral qualquer cobra normatividade para uma

vontade imperfeita em geral, na parte especificamente metafísica será necessário partir

da vontade especificamente humana, ou seja, do livre arbítrio operando no mundo

sensível segundo seus usos interno e externo. Neste sentido, devemos retornar a outro

elemento central da teoria moral kantiana: os fins, agora entendidos tambéns como fins

“subjetivos”, objetos a serem realizados no mundo segundo leis autônomas, e não

apenas como o “fim necessário” da natureza racional como fim em si mesmo.

7.3. Capacidade de propor-se fins como base inicial da distinção entre

Doutrina do Direito e Doutrina da Virtude

O arbítrio livre é a base da divisão da Metafísica dos Costumes em Doutrina do

Direito e Doutrina da Virtude. Comecemos, pois, propondo uma distinção entre as duas

282 Marty, F. “La notion de liberté dans la Métaphysique des Mœurs. La liberté de l’arbitre”. In: Ferrari, J & Goyard-Fabre, S. L’Année 1797. La Métaphysique des Mœurs. Paris: Vrin, 2000. p. 29. 283 Beck, L.W. “Deux concepts kantiens du vouloir dans leur contexte politique”. Op. cit. p. 126.

Page 239: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

239

partes de que se compõe a obra que parta não da costumeira oposição entre legislação

jurídica e legislação ética, que será exposta no próximo capítulo, mas antes do modo

como cada uma dessas disciplinas, o direito e a virtude, relaciona-se com os fins da ação

humana.

É necessário encontrar o modo de regular autonomamente as leis jurídicas e as

leis éticas, segundo a atuação do arbítrio humano em seus usos externo e interno. Para

tanto, os fins da ação humana são centrais aqui. Diferentemente do que ocorre na parte

transcendental de fundamentação, onde o fim necessário do imperativo categórico, ou

seja, a natureza racional como fim em si mesmo, é considerado apenas como um fim

“negativo”, servindo como índice restritivo das ações humanas e, com isso, os fins

subjetivos são “postos entre parênteses”, atentando-se apenas à aptidão da máxima do

arbítrio de tornar-se lei universal, na parte metafísico-específica a capacidade

propositiva do agir humano é tomada de modo positivo, seja na faticidade da ação

externa do homem, pela qual ele, na busca por realizar seus fins por meio da produção

ou manipulação de objetos exteriores a si, trava relações jurídicas com os demais

sujeitos, seja na doutrina dos fins obrigatórios da razão pura, que sobrepuja a influência

das inclinações através de fins que são ao mesmo tempo deveres.

Kant inicialmente define “fim” como o objeto do arbítrio que impele este a agir

com vistas à produção de tal objeto:

O fim é um objeto do arbítrio (de um ser racional), mediante cuja representação este se

determina a uma ação orientada a produzir esse objeto (MS Ak VI: 381. p. 284).

Em outra passagem, Kant refina esta definição e atribui a toda ação a

inevitabilidade de visar um fim qualquer, o que, por sua vez, define a liberdade deste

arbítrio:

Fim é um objeto do livre arbítrio, cuja representação determina este último a uma ação

(pela qual se produz aquele objeto). Toda ação tem, portanto, um fim, e, visto que

ninguém pode ter um fim sem se propor a si mesmo como fim o objeto do seu arbítrio,

ter um fim para as ações é um ato da liberdade do sujeito, e não um efeito da natureza

(MS Ak 384-385. p. 290).

Há uma aparente novidade em relação ao que fora exposto na Fundamentação.

Nesta última, Kant atrelava o fim a uma atividade da vontade, tomado como seu

Page 240: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

240

“fundamento objetivo de autodeterminação” (Gr Ak IV: 427. p. 134). Como já notamos,

esse fim da vontade poderia ser subjetivo, baseado nos fins meramente relativos e

materiais do agente, ou objetivo, um fim em si mesmo válido para todos os seres

racionais e que, desta forma, serviria como índice restritivo para todos os outros fins

que o agente se propõe. Ora, na Metafísica dos Costumes, Kant atribui o fim a uma

atividade do arbítrio, guiada ou não pela vontade, ou seja, pela razão prática pura.

Através da representação de um objeto, o arbítrio põe-se a agir no esforço de produzi-lo

– este objeto, que impele o agente, é o fim da ação de seu arbítrio, uma construção da

faculdade de desejar ligada à consciência de que sua produção é possível por meio do

agir; em outras palavras, o fim carrega em si uma marca da constituição natural do

agente, o modo como suas faculdades práticas empiricamente dadas relacionam-se com

os objetos que lhe são exteriores e que delas dependem para serem produzidos ou

manipulados. Segundo A Religião nos Limites da Simples Razão, trata-se de uma

propriedade natural <Natureigenschaft>

do homem de ter de pensar para todas as suas ações, além da lei, ainda um fim

(propriedade do homem que faz dele um objeto da experiência) (Rel Ak VI: 6. p. 15.

Grifos nossos).

Ora, como esta produção de objetos no mundo sensível, tomando-os como fins

subjetivos ou objetivos, pode ser regulada “em segundo nível” pela vontade ou razão

prática pura, sofrer desta uma influência indireta através da faculdade de desejar

especificamente humana? Determinar essa relação entre fim do arbítrio e lei da razão no

agir do homem é o objetivo da Metafísica dos Costumes.

Que o arbítrio proponha fins em suas ações é uma das marcas de sua liberdade,

opondo-o à faculdade de desejar dos demais animais; ao passo que estes são

mecanicamente conduzidos pelo prazer que a existência de determinado objeto

representado pode lhes proporcionar, o homem forja princípios subjetivos que contêm

como fim o objeto a ser produzido por suas ações: trata-se, aqui, de “um ato liberdade”

que não pode ser fruto da natureza, uma liberdade, a princípio, negativa. A

espontaneidade do arbítrio em agir e acolher fins em suas ações deve, no entanto, ser

regulada pela razão, resultando aqui a liberdade na proposição de fins regulada por

determinados deveres. Por sua vez, isto pode ser ocorrer de duas maneiras, partindo-se

seja dos fins efetivos que o homem se propõe até as condições universais externas em

Page 241: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

241

que isto deve ter lugar ou, inversamente, partindo-se das condições internas efetivas em

que o homem age propositivamente até obter aqueles fins que devem, eles mesmos, ser

universais. Trata-se, aqui, da oposição entre direito e ética, ou ainda, da liberdade

positiva no uso externo do arbítrio e da liberdade positiva no “uso interno” do mesmo,

do próprio ato de propor-se fins nas ações.

É possível conceber a relação do fim com o dever de dois modos: ou, partindo do fim,

encontrar a máxima da ação conforme ao dever, ou, inversamente, começando desta

última, encontrar o fim que é ao mesmo tempo dever. A Doutrina do Direito segue o

primeiro caminho. Ao arbítrio livre de todos é deixada a decisão sobre qual fim ele

deseja propor-se para sua ação. A máxima do arbítrio, contudo, é determinada a priori:

a saber, que a liberdade do agente possa coexistir com a liberdade de todos os outros

segundo uma lei universal. A ética, porém, toma o caminho oposto. Ela não parte dos

fins que o homem quer propor-se e em seguida dispõe das máximas a serem assumidas,

ou seja, dispõe de seu dever; porque, neste caso, tais fundamentos das máximas seriam

empíricos, os quais não fornecem qualquer conceito de dever, uma vez que este (o

dever-ser categórico) tem as suas raízes apenas na razão pura; como também não se

poderia de fato falar do conceito de dever se as máximas pudessem ser retiradas

atendendo àqueles fins (os quais são todos egoístas <selbstsüchtig>). – Na ética,

portanto, o conceito de dever precisará conduzir aos fins e às máximas com vistas a

fins que temos de nos propor segundo princípios morais (MS Ak VI: 382. p. 287.

Grifos nossos).

Todos os objetos produzidos pelo arbítrio são objetos que lhe são externos e

tomados como fins. Ou seja, as ações do arbítrio têm todas um fim, ou ainda, produzem

ou interferem em objetos externos a ele. Na Doutrina do Direito, cumpre encontrar a

condição universal que regula esta produção de objetos externos quaisquer, na Doutrina

da Virtude, inversamente, é esta produção mesma que deve ser regulada de modo

universal e autônomo. Segundo os termos da passagem acima, a Doutrina do Direito

dispõe dos deveres que permitem a consecução de fins quaisquer, assegura a liberdade

externa para que o agente proponha-se os fins que lhe aprouver284; a Doutrina da

Virtude, por sua vez, arrola os deveres que definem quais são os fins obrigatórios,

284 “Uma ação juridicamente correta é uma ação em conformidade com leis que restringem as ações de cada um em busca de seus fins à condição de que essas ações deixem todos os outros sujeitos da lei livres para buscar seus próprios fins” (Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. p. 41). Falta à definição de Gregor a referência à “lei universal” que regula esta liberdade recíproca de produção de fins dos arbítrios. Discutiremos isso no próximo capítulo.

Page 242: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

242

regulando a liberdade interna do sujeito de propor-se fins dados pela própria razão em

oposição àqueles ocasionados pelos impulsos sensíveis.

Kant expressa uma ideia semelhante em outro momento da Introdução à

Doutrina da Virtude:

Que a coação <Zwang> externa, na medida em que é uma resistência contrária ao que

impede a liberdade externa ajustada segundo leis universais (um obstáculo avesso ao

obstáculo da mesma), possa coexistir com fins em geral é o que transparece de

harmonia com o princípio da contradição, e não devo ir mais além do conceito de

liberdade para compreendê-lo. Portanto, o princípio jurídico supremo é uma proposição

analítica. Em contrapartida, o princípio da Doutrina da Virtude vai além do conceito de

liberdade externa e, segundo leis universais, associa-lhe ainda um fim, que converte em

dever. Este princípio é, por conseguinte, sintética (MS Ak VI: 396. p. 31. Grifos

nossos).

Passando por cima das dificuldades em definir o caráter analítico do princípio

supremo da Doutrina do Direito e o caráter sintético do princípio supremo da Doutrina

da Virtude285, notemos o seguinte: no caso da definição do princípio jurídico, os fins são

considerados como algo dado, partindo-se deles para os deveres que estipulam as

condições que regulam a coexistência externa segundo leis universais dos arbítrios que

propõem tais fins. Nessa medida, o princípio que serve de norma à liberdade externa

dessa comunidade de seres propositivos é analítico, apenas enunciando algo já contido

no conceito de liberdade externa como a liberdade de dispor dos objetos tomados por

fim sem a interferência dos demais. Por outro lado, na determinação do princípio

supremo da virtude, parte-se do dever categórico, ou da universalidade da prescrição

universal da legislação da razão, para então determinar quais são os fins que os arbítrios

devem propor; não importa à Doutrina da Virtude a regulação da liberdade externa, esta

mesma indiferente a quais sejam os fins assim indiretamente atingidos. À ética cumpre

definir quais são os fins mesmos devem ser universais, ou seja, regular a liberdade

interna do sujeito que se propõe fins. Nesta medida, seu princípio supremo é sintético,

acrescenta algo não contido no conceito de liberdade externa, a saber, os próprios fins

que devem ser acolhidos pelos sujeitos. Em outras palavras, o direito parte dos fins para

285 Cf. Guyer, P. “Kant’s Deduction of the Principle of Rights”. In: Timmons, M. (org). Kant’s Metaphysics of Morals. Interpretative Essays. Oxford: Oxford University Press, 2002. pp. 41-46.

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243

chegar à legislação universal da razão; a ética faz o caminho inverso: parte da legislação

universal da razão para chegar aos fins286.

Em ambos os casos, no entanto, permanece o livre arbítrio como índice

explicativo de direito e ética: sem a referência a fins, entendidos como certos objetos

produzidos pela ação humana no mundo, ou seja, pelo livre arbítrio, não haveria algo

como uma Metafísica dos Costumes dividida em Doutrina do Direito e Doutrina da

Virtude. Vemos, pois, como a perspectiva da Metafísica dos Costumes altera o

panorama sobre os fins da ação em relação àquele desenhado na Fundamentação: ao

passo que nesta o “fim” assumido pelo princípio da autonomia deveria ser tomado tão-

somente como o ser racional enquanto índice restritivo das ações, um fim independente

que deve limitar a liberdade, na Metafísica dos Costumes, embora esse sentido de fim

ainda esteja presente em virtude de o imperativo categórico ainda permanecer o

“princípio supremo da doutrina dos costumes”, nas dimensões jurídica e ética da ação

humana deve ser necessário alargá-lo até que se atinja uma ação conforme a fins

condizente com os requisitos morais estipulados: deve haver uma autonomia jurídica

que assegure o uso legítimo da liberdade externa, ou seja, a capacidade do homem em

possuir objetos externos, ou ainda, perseguir os fins que bem lhe aprouver em uma

comunidade com outros sujeitos jurídicos sob leis universais; e uma autonomia ética

que estipule as condições para o uso pleno e legítimo da liberdade através de fins que

são ao mesmo tempo deveres trazidos a uma relação recíproca em uma comunidade

ética com outros sujeitos morais. Ora, na ideia de reino dos fins composto por seres

autônomos não há essa referência à interconexão sistemática dos agentes racionais e dos

fins por eles propostos?

Antes de passar a isso, contudo, vejamos como o conceito a priori não puro de

livre arbítrio permite que compreendamos uma nova analogia entre a Metafísica dos

Costumes e a Metafísica da Natureza: a capacidade de ação conforme a fins, nas

perspectivas externa e interna do arbítrio, como um princípio metafísico, a exemplo das

286 Cf. Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. pp. 38-39. Segundo Gregor, se uma ação livre implica a adoção de um fim, as leis jurídicas definem os limites no interior dos quais cada um pode buscar seus próprios objetivos desde que permissivos, ou seja, as leis jurídicas devem ser “indiferentes aos fins” que não são proibidos. Por outro lado, as leis éticas estipulam quais são os fins obrigatórios que devem ser adotados nas máximas do agente. Desse modo, o direito tomaria o fim da humanidade de modo negativo, apenas como um comando negativo de não usar o homem como meio, e a ética adota tal fim de modo positivo, como um comando positivo de promoção da humanidade. Novamente Gregor esquece o “valor positivo” que o princípio da humanidade detém no direito como a dignidade intrínseca a cada homem (tornado cidadão sob uma constituição republicana) como legislador de uma determinada comunidade política onde todos podem perseguir seus próprios fins. Veremos isso mais adiante.

Page 244: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

244

leis do movimento da metafísica da substância corporal. A partir disso os princípios

supremos da Doutrina do Direito e da Doutrina da Virtude surgem como correlatos

metafísicos do imperativo categórico, princípio transcendental da Metafísica dos

Costumes, em sua primeira formulação, como lei universal. Restará, pois, passar desta

primeira formulação para a terceira, a do princípio da autonomia e aquela que lhe é

“inerente”, a do reino dos fins, agora sob as perspectivas jurídica e ética.

7.4. Princípios supremos da Doutrina do Direito e da Doutrina da Virtude

como princípios metafísicos.

O arbítrio livre é o conceito a priori não puro de uma faculdade prática humana

sensível passível de ser determinada de modo a priori pela lei moral. O raciocínio

empregado aqui se assemelha àquele descrito nos Primeiros Princípios Metafísicos da

Ciência da Natureza: o conceito “empírico” de matéria é investigado segundo

princípios que permitem determiná-lo e conhecê-lo de forma a priori, o que, como já

mencionado, é o objetivo de uma metafísica aplicada para Kant. Ao passo que na

metafísica da substância corpórea o conceito empírico de matéria era determinado a

priori segundo leis do movimento, na Metafísica dos Costumes o livre arbítrio deve ser

determinado de forma a priori segundo as leis da liberdade, ou seja, leis tanto externas

(deveres jurídicos), quanto internas (deveres de virtude) do dever.

Por meio desses paralelos podemos começar a compreender outro ponto

fundamental para a determinação do ato do livre arbítrio como objeto de uma metafísica

prática, a saber, a relação existente entre, por um lado, o imperativo categórico,

entendido como princípio supremo da moral e da moralidade e princípio do dever, e, por

outro, os princípios universais (ou supremos - cf. MS Ak VI: 396. p. 396) do direito e da

virtude. Para isso, relembremos a passagem da introdução à Crítica do Juízo em que

Kant discute a diferença entre um princípio transcendental e um princípio metafísico:

Um princípio transcendental é aquele pelo qual é representada a priori a condição

universal, unicamente sob a qual as coisas podem ser objetos do nosso conhecimento

em geral. Em contrapartida, um princípio chama-se metafísico, se representa a priori a

condição, unicamente sob a qual objetos, cujo conceito tem que ser dado

empiricamente, podem ser ainda determinados a priori” (KU Ak V: 181. p. 25).

Page 245: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

245

Conforme já discutido no 5º capítulo da dissertação, como exemplo de um

princípio transcendental Kant fornece o “princípio de conhecimento dos corpos como

substância e como substâncias suscetíveis de mudança”, e como exemplo de um

princípio metafísico, o princípio da mudança “se com isso se significar que a sua

mudança tem que ter uma causa externa”. Ou seja, o princípio que Kant designa como

“metafísico” corresponde à terceira proposição <Lehrsatz> do terceiro capítulo dos

Primeiros Princípios, a “Mecânica”, ou ainda à “Segunda Lei da Mecânica” ou lei de

inércia, ao passo que o princípio “transcendental” corresponde à “Segunda Analogia da

Experiência”, ou seja, ao princípio de causalidade.

Segunda lei da mecânica. Toda mudança na matéria tem uma causa externa. (Todo

corpo persiste num estado de repouso ou movimento, na mesma direção e com a mesma

velocidade, se não for compelido por uma causa externa para deixar esse estado)

(MAN. Ak IV: 543).

Segunda analogia [da experiência]. Princípio da sucessão temporal segundo a lei da

causalidade. Todas as mudanças acontecem segundo a lei da conexão de causa e efeito”

(KrV A 189/ B 232).

Trata-se da especificação do princípio transcendental de causalidade em um

princípio metafísico da doutrina dos corpos como moventes: a lei de inércia. O que nos

interessa aqui, contudo, não são as “leis do movimento”, mas sim as “leis da liberdade”.

Logo na seqüência do trecho citado da introdução à Crítica do Juízo Kant fornece um

caminho para pensá-las a partir dessa chave interpretativa:

[O] princípio de conformidade a fins da natureza (na multiplicidade de suas leis empíricas) é

um princípios transcendental. Na verdade o conceito dos objetos, na medida em que os

pensamos existindo sob este princípio, é apenas o conceito puro de objetos do conhecimento de

experiência possível em geral e nada contém de empírico. Pelo contrário, o princípio de

conformidade a fins prática <praktische Zweckmäβigkeit>, que tem que ser pensado na idéia

da determinação de uma vontade livre, seria um princípio metafísico, porque o conceito de

uma faculdade de desejar, enquanto conceito de uma vontade, tem que ser dado empiricamente

(não pertencente aos predicados transcendentais). Contudo, ambos os princípios não são

empíricos, mas sim princípios a priori. É que não é necessário uma ulterior experiência para a

ligação do predicado com o conceito empírico do sujeito dos juízos, mas, pelo contrário, tal

ligação pode ser compreendida completamente a priori (KU. Ak V: 181-2. p. 26).

Page 246: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

246

Ao contrário do exemplo anterior da Metafísica da Natureza, o paralelo entre

princípio transcendental e princípio metafísico não pode ser traçado de forma direta.

Ora, relativamente à Metafísica dos Costumes, a Crítica da Faculdade de Julgar e o

juízo reflexionante com seu princípio transcendental de conformidade a fins na natureza

não constituem a parte correspondente à “metafísica geral” mencionada por Kant como

sendo desempenhada pela Crítica da Razão Pura (ou ainda, a Analítica Transcendental

e o Sistema de Princípios) em sua referência aos Primeiros Princípios Metafísicos da

Ciência da Natureza. Não obstante, o princípio de “conformidade a fins prática” se

comporta como a segunda lei da mecânica, ou seja, como um princípio metafísico que

determina de forma a priori algo que somente pode ser dado empiricamente e que,

assim, corresponde a algum princípio transcendental no qual está fundado. De forma

mais específica, como vimos na seção anterior, aquilo cujo conceito empírico deve ser

determinado a priori é “a faculdade desejar enquanto conceito de uma vontade”, ou

ainda, o arbítrio humano como faculdade prática empiricamente dada e determinável a

priori pela razão.

Essa capacidade do arbítrio o define, assim, como uma faculdade guiada por

uma “conformidade a fins prática” empiricamente detectável - o fim do arbítrio o

motiva a agir, isto é, a agir “em conformidade a esse fim” e a fins em geral. O seu

caráter metafísico radica-se na sua “dupla natureza”: trata-se tanto de uma faculdade

“empiricamente dada” - seu objeto e sua ação são dados sensivelmente -, quanto

passível de ser “determinada a priori” pela razão, ou seja, pela lei moral287.

Segundo os paralelos estabelecidos entre a Metafísica da Natureza e a

Metafísica dos Costumes, a parte transcendental tem por função fornecer os princípios

que ensejam objetividade do âmbito da experiência correspondente. Se, na Metafísica

da Natureza, os princípios transcendentais correspondentes às leis newtonianas

consistem nos princípios que tornam inicialmente possível a experiência em geral, na

287 Guido Antônio de Almeida expressa idéia semelhante: “No domínio prático, podemos dizer que os objetos cujo conceito tem de ser dado empiricamente são as ações possíveis para o arbítrio humano. Se isso é verdade, o conceito que tem que ser dado empiricamente é o conceito do poder de escolha humana [arbítrio - DKT], que Kant caracteriza como um poder de escolha racional na medida em que este é exercido com base em regras dadas pela razão, mas também como sensitivo na medida em que pode ser afetado por estímulos sensível (...). Com efeito, que tenhamos um semelhante poder de escolha é algo que só podemos saber empiricamente e, nesse sentido, pode-se dizer que o conceito do arbítrio humano é um conceito empírico”. Almeida, G.. “Sobre o Princípio e a Lei Universal do Direito em Kant” In: Kriterion 14. 2006. p. 214. Ainda Guido de Almeida: “[O] conceito do arbítrio humano como livre é um conceito a priori, ou melhor, é um conceito empírico, mas que pode ser determinado a priori como submetido à lei moral” (idem. ib). Ou seja, o conceito de ato do livre arbítrio seria um conceito a priori não puro, conforme a terminologia empregada até aqui.

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247

Metafísica dos Costumes o “princípio transcendental” correspondente ao princípio

metafísico da conformidade a fins prática é o imperativo categórico, entendido como

princípio supremo da moral e princípio supremo da doutrina dos costumes <Sittenlehre>

que torna inicialmente possível a normatividade do âmbito prático:

O princípio supremo da doutrina dos costumes é, pois, este: age segundo uma máxima

que possa valer ao mesmo tempo como lei universal (MS Ak VI: 226. p. 36).

Como princípios “metafísicos” correspondentes figuram naturalmente os

princípios supremos da doutrina do direito e da doutrina da virtude, conforme a

exterioridade ou interioridade da conformidade a fins do arbítrio:

[Princípio universal, ou lei universal do direito]: age externamente de modo tal que o

uso livre do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei

universal (MS Ak VI: 231. p. 43)

O princípio supremo da doutrina da virtude é o seguinte: age segundo uma máxima de

fins tal que propô-los possa ser para cada qual uma lei universal (MS Ak VI: 395. p.

307).

A exemplo da segunda lei da mecânica, esses dois princípios são metafísicos

pois pressupõem a existência de algo empiricamente dado de modo a determiná-lo de

forma a priori (segundo “uma lei universal”). O elemento empírico, como mencionado,

seria o arbítrio humano em sua faticidade empiricamente demonstrável: como um poder

de escolha de fins, ou de produção dos objetos desejados. O mínimo empírico assim

introduzido faz com que o princípio transcendental da moral ganhe a “concretude a

priori” que lhe falta. Embora, por certo, não haja aqui a consideração da ação humana

em sua efetividade presente, ou ainda, na particularidade e na “multiplicidade empírica

de seus casos”288, trata-se da instanciação das exigências normativas abstratas do

princípio supremo da moral a uma espécie particular de agente racional, tomada na

generalidade de suas manifestações essenciais. Em suma, de forma análoga ao

procedimento que identificamos no 5º capítulo por ocasião da Metafísica da Natureza,

288 Segundo Kant, não é possível considerar em uma Metafísica dos Costumes toda a variedade empírica da ação humana. Isso significaria atender à “multiplicidade empírica dos casos (...) o que é, porém, impossível, e, quando se intenta (...), tais conceitos não podem entrar como partes integrantes do sistema, mas apenas como exemplos nas anotações” (MS Ak VI: 205. p. 5. Cf. MS Ak VI: 468-469. pp. 422-424)

Page 248: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

248

“um princípio transcendental da moralidade é aquele pelo qual nós pensamos as

condições a priori universais sob as quais uma vontade pode em geral ser chamada de

uma vontade racional finita; ao passo que um princípio metafísico da moralidade é

aquele pelo qual nós pensamos as condições a priori sob as quais a vontade de um tipo

específico de agente racional, cujo conceito completo é dado empiricamente, pode ser

ainda determinado a priori”289.

O princípio supremo da doutrina do direito, por esta interessar-se apenas pela

liberdade externa, “concerne só ao formal do arbítrio, que deve ser limitado na relação

externa, segundo leis da liberdade, prescindindo de todo o fim (como sua matéria)” (MS

Ak VI: 375. p. 275); já o princípio supremo da doutrina da virtude, a qual se ocupa da

liberdade interna, ou seja, a capacidade da razão em ser fundamento suficiente de

determinação do arbítrio, “pelo contrário, proporciona ainda uma matéria (um objeto do

livre arbítrio), um fim da razão pura que, ao mesmo tempo, se apresenta como um fim

objetivamente necessário, isto é, como um dever para o homem” (MS Ak VI: 380. pp.

284). Em ambos os casos, há a pretensão de universalidade exigida pelo imperativo

categórico: a posição de fins é o dado de que parte o uso da liberdade humana regulado

por tal princípio.

Na ética, assim como no direito, devemos submeter nossas máximas de ação-com-

vistas-a-um-fim <action-towards-an-end> à ‘pedra de toque’ do imperativo categórico.

No entanto, o direito está preocupado com nossas máximas apenas na medida em que

ações são meios para fins, ao passo que a ética tem a ver com os fins a que certas ações

são dirigidas290

A noção de fim ou do arbítrio humano como uma faculdade de desejar agindo

em conformidade a fins e passível de ser determinada a priori por uma lei universal é,

portanto, decisiva nessa “derivação” dos princípios supremos da Doutrina da Virtude e

da Doutrina do Direito a partir do imperativo categórico entendido como Princípio

Supremo da Moralidade.

289 Schmidt, C. “The Anthropological Dimension of Kant’s Metaphysics of Morals”. In: Kant-Studien 96. 2005. p. 77. Nesse ponto Guido de Almeida se equivoca. Segundo ele, “o imperativo categórico é (...) um princípio metafísico no domínio prático” (Op. Cit. p. 215). Pelas razões expostas, classificar o imperativo categórico como um princípio metafísico implica ignorar o caráter específico dos princípios supremos da Metafísica dos Costumes, bem como desconsiderar os “graus de pureza” presentes na filosofia prática kantiana. Cf. também Sänger, M. Op. Cit. pp. 153-5. 290 Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. p. 81.

Page 249: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

249

O imperativo categórico [do direito – DK]: aja segundo a máxima de concordância de

tua liberdade com a de todos os outros segundo uma lei universal, deixa indeterminado

quais os fins que o homem tem. Contudo, o [imperativo categórico da virtude - DK]: aja

de modo que tu possas desejar que tua máxima deva tornar-se uma lei universal, é um

imperativo que se refere a fins que temos ou que devemos nos colocar” (Vorarbeiten

zur Rechtslehre Ak XXIII: 257).

Nessa passagem, os princípios supremos da Doutrina da Virtude e da Doutrina

do Direito são apresentados como “imperativos categóricos” que enunciam a validade

universal da liberdade interna e externa, respectivamente, e que, assim como em sua

formulação canônica, assumem a forma de uma lei prescritiva análoga à do imperativo

categórico291. Dada a faticidade do arbítrio humano como uma faculdade de posição de

fins, cumpre determinar o modo como o exercício desse poder prático pode e deve ser

consistente com a liberdade tanto externa (direito) quanto interna (virtude): no primeiro

caso, o fim do arbítrio é abstraído, considerando-se apenas as circunstâncias externas

nas quais uma liberdade proporcional de escolha é mantida intocada para os demais

sujeitos em sua posição autônoma e auto-suficiente de fins; no segundo caso, trata-se de

determinar o modo como a escolha mesma de fins sinaliza uma liberdade atinente ao

arbítrio surgida quando a própria razão prática pura define quais são os fins a serem

291 Segundo Kersting, o princípio supremo do direito não seria propriamente um imperativo categórico, o que, no entanto, não faria dele um imperativo hipotético; trata-se, antes, de uma “lei prática” que enuncia determinadas ações como devidas, ou seja, como decorrentes de um dever, sem que haja referência às “condições de cumprimento”, isto é, sem apresentar uma “necessitação prática” como ocorre no imperativo categórico – em outras palavras, tal lei prática não torna o próprio “fundamento de necessidade” <Notwendigkeitsgrund> de uma ação a motivação para cumpri-la. “A lei do direito não prepara sua realização enquanto imperativo categórico, mas antes enquanto fundamento jurídico para uma autorização de coação” (Kersting, W. Wohlgeordnete Freiheit. Op. cit. pp. 84-85). Já segundo Paul Guyer (“Kant’s Deduction of the Principle of Rights” Op. cit. p. 26), o princípio universal do direito não seria derivado imediatamente do imperativo categórico, entendendo por este um simples processo de universalização de máximas; de modo mais preciso, a lei jurídica seria decorrência da “concepção de liberdade e seu valor” como “princípio fundamental da moralidade kantiana” – Guyer pensa aqui no “valor da liberdade” como a “capacidade de propor-se fins”, ou seja, como “liberdade negativa”, o que acreditamos ser uma compreensão limitada do que seja o “valor da liberdade para Kant” e a noção de autolegislação do indivíduo autônomo (cf. supra nota 259) Na verdade, vimos aqui como Kant também formula esta “lei prática” jurídica como um imperativo categórico. Se, de fato, não há a necessidade de que a lei jurídica da coexistência externa dos arbítrios se torne o fundamento de determinação do arbítrio, como demonstra a distinção entre legislação jurídica e legislação ética que abordaremos no próximo capítulo, disso não se conclui que está excluída a possibilidade de que esta lei possa ser cumprida “por dever”, ou seja, enquanto é acolhida como fundamento de determinação da vontade – neste caso, o dever jurídico torna-se “indiretamente ético”, e o fim da ação é, no limite, um fim “negativo”, a saber, o respeito pelo direito da humanidade considerado na figura da liberdade inata de todo homem como não submissão ao arbítrio alheio. A lei jurídica nunca pode tornar-se um imperativo hipotético, mas pode muito bem fazer as vezes de um imperativo categórico que regula também a liberdade externa. Se não há stricto sensu a necessidade de que isto ocorra, a possibilidade estrutural e sistemática de que isto possa ocorrer (e até mesmo que deve ocorrer, de acordo com uma perspectiva ética, ou seja, extra-jurídica) é o que, a rigor, liga o direito à constelação conceitual exposta na Fundamentação e na Crítica da Razão Prática.

Page 250: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

250

perseguidos, caracterizando-se assim uma liberdade interna ao sujeito da ação. Em

ambos os casos, contudo, o imperativo categórico em sua forma “transcendental” surge

como condição de possibilidade, ou seja, como a condição inicial da “universalidade”

do exercício da liberdade (como “lei universal”, isto é, autônoma), expressa, por sua

vez, nos âmbitos “metafísico-imanentes” do direito e da virtude292.

Resta, no entanto, passar desta formulação do imperativo categórico do direito e

da virtude como uma lei universal do uso externo e uso interno da liberdade do arbítrio,

respectivamente, para aquilo que, no momento transcendental de fundamentação,

corresponde à autonomia no direito e na virtude e a um possível “reino dos fins”

jurídico e ético – em outras palavras, aquilo que, no direito e na ética, corresponderia à

“determinação completa” do seu princípio universal e que, na Fundamentação, era

obtido com o princípio da autonomia e do reino dos fins. Para tanto, precisamos passar a

considerações mais detidas a respeito das duas partes da Metafísica dos Costumes.

7.5. Excurso. Legalidade como critério deontológico inicial de uma

Metafísica dos Costumes. Intersubjetividade da ação do arbítrio no mundo.

Retomemos em consideração a nota de rodapé à terceira seção da Introdução à

Metafísica dos Costumes discutida no capítulo anterior e na qual Kant afirma que o ato

do livre arbítrio é o conceito supremo da Metafísica dos Costumes (MS Ak VI: 218. p.

26). Kant caracteriza este conceito como o conceito dividido “na divisão do correto

<Recht> e do incorreto <Unrecht>”, ou seja, é a partir dele que se define inicialmente a

“correção” <Richtigkeit> de um ato. Para entendermos melhor o que significa essa

predicação moral evocada, voltemo-nos a uma passagem da quarta seção da Introdução

à Metafísica dos Costumes em que Kant lança mão de uma relação de sinonímia com os

termos “Recht” e “Unrecht”:

292 É perceptível aqui como Kant reproduz a clivagem externo/interno presente na Metafísica da Natureza, a saber, uma metafísica da substância corporal, ou doutrina dos corpos (matéria, substância extensa) oposta a uma metafísica da substância pensante, ou doutrina da alma (alma, substância pensante) (MAN Ak IV: 467). Na Metafísica dos Costumes, os deveres de liberdade “externa” são os deveres jurídicos, ao passo que os deveres de liberdade “interna” são os “deveres éticos”, incluindo aqui os deveres propriamente de virtude e os deveres jurídicos tornados “indiretamente éticos” (MS Ak VI: 219-21. DD. pp. 24-5) – ora, do mesmo modo como todas as representações espaciais também são dadas ao sujeito no tempo, ie, afetam seu sentido interno, também todos os deveres jurídicos ou “externos” podem tornar-se “internos” caso o agente os cumpra unicamente segundo o pensamento mesmo do dever como móbil suficiente de determinação do arbítrio.

Page 251: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

251

Correto <Recht> ou incorreto <Unrecht> em geral é um ato, na medida em que é

conforme ao dever <pflichtmäβig> ou contrário ao dever <pflichtwidrig> (factum

licitum aut illicitum); seja de que tipo for o próprio dever quanto ao seu conteúdo ou

quanto à sua origem (MS Ak VI: 223. p. 32. Grifos nossos).

O conceito de ato do livre arbítrio é aquele que inicialmente permite a divisão do

correto e incorreto, ou ainda, do ato conforme ou contrário ao dever, “independente do

conteúdo e da origem” deste último. Em outras palavras, é esse conceito que enseja uma

divisão dicotômica entre ações devidas, exigidas de um ponto de vista moral, e ações

indevidas, proibidas de um ponto de vista moral. Em outras palavras, é deste conceito

que parte um sistema entendido como um sistema de deveres, independente do

“conteúdo” e da “origem” destes últimos, ou seja, um sistema tanto de deveres jurídicos

quanto de deveres de virtude - é ele, em suma, a base conceitual donde advém o critério

deontológico inicial de predicação moral de ações em uma Metafísica dos Costumes, a

saber, o critério de legalidade <Legalität> da ação e que, assim, independe do móbil

exigido para o cumprimento do dever. Afinal, como escreve Kant em uma reflexão,

legalidade é ou jurídica ou ética:

De uma ação, nós podemos considerar tanto a moralidade <Moralität> quanto a

legalidade <Legalität> da mesma. Quanto esta ocorre, aquela não [ocorre] nem segundo

o objeto (validade) nem segundo o motivo <Bewegungsgrund> (intenção ou medo

<Gesinnung oder furcht>). A legalidade é ou jurídica ou ética (Rx 6764 Ak XIX: 154.

1772? 1778?).

Em que consistiria esta “legalidade ética” que aparentemente entra em tensão

com os cânones da filosofia moral kantiana? Argumentamos tratar-se de uma mera

conformação objetiva a um dever de virtude, sem que haja a autocoerção do agente pela

lei moral, isto é, sem que o próprio dever seja tomado como fundamento de

determinação do arbítrio, e para a qual tampouco é possível uma coerção externa, visto

não haver alguma interferência direta ou obstrução da liberdade externa de um agente,

como ocorre nos deveres jurídicos. Neste caso, portanto, há apenas a matéria do dever, a

realização da ação estipulada pela lei, sem, no entanto, estar operante algum modo de

obrigação, ético ou jurídico. A legalidade ética, pois, embora prevista em uma

classificação das possíveis formas de relação dever/móbil, não encontra um lugar no

quadro das legislações proposto por Kant e exposto na seção anterior.

Page 252: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

252

Não obstante, a possibilidade, mesmo que apenas “lógica” e “sistematicamente

prevista”, de uma legalidade ética ilustra a postura de fundo kantiana na Metafísica dos

Costumes que permitiu a figuração em sua filosofia moral de algo aparentemente

negado nos escritos de fundamentação, a saber, uma disciplina indiferente à “intenção”

(Gesinnung) do agente: o direito. Para Kant, uma Metafísica dos Costumes deve estar

prioritariamente envolvida com um âmbito intersubjetivo de avaliação dos efeitos da

ação e da atuação do arbítrio humano no mundo em meio aos objetos sensíveis e aos

demais agentes racionais. No caso do direito isto se torna claro: é possível e legítimo

exercer uma coerção externa para que, por exemplo, um homem cumpra um

determinado contrato. Na ética, ainda que não seja lícito coagir externamente algum

homem a não suicidar-se, desenvolver seus talentos e predisposições ou ajudar os seus

semelhantes, é no entanto possível observar, constatar, aferir se essas ações são

realizadas, ou seja, se há uma conformação objetiva a esses deveres de virtude,

independentemente dos móbiles que guiaram o agente em sua conduta. Esta

“verificação intersubjetiva” de cumprimento de um dever é o que está implícito no

conceito de “legalidade” e pressuposto na visada assumida na Metafísica dos Costumes

acerca de um sistema de deveres como deveres humanos que toma o livre arbítrio como

seu conceito fundante na divisão entre “correto” e “incorreto”. Nesse sentido, vale

observar que a legalidade se comporta não apenas como o inverso da moralidade da

ação, mas também como o reverso de um outro conceito: o de “contrário à lei”

<Gesetzwidrigkeit>:

Legalidade <Legalität> é um predicado de ações e indica a propriedade,

intersubjetivamente verificável e ligada à forma externa da ação, de conformidade à lei

<Gesetzeskonformität>. Nesse entendimento, o contraconceito de legalidade é o

conceito de contrário à lei <Gesetzwidrigkeit>. Como contrapólo conceitual de

moralidade <Moralität>, contudo, legalidade tem outro significado. A legalidade na

relação legalidade/contrário à lei é determinada positivamente, e, como contraconceito

de moralidade, legalidade é determinada negativamente. Legalidade indica aqui uma

forma deficitária da constituição ética interna do sujeito da ação293

293 Kersting, W. Wohlgeordnete Freiheit. Op. cit. p. 141. Em termos lógicos, o conceito de Legalität é co-extensivo ao conceito de Pflichtmäβigkeit ou Gesetzmäβigkeit, e oposto contraditoriamente tanto ao conceito de Pflichtwidrigkeit ou Gesetzwidrigkeit quanto ao conceito de Moralität, os quais, por sua vez, são contrariamente e não contraditoriamente opostos entre si.

Page 253: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

253

O caráter “intersubjetivamente verificável” de Legalität se observa naqueles

deveres de virtude possivelmente apenas pflichtmäβigen, ou seja, realizados por motivos

outros que não a ideia mesma de dever ou o respeito pela lei moral. Dado o caráter mais

amplo de Legalität na relação opositiva com a Gesetzwidrigkeit e não com a Moralität,

é possível afirmar que essa predicação moral de ações convém, em princípio, a deveres

tanto jurídicos quanto de virtude.

Podemos entender isso através de um dever repetidas vezes discutido por Kant:

o dever de benevolência. Este dever de virtude pode ser realizado por - para simplificar

a terminologia de Kant - motivos interessados, e, nessa medida, tomar o fim de

benevolência como meio para outro fim egoísta, tornando-se assim a mera realização

“objetiva”, “conforme ao dever”, “correta”, e não “subjetiva”, “conforme à moralidade”

e “moralmente boa” de um dever de beneficência. Nesse sentido, Kant distingue

Wohltat ou Wohltun de Wohlwollen, entendendo pelos primeiros a mera beneficência, o

“agir beneficente” e pelo segundo, a benevolência propriamente dita, o “desejar ser

beneficente”. Em alemão e em latim, a oposição seria entre algo como a “vontade,

disposição de fazer o bem”, Wohl wollen ou bene volo, e o simples “fazer o bem”, Wohl

tun ou bene facio, ou seja, Wohltätig sein como, digamos, sittlich richtig handelnd, e

Wohlwollen como, digamos, sittlich richtiges wollen (Gr Ak IV: 398. p. 113; KpV Ak

V: 82. p. 133; MS Ak VI: 450-454. pp. 393-400). Otfried Höffe resume da seguinte

maneira o que tentamos expor acima:

Wohltaten podem ser cumpridos não unicamente por dever, mas também por outras

razões. O Wohlwollen, pelo contrário, é uma característica da vontade, apresentando-se

não lá onde basta o simples dever de fazer o bem aos outros homens, mas lá onde o

Wohltat se cumpre de fato pela vontade de fazer o bem aos homens294.

Embora a discussão sobre o dever de benevolência realizada na Doutrina da

Virtude torne as coisas um pouco mais complicadas295, é lícito afirmar que pode haver

Legalität nesse dever de virtude pois ninguém, nem sequer o próprio agente, pode

294 Höffe, O. Königliche Völker. Op. cit.. p. 115 295 Kant menciona uma “benevolência do mero anseio” <Wohlwollen des Wunsches>, que não faz da “beneficência um dever”, isto é, uma “benevolência ativa, prática”, mas apenas um “comprazimento <Wohlgefallen> no bem <Wohl> dos outros”; ou seja, ser efetivamente benevolente significa adotar a máxima de beneficência, tomar o bem dos outros como um efetivo fim do arbítrio, e não como um simples anseio ou deleite. Em suma, o “desejar ser beneficente” pode implicar uma postura passiva (wünschen) ou ativa (wollen) diante dos outros (MS Ak VI: 450-454. pp. 393-400).

Page 254: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

254

afirmar com segurança se o “fim da sua ação” foi interessado ou não, ou seja, se se trata,

inversamente, da Moralität da ação:

Na realidade, é absolutamente impossível encontrar na experiência com perfeita certeza

um único caso em que a máxima de uma ação, de resto conforme ao dever, se tenha

baseado puramente em motivos morais e na representação do dever (Gr Ak IV: 407. p.

119).

Desse modo, a “demonstração intersubjetiva” da simples Legalität como oposta

à Moralität, inquestionavelmente possível no caso do direito (o cumprimento de um

contrato ou a aquisição de um objeto, por exemplo), ocorre também por ocasião dos

deveres de virtude – nem que seja, cumpre insistir, de modo potencial ou

sistematicamente possível.

Desse modo, na perspectiva adotada na Metafísica dos Costumes - e cumpre que

se ressalte com cuidado essa cláusula restritiva - o ato correto assume prevalência sobre

o ato moralmente bom, ou ainda, a legalidade e a mera conformidade ao dever

suplantam de forma justificada e legítima a moralidade como critério inicial e primitivo

de apreciação moral de ações. Como afirma o próprio Kant:

A Doutrina da Virtude diz respeito a todos os deveres enquanto estes retêm da Doutrina

Universal dos Costumes apenas a particularidade de fazerem da ideia mesma de dever

um móbil. A Doutrina Universal dos Costumes, contudo, diz respeito em particular às

ações conformes ao dever, não importando o móbil pelo qual o sujeito se determina a

agir (Vorarbeiten zur Rechtslehre Ak XXIII: 390).

Identificando a acima mencionada “Doutrina Universal dos Costumes” com um

sentido lato de Metafísica dos Costumes, ou seja, com uma Doutrina Universal dos

Deveres, compreende-se que esta esteja inicialmente ocupada com atos conformes ao

dever, ou seja, com a mera legalidade da ação. Ora, o arbítrio age no mundo e interage

com os objetos e demais arbítrios; verificar se suas ações são “conformes ao dever”

deve ser a tarefa inicial de uma Metafísica dos Costumes. Desse modo, a exigência de

que a ação conforme ao dever seja ainda moralmente boa surge como exigência

posterior ou complementar, estipulada pelo “mandamento ético universal”: “age em

conformidade com o dever por dever” (MS Ak VI: 391. p. 300). Como Kant afirma na

Page 255: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

255

seqüência do trecho citado, avivar essa disposição no agente é algo “meritório”, e,

enquanto tal, não exigido primariamente pela “lei do dever”:

É mérito (meritum) o que alguém faz a mais de acordo com o dever, em comparação

com aquilo que a lei o pode obrigar; o que ele faz só em conformidade com esta última

é aquilo que é devido <Schuldigkeit> (debitum) (MS Ak VI: 227. p. 39).

Em suma, a “norma fundamental” da Metafísica dos Costumes exige apenas a

conformidade ao dever, deixando a exigência de agir por dever à jurisdição de uma

norma suplementar e distinta da anterior - ora, é de esperar-se que Kant conhecesse

muito bem o princípio de economia sistemática que afirma que duas normas que

prescrevem a mesma conduta num ordenamento normativo acabam unicamente por

torná-lo mais confuso e impreciso296.

Com efeito, é possível entender sob essa chave interpretativa a possibilidade

sistemática de figuração da disciplina jurídica no interior de uma Metafísica dos

Costumes contra aqueles comentadores que defendem a independência do direito

kantiano em relação ao restante de sua filosofia moral. Allen Wood, um dos atuais

expoentes da “tese da independência”, sustenta sua tese argumentando que o principio

universal do direito e os deveres dele derivados não podem ser deduzidos diretamente

do imperativo categórico entendido como princípio supremo da moralidade e

296 Cf. Kelsen, H. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 405, nota: “Também segundo Kant, uma ação, para ter valor moral, isto é, para ser moralmente boa, deve não só ser realizada ‘por dever’ (aus Pflicht) mas ainda estar ‘em conformidade com o dever’ (pflichtmäβig), isto é, corresponder à lei moral. A norma moral: não atues por inclinação mas ‘por dever’, pressupõe, portanto, outras normas morais que obrigam a determinadas ações. Uma das posições mais fundamentais da sua Ética é a de que ‘o conceito do bom e do mau não deve ser determinado antes da lei moral (...), mas somente (...) segundo a mesma e através da mesma’ [(KpV Ak V: 62-3. pp. 100-1)]”. Kelsen nitidamente interpreta a filosofia moral kantiana como constituída por um conjunto hierárquico de normas, no interior do qual a norma que estipula o comportamento eminentemente ético (o “mandamento ético universal”) ocupa um lugar intermediário, subordinada assim à norma que prescreve a ação em conformidade ao dever. Em suma, para Kelsen, somente é concebível uma norma que afirma a necessidade de uma ação por dever se houver outras normas precedentes que estipulem determinadas ações como devidas, isto é, normas “que obrigam a determinadas ações”. Ainda segundo Kelsen, essa interpretação tem apoio na tese kantiana de que a lei moral (aqui, norma moral que estipula uma ação como devida) precede o bom (aqui, valor moral da ação, a ação por dever). Cf. ainda, p. 406, nota: após citar MS Ak VI: 214. pp. 19-20 - sobre a legalidade e a moralidade -, Kelsen acertadamente atribui à legalidade um “valor moral” em sentido amplo: “Também as normas jurídicas são normas morais, e também as normas morais, portanto, se dirigem às ações externas; apenas uma norma moral prescreve que nós devemos agir, não por inclinação, mas por consideração à lei [por dever]. Quando Kant diz que só a ação que corresponde a esta norma tem valor moral, distingue, pois, um valor moral em sentido estrito ou específico: concordância em relação a esta norma moral especial; e um valor moral em sentido amplo: concordância relativamente às outras normas morais. Também a legalidade é um valor moral, pois ela é concordância com normas ‘morais’”.

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256

fundamento de uma Metafísica dos Costumes297. Segundo ele, o fato de os deveres

jurídicos e seu princípio supremo não exigirem um motivo moral – ou seja, o

pensamento mesmo de dever – para seu cumprimento, faz deles, a despeito de inúmeras

passagens em contrário presentes na Metafísica dos Costumes, elementos auto-

subsistentes e independentes do sistema. A essa posição argumentativa subjaz uma

pressuposição que é posta em questão aqui, a saber, a compreensão da filosofia moral

kantiana como um conjunto de deveres que prescrevem a moralidade das ações para seu

cumprimentos, ou seja, reivindicam o pensamento do dever, ou da racionalidade da

ação, como parte do conteúdo mesmo dos deveres dele derivados. Dessa concepção

excessivamente “ética” do conjunto da moral kantiana decorre naturalmente a recusa do

pertencimento do direito a uma metafísica prática, já que os deveres jurídicos exigem

unicamente uma conformação objetiva ao dever, e não uma motivação moral subjetiva –

numa concepção estrita do direito, à qual Kant subscreve, eles devem ser avaliados

segundo o critério do moralmente correto, e não do moralmente bom. Ora, afirmar a

precedência do ato do livre arbítrio no interior de uma Metafísica dos Costumes

significa elevar não o bom moral, mas antes o “correto”, “conforme ao dever”, a critério

inicial de avaliação do estatuto moral ou não de determinadas ações, permitindo, com

isso, a disciplina jurídica na posição em que ela realmente ocupa arquitetônica da razão

prática kantiana: como parte de um sistema de deveres.

Embora soe à primeira vista demasiado estranha, a ideia que subjaz à

interpretação delineada acima está longe de ser inédita na literatura sobre o tema. Ela

está baseada na tese, cujos maiores proponentes são talvez H.J. Paton e W.D. Ross, que

sustenta o imperativo categórico como critério não apenas para o moralmente bom, mas

também para o moralmente correto298. Embora tal tese autorize a disciplina jurídica, ela

também parece, ao mesmo tempo, colocar problemas quanto ao estatuto de uma

Doutrina da Virtude no sistema moral kantiano. Uma das recentes discussões na Kant-

Forschung diz respeito justamente à pertinência dessa análise quando confrontada com

297 Wood, A. “Final Form”. Op. cit. esp. p. 9. 298 David Ross: “Eu creio que ele [Kant] descreve, de forma consistente, a ação por dever não como a única ação que é correta, mas como a única ação que tem valor moral, fazendo, dessa forma, do motivo (ou, como ele prefere chamá-lo, o princípio ou máxima da ação) o fundamento do ser-bom <goodness> moral, mas [fazendo] da natureza da ação, à parte de seu motivo, o fundamento de seu ser-correto <rightness>”. (The Foundations of Ethics. Oxford: Oxford University Press, 1939. p. 139). H. J. Paton: “É claro (…) que Kant entende o imperativo categórico como fornecendo-nos não apenas o critério para a ação moralmente boa, mas também o critério para ações corretas; e, de fato, ele nos comanda a realização de ações corretas como especificadas por esse critério”. (“The Aim and Structure of Kant´s Grundlegung”. In: The Philosophical Quaterly. Vol 8. No 31. 1958. p. 124).

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257

a Doutrina da Virtude e seus fins que são ao mesmo tempo deveres. Comentadoras

como Barbara Herman299 e Márcia Baron300 excluem a possibilidade de que o

imperativo categórico se apresente como critério do moralmente correto no âmbito

estritamente ético, recorrendo sobretudo aos deveres de virtude para justificar sua

posição; já comentadores como Mark Timmons301, Otfried Höffe302 e Wolfgang

Kersting303 seguem Mary J. Gregor ao subscreverem, com ressalvas, à interpretação de

Paton e Ross, afirmando a plausibilidade de uma legalidade ética nos deveres de

virtude. Gregor emite o juízo paradigmático sobre esta última posição interpretativa:

Qualquer lei, seja ela uma lei jurídica, uma proibição ética, ou uma lei ética

propriamente dita, pode ser considerada em abstração da legislação que a promulga, e

podemos chamar de ‘legal’ <legal> a adoção de nossa perfeição natural [como exemplo

de um dever estrito de virtude - DK] como um fim a partir do motivo de auto-interesse,

assim como é legal o cumprimento de um contrato a partir do medo das sanções da

lei304

Esta postura interpretativa – de resto, adotada aqui – deve ser encarada com

cuidado. Afirmar a existência de uma legalidade ética não implica afirmar que um dever

de virtude é de fato cumprido unicamente no interior do quadro de sua Legalität. Não há

a menor dúvida de que a virtude exige a Moralität para ser cultivada305. Como se

299 Herman, B. The Practice of Moral Judgement. Cambridge: Oxford University Press, 1993. esp. capítulos 1 e 2. 300 Baron M. Kantian Ethics Almost Without Apology. Ithaca: Cornell University Press. 1995. Idem. “Love and Respect in the Doctrine of Virtue” In: Mark Timmons (org). Kant´s Metaphysics of Morals. Oxford. Oxford University Press. 2002 301 Timmons, M. “Motive and Rightness in Kant´s Ethical System”. In: Idem (org). Kant’s Metaphysics of Morals. Oxford: Oxford University Press,. 2002. 302 Otfried Höffe. Königliche Völker. Op. cit. pp 105-6 e 108-111. 303 Wolfgang Kersting. Wohlgeordnete Freiheit. Op. cit. p. 142. 304 Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. p. 121. Cf. também idem. pp. 21-22. 305 Há quem negue isso: Mark Timmons (“Motive and Rightness in Kant s Ethical System”. Op. cit.) afirma que o motivo moral influi, sim, no estatuto deôntico de alguns deveres de virtude, o que não significa que esse motivo faça parte do conteúdo desses deveres. O que ocorre é que alguns deveres de virtude têm o seu estatuto deôntico modificado em razão do motivo do agente ao cumpri-los, fazendo com que ações permitidas tornem-se proibidas, ações obrigatórias permitidas e assim por diante. Por exemplo, uma ação permitida, um gracejo ou um chiste, pode tornar-se proibida se feita por motivos maliciosos. Sem a pretensão de rebater o argumento de Timmons, notemos aqui apenas que o comentador passa por cima das dificuldades em determinar o “permitido” para Kant – ora, Timmons assume aproblematicamente que na Metafísica dos Costumes propriamente dita haja ações meramente permitidas, e não também ao mesmo tempo obrigatórias, o que parece contradizer a passagem em que Kant exclui a possibilidade de uma lex permissiva no âmbito ético, e não jurídico (MS Ak VI: 223. p. 32-33). Para Kant, a situação de permissão ocorre em duas oportunidades: (a) no caso de ausência de normas; (b) no caso em que uma lei permissiva suspende temporariamente uma proibição, tornando permitida a ação por ela afetada. Em suma, uma conduta é permitida ou se nenhuma norma incide sobre ela (o que certamente não ocorre num sistema de deveres, ou seja, de leis morais), ou quando determinada ação antes proibida torna-se temporariamente

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258

tornará mais claro mais adiante, Kant define a virtude como a autocoerção segundo um

princípio de liberdade interna, o que significa que a razão pura, através da “mera

representação do seu dever segundo a lei formal do mesmo” (MS Ak VI: 394. p. 305),

deve ser o móbil da ação efetivamente virtuosa - ora, isso implica a moralidade da ação,

o cumprimento do dever por dever. No entanto, ressaltar a possibilidade taxonômica de

uma ação legalmente ética, ou ainda, de um cumprimento meramente objetivo de um

dever de virtude, auxilia a compreender a inclusão do direito em uma Metafísica dos

Costumes e mesmo o projeto mais amplo de Kant de um sistema de deveres enquanto

deveres humanos – a legalidade ética serve para lembrar-nos de que Kant estabeleceu

um sistema da moral, e não apenas da moralidade. Nesse sentido, Mary Gregor é quem

propõe uma interessante distinção entre princípio supremo da moral e princípio

supremo da moralidade:

O princípio que ele [Kant] queria estabelecer e comprovar deveria ter sido tanto o

princípio supremo da moral - do qual todos os deveres são derivados - quanto o

princípio supremo da moralidade - o qual guia o agente quando o cumprimento de seu

dever é uma ação moralmente boa. Contudo, Kant ocupou-se dele [na Fundamentação

da Metafísica dos Costumes] especialmente como princípio supremo da moralidade306

Gregor reprova aqui o peso excessivamente ético presente na Fundamentação,

que impediria que o direito figurasse numa futura Metafísica dos Costumes. Esse

problema teria sido corrigido na própria Metafísica dos Costumes, mais precisamente

em sua introdução, onde, como vimos, Kant alça o ato do livre arbítrio, e, por

conseguinte, a legalidade, como conceito supremo de uma Metafísica dos Costumes.

Para Gregor, portanto, a Metafísica dos Costumes retifica o “ethical bias” da

Fundamentação ao incluir a legalidade e o ato correto como conceitos legítimos307.

Otfried Höffe expressa algo semelhante, afirmando que a Metafísica dos Costumes

permitida (o que, para Kant, somente ocorre no direito, e não na ética) (Sobre esse tema, ver Reinhard Brandt, “Das Erlaubnisgesetz, oder: Vernunft und Geschichte in Kants Rechtslehre”. In: Brandt, R (Org). Rechtsphilosophie der Aufklärung. Berlin. De Gruyter. 1982). Em suma, a situação de permissão não ocorre em uma doutrina de deveres de virtude, mas apenas no moralmente indiferente <adiaphoron>. Ademais, Timmons emprega exemplos retirados da casuística kantiana, que notadamente apresenta problemas quando colocada no interior do sistema metafísico de deveres conforme Kant o entendia. 306 Gregor, M. “Kants System der Pflichten in der Metaphysik der Sitten“. In: Ludwig, B (ed), Immanuel Kant. Metaphysische Anfangsgründer der Tugendlehre. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 2008. p. XXX. 307 Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. pp. 18-23.

Page 259: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

259

expande a atuação da teoria moral kantiana até o “plano institucional” e, com isso,

corrige o peso excessivamente “pessoal” da moral exposto na Fundamentação:

Dos diferentes conceitos [de moral], a Fundamentação escolhe essencialmente apenas

um: o lado pessoal da moral, a eticidade <Sittlichkeit> como ação por dever, a

moralidade <Moralität>, e não leva particularmente em conta o outro lado, a eticidade

institucional, a saber, a justiça política308.

Segundo Höffe, esse pendor para o plano pessoal da moral seria refletido no par

opositivo par excellence da Fundamentação: a ação conforme ao dever <pflichmäβig> e

por dever <aus Pflicht>, que, com efeito, deve ser suprimido ou ao menos cair para

segundo plano em uma teoria moral onde figura o direito e suas ações meramente

“legais” ou “conformes ao dever”. A “correção de percurso” viria na Introdução à

Metafísica dos Costumes e na nova oposição erigida a princípio da divisão dos deveres

da obra: o conforme ao dever, “correto”, e o contrário ao dever, “incorreto”.

Os dois comentadores, no entanto, dão pouca atenção ao objetivo de Kant nas

obras de fundamentação da moral. Na Fundamentação e na Crítica da Razão Prática

Kant estaria de fato preocupado somente com a moralidade, ou o “lado pessoal da

moral” pois um dos seus objetivos como essas obras consiste justamente em tornar o

homem consciente de sua liberdade através da “fixação” de uma lei moral que ordena

incondicionalmente; ora, isso ocorre unicamente quando o sujeito se depara com o

princípio do dever (imperativo categórico) como fundamento suficiente de determinação

de sua vontade, o que, por sua vez, somente ocorre na moralidade da ação por dever.

Entendemos ser esse o raciocínio que subjaz à seguinte passagem:

Esta separação [entre doutrina do direito e doutrina da virtude], na qual assenta também

a divisão suprema da doutrina dos costumes em geral, funda-se no seguinte: o conceito

de liberdade, que é comum a ambas, torna necessária a divisão em deveres da liberdade

externa e deveres da liberdade interna; deles só os últimos são éticos. - Daí que a

liberdade interna tenha de se propor como preliminar (discursus preliminaris) e,

decerto, como condição de todo o dever de virtude (MS Ak VI: 406-7. p. 325)

Somente é possível conceber a Metafísica dos Costumes como doutrina dos

deveres de liberdade interna e externa se antes a própria liberdade como condição inicial

308 Höffe, O. Königliche Völker. Op. cit. p. 105.

Page 260: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

260

da existência e do reconhecimento de deveres em geral (“independente de sua origem e

de seu conteúdo”) for desvelada através da fixação da lei moral como condição mesma

da consciência do dever, o que, para Kant, ocorre em um “discurso preliminar” sobre a

possibilidade da liberdade interna obtida através (segundo a Crítica da Razão Prática)

do fato da razão - cumpre aqui recordar o argumento kantiano de que a lei moral é ratio

cognoscendi da liberdade e esta, por sua vez, ratio essendi daquela (KpV Ak V: 4. p. 6);

ora, afirmar a pluralidade de leis morais como leis éticas e leis jurídicas implica

reconhecer antes a possibilidade da liberdade, o que, por sua vez, pressupõe a

insistência no “lado pessoal da moral” que caracteriza os escritos de fundamentação.

(De resto, mesmo os deveres jurídicos podem, em princípio, tornar-se “indiretamente

éticos”, ou seja, serem, eles também, deveres relativos à “liberdade interna”).

Desse modo, a Metafísica dos Costumes, com sua ênfase na legalidade e seu

objetivo de dispor os deveres da liberdade externa (direito) e da liberdade interna

(ética), não representa a fortiori uma “correção” da Fundamentação da Metafísica dos

Costumes e da Crítica da Razão Prática, mas uma etapa adicional, meramente possível

se antes a “consciência da liberdade em geral” for “apresentada” ao homem através do

imperativo categórico como princípio supremo da moralidade e não apenas da moral.

A perspectiva da Metafísica dos Costumes, no entanto, permanece sendo a

seguinte: a legalidade, ou a conformidade objetiva ao dever, é o critério inicial de

apreciação moral das ações. Um dever de virtude pode ser realizado sem que o móbil da

ação seja a representação do próprio dever. Neste caso, o de uma legalidade ética,

embora não se trate de uma ação virtuosa e tampouco haja a possibilidade de que o

agente seja coagido por outrem a prosseguir em suas ações “eticamente legais”, há uma

verificação intersubjetiva possível: trata-se de uma ação sensivelmente dada, possível de

ser observada e avaliada pelos demais agentes em sua mera “conformidade à lei”,

justamente o que é exigido pelo direito e que inevitavelmente ocorre em qualquer ação

praticada pelo arbítrio humano em seu agir conforme a fins no mundo sensível.

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261

8. DOUTRINA DO DIREITO E DOUTRINA DA VIRTUDE –

AUTONOMIA NA COMUNIDADE JURÍDICA E ÉTICA

A Metafísica dos Costumes assume a natureza humana como seu objeto

específico. Ao invés do conceito de uma natureza racional finita indeterminada que se

vê condicionada por elementos estranhos à lei moral que lhe é vinculante, a Doutrina do

Direito e a Doutrina da Virtude partem de um dado mais específico: o homem como um

ser racional e natural, um agente propositivo que busca realizar seus fins em um mundo

sensível compartilhado como os demais homens. Nesse sentido, a autonomia não pode

mais ser entendida tão-somente como a capacidade legislativa de um ser racional

membro de um reino dos fins; mais especificamente, esta legislação universal própria à

natureza racional precisa agora ser exercida no conjunto dos homens, segundo leis

externas que condicionam as relações jurídicas travadas entre homens e referidas

indiretamente a objetos, e segundo leis que estipulam a perseguição mesma de fins

racionais em meio a influências sensíveis e que visam o próprio agente e os demais

seres humanos. A autonomia da vontade, base normativa de uma Metafísica dos

Costumes, precisa ser especificada em uma autonomia jurídica e uma autonomia ética,

sem que a intromissão de elementos empíricos macule seu caráter a priori e, em virtude

disso, universalmente vinculante.

Muitos comentadores ressaltam a necessária vinculação entre autonomia, direito

e ética na Metafísica dos Costumes309. No entanto, esses intérpretes perdem de vista - ou

ao menos não frisam com a devida ênfase – o aspecto coletivo e comunitário envolvido

no conceito de autonomia, sugerido pela ideia de um reino dos fins “que lhe é inerente”

e que, na Metafísica dos Costumes, assume a feição de uma comunidade cosmopolita do

gênero humano sob leis jurídicas e de virtude. Ora, no caso do direito, os direitos

devidos aos homens em virtude de sua liberdade inata apenas são assegurados

peremptoriamente em uma federação de nações ou liga dos povos onde deve grassar

uma paz perpétua; da mesma forma, no caso da ética, a intenção verdadeiramente

virtuosa da ação por dever somente pode ser definitivamente cristalizada através do

triunfo sobre “o princípio do mau” em uma comunidade ética que abrange todo o gênero

humano. Se é verdade que os escritos de fundamentação apostam em um procedimento

309 Cf. Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. p. 38. Höffe, O. Königliche Völker. Op. cit. p. 118. Rousset, B. La Doctrine Kantienne de L´Objectivité. Paris: Vrin, 1967. pp. 506-512. Terra, R. Política Tensa. Op. cit. pp. 88-93. Idem. Passagens. Estudos sobre a filosofia de Kant. Op. cit. pp. 75-78.

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262

individual ou até mesmo “instrospectivo” de fixação e justificação do princípio supremo

da moralidade, a aplicação deste não pode menosprezar o conjunto dos homens, onde

estes se tornam, de fato, sujeitos legisladores junto a seus semelhantes.

Num primeiro momento discutiremos a oposição entre legislação ética e

legislação jurídica introduzida por Kant pela primeira vez na Metafísica dos Costumes.

Tomando como ponto de partida não a motivação na ação em conformidade a ou por

dever, essa visada diferencia-se daquela que opõe a legalidade à moralidade e auxilia a

iluminar a autonomia envolvida no direito e na ética: aqui, a autonomia se caracteriza

primeiramente não como a que impele um agente autônomo por dever, mas antes como

aquela que exige submissão a uma lei não arbitrária da qual o homem se considera autor

da própria lei e da obrigatoriedade ou coerção expressa por ela (8.1). Na sequência,

tópicos centrais do direito privado e do direito público kantiano serão abordados com o

objetivo de indicar que uma vontade geral ou omnilateral está presente na fundação

mesma da legitimidade dos direitos decorrentes da liberdade e da igualdade inatas,

conduzindo à necessidade de positivação desta vontade geral em um ordenamento

jurídico de extensão cosmopolita e baseado na autonomia dos cidadãos como

colegisladores universais (8.2). Por fim, a virtude e os fins obrigatórios da razão serão

analisados como a maneira pela qual o homem pode triunfar sobre a influência dos

estímulos da sensibilidade na determinação do seu arbítrio apenas pela lei moral; o

esforço do indivíduo virtuoso carece da concorrência dos demais homens, numa

disposição coletiva de enfrentamento do “princípio mau” da natureza humana em uma

comunidade ética de cunho cosmopolita. (8.3).

8.1. Legislação ética e legislação jurídica.

Na primeira seção da Introdução à Metafísica dos Costumes, denominada “Da

relação das faculdades do ânimo humano com as leis morais”, Kant, como vimos,

classifica as leis morais em, por um lado, leis jurídicas, concernentes às ações externas

do arbítrio e à sua conformidade à lei, portanto, à legalidade <Legalität> das mesmas, e,

por outro, leis éticas, que dizem respeito ao exercício interno da liberdade, ao

acolhimento da própria lei como fundamento de determinação do arbítrio, e, assim, à

moralidade <Moralität> das ações (MS Ak VI: 214. pp. 19-20). Na terceira seção da

Introdução à Metafísica dos Costumes, denominada “Da divisão de uma Metafísica dos

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263

Costumes”310, essa distinção é retomada, agora sob uma nova forma: a oposição entre

legislação jurídica <juridische Gesetzgebung> e legislação ética <ethische

Gesetzgebung>. Nesta nova exposição a respeito da distinção entre ética e direito torna-

se mais claro aquilo em que consiste a autonomia envolvida, sobretudo no direito.

Segundo Kant, uma “legislação” qualquer deve possuir dois elementos: por um

lado, uma lei que determina uma certa ação como devida, isto é, como conforme a um

dever estipulado pela lei, e, por outro, um móbil <Triebfeder>, que prescreve de que

maneira a lei deve ser seguida, ou ainda, a motivação para que o dever estipulado pela

lei seja cumprido pelo agente. Em outras palavras, toda legislação fornece um parâmetro

normativo tanto objetivo (lei) quanto subjetivo (móbil) para a realização de

determinadas ações:

A toda legislação (prescreva ela ações interiores ou exteriores e estas ou a priori,

através da mera razão, ou por meio do arbítrio de outrem) pertencem dois elementos:

primeiro, uma lei que representa objetivamente como necessária a ação que deve

ocorrer, ou seja, que faz da ação um dever; segundo, um móbil que conecta

subjetivamente o fundamento de determinação do arbítrio para esta ação à

representação da lei. Este é, portanto, o segundo elemento: a lei faz do dever um móbil.

Por meio do primeiro, a ação é representada como dever, o qual é um mero

conhecimento teórico da possível determinação do arbítrio, quer dizer, da regra prática;

por meio do segundo, a obrigação de agir deste modo é ligada, no sujeito, a um

fundamento de determinação do arbítrio em geral (MS Ak VI: 218. p. 26).

De acordo com essa visada, a ética se opõe ao direito não tanto pelas ações

prescritas objetivamente, que, por certo, podem ser exteriores e coincidirem em ambas

as legislações; o que distingue a legislação jurídica da legislação ética é o móbil

exigido, a motivação que conduz o agente a agir em conformidade ao dever estipulado

pela lei:

A legislação que faz de uma ação dever, e desse dever, simultaneamente, um móbil, é

ética. Mas aquela que não inclui o último na lei e, portanto, também admite um outro

móbil que não a ideia mesma do dever, é jurídica. (MS Ak VI: 219. p. 27).

A legislação ética exige não só a concordância da ação com a lei do dever, mas

também reivindica que este dever torne-se, ele mesmo, o móbil para a ação, isto é, tal

310 Na edição de Bernd Ludwig, trata-se da quarta seção.

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264

legislação exige a moralidade da ação empreendida; por sua vez, a legislação jurídica

permite que o agente que age em conformidade com a lei acolha como móbil algo

distinto do dever, ou seja, é legítimo agir tendo por motivação um móbil baseado em

elementos patológicos - em outras palavras, na legislação jurídica exige-se apenas a

legalidade das ações do agente:

Em vista desta última [legislação jurídica], vê-se facilmente que esse móbil, distinto da

idéia do dever, tem de ser extraído dos fundamentos de determinação patológicos do

arbítrio – as inclinações e aversões – e, dentre estas últimas, das aversões, porque deve

ser uma legislação que obriga, não uma atração que convida. A mera concordância ou

não concordância de uma ação com a lei, sem consideração ao móbil da mesma, se

denomina legalidade (conformidade à lei <Gesetzmäßigkeit>), mas aquela em que a

idéia do dever pela lei é ao mesmo tempo o móbil da ação se chama moralidade

(eticidade <Sittlichkeit>) da mesma (MS Ak VI: 219. p. 27).

A legislação da razão influi no direito apenas enquanto promulga uma lei

universal que regula a relação externa recíproca dos arbítrios311. Os deveres jurídicos,

desta maneira, desoneram o agente de uma motivação moral ou ética para o

comportamento conforme ao direito; como resultado, as ações prescritas pela lei na

legislação jurídica exigem apenas uma determinada conduta externa na relação entre

arbítrios, e não uma postura interna positiva diante do dever, como ocorre na legislação

ética.

É possível compreender de maneira mais adequada esta concepção kantiana

recorrendo à definição de “dever” fornecida na Introdução à Metafísica dos Costumes,

311 Segundo Kersting, embora a lei juridica não dependa da consciência da lei moral ou da “espontaneidade moral” para sua realidade, ela depende da “personalidade moral” do sujeito, ou seja, a “liberdade de um ser racional sob leis morais” para que seja forjado o conceito de “liberdade externa” envolvido. Kersting conclui dai que o direito exige uma “tomada de posição extramoral”, que não envolva o “fato da razão” e, assim, a consciência imediata de um imperativo sintético a priori, como ocorre por ocasião do imperativo categórico – nessa medida, a lei juridical é analítica, expressa a necessidade imediata implicada na coerção externa (Kersting, W. Wohlgeordnete Freiheit. op. cit. pp. 101-103). Embora a lei jurídica não exija per se a consciência do dever, a possibilidade mesma de que o agente se sinta obrigado por ela de modo legítimo, isto é, de que se trate de uma lei da qual possa se considerar como autor, é condição de possibilidade de uma lei legítima do direito. Nesta medida, o discurso preliminar sobre a possibilidade da ação livre e da autonomia da vontade são pressupostos pelo direito, e não apenas, como quer Kersting, através da simples personalidade moral do agente. Ora, o fato de que qualquer dever jurídico possa tornar-se indiretamente ético é a marca de origem de qualquer lei moral na consciência do dever.

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265

mais especificamente na quarta seção312, denominada “Conceitos preliminares da

Metafísica dos Costumes (Philosophia practica universalis)”313:

Dever é a ação a que alguém está obrigado <verbunden>. É pois a matéria da obrigação

<Verbindlichkeit>, e pode ser o mesmo dever (segundo a ação), embora possamos a ele

estar obrigados de diversos modos <auf verschiedene Art dazu verbunden> (MS Ak

VI: 222. p. 32 – grifo nosso).

Estar obrigado de um determinado modo significa estar sujeito a um tipo

específico de obrigação – ao passo que o dever propriamente dito, isto é, a ação devida,

objetivamente necessária, consiste na matéria da obrigação, o tipo de obrigação, a

maneira pela qual se estabelece que determinada ação é devida, diz respeito, por assim

dizer, à forma da mesma.

De maneira a esclarecer essa clivagem entre forma e matéria, retornemos à

distinção kantiana entre legislação ética e legislação jurídica.

Tem a ética, sem dúvida, os seus deveres peculiares (por exemplo, os deveres para

consigo mesmo) mas tem também deveres comuns com o direito, embora não o modo

de obrigação <Art der Verpflichtung>. Realizar ações simplesmente porque são deveres

e converter em móbil suficiente do arbítrio o princípio do próprio dever, venha este

donde vier, é o peculiar da legislação ética (MS Ak VI: 220. p. 29 – grifo nosso).

Realizar ações pois elas são deveres significa “não ter em conta nenhum outro

móbil, [trata-se de um mandamento] que pertence apenas à legislação interior” (Idem.

Ib - grifo meu). Ou seja, na legislação ética ocorre um modo de obrigação distinto

daquele presente na legislação jurídica; trata-se de uma coerção interna, (cf. MS Ak VI:

394. p. 305) muito embora a ação realizada, isto é, o dever, a matéria da obrigação,

possa ser semelhante àquela requerida pela legislação jurídica. Esta por sua vez, pelo

fato de não exigir que a própria idéia de dever sirva de móbil para o arbítrio, envolve

312 Segundo a edição de Bernd Ludwig, trata-se da terceira seção. 313 De modo significativo, Kant não inclui nesta seção de subtítulo “filosofia prática universal” considerações psicológicas relativas às faculdades práticas humanas. Embora carregue no título o nome da disciplina da escola de Wolff, a breve “filosofia prática universal” proposta por Kant contém apenas a definição e exposição de conceitos centrais da sua filosofia moral, tais como liberdade, dever, necessitação, lei prática, imperativo categórico, etc., sem a “mescla de pureza e empiria” de que é acusado Wolff no prefácio à Fundamentação. Detalhes sobre as faculdades práticas humanas são discutidos em uma seção separada, chamada “Da relação do ânimo humano com as leis morais”, já abordada no capítulo anterior da dissertação.

Page 266: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

266

uma coerção externa, isto é, a ação requerida pode ser externamente imposta, o agente

pode ser coagido por outrem a realizá-la. Bem entendido, é possível estar obrigados de

duas formas distintas a realizar uma mesma ação: relativamente à mesma matéria da

obrigação (à ação praticamente necessária), posso estar sujeito a duas formas de

obrigação (ao modo de obrigação ética ou ao modo de obrigação jurídica). A esse

respeito, o conhecido exemplo de Kant é ilustrativo: um determinado sujeito pode

cumprir um contrato (a ação praticamente necessária) seja por medo das sanções

juridicamente estabelecidas ligadas à conduta contrária (modo de obrigação jurídica)

seja porque ele acredita que fazê-lo é um dever ao qual assente (modo de obrigação

ética) (MS Ak VI: 220. pp. 28-29).

Em suma, um mesmo dever pode ser cumprido conforme uma coerção exterior

ou interior, ou seja, uma “coerção universalmente recíproca que está necessariamente de

acordo com a liberdade” externa de todos (MS Ak VI: 232. p. 46) ou uma “autocoerção

<Selbszwang> (...) segundo o princípio da liberdade interna” (MS Ak VI: 394. p. 305) -

no primeiro caso trata-se da legislação jurídica e no segundo, da legislação ética:

O conceito de dever é em si já o conceito de uma necessitação (coerção) do arbítrio

livre pela lei, sendo que esta coerção pode ser exterior ou autocoerção (MS Ak VI: 379.

p. 282).

O que distingue ética e direito não é tanto, pois, a ação objetivamente exigida

pelo dever (embora, decerto, haja deveres estritamente éticos), mais antes o modo

subjetivo de obrigação, a espécie de coerção envolvida em cada uma destas partes da

filosofia moral: trata-se, aqui, da marca específica que opõe direito a ética, ou ainda,

deveres jurídicos e deveres de virtude:

O dever de virtude difere do dever jurídico essencialmente no seguinte: para este último

é possível uma coerção externa, enquanto que aquele se baseia somente numa

autocoerção livre (MS Ak VI: 383. p. 288).

Há uma importante passagem da quarta seção da Introdução à Metafísica dos

Costumes que, lançando mão de uma metáfora política, ilumina a relação envolvendo lei

e coerção em cada uma das legislações:

Page 267: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

267

Uma lei (prático-moral) é uma proposição que contém um imperativo categórico

(mandamento). Quem ordena <Gebietende> (imperans) mediante uma lei é o legislador

(legislator). É o autor <Urheber> (autor) da obrigatoriedade da lei <Verbindlichkeit

nach dem Gesetse>, mas nem sempre autor da lei. Nesse último caso, a lei seria positiva

(contingente) e arbitrária (MS Ak VI: 227. p. 38).

Vemos assim que, além da lei ou mandamento que estipula uma determinada

ação como devida, há um legislador que ordena aquilo contido na lei; caso não se trate

de uma lei arbitrária e positiva, ele é o “autor da lei e da obrigatoriedade da lei”, ou

seja, tanto do dever quanto da coerção envolvida. Na medida em que este autor está

submetido à coerção imposta pela obrigatoriedade da lei por ele promulgada, como deve

ser o caso em uma legislação jurídica e em uma legislação ética não arbitrárias, é lícito

qualificá-lo também como endereçado da mesma. Essa nova metáfora política

empregada por Kant elucida a dupla perspectiva respeito de uma possível autonomia

externa e uma autonomia interna – a despeito dos móbiles envolvidos, em ambos os

casos a legislação deve provir da razão pura, na medida em que a lei e sua

obrigatoriedade provêm do legislador, que, por sua vez, deve estar submetido a ambas.

Em suma, o sujeito legiferante que se submete a leis jurídicas e a leis éticas por ele

promulgadas deve ser autônomo.

Nós podemos falar por analogia da razão prática pura como um legislador interno que

conecta à lei o pensamento do dever e por meio disso nos coage, através de móbeis

<motives> de origem não-sensível, a agir de acordo com a lei. A legislação promulgada

pelas autoridades do Estado deve ser chamada, segundo Kant, de legislação ‘externa’ ou

‘jurídica’; aquela, por outro lado, que é própria à razão prática pura é a legislação

‘ética’ ou ‘interna’. A distinção fundamental entre as duas funda-se no tipo de coerção

que o legislador é capaz de exercer em cada caso314.

Ora, compreendendo a distinção entre direito e ética através de uma distinção de

legislações, e não tanto em termos de legalidade ou moralidade da ação, é possível

iluminar inicialmente a exigência de autonomia que preside toda e qualquer legislação

que se pretenda legítima e não arbitrária. Conforme indica a passagem mencionada

acima, o legislador é o autor da lei e da obrigatoriedade da lei. Um sujeito que

reconhece como legítimas e não arbitrárias não apenas uma determinada lei, mas

314 Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. p. 42.

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268

também a coerção sentida, deve, ademais, reconhecer-se como o autor não apenas da

lei, mas também de sua obrigatoriedade, da coerção (interna ou externa) exercida para o

cumprimento do dever estipulado pela lei. Não se trata, como na oposição legalidade e

moralidade, de uma postura alheia à lei e ao dever conforme aos quais se age por dever

ou não; mesmo na legislação jurídica, o agente, caso reconheça como legítima sua

submissão tanto à lei quanto à coerção, deve considerar-se como “autor da lei” e da

“obrigatoriedade da lei” à qual se sujeita, ou ainda, a lei e a coerção externas devem ser

legítimas, frutos de uma legislação baseada no princípio da autonomia.

Com efeito, como bem nota Kaulbach, a oposição legalidade e moralidade não

corresponde de modo imediato àquela de legislação jurídica e legislação ética. Trata-se,

na realidade, de perspectivas distintas a respeito de um mesmo dado: na primeira, parte-

se do sujeito até a lei, e, na segunda, da lei até o sujeito, ou ainda, no primeiro caso, da

motivação do agente até a lei da razão, e, no segundo, da lei da razão até a motivação

do agente. Ora, a insistência de Kant na Metafísica dos Costumes em ressaltar o par

opositivo legislação ética e legislação jurídica, contrariamente ao que ocorre nas obras

de fundamentação com a ênfase na oposição de legalidade e moralidade, sinaliza que

seu objetivo na obra é colocar no centro de sua análise a própria lei autônoma da razão

em suas manifestações externas e internas e na relação com o sujeito legiferante que se

lhe submete:

Com o uso de ambas as perspectivas, Kant quer tornar claro que a autolegislação

(autonomia) pertence a uma outra perspectiva que não aquela da auto-obrigação

<Selbstverpflichtung>, e que, de ambas compostas, surge o todo da situação prática do

homem315

Com efeito, é possível uma “autolegislação” não apenas na perspectiva ética,

mas também em uma perspectiva jurídica que é indiferente aos móbiles para o

cumprimento do dever e, assim, à “auto-obrigação” entendida como autocoerção. Com a

oposição entre legislação jurídica e legislação ética Kant pretende insistir que o caráter

de “auto-obrigação” da lei, a exigência de que a ação conforme ao dever tenha ainda de

ser cumprida por dever, ou seja, tendo por móbil de determinação do arbítrio a

representação mesma de que tal ação é um dever, tem de ser parcial e provisoriamente

“posto em parênteses” em uma Metafísica dos Costumes. Sem isto, não seria possível 315 Kaulbach, F. “Der Herrschaftsanspruch der Vernunft in Recht und Moral bei Kant”. In: Kant-Studien 67, 1976. p. 392.

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269

compreender em que consiste a autonomia jurídica e de que modo o direito e seu

princípio supremo estão submetidos ao imperativo categórico.

8.2. Autonomia jurídica

8.2.1. Definição do direito como faculdade de coagir – pressupostos

empíricos e liberdade externa.

O direito tem por objetivo regular a relação externa entre arbítrios e, com isso,

salvaguardar o exercício externo da liberdade. Para Kant, a legitimidade que cabe à

disciplina jurídica no cumprimento dessa função não pode ser aferida da mera

positividade de algum ordenamento jurídico existente. Ora, argumenta Kant, uma

legislação externa legítima ensejada pelo conjunto de leis de que se compõe uma

doutrina do direito (MS Ak VI: 229. p. 41) deve estar apoiada em uma doutrina

sistemática do direito natural <Naturrecht>316, que, segundo princípios racionais a

priori, define aquilo que é justo ou injusto, conforme ou contrário ao direito

<rechtmäßig oder rechtwidrig> independentemente da faticidade de sistemas jurídicos

existentes317. Ao doutrinário do direito natural cabe a competência de cientista do

direito, e não de simples jurisconsulto, que se limita a conhecer a doutrina direito

positivo, ou perito no direito, que além do conhecimento dos estatutos positivos sabe

316 Cumpre aqui distinguir Naturrecht e natürliches Recht. Ao passo que o primeiro se refere ao conjunto não estatutário de leis e deveres suprapositivos que serve como padrão normativo e racional de avaliação dos sistemas jurídicos positivos existentes, o segundo diz respeito ao direito do homem natural, o direito do homem no estado de natureza e que, no limite, conduz à necessidade de passagem ao estado civil, ou seja, “o direito privado independentemente de sua inscrição em um sistema de direito público” (Renaut, A. Kant Aujourd’Hui. Op. cit. p. 324. Cf. pp. 322-327). Ao contrário do natürliches Recht, portanto, que representa os direitos inalienáveis e intangíveis do homem independente de sua participação atual em um estado jurídico qualquer, o Naturrecht consiste no direito racional par excellence, no “critério para as reformas e melhoramentos da constituição a serem promovidos pelo chefe de Estado e também um critério para a elaboração de leis positivas” (Terra, R. Kant e o Direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. pp. 27). Nessa medida, Kant afirma que o Naturrecht como doutrina do direito não se divide em natürliches Recht e gesellschaftliches Recht, ou seja, em direito do homem natural e direito do homem em sociedade, já que o estado de natureza opõe-se não ao estado social, possível mesmo no estado de natureza, mas antes ao estado civil, um estado jurídico que deve assegurar e tornar peremptório o direito privado devido ao homem em virtude de seu natürliches Recht e colocado em contínua ameaça no estado de natureza; o Naturrecht, pois, divide-se em direito privado, decorrente do natürliches Recht, e direito público <öffentliches Recht> (MS Ak VI: 242. p. 64), justamente as duas divisões da Doutrina do Direito. Para uma discussão a respeito das relações entre Naturrecht e direito positivo e uma tentativa de transformação do “direito natural material em procedimental” em Kant, cf. Maus, I. O Direito e a Política. Teoria da Democracia. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2009. pp. 133ss. 317 “Os direitos, enquanto doutrinas sistemáticas, dividem-se em direito natural, que assenta em puros princípios a priori, e direito positivo (estatutário), que dimana da vontade de um legislador” (MS Ak VI: 237. p. 55).

Page 270: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

270

também aplicar os princípios do direito existente a casos apresentados na prática

jurídica318.

Kant propõe em sua Doutrina do Direito uma exposição sistemática da ciência

jurídica, ou seja, dos deveres decorrentes dos princípios racionais a priori do direito

natural <Naturrecht>. Com efeito, a consideração meramente fatual de sistemas

jurídicos existentes conduz apenas a princípios empíricos que nada dizem sobre o

“critério universal” e suprapositivo segundo o qual algo é avaliado como conforme ou

contrário ao direito (MS Ak VI: 229. p. 42). O estatuto a priori não puro da disciplina

jurídica proposta por Kant e sua vinculação aos conceitos centrais (imperativo, dever,

obrigação) que refletem a fundação da filosofia moral no princípio de autonomia

impedem que sua investigação limite-se à observação e análise do direito positivo. Tal

critério universal da conformidade ao direito é lastreado por um componente moral, por

uma validade que independe da faticidade dos sistemas normativos e que é fundada,

assim, na razão. Aos jurisconsultos que creem poder furtar-se ao estudo da ciência do

direito vale não apenas a censura de vitium subreptionis (confundir enunciados sobre o

que é de direito <quid iuris> com enunciados sobre o que é de fato <quid facti> - cf.

KrV A 84/B 116), mas mesmo a dura acusação, também lançada a Wolff e sua escola,

de algo semelhante a uma “perversão” dos fundamentos a partir dos quais são

estipulados os direitos que são devidos ao homem em virtude de sua humanidade:

O jurisconsulto pode ainda muito bem declarar o que é de direito (quid sit iuris), quer

dizer, o que dizem ou disseram as leis em certo lugar e em certo tempo. Mas a questão

de também ser justo aquilo que as leis prescreviam, ou a questão do critério universal

pelo qual se pode reconhecer em geral o justo e o injusto (iustum et iniustum),

permanecem-lhe totalmente ocultas se ele não abandona durante algum tempo aqueles

princípios empíricos e busca as fontes desses juízos na mera razão (embora para tal

aquelas leis lhe possam servir perfeitamente como fio condutor) de modo a estabelecer

os fundamentos de uma possível legislação positiva. Uma doutrina do direito

meramente empírica é (como a cabeça de madeira na fábula de Fedro) uma cabeça que

pode ser bela mas que, lamentavelmente, não tem cérebro (MS Ak VI: 229-230. p. 42).

A acefalia de uma boa doutrina positivista do direito impede que com ela atinja-

se o critério moral e racional que marca a diferença entre justo e injusto e que legitima a

318 Cf. Höffe, O. “O imperativo categórico do direito: uma interpretação da ‘Introdução à Doutrina do Direito”. In: Studia Kantiana 1, 1998. pp. 204-208.

Page 271: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

271

coerção imposta pelo sistema jurídico estabelecido em seu intento de proteger a

liberdade externa:

uma consideração exclusivamente positiva (“positivista”) do direito não sabe se o que é

de direito também é justo; o valor positivo, a legalidade jurídica, deixa em aberto a

validade suprapositiva, a legitimidade moral319

Kant estipula três condições que devem ser satisfeitas por este conceito moral de

direito por ele proposto, ou seja, aquele ligado a um conceito de obrigação

<Verbindlichkeit>: 1) primeiro, que os sujeitos jurídicos estejam em relações externas e

que suas ações, como fatos <Facta>, interfiram nas ações dos demais; 2) segundo, tal

relação é uma relação entre arbítrios, e não meros anseios; 3) terceiro, nesta relação

recíproca abstrai-se da matéria do arbítrio, isto é, seu fim, retendo apenas a forma de tal

relação na medida em que ela se coloca sob uma lei universal (MS Ak VI: 230. pp. 42-

43) 320. O conjunto dessas condições juridicamente relevantes monta um cenário em que

os homens, ao perseguir seus fins, ou seja, ao visar objetos sensíveis e não meramente

ansiar pelos mesmos, inevitavelmente entram em contato com os demais e interferem

nas ações e no estado destes321; na relação juridicamente regulada, no entanto, não são

os próprios fins, ou seja, os objetivos ou propósitos dos sujeitos que devem ser

319 Höffe, O. “O imperativo categórico do direito: uma interpretação da ‘Introdução à Doutrina do Direito”. Op. cit. p. 205. 320 Sobre as três condições descritas aqui, cf. Nour, S. À Paz Perpétua de Kant. Filosofia do direito internacional e das relações internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2004. pp. 20-28. A autora ressalta como em sua exposição das condições juridicamente relevantes Kant já está pressupondo uma visada “comunitária” do direito como “aplicação metafísica” do reino dos fins à relação externa entre arbítrios. Nossa intenção aqui, contudo, é aprofundar este juízo e ligá-lo sistematicamente aos temas tratados na Doutrina do Direito, o que é pouco explorado pela autora. 321 Como já vimos, o “mero anseio” <Wunsch> não impele o homem à ação e, assim, não produz efeitos externos que interfiram nas ações dos demais. Além disso, com essa cláusula restritiva da atuação do princípio jurídico, Kant pretende ressaltar que o direito não deve regular a relação entre as “carências” <Bedürfnisse> dos homens, mas apenas os efeitos que destas decorrem quando se transmudam em “desejos” <Begehren> e, assim, ações com vistas a fins no mundo sensível. Segundo Kersting, Kant exclui, dessa maneira, considerações “filantrópicas” como diretrizes de uma sociedade juridicamente regulada: “Uma comunidade jurídica não é uma comunidade de solidariedade dos necessitados <Bedürftigen>, mas antes uma comunidade de proteção dos que detêm poder <Handlungsmächtige>” (Kersting, W. Wohlgeordnete Freiheit. Op. cit. p. 80). A conclusão de Kersting soa um pouco drástica: embora Kant não pretenda que os meros anseios e as carências sejam objeto de regulação jurídica, isso não significa que não haja certos mecanismos distributivos e mesmo o reconhecimento da necessidade de um mínimo de condições sociais e materiais para que os indivíduos possam buscar seus fins e, assim, sua felicidade própria (Cf. MS Ak VI: 325-326. pp. 199-200). Numa leitura inspirada em Rawls, Paul Guyer propõe uma interpretação do direito kantiano na qual reconhece na intersubjetividade implicada na teoria da propriedade de Kant “uma preocupação com a justiça distributiva (...) como meio para a felicidade assim como para a proteção da vida e da propriedade” (Guyer, P. “Life, Liberty and Property: Rawls and Kant”. In: Idem. Kant on Fredom, Law, and Happiness. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. p. 268).

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272

considerados, mas apenas a margem de ação externamente livre deixada em aberto por

uma ação qualquer com vistas a um objeto externo ao agente, isto é, deve ser levada em

conta apenas a forma da relação entre os arbítrios – ora, o direito é indiferente não

apenas à motivação que leva o agente a cumprir um contrato, mas também a seus

objetivos com esse ato no interior do âmbito mais amplo de seus planos de vida e de sua

felicidade própria322. Em poucas palavras, o direito deve regular a relação entre as ações

humanas livres com vistas a objetos externos que interfiram na igual e correspondente

liberdade externa dos demais.

Há uma série de pressupostos não explicitados por Kant aqui. Em primeiro

lugar, o sujeito jurídico deve ser uma pessoa <Person>, um ser livre cujas ações são

tomadas como atos <Taten>, ou seja, ações das quais ele é autor <Urheber> ou causa

libera e que, nessa medida, podem ser-lhe imputadas <zurechnen> (MS Ak VI: 223. p.

33). A interferência na ação dos demais ensejada pelos atos de um determinado sujeito

pode, assim, ser-lhe imputada e atribuída como de sua responsabilidade323. Trata-se,

aqui, de uma ideia central da teoria moral kantiana: caso o homem apenas fosse

determinado pela natureza, não poderia haver algo como uma Metafísica dos Costumes,

o sistema das leis da liberdade como leis éticas e jurídicas.

Em segundo lugar, Kant toma como um dado iniludível, ou seja, como um

elemento empírico mínimo, que da esfericidade da Terra decorre a finitude de sua

superfície e, com isso, que os homens inevitavelmente interferem nos demais com suas

ações dadas no mundo. Ora, caso a superfície terrestre fosse plana e infinita, os homem

poderiam muito bem se dispersar e abster-se de relações externas que influíssem

reciprocamente entre si.

Pois, se ela [superfície terrestre] fosse um plano infinito, os homens poderiam

dispersar-se tanto que não entrariam em nenhuma comunidade uns com os outros, esta

não sendo, portanto, uma conseqüência necessária de sua existência sobre a terra (MS

Ak VI: 262. p. 95).

322 Há neste momento a reivindicação kantiana de que o direito não tenha por objeto a felicidade dos agentes jurídicos. Um sistema jurídico que regulasse o fim do arbítrio, e não a forma da relação entre esses fins possíveis ou efetivos, ensejaria a exigência de um governo paternalista que tivesse a felicidade dos súditos como escopo, ou seja, a eleição e promoção dos fins efetivos dos sujeitos e não a regulação das condições formais que garantem a perseguição livre dos fins que os próprios sujeitos possam vir a ter (cf, UdG Ak VIII: 290-291. pp. 79-80). Segundo Kant, um governante que age dessa maneira considera seus súditos como “crianças menores” incapazes de uma ação livre; dessa maneira, trata-se do “pior despotismo que se pode pensar” (UdG Ak VIII: 291. p. 80; cf. UdG Ak VIII: 298-299. pp. 89-90). 323 Cf. Höffe, O. O imperativo categórico do direito: uma interpretação da ‘Introdução à Doutrina do Direito”. Op. cit. p. 215. Kersting, W. Wohlgeordnete Freiheit. Op. cit. p. 79.

Page 273: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

273

A comunidade entre os homens é um dado, um fato incontornável que decorre da

finitude da Terra. Dessa maneira, uma ação qualquer que vise um objeto do mundo

sensível inevitavelmente interfere nos demais homens, nem que seja de maneira indireta

e remota.

Ademais, em terceiro lugar, a relação recíproca inevitável entre os homens não

é apenas de natureza teórica ou estética; ora, dada sua constituição natural e, assim,

carente, o homem visa objetos que lhe despertam prazer – ele deseja <begehrt> esses

objetos, seu arbítrio age tendo por fim de suas ações coisas que ou bem são ou podem

ser de outros homens, ou bem dependem ou podem depender destes para existir324.

Trata-se, como vimos, da característica do arbítrio: uma faculdade de desejar guiada por

conceitos que tem por fim um determinado objeto no mundo sensível.

Em resumo, a relação jurídica entre os homens exprime uma determinada

situação prática efetiva e elementar em que estes se encontram como seres racionais e

naturais: uma pluralidade de homens vivendo em comunidade e que, em suas ações

imputáveis conformes a fins, interferem nos demais e em seus desejos:

Verificam-se problemas de direito somente quando há diversas pessoas (i: pluralidade

de pessoas) que estão umas com as outras (ii: intersubjetividade), numa relação que não

é meramente de natureza estética ou teórica (contemplativa), mas muito antes de

natureza prática (iii: intersubjetividade e reciprocidade): uma vez que as pessoas vivem

no mesmo mundo exterior, não podem deixar de se influenciar mutuamente por meio de

suas ações imputáveis325

Tendo em vista esta situação jurídica elementar, decorrente do fato

antropológico fundamental de que o homem é um ser racional, livre e carente em uma

comunidade compartilhada com os demais homens na superfície finita terrestre, o

direito é definido por Kant como

324 Esta última cláusula dá a base para a segunda e a terceira partes do direito privado kantiano: o direito pessoal (posse de um serviço de alguém) (MS Ak VI: 271-273. pp. 108-113) e o direito pessoal de caráter real (posse permanente do estado de alguém) (MS Ak VI: 276-284. pp. 118-130) – trata-se, aqui, não de objetos propriamente ditos, mas de ações de outras pessoas, com as quais se espera a produção de algum determinado efeito para o sujeito que as contrata. Não nos deteremos nessa modalidade de direito privado. Sobre as dificuldades dessa concepção kantiana de direito privado no interior de seu sistema, Cf. Brandt, R. Immanuel Kant – Was bleibt?. Op. cit. pp. 130-143. Brandt discorda que o postulado jurídico da razão prática, que discutiremos em 8.3.3, tenha validade para o direito pessoal e o direito pessoal de caráter real. 325 Höffe, O. “O imperativo categórico do direito: uma interpretação da ‘Introdução à Doutrina do Direito”. Op. cit. pp. 215-216.

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274

o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode conciliar-se com o arbítrio

de outro segundo uma lei universal da liberdade (MS Ak VI: 230. p. 42).

A pretensão racional e moral de Kant em sua metafísica do direito é expressa

pela universalidade exigida na relação jurídica: ora, as leis jurídicas são leis morais que

regulam a liberdade externa na relação recíproca dos homens. Surge aqui, com efeito, o

princípio universal do direito, também formulado como uma lei universal326, que, como

mencionado, exprime-se sob a forma de um imperativo ou princípio metafísico da moral

que ordena o modo como as ações de todos os homens devem poder harmonizar-se

reciprocamente de um ponto de vista externo.

aja externamente de tal modo que o uso livre de seu arbítrio possa coexistir com a

liberdade de cada um segundo uma lei universal (MS Ak VI: 231. p. 44).

Este “imperativo categórico do direito” exprime a maneira pela qual a busca dos

fins particulares de cada homem pode coexistir externamente com a dos demais, em

outras palavras, o modo como a liberdade externa torna-se primeiramente possível.

Para Kant, a liberdade externa envolvida no direito pode ser definida através de

uma metáfora tomada de empréstimo à física: da mesma forma como os corpos em

comércio mútuo limitam-se reciprocamente segundo a lei de ação e reação, os homens

encontram-se em uma comunidade espaço-temporal na qual as ações de um provocam

efeitos que interferem nos demais, limitando, assim, a liberdade externa destes últimos –

um homem externamente livre é aquele que não encontra impedimentos ilegítimos para

o exercício externo de seu arbítrio, ou seja, cujas ações não são indevidamente limitadas

pelos demais. Nesta medida, o direito pode ser caracterizado, conforme já visto, como

uma coerção externa recíproca e universal, tão exata e ubíqua quanto aquela

representada pela reciprocidade das forças de atração e repulsão no comercio entre os

corpos dados no espaço e no tempo:

o direito não pode ser pensado como composto de duas partes, a saber, da obrigação

segundo uma lei e da competência para coagir daquele que obriga outrem por meio de

seu arbítrio, mas pode ter seu conceito imediatamente estabelecido na possibilidade da

ligação entre a coerção recíproca universal e a liberdade de cada um. Assim como o

direito em geral só tem por objeto o que é externo nas ações, o direito estrito, a saber,

326 Sobre a distinção entre “princípio” e “lei universal” do direito, cf. Almeida, G.. “Sobre o Princípio e a Lei Universal do Direito em Kant”. Op. cit.

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275

aquele que não está mesclado com nada ético, exige apenas os fundamentos externos de

determinação do arbítrio (MS Ak VI: 232. p. 45).

Esses “fundamentos externos” permitem que a coerção produzida seja

determinada de modo exato e rigoroso: ora, a exterioridade das ações reguladas pelo

direito “estrito” exclui que sejam considerados móbiles morais, a interioridade da

representação do dever, impossível de ser regulada de forma exata e estrita como ocorre

com os efeitos externos da ação327. A rigor, a liberdade jurídica confunde-se com a

universalidade e reciprocidade da coerção, que, por sua vez, é devida à exterioridade

dos efeitos das ações dos arbítrios que travam contato no mundo dos objetos externos:

A resistência que se opõe ao obstáculo de um efeito promove esse efeito e concorda

com ele. Ora, tudo o que não é conforme ao direito é um obstáculo à liberdade segundo

leis universais. A coerção, entretanto, é um obstáculo ou uma resistência a que a

liberdade aconteça. Consequentemente, se um certo uso da liberdade é, ele mesmo, um

obstáculo à liberdade segundo leis universais (isto é, contrário ao direito), então a

coerção que se lhe opõe, enquanto impedimento de um obstáculo da liberdade,

concorda com a liberdade segundo leis universais, quer dizer: é conforme ao direito. Ao

direito, portanto, está ligada ao mesmo tempo, conforme o princípio de não contradição,

uma competência para coagir quem o viola (MS Ak VI: 231. pp. 44-45).

A liberdade de dispor de objetos externos é lesada quando meu uso externo

legítimo do arbítrio é impedido por outrem. Nessa medida, assim como um corpo que

age sobre outro pondo-o em movimento ou interferindo em sua trajetória, um sujeito

que age contrariamente ao direito erige um obstáculo ao livre exercício do meu arbítrio.

O impedimento ao impedimento ilegítimo do uso da minha liberdade externa é, segundo

Kant, legítimo – em outras palavras, aquele que (de modo livre e, assim, imputável) me

obstrui a liberdade comete um ato contrário ao direito, e neste caso a coerção externa

(isto é, a suspensão coagida deste impedimento ilegítimo) é permitida e justa por

restabelecer a liberdade anterior que fora lesada. Nesta medida, portanto, o direito pode

ser definido como a competência ou autorização <Befugnis> para coagir quem viola

meu exercício livre do arbítrio em sua atuação sobre objetos exteriores. (MS Ak VI:

231. p. 44).

327 Cf. supra 2.2.2

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276

8.2.2. Liberdade negativa e liberdade positiva – o direito da humanidade

como ponto de confluência e as fórmulas de Ulpiano

Neste momento surge uma pergunta crucial para nossos propósitos: seria

possível reduzir a liberdade jurídica kantiana a um mero não impedimento ao livre agir

do arbítrio? Estaria Kant defendendo tão somente uma compreensão liberal da

liberdade, que afirma que livre é o sujeito que não encontra obstáculos externos em sua

ação? Embora as passagens acima sugiram esta conclusão, um olhar mais amplo sobre

os escritos políticos e jurídicos de Kant lança sérias dúvidas sobre tal diagnóstico. Kant

caracteriza a liberdade externa implicada no conceito de direito não apenas como a

liberdade negativa de não estar sujeito ao arbítrio constritivo de outrem, mas também

como a liberdade positiva ou “republicana” de autolegislação de um sujeito em

determinada comunidade política, justamente o que, a rigor, está implicada na noção de

autonomia jurídica328. No limite, como mostraremos, é possível até mesmo considerar

os dois conceitos de liberdade como complementares, ou ainda, como apoiados numa

mesma base: o livre arbítrio humano propositivo na interação com os demais em uma

determinada comunidade com os outros homens exige um conceito tanto negativo (não

impedimento) quanto positivo (conforme a uma lei autônoma) de liberdade para que

suas relações jurídicas sejam reguladas e legitimadas. Nesta perspectiva, a capacidade

autodeterminada e espontânea do arbítrio de propor-se e perseguir seus fins sem

obstruções alheias indevidas, como reflexo de um conceito negativo de liberdade,

apenas pode ser segura e livremente exercida numa relação de reciprocidade e

intersubjetividade com outros seres propositivos igualmente detentores de dignidade e

participantes efetivos de uma comunidade política e jurídica regida por leis às quais

todos devem poder dar seu assentimento, ou seja, segundo um conceito positivo de

liberdade.

Em À Paz Perpétua, Kant exprime esta ideia ao discutir a liberdade envolvida

no direito:

Liberdade jurídica (portanto exterior) não pode, como se está acostumado a fazer, ser

definida pela autorização <Befugniß>: “fazer tudo o que se quer, desde que não se

cometa injustiça <Unrecht tut> a ninguém”. Pois o que significa autorização? A

328 Sobre o conflito entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos” em Kant, cf. o artigo clássico de Norberto Bobbio: “Les deux notions de la liberté dans la pensée politique de Kant”. In: La Philosophie Politique de Kant. Paris: PUF, 1962. Cf. Terra, R. Política Tensa. Op. cit. pp. 88-93.

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possibilidade de uma ação enquanto não se comete com ela injustiça a ninguém.

Portanto, soaria assim a definição: “liberdade é a possibilidade de ações pelas quais não

se comete injustiça a ninguém. Não se comete injustiça a ninguém (...) desde que

somente não se cometa injustiça a ninguém” – por conseguinte, uma tautologia vazia.

Minha liberdade exterior (jurídica) deve antes ser definida assim: ela é a autorização

de não obedecer a nenhuma lei exterior a não ser àquelas às quais pude dar meu

assentimento. – A igualdade dos cidadãos segundo a qual ninguém pode obrigar

juridicamente outrem a algo sem que ele ao mesmo tempo se submeta à lei de também

poder ser obrigado por ela reciprocamente do mesmo modo (ZeF Ak VIII: 350. pp. 24-

25. Grifos nossos).

A definição de liberdade jurídica como a simples autorização a não realizar

injustiças aos demais, ou seja, não obstruir-lhes as ações que são conformes ao direito,

conduziria, segundo Kant, a uma tautologia; com efeito, a exemplo do que se passa com

os princípios vazios racionalistas de fundamentação da filosofia moral, é necessário

também aqui trazer à tona o pressuposto implícito que confere positividade a um

princípio tautológico: ora, da mesma maneira como ocorria com a ideia de uma

comunidade de seres racionais onde os fins e o uso da liberdade harmonizam-se e

cobram sentido positivo329, assim também à definição da liberdade externa jurídica

como a mera faculdade de coagir quem impede o uso alheio do arbítrio precisa ser

incluída uma precondição essencial, a saber, ser conforme a uma lei universal, ou ainda,

possível de receber o assentimento de todos os envolvidos, que, dessa maneira,

reconhecem a legitimidade da lei e da coerção ligada a ela. Assim como na exigência

presente na etapa de fundamentação relativamente à primeira formulação do imperativo

categórico, também o princípio universal do direito precisa ser trazido à sua

“determinação completa” em um princípio que defina a autonomia jurídica e a ideia

“que lhe é inerente” de uma comunidade jurídica regida por leis das quais seus

membros, sujeitos legisladores universais, reconheçam-se como autores e destinatários.

Essa tese já foi inicialmente expressa na seção anterior, onde discutimos a

legislação jurídica como aquela em que tanto a lei como a obrigatoriedade da lei são

consideradas como resultado de um ato do legislador que regula a conformidade externa

dos sujeitos à lei. Ora, nesse momento podemos perceber que Kant liga a isso a

concepção mesma de liberdade jurídica sob a figura de um possível assentimento geral

dos envolvidos em uma dada comunidade jurídica, todos eles detendo direitos

329 Cf. supra 2.2.2.

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278

inalienáveis que precisam ser salvaguardados coercitivamente das ingerências alheias.

Para entendermos melhor esse ponto e ligá-lo à sistemática interna da Doutrina do

Direito, cumpre analisar a função do direito inato ou direito da humanidade, a liberdade

inata que define a dignidade do sujeito jurídico de possuir objetos sem a interferência

ilegítima dos demais – essa ideia define os contornos do direito privado kantiano, bem

como faz surgir a urgência de passagem ao direito público e à institucionalização de

uma vontade geral na qual cada homem é idealiter legislador, ou ainda, autor e

endereçado da lei por ela promulgada.

O direito inato do homem é definido por Kant como um dever interno que

decorre de sua própria humanidade; recorrendo a Ulpiano, Kant o denomina também

“honestidade jurídica”, que consiste na exortação a “não converter-se em meio, mas

antes fim” para o arbítrio alheio (MS Ak VI: 236. p. 53)330. Trata-se da lex iusti, que

exige a independência de cada homem em relação ao arbítrio dos demais:

A liberdade (a independência em relação ao arbítrio coercitivo de um outro), na medida

em que possa coexistir com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal, é

esse direito único, originário, que cabe a todo homem em virtude de sua humanidade

(MS Ak VI: 237. p. 56).

A essa liberdade inata, à qual, segundo Kant, corresponde o direito de possuir

objetos dispostos na superfície finita da Terra (MS Ak VI: 267. p. 103), estaria ligada a

igualdade inata de cada homem, ou seja, “a independência que consiste em não ser

obrigado por outros a mais do que, reciprocamente, os podemos obrigar” (MS Ak VI:

238. p. 56). Dessa maneira, a liberdade inata conduz à possibilidade de uma coerção

recíproca dos arbítrios, ou ainda à igualdade inata, a abstenção em provocar danos aos

demais homens, eles mesmos detentores de uma liberdade inata; trata-se, aqui, da lex

iuridica de que fala Kant por ocasião das fórmulas de Ulpiano (MS Ak VI: 236. p. 54).

Em outras palavras, o direito da humanidade funda a reciprocidade das relações

jurídicas “segundo uma lei universal”: a “dignidade” intrínseca a cada homem, baseada

em sua liberdade inata, implica o respeito mútuo e a abstenção recíproca a lesões a esta

liberdade, ou seja, implica a igualdade de todos os homens como sujeitos do direito em

relações coercitivas recíprocas “segundo uma lei universal” e baseada no direito de 330 Kant se refere à exortação em ser um “homem honesto”, “correto”, “justo” <richtlicher Mensch – honeste vive> (MS Ak VI: 236. p. 53), ou seja, “deter domínio de si mesmo” <sein eigener Herr zu sein – sui iuris> e “ser íntegro” <unbescholten> (MS Ak VI: 237-238. p. 56). Isso implica, como veremos, não se sujeitar aos demais homem e tampouco sujeitá-los de modo ilegítimo.

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279

humanidade que cabe a todo homem. Nesta constelação conceitual de Kant encontra-se

o correlato jurídico da exigência que, no momento transcendental da Metafísica dos

Costumes, fundava o princípio de todo homem como fim em si mesmo e índice

restritivo do uso legítimo da liberdade (Gr Ak IV: 437-438. p. 142): em linguagem

jurídica, cada homem possui dignidade e um direito inato de, segundo leis universais,

possuir objetos e perseguir seus fins sem interferir e ver-se interferido pelos outros. Ao

invés de algum dado substancial sobre o homem, o direito inato à liberdade apenas

reflete o “mínimo empírico” envolvido no componente jurídico, isto é, exterior, do

princípio de todo homem como ser racional e fim em si mesmo em meio à sua posição

de fins subjetivos no mundo enquanto ser natural e carente331. Segundo Kersting,

o direito da humanidade toma como contrária ao direito toda limitação da liberdade que

não é pensada como recíproca, e repele toda ação que, dirigida contra as autorizações

<Berechtigen>, não pode ser integrada na posição soberana de fins e que contradiz sua

própria forma de existência <Daseinsgestaltung> autodeterminada. Em sua repulsa à

determinação alheia, em sua defesa da não submissão <Unverfügbarkeit>, o direito da

humanidade é um direito à identidade pessoal e moral e à subjetividade prática, um

direito à posse de si, à ‘autoproteção’ e à ‘continuidade de si mesmo’

<Eigenkontinuität>332

O trecho de À Paz Perpétua citado acima nos lembra que esse direito da

humanidade que exprime a base normativa da liberdade externa não pode ser reduzido à

pura e simples “autorização em não fazer injustiça” como parece sugerir Kersting. Ora,

assim como ocorre na Fundamentação, o “direito da humanidade” na esfera jurídica

deve ser exercido segundo uma “lei universal à qual todo homem deve dar seu

assentimento”, ou seja, apenas encontra seu sentido completo no princípio da

autonomia de cada agente do direito em uma comunidade jurídica sob leis autônomas –

nessa liberdade inata, portanto, funda-se a terceira fórmula tomada de empréstimo a

Ulpiano, a lex iustitiae, ou seja, “entra (...) com outros numa sociedade onde cada um

possa manter aquilo que é seu (suum cuique tribue)” (MS Ak VI: 237. p. 54), entra,

331 Como já discutido na introdução à dissertação, Ritter considera esse direito da humanidade um “adito material” que macularia o “caráter formal” e “trairia” o espírito transcendental na filosofia jurídica de Kant, representando, no limite, “intromissões metafísicas” que ligariam Kant à tradição jusnaturalista de inspiração teológica. Ora, esperamos que já esteja claro que o direito da humanidade não expressa uma “traição” aos “cânones” crítico-transcendentais, mas antes algo previsto em uma Metafísica dos Costumes como metafísica aplicada. Ritter, C. Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen. Op. cit.. p. 261; pp. 323-325. Cf. Kersting, Wohlgeordnete Freiheit. Op. Cit. pp. 159-60. n 197. 332 Kersting, W. Wohlgeordnete Freiheit. Op. cit. p. 161

Page 280: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

280

dessa forma, no estado civil regido pela vontade geral da qual todos são legisladores e

cujo objetivo é proteger os direitos de todos. Este estado civil não é erigido sob a

prerrogativa prudencial de sujeitos continuamente ameaçados em sua integridade; pelo

contrário, trata-se de uma exigência moral que se coaduna com a reciprocidade

envolvida no conceito da “dignidade jurídica” de cada homem como um fim em si

mesmo e sujeito tão-somente às leis às quais pode dar seu assentimento.

Contudo, antes de passar ao direito público kantiano, onde a comunidade

jurídica sob leis autônomas é instituída, analisemos o modo como já no direito privado

não positivado, ou seja, no direito natural <natürliches Recht> de todo homem em

virtude de sua liberdade inata está contido de modo inevitável uma remissão à vontade

geral como base de uma potencial constituição republicana, e mais: como em toda

proposição analítica ou sintética a priori derivada do direito inato à liberdade está

contida in nuce uma vontade geral pública ou omnilateral unicamente pela qual se pode

legitimar uma determinada coerção externa implicada no conceito de direito. Assim

como para Kant o direito da humanidade não pode ser confundido com uma mera

“propriedade de si próprio” que funda o direito unilateral de possuir objetos, tampouco

a vontade geral pode ser tomada como simples resultado de algum pacto de associação,

mas antes deve ser considerada como base normativa e condição de possibilidade de

qualquer ato jurídico legítimo, inclusive o direito à propriedade privada.

8.2.3. Direito Privado – A lex permissiva e a permissão do ato unilateral

do arbítrio.

Segundo Kant, da liberdade inata surge inicialmente o direito de todo homem a

possuir objetos externos sem a interferência do arbítrio alheio. Este direito interno,

também chamado por Kant de “Meu interno”, no entanto, não pertence à divisão dos

direitos – ele seria o direito no singular, a base normativa donde derivam os demais,

estando, ele próprio, fora da alçada de uma doutrina dos direitos (MS Ak VI: 238. pp.

57-58). A Doutrina do Direito, assim, apenas tem por tema o “Meu e Teu exteriores”,

por meio dos quais os homens travam relações jurídicas e que para Kant definem o

conteúdo do direito privado e a necessidade das leis positivas do direito público.

O “Meu externo” é tomado de modo geral como o conceito de posse de um

objeto “diferente de mim”, ou seja, como algo que não se confunde espaço-temporal ou

Page 281: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

281

conceitualmente (racionalmente) com o “Meu interno” (MS Ak VI: 245-246. p. 68).

Para Kant, esse conceito é dividido em “juridicamente meu” e “empiricamente meu”, ou

ainda, em uma posse meramente jurídica (inteligível) e uma posse empírica (física) de

determinado objeto: no primeiro caso, é possível dizer que possuo tal objeto mesmo não

o tendo em minha posse atual ou na detenção <Inhabung> efetiva dele junto a mim, no

segundo caso, pelo contrário, o objeto de que sou dono tem de estar “comigo”, assim

como a maçã que tenho na mão e à qual estou fisicamente ligado (MS Ak VI: 250. p.

75). A proposição que afirma a posse meramente empírica, de acordo com Kant, “não

vai além do direito de uma pessoa em relação a si própria” (idem), e, nessa medida, é

uma proposição analítica que decorre do direito inato à liberdade como não submissão

ao arbítrio alheio – ora, lesa-me quem me retira a maçã da mão sem meu consentimento,

pois, ao fazê-lo, “afeta meu interior (a minha liberdade) (...) indo de encontro com o

axioma do direito” (idem), ou seja, com a lei jurídica universal que regula a liberdade

externa. A proposição que afirma a posse meramente jurídica, pelo contrário, é sintética,

indo além do Meu interno pois declara uma “posse mesmo sem detenção como

necessária para o conceito do meu e do teu exterior” (idem). Bem entendido: trata-se de

uma proposição sintética a priori, que independe da experiência para ser válida, na

medida em que o próprio conceito de posse meramente jurídica, ou inteligível, não é

fundado na experiência e não depende de condições sensíveis para ter sua realidade

prática aferida (MS Ak VI: 252-253. p. 81).

É conhecido o recurso de Kant para fundar a validade dessa proposição sintética

a priori: assim como a Doutrina da Virtude carece do conceito de um fim obrigatório

para ir além da mera liberdade exterior, assim também a Doutrina do Direito precisa de

um postulado jurídico da razão prática para justificar a pretensão racional de uma

posse inteligível que ultrapassa o direito inato e a mera detenção física333:

Postulado jurídico da razão prática: É possível ter como meu qualquer objeto exterior

de meu arbítrio. Ou seja: é contrária ao direito uma máxima tal que, se ela se tornasse

lei, um objeto do arbítrio teria de ser, em si (objetivamente), sem dono (res nullius) (MS

Ak VI: 246. p. 68-69).334

333 Cf. Brandt, R. “Das Erlaubnisgesetz, oder: Vernunft und Geschichte in Kants Rechtslehre”. In: idem. (Org). Rechtsphilosophie der Aufklärung. De Gruyter. 1982. p. 259. Segundo Brandt, os fins que são ao mesmo tempo deveres fundam o “momento sintético” da Doutrina da Virtude, assim como o postulado jurídico da razão prática funda o “momento sintético” da Doutrina do Direito. 334 Em sua edição, Bernd Ludwig propõe uma mudança na posição do postulado jurídico da razão prática no interior da Doutrina do Direito: do segundo parágrafo do primeiro capítulo da primeira parte da

Page 282: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

282

Com efeito, esse postulado afirma não apenas a possibilidade de uma posse

empírica, já derivada analiticamente do Meu interno e do princípio supremo do direito,

mas também autoriza a extensão legítima do conceito de posse até tudo aquilo que não

está fisicamente ligado ao sujeito, incluindo, portanto, a posse meramente jurídica (MS

Ak VI: 252. p. 80). Contudo, o que está de fato em jogo no postulado jurídico da razão

prática? Seria uma afirmação irrestrita do “poder do homem sobre a natureza”, a

exortação racional para a extensão do domínio humano sobre todos os objetos naturais

espalhados pela superfície da Terra, ou ainda, a vinculação do “título de proprietário”

que acompanha todo agente a uma exigência da razão prática? Em outras palavras,

haveria aqui a exaltação do “individualismo possessivo” elevada a postulado racional do

pensamento jurídico de Kant?

Na realidade, uma série de interpretações recentes negam esta conclusão e

ressaltam, em seu lugar, o teor intersubjetivo constitutivo da teoria kantiana da

propriedade oculto por detrás de tal postulado, ligando-o à necessidade de uma

concepção positiva de liberdade jurídica como autolegislação dos sujeitos envolvidos

em uma comunidade política335. Sem nos determos nos complexos detalhes que

envolvem a posição e função precisa do postulado jurídico da razão prática, vejamos de

que maneira ele aponta para uma não só possível, como também necessária vontade

geral ou omnilateral <allseitig> pressuposta em todo ato jurídico dos homens tomados

como agentes (juridicamente) livres e iguais.

Segundo Kant, o postulado jurídico também pode ser compreendido como uma

lei permissiva (Erlaubnisgesetz ou lex permissiva) da razão prática:

Esse postulado pode ser denominado uma lei permissiva (lex permissiva) da razão

prática e nos dá uma competência que não poderíamos extrair dos meros conceitos do

direito em geral, a saber, a competência de impor a todos os outros a obrigação, que de

outro modo eles não teriam, de abster-se de determinados objetos de nosso arbítrio

porque nós deles tomamos posse primeiramente (MS Ak VI: 247. p. 70).

Doutrina do Direito, “O direito privado”, ele passa para o interior do sexto parágrafo, mais precisamente em MS Ak VI: 250, a partir da linha 18. Não entraremos nos detalhes desta proposta editorial, com a qual concordamos. 335 Cf. Brandt, R. “Das Erlaubnisgesetz, oder: Vernunft und Geschichte in Kants Rechtslehre”. Op. cit. Flikschuh, K. Kant and Modern Political Philosophy. Op. cit.

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283

Esta não é, entretanto, a única lex permissiva ou Erlaubnisgesetz na filosofia

jurídica de Kant336. Como exemplo de outra lei permissiva da razão prática, Kant

discute nas Lições de filosofia moral de Vigilantius o uso da violência provisoriamente

permitido na fundação do Estado pela força. Caso o emprego da violência fosse

sancionado como uma proibição universal de caráter irrevogável,

então esta proibição defenderia o estado sem leis, um estado, portanto, onde nenhuma

lei seria previamente dada <vorhanden> ou reconhecida: este, porém, é um estado que

vai de encontro ao imperativo universal da moralidade, e, desse modo, é necessário

assumir que a natureza permite fazer concordar o livre arbítrio dos homens com a

liberdade universal segundo leis universais; portanto, há aqui uma lei permissiva

natural para a aplicação da força (Vor. Vigilantius Ak XXVII: 515. Grifo nosso).

Em À Paz Perpétua Kant expõe o argumento implícito nesta Erlaubnisgesetz

mencionada acima afirmando que a entrada dos homens em um estado civil regulado

por leis públicas tem de ser um postulado (ZeF Ak VIII: 349. p. 23). Ainda em À Paz

Perpétua, algumas páginas antes, Kant menciona outra lei de permissão: a realização

provisória de uma posse adquirida de forma contrária ao direito deve ser permitida

também por meio de uma Erlaubnisgesetz (ZeF Ak VIII: 347. p. 21). Neste último caso,

a proibição pressuposta pela lei de permissão deve referir-se à forma futura da

aquisição, e não aos casos já transcorridos, em que vale a permissão resultante da

suspensão da proibição. O mesmo raciocínio é exposto nos Vorarbeiten zu Zum ewigen

Frieden:

A lei permissiva diria o seguinte: a posse de uma coisa (ou de um direito) contrária ao

direito no estado sem leis (statu naturali) pode persistir como uma posse putativa

enquanto esta durar (pois neste estado falta a autoridade jurídica que é exigida para a

sentença contrária <Verurteilung> sobre tal posse como uma posse contrária ao direito).

Contudo, tal tomada de posse precisa futuramente cessar na passagem daquele estado

(dos povos) para o estado de um direito das gentes soberano (o qual, segundo a lei da

336 Para uma discussão a respeito da reviravolta kantiana com relação à função de uma lei de permissão no quadro da direito natural, cf. Kersting, W. Kant über Recht. Paderborn: Mentis Verlag., 2004. pp. 188-191. Kersting apresenta a crítica de Fichte ao papel que, segundo ele, a Erlaubnisgesetz desempenharia na filosofia do direito de Kant. Apoiado nas passagens de À Paz Perpétua que discutiremos na sequência, Fichte acreditava que a Erlaubnisgesetz fosse não um instrumento auxiliar na constelação jurídica apresentada por Kant, mas antes a base de seu sistema: o direito, pois, seria o conjunto de leis que permitem determinadas ações (como é o caso em grande parte da tradição jusnaturalista), e não, como de fato ocorre em Kant, as obrigam ou proíbem.

Page 284: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

284

razão: exeundum esse e statu naturali, é necessária tanto para os homens, quanto para a

relação recíproca dos Estados) (Vorarbeiten zu Zum Ewigen Frieden Ak XXIII: 157).

Ainda em À Paz Perpétua, como um terceiro caso de lei permissiva Kant cita

o autorizado adiamento de reformas previstas e exigidas pelo “ideal do direito” e,

devido a isso, a persistência de um “direito público acometido por injustiças”, caso o

chefe de Estado avalie que mudanças nos estatutos possam, naquele momento preciso,

levar a um fim contrário àquele visado (ZeF Ak VIII: 373. p. 62). Dessa maneira,

podemos concluir com Brandt que, segundo os exemplos mencionados em À Paz

Perpétua, “a lei de permissão funda uma modalidade jurídica de tolerância de formas de

poder inevitáveis já ocorridas e solidamente institucionalizadas”337. No âmbito da

ciência jurídica há, assim, a permissão entendida como tolerância de eventos e

instituições passadas injustas ou contrárias ao direito que se perpetuam no presente e

que, embora em si proibidas pela razão prática, se caracterizam como etapas necessárias

segundo a ideia de direito – nesse sentido, deve ser provisoriamente permitida seja a

origem do estado civil pela força, seja a propriedade adquirida de forma injusta, seja

ainda a persistência de uma situação institucional condenada pelos critérios impostos

pelo Naturrecht.

De modo geral, portanto, a lei permissiva tem como função permitir a

realização temporária de uma ação a princípio proibida sob uma perspectiva jurídica

(ZeF Ak VIII: 348. p. 21). Ora, no caso do postulado jurídico da razão prática, qual

seria a proibição pressuposta, ou ainda, o que seria temporariamente permitido pela

Erlaubnisgesetz? Argumentamos serem duas as proibições suspensas pela lex

permissiva: a proibição à violação do direito inato e a proibição à tomada de posse

como ato unilateral do arbítrio. Em ambos os casos, a lei de permissão torna

provisoriamente permitido algo que fere as pretensões legítimas dos demais indivíduos

e sinaliza a existência (e exigência) de uma vontade omnilateral na base dos direitos de

propriedade baseados na dignidade jurídica de todos os homens.

Quanto à primeira proibição, vimos que ao direito inato pertence de forma

imediata apenas a posse física de um objeto. Segundo Brandt, o princípio jurídico que

se baseia apenas no Meu interno e recusa a posse inteligível seria o princípio de um

“comunismo igualitário: cada um possui a si mesmo e aquilo que já possui”338. Esse

337 Brandt, R.“Das Erlaubnisgesetz, oder: Vernunft und Geschichte in Kants Rechtslehre”. Op. cit. p. 246. 338 Idem. p. 256.

Page 285: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

285

“princípio realista” da posse é negado pela “obrigatoriedade idealista” da razão prática,

que exige que se abstraiam as relações físicas do objeto do Ter <Habe> - o conceito

idealista de posse defendido pelo postulado é o de uma posse inteligível, meramente

jurídica, em que é possível reclamar a posse de um objeto mesmo sem detê-lo

fisicamente (MS Ak VI: 245. pp. 67-68). Assim, de modo a opor-se à concepção realista

de posse, o postulado deve “ordenar categoricamente que não sejam impedidas ações de

impedimento que contradizem o princípio do direito inato”339. Segundo o direito inato

em que se baseia o princípio realista, um determinado objeto junto a mim é

legitimamente Meu. Porém, e se este objeto já esteja sob a posse jurídica de outrem?

Mesmo neste caso, o comunista igualitário reputará como injusta a ação que tenta

retirar-lhe esse objeto das mãos, recorrendo, para tanto, ao seu direito inato do qual

decorre o direito à posse empírica de todo e qualquer objeto que esteja a seu alcance e

fora da detenção física de alguém. O partidário do “princípio idealista”, por sua vez,

replicará que as reivindicações do comunista são inócuas em face de sua posse

inteligível do objeto em litígio. Como resolver a questão? O comunista acha bons

argumentos no direito inato para suportar sua reivindicação. O “idealista” somente

encontra solução no apelo a um princípio que legitime seu direito a um objeto mesmo

sem tê-lo atual e fisicamente em suas mãos, ou seja, através do apelo a um postulado da

razão prática que permite a extensão do conceito de posse legítima até aquela

meramente jurídica. Como apoio ao idealista, portanto, Kant introduz o postulado de

modo a que a pretensão do comunista anteriormente legítima torne-se, agora, ilegítima:

é (em virtude do postulado) conforme ao direito a coerção exercita pelo idealista para

que sua posse jurídica seja retirada da detenção física do comunista.

Dito de outro modo, a Erlaubnisgesetz faz valer aqui o princípio idealista da

razão prática, tornando possível a posse inteligível ao permitir infrações ao direito

inato340: a lei de permissão autoriza que outras pessoas sejam excluídas do uso de um

objeto que está sob a posse jurídica, mas não física, de outrem. A coerção nesse caso

seria proibida segundo o “comunista radical”: para este, um objeto no espaço e tempo

que não está sob a detenção física de alguém é por princípio um objeto sem dono, e toda

coerção que impede o uso desse objeto é injusta. Ora, o postulado afirma justamente o

contrário: esse objeto não é sem dono. Ele pertence (juridicamente) a alguém mesmo

não estando sob sua a posse física atual, de modo que qualquer coerção a um uso não

339 Idem. Ib. 340 Idem. pp. 256-257.

Page 286: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

286

consentido desse objeto é, sim, uma coerção justa e autorizada341. O que ocorre, como

veremos, é que ambos, comunista e idealista, realizam, cada um à sua maneira, atos

ilegítimos. No entanto, a revelação de que, com vistas à vontade geral pressuposta pelos

atos de ambos, a pretensão do idealista é legítima e a do comunista ilegítima apenas

ocorre no momento em que essa vontade geral é institucionalizada sob leis públicas.

Podemos entender melhor este último ponto recorrendo à segunda proibição

suspensa pela Erlaubnisgesetz no direito privado de Kant. O postulado jurídico da razão

prática é evocado para permitir temporariamente um ilegítimo porém inevitável ato de

tomada de posse unilateral pelo arbítrio ainda no estado de natureza. Segundo Kant,

todos os homens estão em uma comunidade originária da terra sobre a superfície finita

do planeta (MS Ak VI: 258. p. 88; MS Ak VI: 267. p. 104), ou ainda, em uma posse em

comum originária sobre a terra (MS Ak VI: 262. p. 95) que antecede qualquer

“positivação” por meio de leis públicas expressas342. Das porções de terra, objetos e

coisas naturais dispostos sobre a superfície terrestre nada pode ser dito originariamente

meu; ora, originariamente meu é aquilo que possuo sem um ato jurídico, o que não pode

ocorrer com um Meu externo qualquer (MS Ak VI 258. p. 88). Não obstante, de acordo

com a lex iusti que se baseia no meu direito da humanidade (MS Ak VI: 267. p. 103)343,

posso adquirir originariamente algo não pertencente ao Seu externo, tornando-o, através

disto, um Meu externo. Esse ato de aquisição originária não pode visar o Meu externo

de outrem pois, nesse caso, haveria um contrato entre as partes, e a aquisição seria uma

aquisição derivada, resultado de um arbítrio bilateral dos contratantes (MS Ak VI: 259.

p. 90). A aquisição originária, portanto, deve visar um objeto sem dono atual, uma res

nullius que, no entanto, está na posse comum idealiter de todos os homens dispersos

sobre a Terra344.

341 Trata-se, aqui, da Erlaubnisgesetz como forma de resolver a “antinomia da posse” da Doutrina do Direito esboçada acima (MS Ak VI: 254-255. p. 84). Para uma discussão a respeito, cf. Kersting, W. Wohlgeordnete Freiheit. Op. cit. pp. 183-196. 342 Como é praxe na argumentação kantiana, essa comunidade originária não é alguma “comunidade primeva”, um “dado histórico” instituído “nos primeiros tempos das relações jurídicas entre os homens” (MS Ak VI: 258. p. 88). Ora, mesmo caso fosse possível documentar tal evento, ele seria uma “comunidade adquirida e derivada” da comunidade originária, o “pressuposto transcendental” para qualquer aquisição originária, inclusive para aquela do solo por toda a humanidade. 343 Bem entendido, não há uma pretensão à posse direita de objetos, mas antes a legítima reivindicação jurídica do direito inato da qual decorre o direito à posse de objetos externos. Como será mostrado, trata-se de um direito “indireto”, que se funda não de modo unilateral ou baseado na relação direita e “bilateral” entre sujeito-objeto, mas antes que deve referir-se a um implícito acordo geral sugerido pela vontade omnilateral. - ou seja, numa lei universal à qual todos os futuros proprietários devem dar seu assentimento. cf. Flikschuh, K. Kant and Modern Political Philosophy. Op. cit. p. 120. 344 Segundo Kant, o conceito de aquisição originária é válido, portanto, apenas na primeira categoria de “Meu exterior”, ou seja, no direito real. “Uma aquisição pode ser ou originária ou ‘derivada do Seu de um

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287

Kant põe a pergunta crucial: como pode, pois, ocorrer a aquisição originária,

uma ocupação <Bemächtigung> (MS Ak VI: 263. p. 95) do solo (da qual decorre a

detenção de objetos externos dispersos sobre esta recortada parcela da superfície

terrestre) baseada em um ato unilateral do arbítrio? Ao contrário de, por exemplo,

Locke, que afirmava que o trabalho de um sujeito bastava para legitimar a aquisição

originária de um objeto e da porção de terra à qual este pertence, retirando-o assim da

posse comum e tornando-o seu sem para isso exigir um pacto expresso ou projetado dos

demais sujeitos345, Kant defende que o ato unilateral do arbítrio, como aquele da

ocupação de um terreno ou tomada de posse de um objeto pelo trabalho, não pode

fundar a obrigação de que os demais se abstenham de possuir tal posse originariamente

minha:

Por meio de meu arbítrio unilateral não posso obrigar outrem a abster-se de usar uma

coisa em relação à qual esta pessoa não teria, de outro modo, nenhuma obrigação: só

posso fazê-lo, portanto, por meio do arbítrio unificado de todos em uma posse comum.

Não fosse este o caso, eu teria de pensar o direito a uma coisa como se a coisa tivesse

uma obrigação para comigo, e derivar prioritariamente daí o direito de todo possuidor

perante a mesma, o que é um modo de representação absurdo (MS Ak VI: 261. p. 92.

Grifos nossos).

Com efeito, Kant descarta uma relação jurídica existente entre pessoa e objeto.

Ora, pretender que algo é meu pois tenho um direito (inato ou não) imediato sobre tal

objeto significaria o “absurdo” de conceber “um gênio que acompanha a coisa e a

preserva de qualquer ataque estranho” (MS Ak VI: 260. p. 92). Não se trata de uma

relação fantasmagórica, uma “marca indelével” do sujeito, como, por exemplo, seu

trabalho, deixada no objeto e que o define como meu. Pelo contrário, a posse de algo

implica uma relação intersubjetiva entre pessoa – coisa – pessoa, em que o direito da

primeira sobre o segundo apenas pode ser legitimado por meio da remissão ao consenso

outro’. Relativamente à segunda e à terceira classes de direitos privados, a aquisição é sempre derivada. Uma aquisição originária somente pode referir-se a um objeto sem dono, e sem dono somente podem ser coisas ou objetos corporais”. Kersting, W. Wohlgeordnete Freiheit. Op. cit. p. 205. 345 Cf. Locke, J. The second treatise of government. An Essay concerning the true original, extent, and end of civil government. In Laslett, P (Ed). Two Treatises of Government. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. § 25; § 27; § 32; § 44; § 51. Sobre a doutrina da aquisição originária em Kant e suas diferenças em relação a Locke e Grotius. cf. Terra, R. Política Tensa. Op. cit. pp. 110-127. Como já mencionado, à época das Bemerkungen Kant defendia uma concepção de propriedade semelhante à de Locke. Na Doutrina do Direito, no entanto, não faltarão críticas à doutrina da aquisição original pelo trabalho. Cf. MS Ak VI: 268-269. pp. 105-106.

Page 288: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

288

da terceira346. O arbítrio unilateral, portanto, não pode fundar qualquer obrigação: à falta

da bilateralidade de um contrato, a aquisição originária de um objeto precisa ser

remetida a uma vontade omnilateral ou unificada que referende e compactue com tal

tomada unilateral de posse:

O título racional da aquisição, porém, só pode repousar na ideia de uma vontade de

todos unificada a priori (a ser necessariamente unificada), que é aqui implicitamente

pressuposta como condição indispensável (conditio sine qua non); pois por meio de

uma vontade unilateral não pode ser imposta a outrem uma obrigação que por si, de

outro modo, não teriam (MS Ak VI: 264. p. 97).

No entanto, surge aqui um problema. No ato de ocupação que marca a aquisição

originária de uma porção de terra, o ato unilateral do arbítrio mostra-se inevitável: falta

aqui tanto o acordo bilateral possível apenas em um contrato que sela uma aquisição

derivada, quanto a efetiva vontade geral e unificada do estado civil que referenda os

títulos de posse e os acordos entre os indivíduos (MS Ak VI: 259. p. 90). Na situação

hipotética montada por Kant, o homem encontra-se em uma posse comum do solo com

os demais homens em que, sem o expresso acordo da comunidade, é necessário declarar

algo como seu, e, assim, impor ilegitimamente uma obrigação nos demais. Em suma,

todo primeiro proprietário, que põe cercas em volta de determinada porção de terra, é,

de fato, como afirma Rousseau com sua furiosa retórica, um “impostor”347, um

impostor, no entanto, legitimado pela razão, ou mais precisamente, por um postulado

jurídico da razão prática:

A possibilidade desse tipo de aquisição [originária] não pode ser de modo algum

compreendida, nem demonstrada por princípios, mas é a conseqüência imediata do

postulado da razão prática (MS Ak VI: 263. p. 96. Grifo nosso).

Aqui começamos a compreender melhor a função deste postulado como lei de

permissão na aquisição originária de algo. Ora, o ato unilateral de um arbítrio que

adquire algo de modo originário, retirando-o da posse comum, é algo em si proibido,

346 “É um erro definir relações de direito como mantidas entre sujeitos e objetos. Os direitos de propriedade especificam uma relação trilateral <three-way relation> entre sujeitos com vistas a objetos, e não uma relação bilateral entre sujeito e objeto” Flikschuh, K. Kant and Modern Political Philosophy. Op. cit. p. 118. Cf. Kersting, W. Wohlgeordnete Freiheit. Op. cit. pp. 204-213. 347 Rousseau, J-J. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. In: Textos Seletos, Vol II (Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 87.

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289

mas que, não obstante, é provisoriamente legitimado pelo postulado. Dessa maneira, a

proibição da aquisição originária unilateral funda-se no exigido e aqui ausente

assentimento de todos os homens em relação à declaração de posse de algo que lhes

pertence em comum. Para Kant, embora do direito inato da humanidade surja uma

pretensão jurídica legítima, esta somente pode ser concretizada através da projeção de

uma vontade omnilateral da qual todos os homens fazem parte. Em outras palavras: o

direito da humanidade em possuir objetos externos apenas cobra sentido e legitimidade

no interior de uma comunidade política regida por uma vontade geral da qual todos os

homens, inatamente livres e iguais em suas pretensões jurídicas, são os legisladores. O

postulado, assim, desvela a ilegitimidade “necessária” de todo ato que contrarie essa

vontade geral ainda apenas potencial e pressuposta, incluindo aqui a pretensão do

comunista igualitário. A permissão em violar um direito alheio – dos demais homens

em possuir o pedaço de terra que declaro meu – revela que em todo ato unilateral há a

projeção da omnilateralidade de uma vontade geral e unificada de todos os homens

antes mesmo do estado jurídico:

Desse modo, a tomada de posse de um terreno particular, por exemplo, é um ato do

arbítrio privado <Privatwillkür> sem ser todavia arbitrário <eigenmächtig>. O

possuidor se baseia na posse comum inata do solo e na vontade universal a priori, que

lhe é correspondente, de permitir uma posse privada do mesmo (porque, do contrário,

as coisas desocupadas tornar-se-iam, em si e segundo uma lei, coisas sem dono). Pela

primeira possessão, ele adquire originariamente um determinado terreno ao opor-se

com direito (iure) a qualquer outro que o estorvasse no uso privado do mesmo, ainda

que no estado de natureza isso não se faça por via jurídica (de iure) porque nele não

existe ainda nenhuma lei pública (MS Ak VI: 250. p. 76).

Segundo Katrin Flikschuh, a consciência de que há uma permissão temporária

de uma proibição categórica exprime a exigência de que o proprietário, na incontornável

dimensão intersubjetiva fática em que está inscrito, deva, a partir da validade do

postulado, reconhecer reflexivamente suas obrigações jurídicas em face de outros

homens sob condições empíricas irreversíveis e limitantes, permitindo-lhes construir um

conceito de direito na forma de uma sociedade civil baseada na vontade geral – ora,

trata-se de uma exigência da razão prática que está em jogo348. Com efeito, a

inevitabilidade da situação jurídica codificada nas três condições pressupostas pelo

348 Flikschuh, K. Kant and Modern Political Philosophy. Op. cit. p. 115.

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290

conceito de direito discutidas acima explicita o caráter multilateral e intersubjetivo

envolvido em toda e qualquer ação jurídica, mesmo naquelas envolvendo direitos de

propriedade e na relação ilusoriamente direta que o homem trava com suas posses

privadas. O próprio Kant explica da seguinte maneira essa necessária remissão reflexiva

das pretensões de posse no estado de natureza a uma vontade geral ainda meramente

pressuposta, mas cuja positivação segundo os parâmetros do direito público preside

todo e qualquer ato jurídico do sujeito ainda na condição natural:

É possível admitir o seguinte princípio do direito natural universal <allgemeinen

Naturrechts>: aja segundo máximas que também possam valer como leis do direito

público. Pois, sem a concordância de tua ação com o direito público, teu próprio

direito privado não tem realidade <Realität>. Pois tuas ações externas referem-se

sempre a outros homens e, não havendo um princípio jurídico para todos e surgindo

disso um conflito de pretensões, a determinação do direito de cada um apenas será

possível em uma lei válida a priori para ambos, isto é, em uma lei do direito público

(Vorabeiten zur Rechtslehre Ak XXIII: 347. Grifos nossos)

“Tuas ações externas referem-se sempre a outros homens”: a dimensão

cosmopolita e comunitária do direito faz-se presente no momento em que o direito

natural racional, com força categórica, exige que os atos de posse unilaterais sejam

remetidos idealiter a uma vontade geral acordada positivamente pelos critérios do

direito público. Da mesma maneira que uma ação moral qualquer apenas torna-se

“correta” <recht> caso seja considerada como decorrência de uma lei de um reino dos

fins compostos por membros autônomos, assim também as pretensões jurídicas dos

indivíduos apenas se tornam “conformes ao direito’ <recht> caso sejam consideradas

como decorrência de uma lei autônoma da vontade geral em uma comunidade política

cosmopolita. A coerção externa envolvida e que define o conceito de direito a algo

apenas é legitimada caso considerada uma expressão de uma vontade omnilateral de

todos os homens – ora, a ação de um sujeito que retira outrem de sua propriedade no

estado de natureza não é considerada “conforme ao direito” apenas se remetida à

vontade geral implícita na permissão temporária a tal ato em si proibido? A lex

permissiva nos mostra como a comunidade jurídica de solução consensual de conflitos

está latente em todas as manifestações externas do arbítrio, ou ainda, em toda pretensão

fundada no direito de humanidade.

Page 291: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

291

8.2.4. O direito público. A república e a paz perpétua na comunidade

jurídica cosmopolita.

A vontade geral pressuposta em todo ato potencialmente jurídico deve ser

positivada em leis públicas do estado civil. A rigor, toda posse no estado de natureza

permitida pela lei de permissão, embora legitimada sob essa condição temporária,

apenas pode ser tomada por “comparativamente” jurídica, referida a um estado civil

como sua condição de consolidação definitiva.

O modo de ter algo exterior como seu no estado de natureza é uma posse física que tem

para si a presunção jurídica de tornar-se uma posse jurídica pela união com a vontade

de todos em uma legislação pública e que, na espera, vale comparativamente como uma

posse jurídica. (MS Ak VI: 257. pp. 87-88).

Com efeito, um estado civil é concebido como a maneira de apaziguar os

conflitos em torno do direito natural <natürliches Recht> de todo homem através da

instauração de uma “justiça pública” <öffentliche Gerechtigkeit> representada na ideia

de uma “vontade universalmente legiferante” <allegemein gesetzgebenden Willens>

(MS Ak VI: 305-306. pp. 167-168; cf. MS Ak VI: 302. p. 162)349. À falta de um juiz

comum competente e reconhecido, o Meu e o Teu externos no estado de natureza são

continuamente ameaçados, a unilateralidade dos arbítrios ainda persiste como possível

modo de estabelecer, à força, o direito a algo. Mesmo salvaguardada pelo postulado

jurídico da razão prática, toda posse no estado de natureza é provisória, tornando-se

peremptória apenas na condição jurídica de “justiça distributiva” (MS Ak VI: 306. p.

167):

Na espera e preparação de um tal estado [civil], que só pode ser fundado em uma lei da

vontade comum e que assim está de acordo com a possibilidade desta última, uma

posse é uma posse jurídica provisória, ao passo que aquela encontrada em um estado

efetivo seria uma posse peremptória (MS Ak VI: 256-257. pp. 86).

349 Em carta a Jung-Stilling de março de 1789, Kant expõe sucintamente o que está em jogo na necessidade da passagem do estado de natureza para o estado civil: “A legislação civil tem como princípio supremo essencial realizar o direito natural <natürliche Recht> do homem que, no status naturalis (antes da associação <Verbindung> civil) é uma mera ideia, isto é, submeter esse direito a prescrições públicas universais acompanhadas de coerção adequada, segundo as quais pode ser garantido ou proporcionado a cada um seu direito (...). Salus rei publicae (a conservação da simples forma legal de uma sociedade civil) suprema Lex est” (Ak XI: 10).

Page 292: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

292

O estado civil é necessário não apenas para instaurar uma força policial que faça

valer os direitos naturais; seu objetivo, acima de tudo, consiste em tornar efetiva aquela

vontade geral e unificada pressuposta em todo e qualquer ato jurídico e que serve de

pedra de toque para o juízo legal sobre o que é de direito. Ora, no estado jurídico, a

ilegitimidade da aquisição original deve ser revertida, bem como, através disso, tornada

distinta de outras ilegitimidades, como, por exemplo, a do comunista igualitário, que, na

ausência de um juiz comum, reivindica ilegitimamente que determinado terreno ou

objeto não é meu no estado de natureza e tampouco passará a ser no estado civil. Ao

passo que a ilegitimidade do ato unilateral do meu arbítrio pode ser demonstrada como

permitida pelo postulado na espera por um estado civil, a ilegitimidade do comunista

igualitário que nega minha posse atual será definitivamente revelada no momento em

que a vontade geral torna-se positivada em leis públicas sobre o Meu e o Teu externos.

O ato efetiva e irreversivelmente unilateral e arbitrário <eigenmächtig> do sujeito que

nega minha propriedade privada inicialmente baseada na unilateralidade do meu arbítrio

será desmascarado apenas em um estado civil legislado pela vontade de todo o povo.

Neste sentido, tenho de poder forçar tal comunista igualitário a entrar comigo em um

estado civil, onde poderei indicar-lhe, sob a égide da vontade geral instituída, as

injustiças que comete contra mim.

Com efeito, como já mencionamos acima por ocasião de À Paz Perpétua,

passagem do estado de natureza para o estado civil ocorre por meio de um postulado

jurídico, agora o postulado do direito público:

Do direito privado no estado de natureza surge então o postulado do direito público:

“em uma relação de inevitável coexistência com todos os outros, você deve passar

daquele estado a um estado jurídico, ou seja, a um estado de justiça distributiva”. – A

razão para isso pode ser desenvolvida analiticamente do conceito de direito na relação

exterior, por oposição à violência (violentia). (MS Ak VI: 307. p. 170).

A necessidade desse novo postulado pode ser entendida a partir do anterior, o

postulado do direito privado. Ao passo que este impunha a permissão provisória de um

ato contrário ao direito sem com isso assegurar as condições para sua reversão

definitiva, o postulado do direito público permite provisoriamente o uso ilegítimo da

violência com vistas à passagem para uma situação em que, finalmente, as transgressões

anteriores ganharão razão de ser e deixarão de ocorrer (cf. ZeF Ak VIII: 371. p. 59). Em

outras palavras, as arbitrariedades do estado de natureza, dentre elas aquelas

Page 293: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

293

provisoriamente permitidas pela razão e aquelas terminantemente proibidas por esta,

finalmente serão julgadas e avaliadas segundo a pedra de toque de toda legitimidade

jurídica: a vontade geral institucionalizada em um estado de direito. Isto ocorre, no

entanto, somente no direito público:

O conjunto de leis que precisam ser universalmente promulgadas para produzir um

estado jurídico é o direito público. Este é, portanto, um sistema de leis para um

povo, isto é, para um agrupamento de homens ou para um agrupamento de povos que,

estando entre si em uma relação de influência recíproca, necessitam de um estado

jurídico sob uma vontade que os unifique numa constituição (constitutio) para se

tornarem participantes daquilo que é de direito (MS Ak VI: 311. p. 175).

.

O direito público kantiano é composto de três partes: o direito político

<Staatsrecht>, o direito das gentes <Völkerrecht> e o direito cosmopolita

<Weltbürgerrecht>. Segundo Kant, apenas a realização efetiva destes três elementos da

“ideia de Direito”, estipulados pelo Naturrecht, podem concretizar definitivamente o

caráter peremptório dos direitos. As leis que regem estes últimos, cuja “matéria” é

fornecida pelo direito privado, recebem no direito público apenas a positivação e forma

pública exigida para que sejam asseguradas (MS Ak VI: 306. p. 169). Desse modo, os

homens não adquirem novos direitos ao ingressarem no estado civil; inversamente, eles

veem assim assegurados aqueles mesmos direitos que lhe são devidos em virtude de sua

humanidade em meio aos demais homens. Ora, sendo assim, como satisfazer-se apenas

com um direito político, que encerra o homem com seus conterrâneos em um território

culturalmente homogêneo, mas mantém intocados o conjunto dos povos em relação

recíproca e o conjunto do gênero humano que compartilha a superfície finita da Terra?

Mesmo que determinado Estado esteja consolidado institucionalmente, os conflitos e as

guerras que afligem os demais povos e colocam os Estados em um “estado de natureza”

entre si (MS Ak VI: 343-344. p. 227), reproduzem a insegurança jurídica que

caracterizava o estado de natureza no interior de uma determinada sociedade. Com

efeito, conclui Kant, somente na “comunidade pacífica universal dos povos da terra”

(MS Ak VI: 352. p. 240), na qual reina uma paz perpétua (MS Ak VI: 354. p. 244)350, o

350 As designações para o caminho a essa condição de paz perpétua alteram-se ligeiramente ao longo da obra kantiana. Mencionemos algumas delas. Na Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, Kant afirma a necessidade de um “Estado cosmopolita de segurança pública” (Idee Ak VIII: 26. pp. 15-16); na Doutrina do Direito, de um “congresso permanente de Estados” (MS Ak VI: 350-351. pp. 238-239); em À Paz Perpétua, de uma “liga dos povos” (ZeF Ak VIII: 354. p. 31) em oposição a um

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294

“Meu e o Teu no seio de um conjunto de pessoas vizinhas umas das outras” podem ser

assegurados de uma vez por todas, fazendo, assim, com que o direito da humanidade, do

qual decorre a pretensão jurídica dos homens, encontre um juiz universal e pertencente a

todo o gênero humano nas disputas envolvendo a liberdade externa.

Pode-se dizer que essa instituição universal e duradoura da paz não é apenas uma parte,

mas constitui o fim terminal <Endzweck> total da Doutrina do Direito nos limites da

simples razão (MS Ak VI: 355. p. 244).

No entanto, como ponto de partida rumo a esta condição jurídica perfeita do

conjunto do gênero humano é necessário considerar primeiramente o direito político.

Aqui Kant estipula a “ideia de uma constituição perfeita” (MS Ak VI: 372. p. 271; KrV

A 316/ B 373) para a condição civil de um povo na “constituição republicana”:

A constituição civil em cada Estado deve ser republicana. A constituição instituída

primeiramente segundo os princípios da liberdade dos membros de uma sociedade

(como homens), em segundo lugar segundo os princípios da dependência de todos a

uma única legislação comum <gemeinsame> (como súditos), e, terceiro, segundo a lei

da igualdade dos mesmos (como cidadãos) – a única que resulta da ideia do contrato

originário, sobre a qual tem de estar fundada toda legislação jurídica de um povo – é a

constituição republicana. Esta é, portanto, no que concerne ao direito, aquela que é em

si originariamente fundamento de todos os tipos de constituição civil (ZeF Ak VIII:

349-350. pp. 24-26. Grifos nossos).

A constituição republicana transforma em “atributos jurídicos” aquilo que, como

vimos acima, decorria do direito inato de todo homem (MS Ak VI: 237-238. pp. 56-57)

e que no estado de natureza permanecia desprotegido e apenas “potencialmente

jurídico”:

Os membros de uma tal sociedade (societas civilis), ou seja, de um Estado, unidos pela

legislação, chamam-se cidadãos (cives), e os atributos jurídicos inseparáveis de sua

essência (enquanto tal) são: a liberdade legal de não obedecer a nenhuma outra lei

senão àquela a que deu seu consentimento; a igualdade civil que consiste em não

reconhecer nenhum superior a si mesmo no povo, senão aquele que tenha tanta

“Estado das gentes” <Völkerstaat> ou “república mundial” <Weltrepublik> (ZeF Ak VIII: 357. p. 36). Não entraremos aqui na questão e tampouco nos detalhes do direito das gentes e do direito cosmopolita em Kant.

Page 295: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

295

faculdade moral de obrigar juridicamente quanto ele de obrigá-lo (MS Ak VI: 314. pp.

179-180)

Com efeito, a liberdade inata transforma-se na liberdade legal de um homem de

“buscar a sua felicidade pela via que lhe parecer boa, contanto que não cause dano à

liberdade de os outros (isto é, ao direito de outrem) aspirarem a um fim semelhante, e

que pode coexistir com a liberdade de cada um, segundo uma lei universal possível”

(UdG Ak VIII: 290. p. 79. Grifo nosso). Ora, como já vimos, essa liberdade a princípio

meramente negativa está sujeita às condições universais estipuladas pela igualdade

natural dos homens, que, como súditos ou cidadãos de uma mesma comunidade

política351, transformam-se em civilmente iguais, ou seja, em “colegisladores” da lei

universal limitante da liberdade e que provém da “vontade que não pode ser outra senão

a de todo o povo (já que todos decidem sobre todos e, por conseguinte, cada um sobre si

mesmo)” (UdG Ak VIII: 294-295. p. 85). Em suma, os sujeitos do estado natural se

transformam em cidadãos que desempenham a figura do legislador, para o qual,

segundo Kant, cabe o poder soberano (a soberania) (MS Ak VI: 313. p. 178):

Somente a vontade concordante e unificada de todos, portanto, na medida em que cada

um decida a mesma coisa sobre todos e todos sobre cada um, isto é a vontade do povo

<Volkswille> universalmente unificada, pode ser legisladora (MS Ak VI: 314-315. p.

179).

Essa constituição republicana <republikanische Verfassung> que erige uma

vontade do povo como padrão normativo da associação política é a mais perfeita para a

comunidade política <gemeines Wesen> (res publica) (MS Ak VI: 338. p. 200) de

homens reunidos352. Ora, trata-se daquela constituição que responde às exigências

351 Há uma aparente contradição entre a passagem de À Paz Perpétua e uma outra semelhante de Sobre o Dito Comum: neste, o princípio de igualdade é atribuído aos membros da república como súditos e o de independência aos mesmos como cidadãos (UdG Ak VIII: 290. p. 79); e, em À Paz Perpétua, como mostra a citação acima, o princípio de igualdade é atribuída aos membros como cidadãos, e o de dependência aos mesmos como súditos Contudo, segundo À Paz Perpétua, é possível identificar súdito e cidadão em uma constituição republicana, donde o aparente descompasso. ZeF Ak VIII: 351. p. 27: “Em uma constituição em que o súdito não é cidadão, que, portanto, não é republicana (...)”. Dessa forma, a “dependência” do súdito de que fala À Paz Perpétua transforma-se na independência de um cidadão que se submete às leis por ele mesmo promulgadas. 352 Kant emprega o termo gemeines Wesen como sinônomo de res publica, ou seja, segundo o sentido de uma “coisa pública”, “bem comum”, “corpo comum” e, por fim, comunidade. Preferimos esta última opção de tradução não apenas para distinguir “gemeines Wesen” como substantivo e “republikanisch” como adjetivo, mas sobretudo para aproximar o “gemeines Wesen” tanto a “Gemeinschaft”, em particular no adjetivo “gemeinschaftlich”, mas também para fazer notar o parentesco com o “ethisches gemeines

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296

codificadas no pacto social ou contrato original que dá origem ao corpo comum ou

comunidade dos homens sob leis jurídicas (UdG Ak VIII: 297. p. 88):

O ato pelo qual o povo mesmo se constitui num Estado – embora apenas, propriamente

falando, segundo a única ideia dele pela qual se pode pensar sua legalidade – é o

contrato originário, segundo o qual todos (omnes et singuli) no povo renunciam à sua

liberdade externa para readquiri-la imediatamente enquanto membros de uma

comunidade <gemeines Wesen>, ou seja, enquanto membros do povo considerado

como Estado (universi). E não se pode dizer que o homem no Estado tenha sacrificado

a um fim uma parte de sua liberdade externa inata, mas sim que teria abandonado por

completo a liberdade selvagem e sem lei para, numa situação de dependência legal, isto

é, num estado jurídico, reencontrar intacta sua liberdade em geral, pois essa

dependência surge de sua própria vontade legisladora (MS Ak VI: 315-316. p. 182).

Com efeito, a liberdade externa inata torna-se uma liberdade externa legal. O

direito de humanidade de cada homem o qualifica a participar do processo legislativo

donde provém a lei limitante de sua liberdade. A igualdade de todos os cidadãos

enquanto colegisladores confere universalidade à lei à qual todos, igualmente, podem

assentir. Vê-se aqui como o direito da humanidade de todo homem, anteriormente

revestido do caráter de um direito natural <natürliches Recht> não positivado, cobra no

estado civil a normatividade de um princípio jurídico estruturante que qualifica todo

cidadão como membro autônomo de uma comunidade política regida por leis das quais

é tanto autor quanto endereçado e que limitam a sua liberdade externa de perseguir fins

(ou a sua concepção de felicidade) em meio aos demais cidadãos igualmente

qualificados para tanto.

Não teremos oportunidade de analisar outros elementos do direito político

kantiano353. Notemos aqui, no entanto, que a visão de todo cidadão como membro

legislador de uma vontade geral já está refletida na vontade omnilateral ou unificada,

implícita na finitude da superfície terrestre e na posse comum do solo, como pedra de

Wesen” em oposição ao “politisches gemeines Wesen”de que fala a Religião nos Limites da Simples Razão (Rel Ak VI: 94. p. 100). 353 Não pudemos abordar uma série de pontos centrais da teoria política de Kant, como, por exemplo, a divisão de poderes, a distinção entre forma de governo e formas de Estado, entre muitos outros. Para maiores detalhes, cf. Flikschuh, K. Kant and Modern Political Philosophy. Op. cit. Kersting, W. Wohlgeordnete Freiheit. pp. 253-396. Terra, R. Política Tensa. Op. cit. Maus, I. O Direito e a Política. Teoria da Democracia. Op. cit.

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297

toque da legitimidade das pretensões jurídicas sobre a posse de objetos354. Tal

compreensão do direito de propriedade implica, por certo, a radicalização da influência

da soberania popular e da vontade reunida do povo sobre o conjunto do direito kantiano:

ao invés de fruto de um contrato original que funda o estado civil, essa vontade

omnilateral que contém, em potência, os contornos de um estado republicano, precede o

ato declarado de associação e serve-lhe como padrão normativo. De um Estado cuja

instituição é entendida como resultado de considerações prudenciais de indivíduos que

veem seus direitos continuamente ameaçados no estado de natureza, como, por

exemplo, em Hobbes, Kant passa para uma concepção de Estado como positivação de

uma pretensão moral de reciprocidade e intersubjetividade que o precede e dá o tom dos

direitos a serem salvaguardados nessa nova situação jurídica que assegura a liberdade

externa do homem:

Liberdade legal somente é possível se o soberano legislador, ‘visto segundo leis de

liberdade, não puder ser outro senão o povo unido’, e se, além disso, estiver garantido

que o princípio da autolegislação do povo vale ilimitadamente, portanto, que a

soberania do povo não seja impedida por fins contratuais. Nesse sentido, a vontade do

povo, para Kant, não deriva do contrato original, e sim, a própria vontade geral do povo

é a ‘base original de todo contrato público’ – e justamente essa simples prioridade

lógica e caráter absoluto da soberania popular é, propriamente, o único princípio do

pactum unionis355

354 Cf. Flikschuh, K. Kant and Modern Political Philosophy. Op. cit. pp. 144-204. Com efeito, Flikschuh apela ao “cosmopolitismo” latente na posse comum do solo por todos os homens como uma maneira de corrigir os erros e insuficiências das interpretações da filosofia jurídica kantiana apoiadas no contratualismo ou na herança recebida por Kant do direito natural. Basear a validade da associação civil apenas no contrato que a fez nascer implica condicionar a obrigação dai resultante à celebração de tal contrato, o que contraria a obrigação incondicional que Kant liga a seu conceito de direito. Por outro lado, apostar todas as fichas em uma “vontade geral” hipostasiada já no estado de natureza significa evocar “uma concepção metafísica da autoridade independente da razão”, ligando o direito kantiano a um direito natural de matriz teológica (Cf. Flikschuh, K. “On Kant’s Rechtslehre”. In: European Journal of Philosophy Vol 5, n 1. 1997) Para Flikschuh, nenhuma dessas opções é satisfatória. Em lugar delas, cumpre ressaltar a “perspectiva cosmopolita contida na ideia de posse original em comum” da superfície terrestre. Esta, “como uma ideia da razão prática reflexionante, representa o encontro <coming together> de sujeitos no reconhecimento da necessidade de trabalhar conjuntamente com vistas à realização do direito cosmopolita. A pretensão essencial é que estes sujeitos estão sob obrigações de direito em virtude de sua capacidade de reconhecer e desonerar-se dessas obrigações no interior dos constrangimentos inevitáveis da superfície esférica terrestre” (Flikschuh, K. Kant and Modern Political Philosophy. Op. cit. p. 178). Em acréscimo à análise de Flikschuh, podemos notar como essa “capacidade reflexionante” do sujeito surge já no momento em que ele se reconhece como inatamente livre e, com isso, reconhece todos os outros homens da superfície terrestre como seus iguais em virtude da liberdade inata que também lhes cabe. Disso resulta a necessidade de uma lei universal que regule as relações externas livres de todos e com a qual todos devem poder concordar. Não se trata aqui de um contrato ou de uma vontade divina hipostasiada, mas a consequência da liberdade de cada homem como ser com dignidade e valor instrínseco em meio a seus iguais. 355 Maus, I. O Direito e a Política. Teoria da Democracia. Op. cit. p. 46.

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298

Da vontade omnilateral que funda toda pretensão de legitimidade de direitos de

propriedade e conduz à instauração jurídica de uma vontade geral na figura do conjunto

de cidadãos como colegisladores surge, também, o caráter cosmopolita da filosofia

jurídica kantiana, vinculado à superfície finita da Terra, que inevitavelmente faz com

todos os homens de que se compõe o gênero humano estejam em uma comunidade

efetiva e em uma potencial situação juridicamente regulada:

Sob o conceito geral de direito público, assim, há motivo para pensar não somente um

direito político, mas também um direito das gentes (ius gentium), e, como a Terra não é

ilimitada, mas uma superfície finita por si mesma, ambos tomados em conjunto

conduzem inevitavelmente à idéia de um direito político das gentes (ius gentium) ou

direito cosmopolita (ius cosmopoliticum), de modo que, se o princípio que restringe a

liberdade externa por meio de leis faltar a uma dessas três formas do estado jurídico, o

edifício das duas restantes ficará inevitavelmente arruinado e acabará por desabar (MS

Ak VI: 311. p. 175).

Com efeito, a consolidação definitiva do direito da humanidade e da comunidade

jurídica sob leis autônomas apenas pode receber seu arremate num todo cosmopolita

pacificado. A condição inicial para tanto é clara: “A constituição civil de todo Estado

deve ser republicana” (ZeF Ak VIII: 349. p. 24) 356. De fato, a constituição republicana é

aquela que representa “a fonte pura do conceito de direito”, reproduzindo a situação

civil ideal codificada na vontade geral cosmopolita que subjaz ao conceito mesmo de

direito (ZeF Ak VIII: 350-351. pp. 26-27). Ademais, a progressiva atenuação dos

conflitos entre os povos e o paulatino desaparecimento das guerras apenas podem ser

esperados pela expansão da constituição republicana entre os povos (ZeF Ak VIII: 351.

pp. 26-27). Na federação ou estado ideal de nações republicanas, onde vicejaria o

certamente irrealizável ideal da paz perpétua (Cf. p.ex, MS Ak VI: 350. p. 238), todo

homem seria um ser digno de buscar seus próprios fins sob a regulação de leis das

356 Traduzindo os termos kantianos e tomando o direito da humanidade como o correlato dos direitos humanos e o princípio republicano da vontade geral como a expressão da soberania popular enquanto lei democrática, é possível seguir Maus quando esta escreve: “Toda a argumentação de Kant repousa na estreita conexão entre direitos humanos, soberania popular e paz: os direitos humanos somente podem ser garantidos em uma república que se baseie na autolegislação do povo, bem como na estreita vinculação de todo o aparato estatal à lei democrática, e a paz somente pode ser criada através da introdução autônoma de estruturas republicanas nos Estados soberanos e na fusão federativa, que mantém intocado o princípio da soberania estatal interestatal” Maus, I. O Direito e a Política. Teoria da Democracia. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2009. p. XXVIII.

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299

quais, conjuntamente com os demais seres humanos da face da Terra, vê-se como autor

e endereçado. Surge, assim, o ideal de uma comunidade jurídica cosmopolita onde cada

membro é considerado um cidadão mundial legislador universal – em outras palavras,

os correlatos metafísico-jurídicos do reino dos fins e do princípio de autonomia.

8.3. Autonomia ética

8.3.1. Virtude e o confronto entre razão e sensibilidade – os fins

obrigatórios.

A Doutrina da Virtude, ou ethica357, tem por tema a liberdade interna, ou seja,

aqueles deveres que regulam a adoção mesma dos fins do arbítrio segundo uma lei

universal. Nesse sentido, contrariamente do direito, a ética não pode ser indiferente às

motivações que presidem a ação humana no mundo: ao passo que a legislação jurídica

não pretende regular a intenção do agente moral em sua interação com os demais, a

ética deve fornecer móbiles e motivos que influenciem e determinem os próprios fins

que os homens acolhem em sua relação com os outros homens.

Assim como ocorre na Doutrina do Direito, Kant parte em sua Doutrina da

Virtude da consciência do dever categórico, ou seja, tem como pressuposto o “discurso

preliminar” sobre a liberdade realizado nas obras de fundamentação: dado o caráter

natural e racional do homem, o dever se nos apresenta por meio de um imperativo que

“dá a conhecer mediante o seu veredicto categórico (o dever incondicionado)” uma

coerção (MS Ak VI: 379. p. 282). Ao passo que nos deveres jurídicos a coerção por

uma lei universal pode ser externa e, portanto, deixar intocados os móbiles da ação, na

ética

o conceito de dever não pode conter mais do que autocoerção (unicamente mediante a

representação da lei), se levarmos em conta a determinação interna da vontade (os

móbiles), porque só assim é possível conciliar aquela necessitação (mesmo que seja

357 Kant identifica sua Doutrina da Virtude à disciplina que trata dos deveres não submetidos a leis externas, ou seja, uma ética em oposição ao direito (MS Ak VI: 379. pp. 281-282). Embora utilizemos ética e doutrina da virtude como sinônimos, a exemplo de Kant, cumpre diferenciar os deveres de virtude, que exigem um fim obrigatório ou que é ao mesmo tempo dever, e a ética no sentido de um modo de obrigação, discutido acima. Neste último caso, é possível haver um dever ético que não seja um dever de virtude pois lhe falta o fim obrigatório presente neste – por exemplo, cumprir um contrato tendo por móbil a representação do dever. Mais sobre isso adiante.

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300

uma necessitação exterior) com a liberdade do arbítrio, com o que o conceito de dever

se torna, então, um conceito ético (MS Ak VI: 379-380. pp. 282-283).

A necessitação exercida por toda e qualquer lei moral (jurídica ou ética), que

enseja o conceito de dever, deve ser tomada na ética como uma autocoerção que o

próprio ser livre se impõe na determinação de seu arbítrio. Com efeito, a autocoerção

exercida tem por objetivo conter a “sedição” da natureza sensível do homem no embate

com a razão e sua lei incondicional como fundamento de determinação de sua conduta.

Kant emprega uma ampla alegoria bélica para ilustrar o que está em jogo em sua

Doutrina da Virtude:

A capacidade e o propósito deliberado de se opor a um adversário poderoso, mas

injusto, é a bravura (fortitudo) e, em relação ao adversário da atitude moral que existe

em nós, é a virtude (virtus, fortitudo moralis) (MS Ak VI: 380. p. 283).

Os adversários contra o quais a “bravura moral” do homem deve se impor são

“os impulsos da natureza”, que elevam no ânimo <Gemüt> humano “obstáculos ao

cumprimento do dever e forças (em parte, poderosas) que se lhe opõem e as quais o

homem deve se julgar capaz de combater <bekämpfen> e subjugar <besiegen>” (MS Ak

VI: 380. p. 283). O cenário de guerra montado por Kant tem como atores a razão e a

sensibilidade na determinação do arbítrio humano358: nesse sentido, o homem deve ser

não apenas autônomo, mas também um autocrata de si mesmo. Deter o avanço das

inclinações sensíveis significa pulso firme na mantenção da ordem no reino da liberdade

358 “A posição de Kant é que o problema central da vida moral reside na tensão fundamental entre esses dois tipos de princípios [da razão e da sensibilidade]”. Wood, A.”Unsociable Sociability: The Anthropological Basis of Kantian Ethics”. In: Philosophical Topics Vol. 19. N. 1. 1991. p. 327. Embora engenhoso, o artigo de Wood comete o erro de incluir os dados antropológicos pertencentes à Doutrina da Virtude e mesmo à antropologia moral como “bases” de toda a filosofia moral kantiana. Para Wood, dados substanciais sobre o homem, suas disposições <Anlagen> naturais e a própria sociedade humana são necessários para a formulação do imperativo categórico, o mesmo valendo para o princípio de autonomia: “Na medida em que a sociedade humana atual é cenário prioritariamente de desordem e discórdia, é importante apresentar a lei como um sistema de legislação universal capaz de unir os seres racionais num reino dos fins, uma comunidade de cidadãos do mundo cujas leis harmonizam os fins de todos em um sistema de respeito recíproco e ajuda mútua” (idem. p. 338). Ora, Wood inverte a ordem das razões: a urgência de erigir uma comunidade ética e jurídica é resultado da aplicação do princípio de autonomia à natureza humana, e não a base para a formulação deste último. Embora com intenção oposta, a análise de Wood se aproxima à dos neokantianos e a exortação destes para o “ancoramento do questionamento transcendental” em algum fato da ciência, agora, no entanto, no “factum” antropológico de que nossa sociedade carece de coerência e união. O fato antropológico fundamental que colocamos como um “factum” para o momento transcendental da Metafísica dos Costumes e mesmo a natureza empírica mínima do homem não podem ter a espessura empírica que Wood deseja. No entanto, algumas considerações antropológicas levantadas por ele serão importantes no estágio sistemático que analisamos nesta seção.

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301

interna onde vige a lei moral, contra cuja autoridade se insurgem os estímulos provindos

da sensibilidade.

Para seres finitos santos (aqueles que nem sequer podem ser tentados a violar o dever)

não há doutrina da virtude, mas tão-somente doutrina dos costumes; esta última é uma

autonomia da razão prática, enquanto que a primeira inclui, ao mesmo tempo, a

autocracia da mesma, quer dizer, uma consciência da capacidade de se tornar senhor

<Meister zu werden> das próprias inclinações rebeldes à lei <dem Gesetz

wiederspenstig>, isto é, uma consciência que, ainda que isso não seja diretamente

perceptível, se infere corretamente do imperativo categórico (MS Ak VI: 383. p. 288).

Insistimos nessa imagem de uma batalha enfrentada pelo homem virtuoso pois

mais adiante ela se revelará central para entendermos a comunidade ética e a autonomia

envolvida aqui. O confronto entre o “princípio bom” e o “princípio mau” de que fala a

Religião nos Limites da Simples Razão, que na Doutrina da Virtude aparece apenas em

uma perspectiva individual, se transformará em um enfrentamento coletivo e social de

todo o gênero humano.

Por enquanto, porém, cabe a pergunta: de que maneira o homem é

primeiramente exortado a depor as armas da sensibilidade? Segundo Kant, a disposição

virtuosa exige a adoção de fins morais <moralische Zwecke> determinados de modo a

priori e independentemente das inclinações, ou seja, fins obrigatórios ou que são ao

mesmo tempo deveres (MS Ak VI: 381. p. 284)359. Aqui, a razão fornece não apenas o

fundamento formal de determinação do arbítrio, mas também a própria matéria do

mesmo, um fim que lhe serve como objeto e que o impele a agir.

Nesse momento se torna mais clara a autocoerção exigida pela virtude. Ora, o

direito podia exercer uma coerção apenas externa sobre o sujeito, impedindo-o de

interferir nas ações alheias e violar os direitos dos outros homens em propor os fins que

bem lhes aprouvessem, caso, decerto, mantivessem aos demais uma liberdade

359 Kant distingue entre “o aspecto material do aspecto formal no princípio do dever” (MS Ak VI: 410. p. 331), ou seja, distingue a “intenção virtuosa” e o “dever de virtude”. Em outras palavras, o acolhimento de um dever na legislação ética não implica, por si só, que este dever se torne um dever de virtude. O que caracteriza este último é o fim obrigatório, que discutiremos na sequência. Ao passo que um dever jurídico pode ser cumprido segundo uma “intenção virtuosa”, ou seja, tendo por móbil a representação do dever e, assim, realizado através de uma autocoerção, nem por isso ele se torna um dever de virtude, que exige que o fim da felicidade alheia ou da perfeição própria seja acolhido pelo agente (MS Ak VI: 410. p. 332) - segundo Kant, esta “moralidade jurídica” não é um dever de virtude, mas antes um dever ético. Em suma, “daí que haja apenas e uma só obrigação de virtude [modo de obrigação ético – DK], mas muitos deveres de virtude” (MS Ak VI: 410. p. 331).

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302

correspondente. No caso da ética, no entanto, não é possível uma coerção externa. A

adoção de um fim é, ela mesma, um ato da liberdade, impossível de ser coagido

externamente. Alguém pode me forçar a empreender algo que não é meu objetivo,

realizar uma ação que eu não tinha em vista, mas nunca coagir-me a que esta ação

forçada seja, de fato, meu fim: “isto seria uma contradição em si mesmo: um ato de

liberdade, que ao mesmo tempo, porém, não é livre” (MS Ak VI: 381. p. 285). Por sua

vez, não significa contradição alguma “coagir-se a si mesmo” a adotar um fim, impor a

seu próprio arbítrio um fim ao qual não se está necessariamente inclinado e para cuja

adoção é, pois, necessária uma coerção; muito pelo contrário, quanto maior o obstáculo

que se supera, afirma Kant, tanto maior é a liberdade ou “bravura moral” demonstrada

(MS Ak VI: 382. pp. 285-286).

O ato livre de se impor um fim que é ao mesmo tempo dever é fruto de um

imperativo categórico. Ora, argumenta Kant, há dois fatos inquestionáveis que

pertencem, cada um, à constituição natural e à constituição racional do homem: por um

lado, toda ação do arbítrio humano visa a fins, por outro, há ações livres, resultantes de

um imperativo categórico tomado como um mandamento da razão prática pura. Dessa

maneira, se há ações livres no mundo, deve então haver um fim que é ao mesmo tempo

dever, ou seja, um fim da razão prática pura. Visto que o primeiro termo (há ações

livres) já foi demonstrado na Fundamentação e na Crítica da Razão Prática e o

segundo (toda ação tem um fim) é uma “verdade metafísica” decorrente da natureza

humana considerada em seu mínimo empírico, segue-se que há fins que são ao mesmo

tempo deveres:

Porque se não existissem fins dessa espécie, e dado que nenhuma ação humana pode ser

destituída de fim, todos os fins valeriam para a razão prática somente meios para outros

fins e seria impossível um imperativo categórico; o que anularia toda a doutrina dos

costumes (MS Ak 385. p. 291).

Segundo Kant, estes fins obrigatórios são dois: a felicidade alheia e a perfeição

própria. Cada um deles é dividido em dois deveres distintos, que demonstram bem os

elementos empíricos exigidos pela Metafísica dos Costumes na consideração da

natureza humana.

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303

No caso da perfeição própria, devemos, por um lado, promover nossa perfeição

física, isto é, a humanidade360, entendida como aquilo que nos distingue da mera

animalidade sem, contudo, corresponder ainda à nossa personalidade moral, ou seja, a

promoção dos talentos, conhecimentos e tudo aquilo necessário para cultivar a

humanidade como a capacidade técnica de propor-se fins quaisquer (MS Ak VI: 387. p.

294; MS Ak VI: 393. pp. 301-302); ademais, devemos, por outro lado, incentivar nosso

progresso moral, afastarmo-nos dos incentivos e estímulos sensíveis ao cumprir nossos

deveres, isto é, devemos empreender um esforço permanente para fortalecer nossa

personalidade moral, acolher o verdadeiro motivo do dever até que se atinja a

“verdadeira disposição virtuosa” em nossas ações (MS Ak VI: 392. p. 302). Em resumo,

o fim da perfeição própria exige o fomento e promoção da “cultura <Kultur> de suas

faculdades (ou disposições naturais) [do homem], dentre elas o entendimento”, e “da

cultura de sua vontade (do modo moral de pensar <sittlicher Denkungsart>) de cumprir

todos os deveres” (MS Ak VI: 386. p. 293). O primeiro dever, assim, é o da perfeição

prático-moral externa, e, o segundo, o da perfeição prático-moral interna (MS Ak VI:

387. p. 294); em ambos os casos, o objetivo é conservar ou cultivar “o caráter do

homem como ser moral, quer dizer, a liberdade interior e a dignidade inata do homem”

(MS Ak VI: 421. p. 344)361.

Quanto à felicidade alheia, adotá-la como fim implica acolher indiretamente os

fins dos outros homens. Não nos compete ditar-lhes os fins que eles devem perseguir;

devemos ajudar a promover seus fins independentemente se concordamos ou não com

eles, contanto, decerto, que sejam fins permitidos e que não contrariem o direito da

humanidade neles e nos outros homens (MS Ak VI: 388. p. 295). Mesmo aqui esse fim

mais amplo de benevolência ativa divide-se em dois deveres: a promoção do bem-estar 360 Cf. Religion Ak VI: 26-27. pp. 32-33. 361 Além do dever imperfeito de fomentar a cultura <Kultur> das faculdades naturais, isto é, as faculdades do ânimo, “como meio para toda espécie de fins possíveis” (MS Ak VI: 443. p. 383), e o acolhimento do motivo moral em toda ação (MS Ak VI: 446. p. 386), originado do fim obrigatório de promoção da perfeição própria, esta também impõe certos deveres perfeitos, que proíbem a realização de certas ações específicas, como, por exemplo, com vistas à preservação do homem como ser físico (MS Ak VI: 421-422. pp. 345-346), o suicídio (MS Ak VI: 422-424. pp. 346-349), a desonra de si mesmo pela voluptuosidade <wohlllüstige Selbstschändung> (MS Ak VI: 424-425. pp. 350-352) e a narcotização de si mesmo <Selbstbetäubung> pelo uso imoderado de comida ou bebida; quanto à preservação do homem como ser moral, são proibidos a mentira (MS Ak VI: 429-431. pp. 357-362), a avareza (MS Ak VI: 432-434. pp. 362-366) e o servilismo (MS Ak VI: 434-437. pp. 366-371). Todas essas ações, ou melhor, proibições, têm como função preservar a vida moral do homem, seja através da manutenção de sua vida física e da integridade de seu corpo, seja pela conservação da integridade de sua personalidade moral (MS Ak VI: 223. p. 33). Ora, através de atos como, por exemplo, a mentira ou a insinceridade intencionada, o homem converte-se em “mera coisa”, destruindo-se, assim, “a própria dignidade do homem” (MS Ak VI: 429. p. 358) e minando a base da imputabilidade e, com isso, a possibilidade mesma de que sejam reconhecidos deveres de um modo geral.

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físico e do bem-estar moral dos outros homens (MS Ak VI: 392-393. pp. 301-303).

Quanto ao primeiro, é meu dever satisfazer as carências dos outros homens mesmo com

sacrifício e desgosto profundo <Kränkung>, desde que isto não represente uma renúncia

às minhas próprias e “verdadeiras carências” <wahre Bedürfnisse> (MS Ak VI: 393. p.

304); quanto ao segundo, embora não seja um dever direto promover as condições para

que sentimentos como remorso, aflição e qualquer outra dor de origem moral não

tomem conta de outros homens, devo abster-me daquilo que possa constituir um

incentivo para que outro homem realize algo moralmente reprovável de que,

posteriormente, se mortifique (MS Ak VI: 394. p. 305)362.

Esses deveres de virtude, por exigirem a adoção de certos fins (perfeição própria

e felicidade alheia), são considerados por Kant como deveres imperfeitos, de obrigação

ampla, em oposição aos deveres jurídicos, deveres perfeitos e de obrigação estrita363.

Ora, isso está implícito na noção mesma de fim obrigatório, entendido com a adoção de

uma máxima e, assim, da “intenção” do agente no cumprimento do dever: a lei

envolvida na legislação ética que exige o acolhimento de um fim obrigatório refere-se

diretamente não a ações precisas, mas antes a uma diretriz para as ações empreendidas

pelo homem no mundo; ora, o fim de perfeição própria, por exemplo, não estipula por si

362 O fim obrigatório de fomentar a felicidade alheia impõe deveres de amor, baseados na “máxima de benevolência” como amor prático para com os outros homens (MS Ak VI: 449. p. 393), um dever imperfeito de tomar os fins alheios como meus, e deveres de respeito, deveres perfeitos que obrigam a omissão de certas ações que tomam o homem como meio para os meus fins (“não exigir que o outro renuncie a si mesmo para se escravizar aos meus fins” MS Ak VI: 450. p. 392), ou seja, que atentam contra a “dignidade da humanidade nos outros homens”, diminuindo-lhes a auto-estima necessária para que, eles próprios, reconheçam-se como dignos (MS Ak VI: 462. pp. 413-414). Discutiremos mais adiante com mais detalhes o amor e o respeito envolvidos aqui. 363 Não se deve confundir a obrigação ampla com modo de obrigação ética e deveres imperfeitos, de um lado, e obrigação estrita com modo de obrigação jurídica e deveres perfeitos, de outro. Ora, a Doutrina da Virtude possui também deveres perfeitos, de obrigação estrita mas não sujeito à coerção externa, isto é, não pertencente à legislação jurídica e, assim, ao modo de obrigação jurídico. O que caracteriza os deveres de virtude, ou melhor, os deveres éticos, dentre os quais incluem-se os deveres de virtude, é a impossibilidade de coerção externa, prerrogativa da legislação jurídica e que marca sua diferença específica em relação à legislação ética. Embora não entremos aqui nos detalhes da taxonomia kantiana dos deveres, notemos que esses deveres de virtude perfeitos proíbem certas ações (e assim são perfeitos) mesmo caracterizando-se como deveres implicados na adoção de algum fim obrigatório, como, no caso do suicídio, a perfeição própria: ora, caso eu me suicide, a humanidade em minha pessoa é perdida e, com ela, desapareceria o sujeito dos fins e da disposição moral (MS Ak VI: 423. p. 347). Dessa maneira, é atingido o próprio fim de perfeição própria como fim obrigatório assumido e que inclui como condição pressuposta a minha vida, mas não, por exemplo, o estudo de filosofia ou o estudo de engenharia – neste último caso, estas ações específicas são contingentes no interior do meu dever amplo de perfeição própria e mesmo de minha humanidade, fazendo parte das possibilidades deixadas em aberto pela “latitude” que caracteriza um dever imperfeito, e, assim, não podem ser objeto de um dever perfeito. Em suma, certas ações violam a humanidade nos homens e, assim, anulam a possibilidade mesma de continuar a perseguir os fins impostos pela razão como obrigatórios, caracterizando-se, portanto, como ações proibidas, às quais correspondem deveres perfeitos de obrigação estrita, isto é, que não permite a “latitude” deixada em aberto pelos deveres imperfeitos. Para uma análise da taxonomia kantiana, Cf. Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. pp, 95-127.

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só todas as ações necessárias para que ele seja realizado. Segundo Kant, há no fim de

perfeição própria aquilo presente em outros deveres imperfeitos de virtude: uma

“margem de ação” <Spielraum> ou “latitude” <latitudo> (MS Ak VI: 390. pp. 298-299)

onde entram considerações sobre as circunstâncias particulares em que a ação humana

tem lugar e a avaliação, pelo juízo prático364, das situações nas quais devo ou não

praticar aquilo que o fim obrigatório me exige fazer:

Nenhum princípio racional prescreve até onde se deve ir no cultivo <Bearbeitung> (na

ampliação ou na retificação da faculdade do entendimento, isto é, nos conhecimentos

ou na capacidade técnica <Kunstfähigkeit>); além disso, a diversidade de situações em

que os homens podem encontrar-se torna muito arbitrária a eleição do modo de

ocupação com o qual cada um deva cultivar seu talento (MS Ak VI: 392. p. 302).

A indeterminação das ações deixadas em aberto pelos fins obrigatórios opõe-se,

pois, ao rigor e à exatidão exigidos pelos deveres jurídicos: ao passo que a coerção

externa é “direta e reta”, a autocoerção do agente virtuoso limita-se a estipular

parâmetros para a ação que, se seguidos à exaustão, conduziriam, ao cabo, à “realização

completa” do fim pressuposto. Ora, nada mais natural dado o caráter do objeto

pressuposto em tais fins: como precisar de maneira definitiva meu conceito de

felicidade, cuja promoção os outros têm de assumir como dever, ou o conceito de minha

perfeição física ou moral, que, devido às limitações humanas e à inevitável obscuridade

que cerca o verdadeiro motivo das ações no homem, está sujeita a um progresso ad

infinitum? A indefinição estruturante dos deveres de virtude é reflexo da natureza

humana finita e carente, que deve se tornar fim do arbítrio do homem:

O princípio supremo da doutrina da virtude é o seguinte: age de acordo com sua

máxima de fins tal que assumi-los possa ser para cada um uma lei universal. – Segundo

este princípio, o homem é fim tanto para si mesmo como para os demais e não é

suficiente que ele não esteja autorizado a usar-se a si próprio como meio nem a usar

como tal aos demais (...), constituindo, ao invés, em si mesmo um dever para o homem

propor-se como fim o homem em geral (MS Ak VI: 395. p. 307).

364 Cf. Gregor, M. Laws of Freedom. Op. cit. pp. 108-111. Gregor ressalta o papel da prudência na latitude deixada em aberto pelos deveres de virtude, bem como o papel do juízo na ação moral, “reabilitado” em relação à visada da Fundamentação.

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306

Há uma diferença marcante em relação à ideia análoga expressa na

Fundamentação. Ao passo que aqui era a natureza racional que devia tornar-se um fim

meramente negativo, um índice restritivo de minha ação, na Doutrina da Virtude é o

“homem em geral” que tem de ser acolhido como fim não só negativo, como o que está

pressuposto nos deveres perfeitos de virtude, mas também positivo, um fim que enseja

deveres imperfeitos. Assumir o homem em geral como fim significa considerar sua

constituição tanto física quanto moral; se é fato que é esta última que assume a

prevalência, disso não se conclui que as carências e necessidades exemplificadas no

conceito de felicidade alheia que tomo por meu fim possam ser descartadas, ou que

devo desconsiderar minha constituição física em meu dever de aperfeiçoamento. O

“homem” considerado na Doutrina da Virtude não pode ser confundido com o ser

racional de que fala a Fundamentação.

8.3.2. Amor e respeito – perspectiva social da virtude

O amor aos homens ou a filantropia <Menschenliebe> e o respeito devido ao

homem e à humanidade em geral são os sentimentos de base dos deveres de virtude para

com os outros. Contudo, os deveres relacionados a ambos não podem se apoiar nesta

base sensível da natureza humana. No caso do amor, não é possível coagir alguém a

amar, “daí que um dever de amar seja absurdo” (MS Ak VI: 401. p. 316), sendo

exigido, portanto, não um “amor de agrado” <Liebe des Wohlgefallen> ou um prazer

pela perfeição alheia, mas apenas um amor “prático” pelos homens, uma disposição em

ajudá-los mesmo na ausência de sentimentos que favoreçam esta prática; quanto ao

respeito, os deveres nele apoiados exigem apenas um respeito pela humanidade em

geral, sem que a presença deste sentimento seja a base para o cumprimento ou mesmo

reconhecimento de tais deveres – ora, respeitar a humanidade implica restringir nossas

ações com base nela, isto é, não usar os outros e a si próprio como um meio para algo,

como ocorre, por exemplo, quando mentimos: neste caso, “o homem como ser moral

(homo noumenon) [usa] a si próprio enquanto ser físico (homo phaenomenon) como um

simples meio (uma máquina de falar)” (MS Ak VI: 430. p. 359). Os deveres de amor

para com os outros homens são deveres amplos, “concebidos como máxima de

benevolência (enquanto máxima prática), a qual tem como conseqüência a

beneficência” (MS Ak VI: 449. p. 391) o que implica fazer meus os fins dos outros, e o

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307

deveres de respeito aos outros homens são deveres estritos, implicando a adoção de uma

“máxima de restrição da nossa autoestima por via da dignidade da humanidade na

pessoa de outrem, por conseguinte, o respeito em sentido prático” (MS Ak VI: 449. pp.

391-392), ou seja, respeitar o “direito do outro” por meio de ações que não podem ser

coagidas exteriormente (MS Ak VI: 488. p. 453)365

Kant compara esses dois grandes princípios dos deveres dos homens entre si a

duas “forças morais” que dão sustentação ao “mundo moral” em que os homens se

encontram, numa imagem que recorda aquela empregada para ilustrar a “coerção

externa mútua e universal” presente na esfera jurídica:

Quando se trata de leis do dever (e não de leis da natureza), e, precisamente, na relação

externa dos homens entre si, nós consideramo-nos num mundo moral (inteligível), no

qual, por analogia com o mundo físico, a conexão entre os seres racionais (sobre a

Terra) se efetua por atração e repulsão. Em virtude do princípio do amor recíproco, os

homens são exortados a aproximar-se continuamente entre si, e, por via do princípio de

respeito, de que são mutuamente devedores uns aos outros, a manter distância entre si;

caso soçobrasse uma destas duas grandes forças morais, “então o nada (da imoralidade)

sorveria com sua garganta escancarada todo o reino dos seres (morais) como se fosse

uma gota d’água” (MS Ak VI: 449. pp. 390-391).

Além da coerção universal e ubíqua do direito, a ideia expressa aqui se

assemelha àquela exposta em Sonhos de um visionário e seu “mundo dos espíritos”

unido segundo forças morais análogas àquelas presentes no mundo físico. Assim como

as leis de atração e repulsão garantem a comunidade dos corpos e o comércio entre os

seres materiais no mundo sensível, o amor e o respeito seriam as forças “moventes” que

na “comunidade dos espíritos” impelem os seres humanos a aproximarem-se e

afastarem-se, assegurando ao mundo moral sua ordem e coesão dinâmica. Com efeito, o

ideal da virtude é definido por Kant como a “amizade estética” entre dois seres

humanos, ou seja, “a união de duas pessoas através de igual amor e respeito recíproco

(...), um ideal de comunicação e de participação no bem de cada uma delas” (MS Ak VI:

365 Kant divide os deveres de amor em deveres de beneficência (MS Ak VI: 452-454. pp. 396-400), deveres de gratidão (MS Ak VI: 454-456. pp. 400-403) e deveres de simpatia <teilnehmende Empfindung> (MS Ak VI: 456-458. pp. 403-406). Já os deveres decorrentes do respeito devido aos homens são apresentados de modo negativo, isto é, como o oposto dos vícios a eles relacionados; tais vícios são: arrogância (MS Ak VI: 465-466. pp. 417-419), difamação (MS Ak VI: 466. pp. 419-420) e escárnio (MS Ak VI: 467-468. pp. 420-422). A exemplo do que fizemos com os deveres do homem para consigo mesmo, não discutiremos estes deveres em detalhes.

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308

469. p. 424)366. Contudo, como a própria designação de Kant indica, tal “ideal” é

irrealizável na prática: por vezes o transbordamento do amor dispensado por uma das

partes pode fazer com que esta fira o respeito do outro, ou o respeito em excesso de um

pode anular o possível amor do parceiro. Um equilíbrio entre ambas as forças é

impossível: a harmonia e regularidade do mundo físico não é observada no mundo

moral humano, continuamente assolado por conflitos morais e éticos entre os homens

que rompem a harmonia do todo.

Com efeito, Kant ilustra esse ponto com um exemplo que remete aos seus

escritos sobre história, mais notadamente a Ideia de uma história universal de um ponto

de vista cosmopolita e o conceito de insociável insociabilidade (Idee Ak VIII: 20-22.

pp. 8-10):

O homem é um ser destinado a viver em sociedade (apesar de ser também insociável) e,

ao cultivar a sua condição social, sente intensamente a necessidade de abrir-se aos

outros (mesmo sem visar com isso o que quer que seja); mas, por outro lado, coibido e

advertido também pelo receio do mau uso que outros possam fazer da revelação de seu

pensamento, vê-se obrigado a reservar para si uma boa parte dos seus juízos (sobretudo

sobre outros homens) (MS Ak VI: 471-472. p. 428).

A destinação <Bestimmung> do homem à vida em sociedade conduz à

inevitabilidade da vida conjunta dos homens e marca a necessária remissão à

reciprocidade e intersubjetividade dos deveres de virtude. Não apenas os deveres para

com os outros, mas mesmo os deveres para consigo próprio indicam isso: a perfeição

física implica a promoção da humanidade na própria pessoa, o fomento da cultura da

habilidade como capacidade de propor-se fins quaisquer, fins esses que a razão exorta

serem fins dos outros homens; a perfeição moral exige a adoção progressiva do motivo

do dever, o que, por seu turno, implica o enfraquecimento progressivo do amor-próprio

e o acolhimento do amor ao próximo em seu lugar. O imbricamento intersubjetivo dos

deveres de virtude entre os homens remete à fática superfície terrestre finita onde estes

mesmos homens travam relações jurídicas. Com efeito, a atuação do arbítrio no mundo,

quando se consideram os fins do mesmo, como é o caso da virtude, não ficar indiferente

às relações recíprocas entre os homens.

366 Segundo Kant, há também uma “amizade moral”, que é a “a confiança total entre duas pessoas que se revelam reciprocamente suas opiniões e sentimentos íntimos, na medida em que tais revelações sejam compatíveis com o respeito recíproco” (MS Ak VI: 471. p. 428), ou seja, o respeito pleno entre dois homens, mas sem o amor ou o agrado recíproco.

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309

Não por acaso, Kant inclui um único dever como pertencente tanto à classe dos

deveres para consigo mesmo quanto à classe dos deveres para com os outros: o dever de

não se isolar e estimular o convívio com os outros homens, pertencente às “virtudes da

convivência social” <Umgangsstugenden> (virtutes homileticae):

É um dever, tanto para consigo próprio como para com os outros não se isolar

(separatistam agere), mas estimular com suas perfeições morais o convívio entre os

homens (officium commercii; sociabilitas); converter-se, sim, no centro fixo dos seus

próprios princípios, mas considerando este círculo, traçado em torno de si, como parte

também de um círculo omnicompreensivo que tudo abarca <allbefassenden> que perfaz

a intenção cosmopolita <weltbürgerliche Gesinnung> (MS Ak VI: 473. pp. 430-431.

Grifo nosso).

O modo de agir sociável, o fomento de uma intenção cosmopolita na conduta

humana, é um dever de virtude. Devemos cultivar “a afabilidade no trato, a tolerância, o

amor e respeito recíprocos (a cortesia e o decoro, humanitas aesthetica et decorum),

associando, assim, a gentileza à virtude” (MS Ak VI: 473. p. 431). É bem verdade que

tais ações nada mais são do que um mero reflexo, sincero ou não, da verdadeira virtude,

esta mesma imperscrutável no coração do homem367. Esses frutos da civilização, a

“aparência de moralidade <Sittenähnliche>” de que fala a Ideia de uma História

Universal (Idee Ak VIII: 26. p. 16), não são ainda a efetiva realização da liberdade

interior; não obstante, trata-se de deveres que, embora “simples maneiras no trato social,

(...) obrigam ao mesmo tempo os outros, promovendo, assim, a intenção virtuosa, na

medida em que, pelo menos, tornam a virtude prazerosa” (MS Ak VI: 474. p. 431).

Apenas em meio aos outros homens podemos dar mostras da moralidade e, assim,

aspergir as sementes das quais frutificará a verdadeira virtude: o caráter intersubjetivo

adotado em uma Metafísica dos Costumes (as ações humanas sendo realizadas e

influenciando-se reciprocamente no mundo da sensibilidade) a torna receptível à mera

legalidade das ações, contanto, decerto, que das aparências o sujeito moral recolha

aquilo necessário para interiorizar a intenção virtuosa em seu embate com as

inclinações. Portanto, a sociabilidade é um dever não apenas para com os outros

367 Em A Religião nos Limites da Simples Razão, Kant opõe uma virtude fenomênica (virtus phaenomenon) a uma virtude numênica (virtus noumenon), entendendo a primeira como “a virtude segundo a legalidade como seu caráter empírico”, e pela segunda, a virtude segundo a moralidade, ou seja, “segundo o caráter inteligível” (Rel Ak VI: 47. pp. 52-53). De acordo com Kant, a primeira pode ser obtida por uma reforma gradual dos costumes e a segunda, por sua vez, apenas através de uma “revolução na intenção dos homens” (Rel Ak VI: 47. p. 53).

Page 310: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

310

homens, no intento de fundo de estar sempre a postos para ajudá-los em suas

necessidades, mas mesmo para consigo próprio, como forma de incentivar o próprio

progresso moral e físico no interior de uma intenção cosmopolita. O amor e o respeito

pelos outros homens não podem, por certo, chegar a um ponto perfeito de equilíbrio; no

entanto, o contato progressivo entre os seres humanos pode fazer com que a virtude

finalmente desponte, tornando essa intenção cosmopolita um possível despertar para a

moralização do conjunto do gênero humano.

Dada essa inevitável e obrigatória sociabilidade entre os homens, seria possível

combater o adversário da disposição virtuosa de modo solitário, como faz crer a

Doutrina da Virtude? Em uma palavra: é possível ser eticamente autônomo sem sê-lo,

ao mesmo tempo, em meio aos outros homens?

8.3.3. A comunidade ética

Os deveres de virtude, sejam aqueles para consigo mesmo, sejam aqueles para

com os outros, abrem a perspectiva de uma superação das limitações impostas pela

sensibilidade à verdadeira intenção moral. Ora, a exortação tanto à perfeição física, a

passagem da “animalidade” à “humanidade”, quanto à perfeição moral, o estágio em

que a lei serve como único móbil da vontade, representa a exigência de sobrepujamento

da sensibilidade e da natureza física do homem; a promoção da felicidade alheia, por

sua vez, implica o descentramento do sujeito, a substituição do amor-próprio, de base

física, pelo amor ao próximo, de cunho moral, como guia de sua conduta. A batalha do

sujeito virtuoso é vencida pela razão no momento em que é extirpado tudo aquilo que

conduz a princípios materiais de determinação da vontade. Nesse momento, a lei moral

se impõe sem a concorrência da sensibilidade.

A liberdade interna, assim, implica o domínio de si mesmo, a anulação das

inclinações na determinação do arbítrio.

A liberdade interior requer dois elementos: tornar-se mestre <Meister> de si mesmo

(animus sui compos) em um dado momento e ser senhor <Herr> de si mesmo

(imperium in semetipsum), isto é, reprimir os próprios afetos e dominar as suas próprias

paixões (MS Ak VI: 407. p. 326)

Page 311: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

311

A virtude e a autocoerção envolvidas na adoção dos fins obrigatórios sinalizam

isto: apenas quando os estímulos sensíveis e os impulsos advindos da “animalidade” do

homem perderem na influência na escolha dos fins das ações é que, finalmente, o

homem se tornará internamente livre – em outras palavras, a coerção da razão, a

autocoerção do sujeito racional, barra a atuação da sensibilidade, as inclinações da

constituição física do agente, e deixa livre e desimpedida a força vinculante da lei moral

na determinação da conduta humana. O cenário, pois, é análogo ao de um embate entre

facções opostas na disputa pelo domínio do ânimo <Gemüt> humano, com a

peculiaridade que os decretos que a sensibilidade quer impor ao homem representam o

despotismo, o voluntarismo e violência de um partido apenas sequioso de poder, e a lei

da razão, por seu turno, a expressão sublime de uma liberdade não sujeita a

constrangimentos particularistas que provocam fissuras institucionais e, por fim, a

derrocada da comunidade política.

Dessa maneira, a autonomia do sujeito da virtude, a sua obediência a uma lei da

qual se considera, ele mesmo, o autor e endereçado, apenas ocorre no momento em a

razão assume o domínio do homem, e sua lei, a lei moral, torna-se o único princípio que

prevalece no reino da consciência moral humana, sinalizando, desta maneira, aquilo que

constitui o fim terminal <Endzweck> da humanidade:

Os vícios, enquanto frutos das intenções contrárias à lei, são os monstros que o homem

tem então de combater; é por isso que esta força moral, como bravura (fortitudo

moralis), constitui a maior e a única verdadeira honra guerreira do homem; é também

designada como a verdadeira sabedoria, a saber, sabedoria prática: porque faz do fim

terminal da existência do homem sobre a Terra o seu fim (MS Ak 405. p. 323).

A virtude, o triunfo da razão, significa a autocracia autônoma do homem.

Contudo, Kant não admite que o sujeito isolado chegue a tal governo autocrático de si

mesmo; para Kant, o caráter social e intersubjetivo da virtude exige que esse embate

deva ser realizado em sociedade, e culminar em uma comunidade ética do gênero

humana apaziguada dos conflitos que marcam a moral do homem. Trata-se, aqui, da

marca e consequência da dimensão comunitária e cosmopolita da moral humana.

A alegoria bélica apresentada na Doutrina da Virtude é retomada no escrito A

Religião nos Limites da Simples Razão. Nesta obra Kant denomina “princípio mau” da

natureza humana não a própria sensibilidade e suas inclinações, mas antes a propensão

<Hang> natural do homem em acolher máximas baseadas em sua natureza sensível em

Page 312: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

312

detrimento daquelas ditadas pela razão (Rel Ak VI: 36. p. 42): o amor-próprio físico ou

comparativo com os outros homens, tomado como fonte de princípios materiais de

determinação do arbítrio e assim da heteronomia da vontade, é a origem dos vícios de

bruteza <Rohigkeit>, como a gula <Völlerei> e a luxúria <Wollust>, e dos vícios de

cultura <Kultur> ou diabólicos <teuflich> como a inveja e a ingratidão (Religion Ak VI:

26-27. pp. 32-33), baseados na ambição <Ehrsucht>, desejo de dominação

<Herrschsucht> e cobiça <Habsucht> (Idee Ak VIII: 21. p. 8; Anthropologie Ak VII:

267-268. p. 165). Esses vícios de bruteza e de cultura são discutidos na Doutrina da

Virtude como vícios opostos a deveres de virtude tanto para consigo mesmo quanto para

com os outros.

Embora o adversário da disposição virtuosa ou do “princípio bom” na natureza

humana encontre-se no próprio homem (trata-se do princípio do amor próprio, inerente

à sua natureza carente), o convívio com os outros homens torna o embate mais

desvantajoso para a virtude - além daqueles vícios que decorrem da própria animalidade

do homem como ser vivo, a vida em sociedade, um fato legado pela finitude da

superfície terrestre, cria novos vícios ainda mais difíceis de seres extirpados na luta

contra a influência da sensibilidade na determinação do arbítrio:

Não é pelos estímulos <Anreize> da natureza rude que nele [homem] se agitam paixões,

que assim importa em rigor chamar, e que tão grandes devastações ocasionam na sua

disposição originariamente boa. As suas necessidades são só pequenas e o seu estado de

ânimo no cuidado delas é moderado e tranquilo. Ele só é pobre (ou por tal se toma) na

medida em que receia que outros homens assim o considerem e possam por isso

desprezá-lo. A inveja, o desejo de dominação, cobiça e as inclinações hostis a elas

associadas assaltam a sua natureza em si moderada, logo que se encontra no meio dos

homens (...), basta que estes estejam aí, que o rodeiem, e que sejam homens, para

mutuamente se corromperem na sua disposição moral (Rel Ak VI: 93-94. pp. 99-100).

A vitória da razão sobre o princípio mau não depende apenas das forças do

indivíduo. O “triunfo do princípio bom”, o sobrepujamento dos “obstáculos ao

cumprimento do dever” levantados “pelos impulsos da natureza” (MS Ak VI: 381. p.

282), apenas pode ocorrer em definitivo por meio de um esforço conjunto de apaziguar

os conflitos ocorridos entre os homens em razão de seus pendores naturais e vícios:

Page 313: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

313

Ora, se não pudesse encontrar-se meio algum de erigir uma união de todo

verdadeiramente encaminhada à prevenção deste mal e ordenada ao fomento do bem no

homem, como uma sociedade consistente e sempre em expansão, que tem em vista

simplesmente a manutenção da moralidade e que, com forças unidas, se oporia ao mal,

então, por muito que o homem singular pudesse ter feito para se subtrair ao domínio do

mal, este o manteria sempre no perigo da recaída sob seu domínio (Religion Ak VI: 94.

p. 100)

Há uma ideia semelhante àquela exposta na Doutrina do Direito: pensando um

indivíduo isolado e virtuoso como um Estado particular sob uma constituição

republicana, há sempre o perigo de que conflitos externos e a influência danosa que seus

vizinhos podem lhe causar (outros homens viciosos ou Estados despóticos sedentos por

poder e dominação) reintroduzam a discórdia e a sedição interna, a derrocada de um

estado de paz interno que, em virtude do caos do todo, é frágil e suscetível a recaídas.

Assim, da mesma maneira que os direitos apenas podem se tornar de fato peremptórios

em uma comunidade jurídica internacional pacificada de forma definitiva, também a

realização da virtude deve pressupor uma dimensão comunitária e cosmopolita. Kant é

mais claro ainda quanto ao cunho social da virtude: ora, o reverso desta, o vício, é

cultivado e intensificado em sociedade. O homem não é apenas mau por natureza; ele

também é mau por e em sociedade – os piores vícios, os vícios “diabólicos”, são frutos

da civilização, da cultura sempre mais refinada do homem. Com sua ideia de vícios de

sociedade, que ofuscam sua origem meramente individual baseada no amor-próprio,

“Kant trata do aspecto social do mal e de sua superação em uma sociedade,

compreendida como uma comunidade ética”368.

Com efeito, segundo Kant, a garantia da liberdade interna, o triunfo definitivo da

virtude sobre o vício, não pode ser em absoluto prerrogativa de indivíduos isolados, mas

antes o resultado da instituição de uma comunidade ou sociedade ética nos moldes de

uma comunidade jurídica: da mesma maneira como esta última era o conjunto de leis

públicas que regulavam a liberdade externa, a primeira deve ser concebida como

uma associação dos homens sob simples leis de virtude. [A esta associação] pode-se dar

o nome de sociedade ética e, enquanto estas leis são públicas, sociedade civil ética (em

oposição à sociedade civil de direito), ou comunidade ética <ethisches gemeines

Wesen> (Religion Ak VI: 94. p. 100).

368 Sala, G. “Das Reich Gottes auf Erden. Kants Lehre von der Kirche als ‘ethischem gemeinem Wesen’”. In: Fischer, N (org). Kants Metaphysik und Religionsphilosophie. Hamburg: Meiner, 2004. p. 232.

Page 314: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

314

Essa comunidade ética, também denominada “Estado <Staat> ético” ou “reino

da virtude (do princípio bom)” (Religion Ak AI: 94-95. p. 100-101), pode ocorrer no

seio da “comunidade política” <politische gemeines Wesen>, e ser composta pelos

mesmos membros desta sem que, com isso, haja algum conflito entre as diferentes

legislações: ora, o estado jurídico regula a conduta meramente externa dos indivíduos, e

o estado ético, a conduta interna dos mesmos. Neste Estado ético-jurídico, as leis do

direito tornam-se indiretamente éticas.

Para sua instauração, no entanto, o chefe político não pode exercer coerção

alguma sobre seus cidadãos. A tentativa de um governo qualquer de inculcar a seus

membros uma constituição fundada em leis de virtude não apenas seria flagrantemente

malograda, já que ninguém pode coagir outrem a adotar um fim qualquer, como

também se dirigiria contra o objetivo da associação política: ora, esta deve regular o

comportamento externo dos homens, e não a sua escolha de fins ou disposição moral no

agir – um governo que assim procede é paternalista, trata seus súditos como “crianças

menores” que não sabem guiar a própria vida, e não como seres adultos e emancipados

capazes e dignos de escolher seus próprios fins na mais plena liberdade. E o que é pior:

um governo que buscasse instaurar uma comunidade ética entre seus membros seria “o

maior despotismo que se pode pensar (constituição que suprime toda a liberdade dos

súditos, os quais, por conseguinte, não têm direito algum)” (UdG Ak VIII: 291. p. 80;

cf. UdG Ak VIII: 298-299. pp. 89-90).

A exemplo do estabelecimento definitivo da comunidade jurídica sob leis

externas autônomas como consequência de sua expansão ao conjunto de todos os

homens sobre a superfície terrestre e da pacificação completa dos conflitos disto

resultante, a comunidade ética tem uma pretensão universalista bem definida e um

objetivo de apaziguamento completo: um “Estado ético”, concebível através de uma

“reforma gradual progressiva” de esforço humano coletivo (Religion Ak VI: 122. p.

128), é aquele no qual reina uma paz perpétua:

Tal é, pois, o trabalho, não perceptível ao olhar humano, porém em constante progresso,

do princípio bom em erigir no gênero humano um poder e um reino enquanto uma

comunidade segundo leis de virtude, a qual afirma o triunfo do sobre o mal e, sob seu

domínio, garante ao mundo uma paz perpétua (Religion Ak VI: 124. p. 129).

Page 315: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

315

Esse “reino público da virtude” (MS Ak VI: 95. p. 101) diferencia-se da

comunidade jurídica cosmopolita na medida em que suas leis públicas de virtude regem

diretamente todos os seres humanos, não carecendo de alguma federação de nações ou

liga dos povos. No limite, há aqui um “mundo moral” <moralische Welt> (KrV A 808/

B 836. p. 641), também definido por Kant como “um corpus misticum dos seres

racionais que nele se encontram na medida em que o livre arbítrio de cada um, sob o

império das leis morais, tem em si uma unidade sistemática completa tanto consigo

mesmo, como com a liberdade de qualquer outro” (KrV A 808/ B 836. pp. 641-642). O

corpus misticum dos seres racionais é apenas concebível como um mundo inteligível,

um todo moral onde o amor e o respeito, as forças opostas que se contrabalanceiam

reciprocamente e anulam os vícios que lhe são correspondentes, finalmente

encontrariam a harmonia buscada. Nesse mundo ideal do todo da humanidade haveria

uma verdadeira “amizade estética” entre os homens, amigos que se amam e se respeitam

reciprocamente e em igual medida: uma vontade comunitária cosmopolita donde

emanam as leis de virtude, de amor e de respeito, que regem a vida moral dos homens.

No entanto, surge aqui uma dificuldade. É conhecido o recurso de Kant à

religião como base dessa comunidade ética. O exeundum esse e statu naturali na ética,

ou seja, a exortação de que do “estado de natureza ético” em que atualmente se encontra

o homem e no qual este se vê assediado continuamente pelo mal e, assim, afastado “do

fim comunitário do bem” <gemeinschaftlicher Zweck des Guten> (Rel Ak VI: 97. p.

103), passe-se para uma “república universal segundo leis de virtude” <allgemeine

Republik nach Tugendgesetzen> (Rel Ak VI: 98. p. 104), ou seja, o estado civil ético,

exige a ideia de um outro legislador que não o próprio homem, a saber, um “ser moral

superior” que assegure a realização do bem comunitário nesta nova condição ética do

gênero humano. Neste momento, a comunidade ética se afasta mais radicalmente da

comunidade jurídica: a legislação da “multidão que se une” <vereinigende Menge> deve

ser considerada como resultante não da vontade coletiva dos homens reunidos, como no

caso de uma constituição republicana jurídica, mas sim da vontade de razão sublime que

garante a coesão do todo moral:

Ora, se a comunidade a fundar tivesse de ser uma comunidade jurídica, então a própria

multidão que se une num todo é que deveria ser o legislador (das leis constitucionais)

(...) mas se a comunidade deve ser uma comunidade ética, então não há que considerar

o próprio povo como legislador. Pois, em semelhante comunidade, todas as leis estão,

Page 316: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

316

em rigor, ordenadas a fomentar a moralidade das ações (que é algo de interior, por

conseguinte, não pode estar sob leis humanas públicas), já que, pelo contrário, estas

últimas (...) estão ordenadas unicamente à legalidade das ações (...) e não à moralidade

(...). Por conseguinte, importa haver alguém, diferente do povo, que, para uma

comunidade ética, se possa aduzir como publicamente legislador (Rel Ak VI: 98-99. pp.

104-105)

O legislador universal deve deter predicados não pertencentes ao homem: além

de ser um “perscrutador dos corações” <Herzenskündiger>, capaz de discernir os

verdadeiros móbiles das ações humanas, ele precisa possuir poder suficiente para

proporcionar a cada membro da comunidade aquilo que lhe é de merecimento369. Assim,

este é o conceito de Deus como soberano moral do mundo. Por conseguinte, uma

comunidade ética só pode pensar-se como um povo sob mandamentos divinos, isto é,

como um povo de Deus e, claro está, de acordo com leis da virtude (Rel Ak VI: 99. p.

105).

Trata-se, segundo Kant, de uma Igreja invisível, um Reino de Deus na Terra que

não pode ser confundido com as igrejas visíveis existentes (Rel Ak VI: 100-101. pp.

106-107). Sem entrar nos detalhes da questão370, coloquemos a seguinte pergunta: a

exclusão do conjunto dos homens dessa legislação virtuosa implica assumir que, aqui, a

369 Kant reproduz uma ideia semelhante por ocasião da sua exposição da consciência moral como tribunal divino. Cf. MS Ak VI: 437-440. pp. 372-376. Segundo Kant, o juiz da consciência moral não pode ser o homem segundo sua natureza sensível e tampouco o homem segundo sua natureza racional (MS Ak VI: 439n. pp. 373-374n). No caso judicial aberto no tribunal da consciência moral por ocasião de um ato moralmente relevante, o advogado do homem é o homo phaenomenon, que defende a causa do amor-próprio, o promotor é o homo noumenon, que apela à autoridade da lei moral, e o juiz, por fim, tem de ser alguém distinto do homem, um ser sumamente justo, omnisciente e onipotente: Deus. Apenas através destas propriedades é possível assegurar que ele reconheça o verdadeiro motivo da ação (onisciência), consiga punir ou absolver o homem em seu cumprimento ou não da lei (onipotência) e emitir um veredito irretocável (sumamente justo). Assim como ocorre com Deus no papel de legislador da comunidade ética, Deus em sua função judiciária de juiz do tribunal da consciência não pode ser considerado como origem da lei moral, mas apenas como aquele ser em relação ao qual esta adquire a forma de um mandamento. 370 “O Estado ético é, assim, baseado na lei moral e necessariamente na fé moral que emana daquela lei. Ele é um reino de fé, uma associação que une todos os crentes na razão sob o governo moral e mundial imediato de Deus. Se ele fosse livremente aceito por toda a humanidade, ele produziria um Estado no mundo que, sem distorcer os termos, poderia ser chamado de Estado derradeiro”. Saner, H. Kant’s Political Thought. Its Origins and Development. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1973. p. 276. Em seu livro, Saner discute as metáforas políticas empregadas por Kant (cuja origem reside em seu pensamento jurídico) para elucidar pontos centrais de sua filosofia prática e teórica, analisando-as como um caminho que vai do conflito à paz. No caso específico que estamos vendo aqui, sua influência se faz presente não apenas na Igreja invisível na instituição do reino de Deus na Terra, mas também no embate entre razão e sensibilidade, princípio formal e princípio material, moralidade e eudemonismo, etc. Com efeito, essa alegoria política kantiana encontra seu ponto de culminação na comunidade ética, assim como a paz perpétua no direito apenas é obtida – idealmente – numa associação jurídica cosmopolita do gênero humano.

Page 317: a metafísica dos costumes: a autonomia para o ser humano

317

autonomia autocrática do homem em meio aos seus semelhantes seria uma vã ilusão e

um mero engodo?

Não parece ser esta a posição de Kant. Em primeiro lugar, embora atribua a esse

ser moral a função de legislador, Kant não o faz confundir com um teocrata que impõe

sua vontade por meio de decretos que exigem apenas certos ritos e condutas exteriores –

nesse caso, segundo Kant, haveria um “governo aristocrático” de sacerdotes que

recebem mandatos diretamente do Deus legislador e detêm o controle da comunicação

de sua lei aos homens (Rel Ak VI: 99-100. p. 106). Pelo contrário, há na comunidade

ética uma verdadeira “república sob leis de virtude”, cuja legislação é “simplesmente

interna”, e os homens sujeitos a tais leis não podem se considerar como submetidos a

uma legislação que lhes é exterior. Em segundo lugar, Kant não pode admitir que as leis

de virtude, que exigem uma postura interna do ânimo, sejam pensadas como originadas

da vontade de tal ser tal legislador supremo, o que caracterizaria a heteronomia de tal

legislação e da vontade humana que se lhe submete. Inversamente, o ser moral supremo

deve ser concebido “como um ser relativamente ao qual todos os verdadeiros deveres,

portanto, também os éticos, hão-de representar ao mesmo tempo como mandamentos

seus” (Rel Ak VI: 99. p. 105. Grifo nosso). A fonte da normatividade da lei não pode

ser exterior ao sujeito que se sujeita à mesma: como membro dessa comunidade ética,

ele é legislador universal da lei ao lado dos demais homens. Todos estão submetidos à

lei que promulgam, ao contrário, contudo, de Deus, que apenas ordena, como suprema

autoridade, aquilo que os próprios homens reconhecem como um dever – sua não

subordinação e independência é o que marca sua posição no interior da comunidade

ética. Nessa medida, as leis e os deveres, embora autonomamente impostos pelos

próprios homens, devem ser considerados, ao mesmo tempo, como mandamentos dessa

suprema autoridade.

Podemos compreender melhor isso recorrendo à exposição do reino dos fins na

Fundamentação. Aqui, Kant reproduz algo semelhante, opondo os membros de um

reino dos fins à suprema autoridade do mesmo.

O ser racional é membro do reino dos fins quando é legislador universal e também

quando está submetido à lei que promulga; é suprema autoridade <Oberhaupt>

quando, como legislador, não está sujeito à vontade de outrem (Gr Ak IV: 433. p. 139).

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318

Embora membro do reino dos fins e colegislador ao lado dos demais seres

racionais, o homem não pode assumir o posto de suprema autoridade. Segundo Kant,

esta última posição somente pode ser ocupada por um ser não submetido a nenhuma

outra vontade, nem de modo absoluto, nem de modo relativo e recíproco, como o

homem, que, ao se submeter à vontade alheia em uma comunidade da qual é membro

legislador, exige que os outros também se submetam à sua. Ora, essa suprema

autoridade legisladora deve ser perfeita, autosubsistente e, portanto, não sujeita às

limitações que constrangem o homem, ser racional imperfeito. Trata-se, por certo, da

vontade divina:

O ser racional tem de considerar-se sempre como legislador num reino dos fins possível

pela liberdade da vontade, quer seja como membro, que seja como suprema autoridade.

Mas o lugar desta última não pode ele assegurá-lo somente pela máxima da sua

vontade, mas apenas quando seja um ser totalmente independente, sem carências

<Bedürfnisse> e limitação de seu poder adequado à vontade (Gr Ak IV: 434. p. 139).

São, assim, as carências e limitações fundantes da condição moral humana

elementar que desqualifica o homem como suprema autoridade; o ser humano está

sujeito aos demais, inevitavelmente dependente dos outros homens em sua vida prática.

A reciprocidade envolvida em toda ação moral reflete essa dependência fundante, e a

dimensão comunitária e coletiva é reflexo da própria imperfeição do homem. Kant

expressa essa ideia em outro momento ao afirmar que o problema “mais difícil e o que

será resolvido por último pela espécie humana” é o seguinte: “o homem é um animal

que, quando vive entre outros de sua espécie, tem necessidade de um senhor” (Idee Ak

VIII: 23. p. 11). Este “senhor” tem de ser uma “suprema autoridade” que “quebre a

vontade particular do homem” e “o obrigue a obedecer à vontade universalmente válida,

de modo que todos possam ser livres” (idem). Se na constitituição civil jurídica, à qual

se referem as passagens acima, esse problema se torna insolúvel pois o próprio homem,

imperfeito e vicioso, tem de ser tal autoridade suprema, na constituição civil ética, à

qual Kant se refere implicitamente na Religião, a solução é encontrada em Deus, a

vontade perfeita: Ele é o “senhor” e “suprema autoridade” do reino moral, legislador

benevolente e sumamente perfeito, cuja “imagem e semelhança” deve, portanto, ser o

ponto focal dos esforços morais humanos.

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319

Dessa maneira, a exclusão do ser racional imperfeito do posto de suprema

autoridade sugere que Kant equipara a ideia de um reino dos fins presente na

Fundamentação a um reino de Deus na Terra371. Contudo, isso significa que devamos

concluir daqui a heteronomia deste ser racional no interior de um reino dos fins? Pelo

contrário, como mostramos no 5º capítulo, a ideia de vontade perfeita, soberana e

infinita, não redunda na hipóstase de um ser sumamente poderoso como fonte da

obrigatoriedade da lei, mas, antes, trata-se de um arquétipo para a vontade humana

imperfeita, ponto de acabamento de uma moral pura contida na própria lei moral que

rege a vida prática do homem. Segundo a noção kantiana de virtude, esse arquétipo

serve como ponto de fuga de todo aperfeiçoamento moral humano em seu embate com o

“princípio mau” de sua natureza. Tal luta não pode, no entanto, ser solitária. Em meio

aos outros homens da comunidade ética, a ideia de Deus tem função de um ideal visado

por todos que apenas pode ser atingido no esforço coletivo empreendido. Caso bem

sucedido, a autonomia se realizaria de forma plena e acabada. Os fins dos homens, não

mais motivados por impulsos sensíveis, seriam harmonizados e se tornariam coletivos,

compartilhados, permanecendo, no entanto, singulares, individuais, frutos ambíguos de

uma liberdade enfim concretizada e purificada. Algo impossível? Sem dúvida. Porém,

pensável.

371 Cf. Sala, G. “Das Reich Gottes auf Erden. Kants Lehre von der Kirche als ‘ethischem gemeinem Wesen’”. Op. cit. 233.

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320

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321

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos mostrar neste trabalho que a Metafísica dos Costumes pode muito

bem ser considerada um esforço exemplar de aplicação do princípio supremo da moral,

o princípio da autonomia, à dimensão ética e jurídica em que tem lugar a ação humana

efetiva. De acordo com a posição sistemática ocupada por uma Metafísica dos Costumes

no interior da arquitetônica da razão prática, a inicial abstração de uma lei moral válida

a todos os seres racionais encontra aqui um âmbito concreto no qual cobra sentido e

significado: o homem é autônomo somente em meio a outros homens, no interior da

comunidade do gênero humano onde trava relações jurídicas e éticas com os demais.

Numa perspectiva sistemática interna ao progresso do pensamento kantiano em filosofia

moral, é perceptível que o esforço empreendido em “purificar” a razão obtém um

princípio moral independente das características humanas específicas, mas que, não

obstante, pode e deve ser aplicado ao homem. A universalidade do princípio não pode

ser decorrência de um procedimento indutivo a partir do comportamento efetivo dos

homens; pelo contrário, é fruto da própria atividade prática da razão, que assegura

normatividade às ações humanas em todo seu conjunto. Nesse sentido, embora resultado

de um procedimento puramente “individual” ou “subjetivo”, o princípio da autonomia

desvela, em sua aplicação, uma dimensão social da moral humana constitutiva para a

filosofia prática de Kant.

A ideia acima se opõe a uma modalidade de interpretação da filosofia moral

kantiana que reconhece nesta um “subjetivismo” incontornável, o que, segundo estes

intérpretes, implica que a realização completa da moral para Kant seja possível apenas

em uma dimensão individual. John Rawls, por exemplo, acusa Kant de ter formulado

uma concepção “individualista” de autonomia, baseada em um fato da razão dado

apenas à consciência individual, portanto incomunicável e não compartilhável, fazendo

com que se perca a dimensão social que teria sido resgatada por sua teoria da justiça

como equidade:

Kant procede do caso particular, e mesmo pessoal, da vida ordinária; ele tomou por

certo que esse processo, caso levado a cabo corretamente, produziria eventualmente um

sistema coerente e suficientemente completo de princípios, incluindo princípios de

justiça social. A justiça como equidade move-se na direção diametralmente inversa: sua

construção começa de um acordo coletivo unânime regulando a estrutura básica da

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322

sociedade no interior da qual todas as decisões de pessoas e associações devem ser

feitas em conformidade com esse empreendimento anterior372

Dessa maneira, por visar de saída o todo da sociedade ao invés de sujeitos

particulares, a justiça como equidade enseja uma publicidade plena dos princípios que

devem regular o conjunto dos cidadãos e que, por este mesmo motivo, surgem das

próprias instituições políticas e sociais que formam a cultura pública dessa sociedade.

Segundo Rawls, “a realização da condição da publicidade plena fornece o meio social

no interior do qual a noção de plena autonomia pode ser entendida e no interior do qual

sua ideia de pessoa pode provocar um efetivo desejo [dos particulares] de quererem

tornar-se esta pessoa”373. Em Kant faltaria esse requisito de plena publicidade, resultado

do tom individual e pessoal que marca o ponto de partida de sua teoria moral; a efetiva

autonomia kantiana apenas se daria no fato da razão, isto é, “no reconhecimento de que

a lei moral detém autoridade suprema para nós como seres racionais e razoáveis. Dessa

maneira, essa concepção de nós mesmos está implícita na consciência moral individual,

e as condições sociais de fundo para sua realização não são enfatizadas ou mesmo

tornam-se parte da doutrina moral mesma”374.

Na mesma esteira de Rawls, Thomas Pogge reduz a realização da moralidade em

Kant a uma perspectiva individual, reconduzindo a um longínquo segundo plano a

dimensão social de condições de possibilidade da autonomia humana:

Kant, na Fundamentação e na Crítica da Razão Prática, não está interessado em um

reino dos fins como um mundo social real que deve ser realizado, mas o utiliza apenas

como um quadro vivo a fim de assegurar uma estrutura unívoca para a vontade do ator

individual. O interesse de Kant dirige-se à busca do ator individual pela moral perfeita

(...). Mesmo que seja visto como um objetivo concreto, o reino dos fins não é uma

utopia política altamente desenvolvida, mas um mundo social exatamente como o nosso

(...). É possível aproximar-se dele pelo aperfeiçoamento moral dos indivíduos375

372 Rawls, J “Kantian Constructivism in Moral Theory”. In: Rawls, J; Freeman, S (org). Collected Papers. Cambridge: Harvard University Press, 2001. p. 339. 373 Idem. p. 340. 374 Idem. Ib. 375 Pogge, T. “The Categorical Imperative”. In: Höffe, O. (ed). Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1989, p. 192. Apud Nour, S. À Paz Perpétua de Kant. Filosofia do direito internacional e das relações internacionais. Op. cit. p. 60. Soraya Nour insiste também na dimensão social da moral kantiana exemplificada pelo recurso à ideia de um reino dos fins: “Kant (...) apresenta com o conceito do reino dos fins o modelo de um mundo a ser realizado como bem comum não por indivíduos isolados, mas sistematicamente unidos em uma totalidade, sem no entanto oprimir o indivíduo e seu fim particular” (idem. Ib).

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323

Ora, após nossa reconstrução do projeto de uma Metafísica dos Costumes fica

claro que esses comentadores perdem de vista a exigência kantiana – levantada mesmo

segundo uma perspectiva sistemática, interna à arquitetônica da razão prática – de que a

“busca do ator individual pela moral perfeita” e o “aperfeiçoamento moral dos

indivíduos” devam ocorrer no interior de uma dimensão social, seja na comunidade

jurídica cosmopolita, seja na comunidade ética cosmopolita. O princípio de autonomia e

o reino dos fins somente ganham sentido humano enquanto princípio de autonomia

interna e externa e reino jurídico e ético dos fins.

No entanto, não podemos deixar de mencionar as aporias a que chegamos em

nossa análise. Por um lado, a autonomia apenas pode ser realizada em uma perspectiva

jurídica e ética; por outro, contudo, o estágio autônomo pleno é obtido como o ponto

focal projetado por ideias irrealizáveis na prática: no direito, uma paz perpétua entre os

Estados e os povos numa comunidade jurídica cosmopolita, e na virtude, uma paz

perpétua entre razão e sensibilidade numa comunidade ética do gênero humano

entendida como o reino de Deus na Terra. A liberdade externa e a liberdade interna

encontram sua efetivação plena somente sob condições ideais, inalcançáveis para o

homem. Com efeito, há aqui uma dificuldade ausente na Metafísica da Natureza:

concebendo o homem como um ser racional que age no mundo, a Metafísica dos

Costumes herda a impossibilidade sistemática de “lançar-se uma ponte entre o domínio

da liberdade e o domínio da natureza” (KU Ak V: 195. p. 39), sujeitos a duas

legislações distintas e a princípio inconciliáveis. Ao mesmo tempo, entretanto, a ação

humana livre no mundo produz, através dos fins visados, efeitos sensíveis de uma

causalidade por liberdade; ora, o próprio dever categórico nos força a pressupor a

possibilidade de realização de um “fim moral terminal” <moralischer Endzweck> (UdG

Ak VIII: 279. p. 66) por meio de nosso agir. Trata-se do efeito final da liberdade no

mundo:

O efeito segundo o conceito de liberdade é o fim terminal; o qual (ou a sua

manifestação no mundo dos sentidos) deve existir, para o que se pressupõe a condição

de possibilidade do mesmo na natureza (do sujeito como ser sensível, isto é, como ser

humano) (KU Ak V: 195-196. pp. 39-40).

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324

São conhecidas as dificuldades em determinar na obra de Kant o que seria este

fim terminal, no qual há a clara referência ao Sumo Bem, discutido, entre outros

momentos, nas três Críticas (KrV A 806-819/ B 834-847. pp. 640-649; KpV Ak V: 107-

132, pp. 175-212; KU Ak V: 442-459. pp. 282-299; Ak V: 469-485. pp. 308-325). A

relação entre o progresso jurídico e a moralização do homem, a necessidade dos

postulados da razão prática, a pressuposição pela faculdade de julgar de uma

conformidade a fins na natureza; todos estes são reflexos da tentativa de dissipar uma

dificuldade de fundo: a ação humana livre busca, inutilmente, erguer uma passagem por

sobre o “grande abismo” que separa o suprassensível, a sede da liberdade, e o sensível,

o mundo dos fenômenos no qual o homem intenta realizar o que lhe exigem as leis

morais (KU Ak V: 195. p. 39). Acreditamos que esta tensão fundante da filosofia

kantiana se reproduz na Metafísica dos Costumes: a exigida e, ao mesmo tempo,

malograda realização da autonomia jurídica e ética no interior de uma comunidade

cosmopolita, é projetada como uma ideia para cuja concretização as forças humanas não

bastam. Sem pretender aprofundar o vínculo entre o que foi exposto nesta dissertação e

a temática do Sumo Bem e do fim terminal, notemos apenas a dificuldade da grande

tarefa moral proposta por Kant: o dever de realizar no mundo o “sistema da liberdade”

exige conceber o homem “segundo uma analogia com a divindade” (UdG Ak VIII: 279.

p. 66), como, talvez, um trágico Prometeu, detentor de uma ambivalente “arte divina” e

responsável por um empreendimendo ao qual sua razão o exorta ao mesmo tempo em

que lhe desvela quão vão é tal esforço:

Se a habilidade <Fertigkeit> do arbítrio segundo leis da liberdade – em contraposição à

natureza – devesse chamar-se aqui também arte, teria que por tal entender-se uma arte

que tornasse possível um sistema da liberdade, semelhante a um sistema da natureza;

uma arte certamente divina, na verdade, se estivesse em condições de realizar

plenamente por meio da razão aquilo que a razão nos prescreve e pôr em obra a sua

ideia (MS Ak VI: 218. p. 25. Grifos nossos).

O princípio de autonomia da vontade, forjado através do recurso a uma razão

perfeita e soberana, é irrealizável para o homem situado no mundo sensível. No entanto,

o diagnóstico kantiano não pode adotar um tom meramente resignado: os ideais

normativos da paz perpétua no direito e na virtude devem servir como princípios

condutores das reformas políticas e morais empreendidas pelo conjunto unido de seres

racionais finitos que se sabem imperfeitos. Aqui, decerto, surge o papel da história, da

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325

educação, da religião – em uma palavra, a antropologia moral, pragmática, filosófica ou

qualquer outra designação que se lhe queira dar, cuja função é “traduzir” em ações

concretas os ideais jurídicos e éticos forjados sob a perspectiva metafísica. Entretanto, a

certeza de que tal esforço de passagem “derradeira” e “terminal” é, ao mesmo tempo,

necessário e impossível, fica a cargo da própria crítica da razão, que desvela as

insuficiências e limitações de um ser incontornavelmente sensível e racional.

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