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A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida Luís Roberto Barroso * Letícia de Campos Velho Martel ** I. Introdução “E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, E que o poente é belo e é bela a noite que fica. Assim é e assim seja”. Fernando Pessoa, O guardador de rebanhos Um indivíduo não tem poder sobre o início da própria vida. Sua concepção e seu nascimento são frutos da vontade alheia. É o nascimento com vida que marca o início da condição humana efetiva, com a aquisição de personalidade jurídica e da aptidão para ter direitos e obrigações 1 . O direito à vida constitui o primeiro direito de qualquer pessoa, sendo tutelado em atos internacionais, na Constituição e no direito infraconstitucional. Ao lado do direito fundamental à vida, o Direito contemporâneo – também em atos internacionais e domésticos – tutela, igualmente, a dignidade da pessoa humana. O direito de todos e de cada um a uma vida digna é a grande causa da humanidade, a principal energia que move o processo civilizatório. Um indivíduo tem poder sobre o fim da própria vida. A inevitabilidade da morte, que é inerente à condição humana, não interfere com a capacidade de alguém pretender antecipá-la. A legitimidade ou não dessa escolha envolve um universo de questões religiosas, morais e jurídicas. Existe um direito à morte, no tempo certo, a juízo do indivíduo? A ideia de dignidade humana, que acompanha a pessoa ao longo de toda sua vida, também pode ser determinante da hora da sua morte? Assim como há direito a uma vida digna, existiria direito a uma morte * Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor Visitante da Universidade de Brasília – UnB. Doutor e Livre-Docente pela UERJ. Mestre em Direito pela Yale Law School. Diretor-Geral da Revista de Direito do Estado. ** Doutoranda em Direito Público na UERJ. Mestra em Instituições Jurídico-Políticas pela UFSC. Professora licenciada da Universidade do Extremo Sul Catarinense e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Direitos Humanos e Cidadania (NUPEC/UNESC). Pós-Graduanda em Estudios Superiores en Bioética FLACSO/Argentina. 1 Note-se, no entanto, que a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (Código Civil, art. 2º).

A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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Page 1: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

A morte como ela eacute dignidade e autonomia individual no final da vida

Luiacutes Roberto Barroso

Letiacutecia de Campos Velho Martel

I Introduccedilatildeo

ldquoE quando se vai morrer lembrar-se de que o dia morre

E que o poente eacute belo e eacute bela a noite que fica

Assim eacute e assim sejardquo

Fernando Pessoa O guardador de rebanhos

Um indiviacuteduo natildeo tem poder sobre o iniacutecio da proacutepria vida Sua

concepccedilatildeo e seu nascimento satildeo frutos da vontade alheia Eacute o nascimento com vida que

marca o iniacutecio da condiccedilatildeo humana efetiva com a aquisiccedilatildeo de personalidade juriacutedica e

da aptidatildeo para ter direitos e obrigaccedilotildees1 O direito agrave vida constitui o primeiro direito de

qualquer pessoa sendo tutelado em atos internacionais na Constituiccedilatildeo e no direito

infraconstitucional Ao lado do direito fundamental agrave vida o Direito contemporacircneo ndash

tambeacutem em atos internacionais e domeacutesticos ndash tutela igualmente a dignidade da pessoa

humana O direito de todos e de cada um a uma vida digna eacute a grande causa da

humanidade a principal energia que move o processo civilizatoacuterio

Um indiviacuteduo tem poder sobre o fim da proacutepria vida A

inevitabilidade da morte que eacute inerente agrave condiccedilatildeo humana natildeo interfere com a

capacidade de algueacutem pretender antecipaacute-la A legitimidade ou natildeo dessa escolha

envolve um universo de questotildees religiosas morais e juriacutedicas Existe um direito agrave

morte no tempo certo a juiacutezo do indiviacuteduo A ideia de dignidade humana que

acompanha a pessoa ao longo de toda sua vida tambeacutem pode ser determinante da hora

da sua morte Assim como haacute direito a uma vida digna existiria direito a uma morte

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ndash UERJ Professor Visitante da Universidade de Brasiacutelia ndash UnB Doutor e Livre-Docente pela UERJ Mestre em Direito pela Yale Law School Diretor-Geral da Revista de Direito do Estado Doutoranda em Direito Puacuteblico na UERJ Mestra em Instituiccedilotildees Juriacutedico-Poliacuteticas pela UFSC Professora licenciada da Universidade do Extremo Sul Catarinense e pesquisadora do Nuacutecleo de Pesquisas em Direitos Humanos e Cidadania (NUPECUNESC) Poacutes-Graduanda em Estudios Superiores en Bioeacutetica FLACSOArgentina 1 Note-se no entanto que a lei potildee a salvo desde a concepccedilatildeo os direitos do nascituro (Coacutedigo Civil art 2ordm)

2

digna O estudo que se segue procura enfrentar essas questotildees que tecircm desafiado a

Eacutetica e o Direito pelos seacuteculos afora

A finitude da vida e a vulnerabilidade do corpo e da mente satildeo

signos da nossa humanidade o destino comum que iguala a todos Representam a um

soacute tempo misteacuterio e desafio Misteacuterio pela incapacidade humana de compreender em

plenitude o processo da existecircncia Desafio pela ambiccedilatildeo permanente de domar a morte

e prolongar a sobrevivecircncia A ciecircncia e a medicina expandiram os limites da vida em

todo o mundo Poreacutem o humano estaacute para a morte A mortalidade natildeo tem cura Eacute

nessa confluecircncia entre a vida e a morte entre o conhecimento e o desconhecido que se

originam muitos dos medos contemporacircneos Antes temiam-se as doenccedilas e a morte

Hoje temem-se tambeacutem o prolongamento da vida em agonia a morte adiada

atrasada mais sofrida O poder humano sobre Tanatos2

As reflexotildees aqui desenvolvidas tecircm por objeto o processo de

terminalidade da vida inclusive e notadamente em situaccedilotildees nas quais os avanccedilos da

ciecircncia e da tecnologia podem produzir impactos adversos Seu principal propoacutesito eacute

estudar a morte com intervenccedilatildeo agrave luz da dignidade da pessoa humana com vistas a

estabelecer alguns padrotildees baacutesicos para as poliacuteticas puacuteblicas brasileiras sobre a mateacuteria

Para tanto investe-se um esforccedilo inicial na uniformizaccedilatildeo da terminologia utilizada em

relaccedilatildeo agrave morte com intervenccedilatildeo Na sequecircncia procura-se produzir uma densificaccedilatildeo

semacircntica do conceito de dignidade da pessoa humana Por fim satildeo apresentados e

debatidos alguns procedimentos destinados a promover a dignidade na morte

alternativos agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido

As ideias aqui desenvolvidas como se veraacute valorizam a autonomia

individual como expressatildeo da dignidade da pessoa humana e procuram justificar as

escolhas esclarecidas feitas pelas pessoas Nada obstante isso a morte com intervenccedilatildeo

no presente trabalho natildeo foi confinada a um debate acerca da permissatildeo ou proibiccedilatildeo da

eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido O refinamento da discussatildeo permite que se busque

consenso em torno de alternativas moralmente menos complexas antes de se avanccedilar

2 Na mitologia grega Tanatos era o Deus da morte citado por Euriacutepedes na trageacutedia Alceste V SCHMIDT Joecircl Dicionaacuterio de mitologia Greco-romana Lisboa Ediccedilotildees 70 1994 p 250 Em trabalho claacutessico publicado em 1920 Sigmund Freud procura demonstrar a existecircncia de dois instintos opostos existentes no ser humano um de preservaccedilatildeo ligado ao prazer (Eros) e outro de destruiccedilatildeo de ausecircncia de energia de morte (Tanatos) V FREUD Sigmund Beyond the pleasure-principle In RICKMAN John A general selection from the works of Sigmund Freud N York Doubleday 1989

3

para o espaccedilo das escolhas excludentes O fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo da vida pode

transformar a morte em um processo longo e sofrido A preocupaccedilatildeo que moveu os

autores foi a de investigar possibilidades compatiacuteveis com o ordenamento juriacutedico

brasileiro capazes de tornar o processo de morrer mais humano Isso envolve minimizar

a dor e em certos casos permitir que o desfecho natildeo seja inutilmente prorrogado Ainda

um uacuteltimo registro introdutoacuterio as consideraccedilotildees sobre a morte com intervenccedilatildeo aqui

lanccediladas referem-se tatildeo-somente aos casos de pessoas em estado terminal ou em

estado vegetativo persistente

II Morte com intervenccedilatildeo os conceitos essenciais3

Nos uacuteltimos anos os estudiosos da bioeacutetica tecircm procurado realizar

uma determinaccedilatildeo leacutexica de alguns conceitos relacionados ao final da vida Muitos

fenocircmenos que eram englobados sob uma mesma denominaccedilatildeo passam a ser

identificados como categorias especiacuteficas Este esforccedilo de limpeza conceitual deveu-se agrave

necessidade de enfrentar a intensa polissemia na mateacuteria que aumentava pela incerteza

da linguagem as dificuldades inerentes a um debate jaacute em si complexo Como intuitivo

facilita a racionalidade da circulaccedilatildeo de ideias que se faccedila a distinccedilatildeo entre situaccedilotildees que

guardam entre si variaccedilotildees faacuteticas e eacuteticas importantes Em certos casos as distinccedilotildees

satildeo totalmente niacutetidas em outros bastante sutis Ainda assim eacute conveniente identificar

analiticamente as seguintes categorias operacionais a) eutanaacutesia b) ortotanaacutesia c)

distanaacutesia d) tratamento fuacutetil e obstinaccedilatildeo terapecircutica e) cuidado paliativo f) recusa

de tratamento meacutedico e limitaccedilatildeo consentida de tratamento g) retirada de suporte vital

(RSV) e natildeo-oferta de suporte vital (NSV) h) ordem de natildeo-ressuscitaccedilatildeo ou de natildeo-

reanimaccedilatildeo (ONR) e i) suiciacutedio assistido4 Algumas dessas categorias como se veraacute satildeo

espeacutecies em relaccedilatildeo ao gecircnero

3 Os conceitos aqui apresentados satildeo com sutis alteraccedilotildees e revisotildees os expostos em MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento cuidado paliativo eutanaacutesia e suiciacutedio assistido elementos para um diaacutelogo sobre os reflexos juriacutedicos da categorizaccedilatildeo In BARROSO Luiacutes Roberto A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 p 369-432 4 Utiliza-se aqui o marco teoacuterico hegemocircnico da bioeacutetica identificado como o principialismo proposto por Beauchamp e Childress a partir das noccedilotildees de obrigaccedilotildees prima facie de Ross Segundo Florecircncia Luna e Arleen L F Salles o principialismo situa-se na primeira onda de reflexatildeo sobre a bioeacutetica assim como os estudos kantianos e o utilitarismo Aleacutem dos marcos teoacutericos da primeira onda haacute os da segunda que apresentam diversos enfoques para o exame dos problemas morais complexos que exsurgem no cenaacuterio da bioeacutetica como a eacutetica da virtude o comunitarismo o feminismo e a casuiacutestica LUNA Florecircncia SALLES Arleen L F Bioeacutetica Nuevas reflexiones sobre debates claacutesicos Meacutexico DF Fondo de Cultura Econoacutemica 2008

4

O termo eutanaacutesia foi utilizado por longo tempo de forma geneacuterica

e ampla abrangendo condutas comissivas e omissivas em pacientes que se encontravam

em situaccedilotildees muito dessemelhantes Atualmente o conceito eacute confinado a uma acepccedilatildeo

bastante estreita que compreende apenas a forma ativa aplicada por meacutedicos a doentes

terminais cuja morte eacute inevitaacutevel em um curto lapso5 Compreende-se que a eutanaacutesia eacute

a accedilatildeo meacutedica intencional de apressar ou provocar a morte ndash com exclusiva finalidade

benevolente ndash de pessoa que se encontre em situaccedilatildeo considerada irreversiacutevel e

incuraacutevel consoante os padrotildees meacutedicos vigentes e que padeccedila de intensos sofrimentos

fiacutesicos e psiacutequicos Do conceito estatildeo excluiacutedas a assim chamada eutanaacutesia passiva eis

que ocasionada por omissatildeo bem como a indireta ocasionada por accedilatildeo desprovida da

intenccedilatildeo de provocar a morte Natildeo se confunde tampouco com o homiciacutedio piedoso

conceito mais amplo que conteacutem o de eutanaacutesia De acordo com o consentimento ou natildeo

daquele que padece a eutanaacutesia pode ser voluntaacuteria natildeo-voluntaacuteria e involuntaacuteria6

Por distanaacutesia compreende-se a tentativa de retardar a morte o

maacuteximo possiacutevel empregando para isso todos os meios meacutedicos disponiacuteveis ordinaacuterios

e extraordinaacuterios ao alcance proporcionais ou natildeo mesmo que isso signifique causar

dores e padecimentos a uma pessoa cuja morte eacute iminente e inevitaacutevel7 Em outras

palavras eacute um prolongamento artificial da vida do paciente sem chance de cura ou de

recuperaccedilatildeo da sauacutede segundo o estado da arte da ciecircncia da sauacutede mediante conduta

na qual ldquonatildeo se prolonga a vida propriamente dita mas o processo de morrerrdquo8 A

obstinaccedilatildeo terapecircutica e o tratamento fuacutetil estatildeo associados agrave distanaacutesia Alguns autores

5 Sobre a elaboraccedilatildeo discussatildeo e criacutetica dos conceitos ver PESSINI Leo Distanaacutesia ateacute quando prolongar a vida Satildeo Paulo Editora do Centro Universitaacuterio Satildeo Camilo Loyola 2001 (Coleccedilatildeo Bioeacutetica em Perspectiva 2) MARTIN Leonard M Eutanaacutesia e distanaacutesia In GARRAFA Volnei (Org) Iniciaccedilatildeo agrave bioeacutetica Brasiacutelia CFM p171-192 SIQUEIRA-BATISTA Rodrigo SCHRAMM Fermin Roland Eutanaacutesia pelas veredas da morte e da autonomia Ciecircncia e sauacutede coletiva v9 n1 p33 e s 2004 McCONNELL Terrance Inalienable rights the limits of consent in medicine and the law Oxford Oxford University 2000 p88 RIBEIRO Diaulas Costa Autonomia viver a proacutepria vida e morrer a proacutepria morte Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22 n8 p 1749-1754 ago 2006 Para relevantes visotildees criacuteticas COHEN-ALMAGOR Raphael Language and reality in the end-of-life The Journal of law medicine amp ethics Vol 283 Fall 2000 p267-278 BROCK Dan W Life and death philosophical essays in biomedical ethics Cambridge Cambridge University Press 2000 p169-172 6 Diz-se que eacute voluntaacuteria quando haacute expresso e informado consentimento natildeo-voluntaacuteria quando se realiza sem o conhecimento da vontade do paciente e involuntaacuteria quando eacute realizada contra a vontade do paciente No que toca agrave eutanaacutesia involuntaacuteria haacute um relevante e adequado consenso juriacutedico quanto ao seu caraacuteter criminoso Os casos mais comuns da eutanaacutesia natildeo-voluntaacuteria satildeo os que envolvem pacientes incapazes Sobre esse uacuteltimo ponto v McCONNELL Terrance Op cit p89 7 Este conceito foi extraiacutedo do voto do magistrado colombiano Vladimiro Naranjo Mesa com leves alteraccedilotildees em seu texto COLOMBIA Sentencia C-23997 Disponiacutevel em httpwebminjusticisgovcojusrisprudencia Uacuteltimo acesso em ago2005 Sobre a distanaacutesia eacute muito relevante consultar PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit 8 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p30

5

tratam-nos inclusive como sinocircnimos A primeira consiste no comportamento meacutedico de

combater a morte de todas as formas como se fosse possiacutevel curaacute-la em ldquouma luta

desenfreada e (ir)racionalrdquo9 sem que se tenha em conta os padecimentos e os custos

humanos gerados O segundo refere-se ao emprego de teacutecnicas e meacutetodos

extraordinaacuterios e desproporcionais de tratamento incapazes de ensejar a melhora ou a

cura mas haacutebeis a prolongar a vida ainda que agravando sofrimentos de forma tal que

os benefiacutecios previsiacuteveis satildeo muito inferiores aos danos causados10

Em sentido oposto da distanaacutesia e distinto da eutanaacutesia tem-se a

ortotanaacutesia Trata-se da morte em seu tempo adequado natildeo combatida com os meacutetodos

extraordinaacuterios e desproporcionais utilizados na distanaacutesia nem apressada por accedilatildeo

intencional externa como na eutanaacutesia Eacute uma aceitaccedilatildeo da morte pois permite que ela

siga seu curso Eacute praacutetica ldquosensiacutevel ao processo de humanizaccedilatildeo da morte ao aliacutevio das

dores e natildeo incorre em prolongamentos abusivos com aplicaccedilatildeo de meios

desproporcionados que imporiam sofrimentos adicionaisrdquo11 Indissociaacutevel da ortotanaacutesia

eacute o cuidado paliativo voltado agrave utilizaccedilatildeo de toda a tecnologia possiacutevel para aplacar o

sofrimento fiacutesico e psiacutequico do enfermo12 Evitando meacutetodos extraordinaacuterios e

excepcionais procura-se aliviar o padecimento do doente terminal pelo uso de recursos

apropriados para tratar os sintomas como a dor e a depressatildeo13 O cuidado paliativo

pode envolver o que se denomina duplo efeito em determinados casos o uso de

algumas substacircncias para controlar a dor e a anguacutestia pode aproximar o momento da

morte A diminuiccedilatildeo do tempo de vida eacute um efeito previsiacutevel sem ser desejado pois o

objetivo primaacuterio eacute oferecer o maacuteximo conforto possiacutevel ao paciente sem intenccedilatildeo de

ocasionar o evento morte14

9 SIQUEIRA-BATISTA Rodrigo SCHRAMM Fermin Roland Op cit p33 A expressatildeo cura da morte foi cunhada por Leo Pessini Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p331 e s 10 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit especialmente as paacuteginas 163 e s Ver tambeacutem COHEN-ALMAGOR Raphael Op Cit 11 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p31 12 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p203 e s 13 Este conceito foi extraiacutedo do voto do magistrado colombiano Vladimiro Naranjo Mesa com sutis alteraccedilotildees em seu texto COLOMBIA Sentencia C-23997 Op cit 14 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p213 COLOMBIA Sentencia C-23997 Op cit voto do magistrado Vladimiro Naranjo Mesa QUILL T E et al Palliative treatments of last resort choosing the least harmful alternative Annals of Internal Medicine v132 n6 p488-493 March 2000 Disponiacutevel em wwwannalsorgcgicontent Acesso em jun2006 MORAES E SOUZA Maria Teresa de LEMONICA Lino Paciente terminal e meacutedico capacitado parceria pela qualidade de vida Bioeacutetica Conselho Federal de Medicina v11 n1 p83-100 2003 COHEN-ALMAGOR Raphael Op Cit

6

A recusa de tratamento meacutedico consiste na negativa de iniciar ou de

manter um ou alguns tratamentos meacutedicos Apoacutes o devido processo de informaccedilatildeo o

paciente ndash ou em certos casos seus responsaacuteveis ndash decide se deseja ou natildeo iniciar ou

continuar tratamento meacutedico O processo culmina com a assinatura de um Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)15 A recusa pode ser ampla ou estrita

conforme seja admitida em qualquer circunstacircncia ndash por pacientes que podem recuperar

a sua sauacutede com o tratamento que recusam ndash ou em situaccedilotildees bem determinadas de

impossibilidade de recuperaccedilatildeo da sauacutede com a intervenccedilatildeo A uacuteltima hipoacutetese referida

por alguns como limitaccedilatildeo consentida de tratamento (ou tambeacutem suspensatildeo de esforccedilo

terapecircutico) possui laccedilos com a ortotanaacutesia A recusa ampla eacute ainda alvo de muitos

debates ao passo que existe certo consenso no marco teoacuterico hegemocircnico da bioeacutetica

quanto agrave possibilidade de recusa em sentido estrito

A retirada de suporte vital (RSV) a natildeo-oferta de suporte vital

(NSV) e as ordens de natildeo-ressuscitaccedilatildeo ou de natildeo-reanimaccedilatildeo (ONR) satildeo partes

integrantes da limitaccedilatildeo consentida de tratamento A RSV significa a suspensatildeo de

mecanismos artificiais de manutenccedilatildeo da vida como os sistemas de hidrataccedilatildeo e de

nutriccedilatildeo artificiais eou o sistema de ventilaccedilatildeo mecacircnica a NSV por sua vez significa o

natildeo-emprego desses mecanismos A ONR eacute uma determinaccedilatildeo de natildeo iniciar

procedimentos para reanimar um paciente acometido de mal irreversiacutevel e incuraacutevel

quando ocorre parada cardiorrespiratoacuteria16 Nos casos de ortotanaacutesia de cuidado

paliativo e de limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) eacute crucial o consentimento do

paciente ou de seus responsaacuteveis legais pois satildeo condutas que necessitam da

voluntariedade do paciente ou da aceitaccedilatildeo de seus familiares em casos determinados A

decisatildeo deve ser tomada apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo e devidamente

registrada mediante TCLE

15 Sobre o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou consentimento informado ver CLOTET Joaquim GOLDIM Joseacute Roberto (Org) FRANCISCONI Carlos Fernando Consentimento informado e sua praacutetica na assistecircncia e pesquisa no Brasil Porto Alegre EDIPUCRS 2000 MUNtildeOZ Daniel Romero FORTES Paulo Antocircnio Carvalho O princiacutepio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido In GARRAFA Volnei (Org) Iniciaccedilatildeo agrave bioeacutetica Brasiacutelia CFM 1999 p53-70 ENGELHARDT H Tristan Jr Fundamentos da bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2000 p345-440 PESSINI Leo GARRAFA Volnei (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p469 e s (especialmente a parte IV) 16 Cf KIPPER Deacutelio Joseacute Medicina e os cuidados de final da vida uma perspectiva brasileira e latino-americana In PESSINI Leo GARRAFA Volnei (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p413-414 Consultar ainda PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit passim MORAES E SOUZA Maria Teresa de LEMONICA Lino Op cit

7

Por fim suiciacutedio assistido designa a retirada da proacutepria vida com

auxiacutelio ou assistecircncia de terceiro O ato causador da morte eacute de autoria daquele que potildee

termo agrave proacutepria vida O terceiro colabora com o ato quer prestando informaccedilotildees quer

colocando agrave disposiccedilatildeo do paciente os meios e condiccedilotildees necessaacuterias agrave praacutetica O auxiacutelio

e a assistecircncia diferem do induzimento ao suiciacutedio No primeiro a vontade adveacutem do

paciente ao passo que no outro o terceiro age sobre a vontade do sujeito passivo de

modo a interferir com sua liberdade de accedilatildeo As duas formas admitem combinaccedilatildeo isto

eacute haacute possibilidade de uma pessoa ser simultaneamente instigada e assistida em seu

suiciacutedio O suiciacutedio assistido por meacutedico eacute espeacutecie do gecircnero suiciacutedio assistido

O rearranjo conceitual apresentado atinge a antiga distinccedilatildeo entre

as formas ativa e passiva da eutanaacutesia que passaram a receber denominaccedilotildees distintas

O termo eutanaacutesia aplica-se somente agravequela que era conhecida como forma ativa17 A

conduta antes caracterizada como eutanaacutesia passiva ndash e essa eacute uma das teses centrais

do presente estudo ndash jaacute natildeo deve ser necessariamente visualizada como antieacutetica

podendo ser expressatildeo da autonomia do paciente merecedora de respeito por parte da

equipe de sauacutede No mesmo ensejo a distinccedilatildeo entre a eutanaacutesia e a distanaacutesia permite

concluir que medidas excessivas e desproporcionais (na relaccedilatildeo benefiacutecioprejuiacutezo agrave

sauacutede e agrave qualidade de vida do enfermo) natildeo devem ser empregadas agrave revelia da

vontade do paciente nem tampouco correspondem agrave boa teacutecnica caso natildeo desejadas

pelo doente seus cuidadores ou seus responsaacuteveis legais

III O descompasso entre a interpretaccedilatildeo dominante do direito vigente e a eacutetica

meacutedica

A legislaccedilatildeo penal brasileira natildeo extrai consequecircncias juriacutedicas

significativas das categorizaccedilotildees mencionadas no toacutepico anterior salvo o suiciacutedio

assistido Assim sendo tanto a eutanaacutesia quanto a ortotanaacutesia ndash aiacute compreendida a

limitaccedilatildeo do tratamento ndash constituiriam hipoacuteteses de homiciacutedio18 No primeiro caso na

modalidade comissiva e no segundo na omissiva O auxiacutelio ao suiciacutedio eacute tratado em tipo

17 Para uma visatildeo da categorizaccedilatildeo anterior do tema com a distinccedilatildeo entre eutanaacutesia ativa e passiva aleacutem dos autores jaacute referidos na nota 3 v tb TOOLEY Michael Euthanasia and assisted suicide In FREY RG e WELLMAN Christopher Heath A companion to applied ethics Malden Blackwell 2007 p 326-341 18 Coacutedigo Penal art 121 ldquoMatar algueacutem Pena ndash reclusatildeo de 6 (seis) meses a 20 (vinte) anosrdquo

8

penal proacuteprio19 Nessa interpretaccedilatildeo que corresponde ao conhecimento convencional na

mateacuteria a decisatildeo do paciente ou de sua famiacutelia de descontinuar um tratamento meacutedico

desproporcional extraordinaacuterio ou fuacutetil natildeo alteraria o caraacuteter criminoso da conduta A

existecircncia de consentimento natildeo produziria o efeito juriacutedico de salvaguardar o meacutedico de

uma persecuccedilatildeo penal Em suma natildeo haveria distinccedilatildeo entre o ato de natildeo tratar um

enfermo terminal segundo a sua proacutepria vontade e o ato de intencionalmente abreviar-

lhe a vida tambeacutem a seu pedido 20

Essa postura legislativa e doutrinaacuteria pode produzir consequecircncias

graves pois ao oferecer o mesmo tratamento juriacutedico para situaccedilotildees distintas o

paradigma legal reforccedila condutas de obstinaccedilatildeo terapecircutica e acaba por promover a

distanaacutesia Com isso endossa um modelo meacutedico paternalista que se funda na

autoridade do profissional da medicina sobre o paciente e descaracteriza a condiccedilatildeo de

sujeito do enfermo Ainda que os meacutedicos natildeo mais estejam vinculados eticamente a

esse modelo superado de relaccedilatildeo o espectro da sanccedilatildeo pode levaacute-los a adotaacute-lo Natildeo

apenas manteratildeo ou iniciaratildeo um tratamento indesejado gerador de muita agonia e

padecimento como por vezes adotaratildeo algum natildeo recomendado pela boa teacutecnica por

sua desproporcionalidade A arte de curar e de evitar o sofrimento se transmuda entatildeo

no ofiacutecio mais rude de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condiccedilotildees Natildeo

eacute apenas a autonomia do paciente que eacute agredida A liberdade de consciecircncia do

profissional da sauacutede pode tambeacutem estar em xeque21

19 Coacutedigo Penal art 122 ldquoInduzir ou instigar algueacutem a suicidar-se ou prestar-lhe auxiacutelio para que o faccedila Pena ndash reclusatildeo de 2 (dois) a 6 (seis) anos se o suiciacutedio se consuma ou reclusatildeo de 1 (um) a 3 (trecircs) anos se da tentativa de suiciacutedio resulta lesatildeo corporal de natureza graverdquo 20 Pelo conhecimento convencional no Brasil ambas as condutas seriam consideradas homiciacutedio o qual caso viesse a ser reconhecido pelo juacuteri poderia contar com uma causa especial de diminuiccedilatildeo de pena (privileacutegio) V MIRABETE Juacutelio Fabbrini Coacutedigo Penal Interpretado 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2003 E tambeacutem CAPEZ Fernando Curso de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p34 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p58 Sobre as privilegiadoras e qualificadoras SANTOS Juarez Cirino A moderna teoria do fato puniacutevel 4 ed rev e ampl Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 DODGE Raquel Elias Ferreira Eutanaacutesia aspectos juriacutedicos Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevista bio1v7eutaspectoshtm Acesso em maio 2006 BRASIL Ministeacuterio Puacuteblico Federal -1a Reg Recomendaccedilatildeo 012006 - WD - PRDC Disponiacutevel em wwwprdfmpfgovbrprdclegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em 25 nov 2006 21 Quanto ao cuidado paliativo de duplo efeito a situaccedilatildeo eacute ainda pior por razotildees notoacuterias Se um meacutedico for autorizado pelo enfermo a lanccedilar matildeo dessa teacutecnica poderaacute abreviar seu tempo de vida Se o mundo juriacutedico natildeo oferecer amparo seguro a essa accedilatildeo o temor de cometer um crime pode ensejar o uso de dosagens medicamentosas menores do que o necessaacuterio para aplacar o imenso sofrimento fiacutesico e psicoloacutegico daqueles que estatildeo no leito de morte

9

A Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 de 9112006 editada pelo

Conselho Federal de Medicina procurou contornar as deficiecircncias e insuficiecircncias de um

Coacutedigo Penal cuja parte especial eacute da deacutecada de 40 do seacuteculo passado Nessa linha

invocando sua funccedilatildeo disciplinadora da classe meacutedica bem como o art 5ordm III da

Constituiccedilatildeo pretendeu dar suporte juriacutedico agrave ortotanaacutesia Sem menccedilatildeo agrave eutanaacutesia e ao

suiciacutedio assistido ndash que continuam a ser considerados pelo Conselho como praacuteticas natildeo-

eacuteticas ndash a Resoluccedilatildeo tratou da limitaccedilatildeo do tratamento e do cuidado paliativo de doentes

em fase terminal nas hipoacuteteses autorizadas por seus parentes ou por seus familiares

Trazendo uma fundamentada Exposiccedilatildeo de Motivos a Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 tem

o conteuacutedo assim resumido em sua Ementa

ldquoNa fase terminal de enfermidades graves e incuraacuteveis eacute permitido

ao meacutedico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que

prolonguem a vida do doente garantindo-lhe os cuidados

necessaacuterios para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento na

perspectiva de uma assistecircncia integral respeitada a vontade do

paciente ou de seu representante legalrdquo

Eacute possiacutevel fazer uma defesa da Resoluccedilatildeo do Conselho Federal de

Medicina quer dentro das categorias do proacuteprio direito penal quer mediante uma leitura

de seu texto agrave luz da Constituiccedilatildeo Por ora no entanto faz-se o registro de que foi ela

suspensa por decisatildeo judicial produzida em accedilatildeo civil puacuteblica movida pelo Ministeacuterio

Puacuteblico Federal perante a Justiccedila Federal de Brasiacutelia Na peticcedilatildeo inicial de 131 paacuteginas o

Procurador da Repuacuteblica que a subscreve colocou-se frontalmente contra o conteuacutedo da

Resoluccedilatildeo Em meio a muitas consideraccedilotildees juriacutedicas morais e metafiacutesicas afirmou ldquoA

ortotanaacutesia natildeo passa de um artifiacutecio homicida expediente desprovido de razotildees loacutegicas

e violador da Constituiccedilatildeo Federal mero desejo de dar ao homem pelo proacuteprio homem

a possibilidade de uma decisatildeo que nunca lhe pertenceurdquo 22 Na decisatildeo que acolheu o

pedido de antecipaccedilatildeo de tutela entendeu o juiz de primeiro grau pela existecircncia de

ldquoaparente conflito entre a resoluccedilatildeo questionada e o Coacutedigo Penalrdquo23

22 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpnoticiaspgrmpfgovbrnoticias-do-sitepdfsACP20Ortotanasiapdf Acesso em out2007 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpprdcprdfmpfgovbrlegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em dez2006 23 V inteiro teor da decisatildeo em wwwdftrf1govbr20073400014809-3_decisao_23-10-2007doc

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A decisatildeo marca o encontro no Brasil de dois fenocircmenos do nosso

tempo a medicalizaccedilatildeo24 e a judicializaccedilatildeo25 da vida Ambos potencializados por um

terceiro fenocircmeno a sociedade espetaacuteculo em que os meios de comunicaccedilatildeo

transmitem em tempo real ao vivo e em cores dramas como os de Terri Schiavo

(EUA)26 Hannah Jones (Reino Unido)27 ou Eluana (Itaacutelia)28 O pronunciamento judicial

suspensivo da Resoluccedilatildeo exibe igualmente o descompasso entre ordenamento juriacutedico e

a eacutetica meacutedica E no mundo poacutes-positivista de reaproximaccedilatildeo entre o Direito e a Eacutetica

este eacute um desencontro que deve ser evitado A propoacutesito deve-se registrar que a

orientaccedilatildeo do Conselho Federal de Medicina estaacute em consonacircncia com as da Associaccedilatildeo

Meacutedica Mundial (AMM) as da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura (UNESCO) e as do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos

Humanos (CEDH) 29 E tambeacutem com o tratamento juriacutedico adotado em paiacuteses como

24 A expressatildeo lsquomedicalizaccedilatildeo da vidarsquo foi cunhada e definida em ILLICH Ivan The medicalization of life Journal of Medical Ethics I 1975 p73-77 25 BARROSO Luiacutes Roberto Judicializaccedilatildeo ativismo judicial e legitimidade democraacutetica Revista de Direito do Estado Rio de Janeiro n 13 2009 26 Em decorrecircncia de uma parada cardiacuteaca Terri Schiavo viveu em estado vegetativo ateacute falecer em 2005 Nos uacuteltimos sete anos de sua vida seu marido e representante legal Michael Schiavo vinha pedindo ao Judiciaacuterio dos EUA o desligamento dos tubos que a mantinham viva Para tanto afirmava que antes de entrar em estado vegetativo a mulher havia se manifestado diversas vezes no sentido de que natildeo gostaria de ser mantida viva artificialmente Agrave pretensatildeo do marido se opuseram tanto os proacuteprios pais de Terri quanto diversas autoridades norte-americanas como o Presidente Geoge W Bush A longa controveacutersia juriacutedica envolveu desde a Justiccedila Estadual da Floacuterida ateacute a Justiccedila Federal dos EUA passando pelo Legislativo e pelo Governador do Estado Por sua vez a Suprema Corte dos EUA se recusou a analisar a mateacuteria Terri Schiavo faleceu em 31 de marccedilo de 2005 O resultado de sua autoacutepsia confirmou que nenhum tratamento poderia tecirc-la ajudado a superar os danos neuroloacutegicos que sofreu V Saiba mais sobre o conflito judicial do caso Schiavo Folha Online 29mar2005 Disponiacutevel em lthttpwww1folhauolcombrfolhamundoult94u82068shtmlgt Uacuteltimo acesso 24jun2009 GOODNOUGH Abby Schiavo Autopsy Says Brain Withered Was Untreatable New York Times 16jun2005 Disponiacutevel em lthttpwwwnytimescom20050616national16schiavohtmlgt Acesso em jun2009 27 Aos cinco anos de idade Hannah Jones foi diagnosticada com uma forma rara de leucemia e desde entatildeo sua vida passou a envolver frequentes internaccedilotildees hospitalares Seu tratamento incluiu doses de um forte medicamento contra uma infecccedilatildeo o que acabou causando danos ao seu coraccedilatildeo Sua uacutenica chance de viver longamente viria com um transplante Mas a menina de treze anos recusou o tratamento afirmando que jaacute sofrera traumas demais e natildeo queria passar por novas cirurgias ndash preferia morrer com dignidade Irresignado com a decisatildeo da paciente o hospital foi ao Judiciaacuterio Decidiu-se poreacutem que Hannah era madura o suficiente para decidir por si proacutepria V PERCIVAL Jenny Teenager who won right to die I have had too much trauma Guardiancouk 11nov2008 Disponiacutevel em lthttpwwwguardiancouksociety2008nov11child-protection-health-hannah-jonesgt Acesso em jun2009 28 Eluana Englaro ficou em coma por dezessete anos desde que sofreu um acidente de carro em 1992 Seu caso causou grande comoccedilatildeo na Itaacutelia mobilizando setores ligados agrave Igreja Catoacutelica e gerando uma crise entre o Primeiro-ministro Silvio Berlusconi e o Presidente Giorgio Napolitano Por dez anos o pai da moccedila lutou para garantir o direito de deixaacute-la morrer mas soacute conseguiu em 21 de janeiro de 2009 Ela passou trecircs dias sem receber comida e hidrataccedilatildeo mas uma ldquocriserdquo acabou antecipando sua morte V Morre Eluana a italiana que estava em coma havia 17 anos G1 9fev2009 Disponiacutevel em lthttpg1globocomNoticiasMundo0MUL993961-560200htmlgt Acesso em jun2009 29 a) as Resoluccedilotildees da AMM sobre eutanaacutesia e suiciacutedio assistido consideram tais condutas antieacuteticas mas assumem que eacute direito do paciente recusar tratamento meacutedico ainda que da recusa decorra a morte e que eacute direito do paciente ter respeitada a sua escolha de que o ldquoprocesso natural da morte siga seu curso na fase terminal da doenccedilardquo b) A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO determina que

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Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Espanha Meacutexico Reino Unido Franccedila Itaacutelia Suiacuteccedila

Sueacutecia Beacutelgica Holanda e Uruguai30

Estatildeo em choque aqui dois modelos Um de iacutendole paternalista

que desconsidera a vontade do paciente e de seus familiares privados de fazerem

escolhas morais proacuteprias O outro fundado na deontologia meacutedica valoriza a autonomia

e o diaacutelogo aceitando que a arte de curar se converta em cuidado e amparo Cabe

procurar entender e enfrentar as razotildees do desencontro entre as imposiccedilotildees juriacutedicas e

as exigecircncias eacuteticas O principal argumento contraacuterio a qualquer hipoacutetese de morte com

intervenccedilatildeo decorre da compreensatildeo do direito agrave vida como um direito fundamental

absoluto No Brasil essa valorizaccedilatildeo maacutexima da vida bioloacutegica e do modelo biomeacutedico

intensivista e interventor tem sua origem em algumas doutrinas morais abrangentes

muitas de cunho religioso que penetram na interpretaccedilatildeo juriacutedica Esta visatildeo do mundo

se manifesta em diferentes passagens da accedilatildeo civil puacuteblica acima referida

Ao avanccedilar no debate eacute preciso ter em conta que o direito agrave vida eacute

de fato especial Qualquer flexibilizaccedilatildeo de sua forccedila juriacutedica ou moral eacute delicada e deve

envolver cautelas muacuteltiplas Qualquer desprezo pela vida humana mesmo nas

circunstacircncias mais adversas eacute suspeita Um dos consensos miacutenimos que compotildeem a

ldquoqualquer intervenccedilatildeo meacutedica preventiva diagnoacutestica e terapecircutica soacute deve ser realizada com o consentimento preacutevio livre e esclarecido do indiviacuteduo envolvido baseado em informaccedilatildeo adequada O consentimento deve quando apropriado ser manifesto e poder ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razatildeo sem acarretar desvantagem ou preconceitordquo Para os casos de incapacidade haacute dispositivos especiacuteficos que visam a proteger a parcela de autonomia remanescente e os melhores interesses do envolvido c) O Conselho Europeu posicionou-se favoravelmente agrave implementaccedilatildeo de cuidados paliativos e do respeito dos direitos dos pacientes de recusarem tratamentos fuacuteteis ou extraordinaacuterios O Conselho determinou aos Estados-membros a normatizaccedilatildeo dos testamentos de vida e das diretivas avanccediladas d) ao decidir o caso Pretty a CEDH permitiu entrever que abaliza a limitaccedilatildeo consentida de tratamento em pacientes terminais ou em estado irreversiacutevel muito embora tenha se recusado a aceitar o suiciacutedio assistido Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit PARLIAMENTARY ASSEMBLY Resolution 1649 (2009) Palliative Care a model for innovative health and social policies Disponiacutevel em httpassemblycoeintmainaspLink=documentsadoptedtextta09eres1649htm Uacuteltimo acesso em mar2009 30 a) a Suprema Corte dos Estados Unidos assentou o seu posicionamento nos casos Vacco v Quill e Washington v Glucksberg et al jaacute lastreados em decisotildees anteriores como o caso Cruzan b) a Suprema Corte do Canadaacute reafirmou seu entendimento no tema em Rodriguez v British Columbia c) no Reino Unido satildeo importantes as decisotildees dos casos Airedale NHS Trust v Bland e The Queen on the Application of Mrs Dianne Pretty (Appellant) v Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home Department (Interested Party) d) a Beacutelgica e a Holanda reconhecem natildeo apenas a LCT como tambeacutem a eutanaacutesia eou o suiciacutedio assistido e) a Suiacuteccedila permite o suiciacutedio assistido f) na Espanha as decisotildees de suspensatildeo de suporte vital em pacientes terminais satildeo respeitadas e desde 2000 haacute leis sobre testamentos vitais (Ley Catalana) g) na Franccedila a limitaccedilatildeo consentida de tratamento foi permitida por lei em 2005 Cf MICCINESI Guido et al Physicianrsquos attitudes towards end-of-life decisions a comparison between seven countries Social Science amp Medicine (2005) 1961-1974 COHEN Joachim et al European public acceptance of euthanasia Socio-demographic and cultural factors associated with the acceptance of euthanasia in 33 European countries Social Science amp Medicine 63 (2006) 743-756 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p257 e s

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dignidade humana nas sociedades ocidentais eacute a preservaccedilatildeo da vida como um valor em

si que se atinge naturalmente por sua promoccedilatildeo e proteccedilatildeo rigorosa Com efeito basta

considerar que aleacutem do seu caraacuteter substantivo o direito agrave vida eacute preacute-condiccedilatildeo eacute

instrumento que permite a proacutepria dignidade pois sua negaccedilatildeo leva agrave inexistecircncia do

sujeito da dignidade Diante de tais premissas criminalizar atos que atentem contra a

vida humana tende a ser um meio adequado dentre outros de preservaccedilatildeo da vida e da

dignidade humanas Mas nem mesmo o direito agrave vida eacute absoluto

Eacute precisamente no ambiente da morte com intervenccedilatildeo que cabe

discutir a visatildeo da dignidade que impotildee ao indiviacuteduo a vida como um bem em si Como

intuitivo natildeo se estaacute aqui diante de uma situaccedilatildeo banal temporaacuteria ou reversiacutevel na

qual um indiviacuteduo decide morrer e outros se omitem em evitar ou prestam-lhe auxiacutelio

Justamente ao contraacuterio trata-se de pessoas que em condiccedilotildees nada ordinaacuterias

reclamam a possibilidade de renunciar a intervenccedilotildees meacutedicas de prolongamento da

vida Ou em outros casos de optar pela abreviaccedilatildeo direta da vida por ato proacuteprio ou

alheio por estarem acometidos de doenccedilas terminais extremamente dolorosas ou por

enfermidades degenerativas que conduzem agrave perda paulatina da independecircncia Nessas

situaccedilotildees extremas aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito agrave

vida impedindo que ele se transforme em um insuportaacutevel dever agrave vida Se em uma

infinidade de situaccedilotildees a dignidade eacute o fundamento da valorizaccedilatildeo da vida na morte

com intervenccedilatildeo as motivaccedilotildees se invertem

O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenccedilas para

as quais a medicina desconhece a cura ou a reversatildeo contra a sua vontade ou de seus

responsaacuteveis legais enseja dor sofrimento humilhaccedilatildeo exposiccedilatildeo intrusotildees corporais

indevidas e perda da liberdade Entram em cena entatildeo outros conteuacutedos da proacutepria

dignidade Eacute que a dignidade protege tambeacutem a liberdade e a inviolabilidade do

indiviacuteduo quanto agrave sua desumanizaccedilatildeo e degradaccedilatildeo Eacute nesse passo que se verifica uma

tensatildeo dentro do proacuteprio conceito em busca da determinaccedilatildeo de seu sentido e alcance

diante de situaccedilotildees concretas De um lado a dignidade serviria de impulso para a defesa

da vida e das concepccedilotildees sociais do que seja o bem morrer De outro ela se apresenta

como fundamento da morte com intervenccedilatildeo assegurando a autonomia individual a

superaccedilatildeo do sofrimento e a morte digna31

31 MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002

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Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

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nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

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A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 2: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

2

digna O estudo que se segue procura enfrentar essas questotildees que tecircm desafiado a

Eacutetica e o Direito pelos seacuteculos afora

A finitude da vida e a vulnerabilidade do corpo e da mente satildeo

signos da nossa humanidade o destino comum que iguala a todos Representam a um

soacute tempo misteacuterio e desafio Misteacuterio pela incapacidade humana de compreender em

plenitude o processo da existecircncia Desafio pela ambiccedilatildeo permanente de domar a morte

e prolongar a sobrevivecircncia A ciecircncia e a medicina expandiram os limites da vida em

todo o mundo Poreacutem o humano estaacute para a morte A mortalidade natildeo tem cura Eacute

nessa confluecircncia entre a vida e a morte entre o conhecimento e o desconhecido que se

originam muitos dos medos contemporacircneos Antes temiam-se as doenccedilas e a morte

Hoje temem-se tambeacutem o prolongamento da vida em agonia a morte adiada

atrasada mais sofrida O poder humano sobre Tanatos2

As reflexotildees aqui desenvolvidas tecircm por objeto o processo de

terminalidade da vida inclusive e notadamente em situaccedilotildees nas quais os avanccedilos da

ciecircncia e da tecnologia podem produzir impactos adversos Seu principal propoacutesito eacute

estudar a morte com intervenccedilatildeo agrave luz da dignidade da pessoa humana com vistas a

estabelecer alguns padrotildees baacutesicos para as poliacuteticas puacuteblicas brasileiras sobre a mateacuteria

Para tanto investe-se um esforccedilo inicial na uniformizaccedilatildeo da terminologia utilizada em

relaccedilatildeo agrave morte com intervenccedilatildeo Na sequecircncia procura-se produzir uma densificaccedilatildeo

semacircntica do conceito de dignidade da pessoa humana Por fim satildeo apresentados e

debatidos alguns procedimentos destinados a promover a dignidade na morte

alternativos agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido

As ideias aqui desenvolvidas como se veraacute valorizam a autonomia

individual como expressatildeo da dignidade da pessoa humana e procuram justificar as

escolhas esclarecidas feitas pelas pessoas Nada obstante isso a morte com intervenccedilatildeo

no presente trabalho natildeo foi confinada a um debate acerca da permissatildeo ou proibiccedilatildeo da

eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido O refinamento da discussatildeo permite que se busque

consenso em torno de alternativas moralmente menos complexas antes de se avanccedilar

2 Na mitologia grega Tanatos era o Deus da morte citado por Euriacutepedes na trageacutedia Alceste V SCHMIDT Joecircl Dicionaacuterio de mitologia Greco-romana Lisboa Ediccedilotildees 70 1994 p 250 Em trabalho claacutessico publicado em 1920 Sigmund Freud procura demonstrar a existecircncia de dois instintos opostos existentes no ser humano um de preservaccedilatildeo ligado ao prazer (Eros) e outro de destruiccedilatildeo de ausecircncia de energia de morte (Tanatos) V FREUD Sigmund Beyond the pleasure-principle In RICKMAN John A general selection from the works of Sigmund Freud N York Doubleday 1989

3

para o espaccedilo das escolhas excludentes O fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo da vida pode

transformar a morte em um processo longo e sofrido A preocupaccedilatildeo que moveu os

autores foi a de investigar possibilidades compatiacuteveis com o ordenamento juriacutedico

brasileiro capazes de tornar o processo de morrer mais humano Isso envolve minimizar

a dor e em certos casos permitir que o desfecho natildeo seja inutilmente prorrogado Ainda

um uacuteltimo registro introdutoacuterio as consideraccedilotildees sobre a morte com intervenccedilatildeo aqui

lanccediladas referem-se tatildeo-somente aos casos de pessoas em estado terminal ou em

estado vegetativo persistente

II Morte com intervenccedilatildeo os conceitos essenciais3

Nos uacuteltimos anos os estudiosos da bioeacutetica tecircm procurado realizar

uma determinaccedilatildeo leacutexica de alguns conceitos relacionados ao final da vida Muitos

fenocircmenos que eram englobados sob uma mesma denominaccedilatildeo passam a ser

identificados como categorias especiacuteficas Este esforccedilo de limpeza conceitual deveu-se agrave

necessidade de enfrentar a intensa polissemia na mateacuteria que aumentava pela incerteza

da linguagem as dificuldades inerentes a um debate jaacute em si complexo Como intuitivo

facilita a racionalidade da circulaccedilatildeo de ideias que se faccedila a distinccedilatildeo entre situaccedilotildees que

guardam entre si variaccedilotildees faacuteticas e eacuteticas importantes Em certos casos as distinccedilotildees

satildeo totalmente niacutetidas em outros bastante sutis Ainda assim eacute conveniente identificar

analiticamente as seguintes categorias operacionais a) eutanaacutesia b) ortotanaacutesia c)

distanaacutesia d) tratamento fuacutetil e obstinaccedilatildeo terapecircutica e) cuidado paliativo f) recusa

de tratamento meacutedico e limitaccedilatildeo consentida de tratamento g) retirada de suporte vital

(RSV) e natildeo-oferta de suporte vital (NSV) h) ordem de natildeo-ressuscitaccedilatildeo ou de natildeo-

reanimaccedilatildeo (ONR) e i) suiciacutedio assistido4 Algumas dessas categorias como se veraacute satildeo

espeacutecies em relaccedilatildeo ao gecircnero

3 Os conceitos aqui apresentados satildeo com sutis alteraccedilotildees e revisotildees os expostos em MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento cuidado paliativo eutanaacutesia e suiciacutedio assistido elementos para um diaacutelogo sobre os reflexos juriacutedicos da categorizaccedilatildeo In BARROSO Luiacutes Roberto A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 p 369-432 4 Utiliza-se aqui o marco teoacuterico hegemocircnico da bioeacutetica identificado como o principialismo proposto por Beauchamp e Childress a partir das noccedilotildees de obrigaccedilotildees prima facie de Ross Segundo Florecircncia Luna e Arleen L F Salles o principialismo situa-se na primeira onda de reflexatildeo sobre a bioeacutetica assim como os estudos kantianos e o utilitarismo Aleacutem dos marcos teoacutericos da primeira onda haacute os da segunda que apresentam diversos enfoques para o exame dos problemas morais complexos que exsurgem no cenaacuterio da bioeacutetica como a eacutetica da virtude o comunitarismo o feminismo e a casuiacutestica LUNA Florecircncia SALLES Arleen L F Bioeacutetica Nuevas reflexiones sobre debates claacutesicos Meacutexico DF Fondo de Cultura Econoacutemica 2008

4

O termo eutanaacutesia foi utilizado por longo tempo de forma geneacuterica

e ampla abrangendo condutas comissivas e omissivas em pacientes que se encontravam

em situaccedilotildees muito dessemelhantes Atualmente o conceito eacute confinado a uma acepccedilatildeo

bastante estreita que compreende apenas a forma ativa aplicada por meacutedicos a doentes

terminais cuja morte eacute inevitaacutevel em um curto lapso5 Compreende-se que a eutanaacutesia eacute

a accedilatildeo meacutedica intencional de apressar ou provocar a morte ndash com exclusiva finalidade

benevolente ndash de pessoa que se encontre em situaccedilatildeo considerada irreversiacutevel e

incuraacutevel consoante os padrotildees meacutedicos vigentes e que padeccedila de intensos sofrimentos

fiacutesicos e psiacutequicos Do conceito estatildeo excluiacutedas a assim chamada eutanaacutesia passiva eis

que ocasionada por omissatildeo bem como a indireta ocasionada por accedilatildeo desprovida da

intenccedilatildeo de provocar a morte Natildeo se confunde tampouco com o homiciacutedio piedoso

conceito mais amplo que conteacutem o de eutanaacutesia De acordo com o consentimento ou natildeo

daquele que padece a eutanaacutesia pode ser voluntaacuteria natildeo-voluntaacuteria e involuntaacuteria6

Por distanaacutesia compreende-se a tentativa de retardar a morte o

maacuteximo possiacutevel empregando para isso todos os meios meacutedicos disponiacuteveis ordinaacuterios

e extraordinaacuterios ao alcance proporcionais ou natildeo mesmo que isso signifique causar

dores e padecimentos a uma pessoa cuja morte eacute iminente e inevitaacutevel7 Em outras

palavras eacute um prolongamento artificial da vida do paciente sem chance de cura ou de

recuperaccedilatildeo da sauacutede segundo o estado da arte da ciecircncia da sauacutede mediante conduta

na qual ldquonatildeo se prolonga a vida propriamente dita mas o processo de morrerrdquo8 A

obstinaccedilatildeo terapecircutica e o tratamento fuacutetil estatildeo associados agrave distanaacutesia Alguns autores

5 Sobre a elaboraccedilatildeo discussatildeo e criacutetica dos conceitos ver PESSINI Leo Distanaacutesia ateacute quando prolongar a vida Satildeo Paulo Editora do Centro Universitaacuterio Satildeo Camilo Loyola 2001 (Coleccedilatildeo Bioeacutetica em Perspectiva 2) MARTIN Leonard M Eutanaacutesia e distanaacutesia In GARRAFA Volnei (Org) Iniciaccedilatildeo agrave bioeacutetica Brasiacutelia CFM p171-192 SIQUEIRA-BATISTA Rodrigo SCHRAMM Fermin Roland Eutanaacutesia pelas veredas da morte e da autonomia Ciecircncia e sauacutede coletiva v9 n1 p33 e s 2004 McCONNELL Terrance Inalienable rights the limits of consent in medicine and the law Oxford Oxford University 2000 p88 RIBEIRO Diaulas Costa Autonomia viver a proacutepria vida e morrer a proacutepria morte Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22 n8 p 1749-1754 ago 2006 Para relevantes visotildees criacuteticas COHEN-ALMAGOR Raphael Language and reality in the end-of-life The Journal of law medicine amp ethics Vol 283 Fall 2000 p267-278 BROCK Dan W Life and death philosophical essays in biomedical ethics Cambridge Cambridge University Press 2000 p169-172 6 Diz-se que eacute voluntaacuteria quando haacute expresso e informado consentimento natildeo-voluntaacuteria quando se realiza sem o conhecimento da vontade do paciente e involuntaacuteria quando eacute realizada contra a vontade do paciente No que toca agrave eutanaacutesia involuntaacuteria haacute um relevante e adequado consenso juriacutedico quanto ao seu caraacuteter criminoso Os casos mais comuns da eutanaacutesia natildeo-voluntaacuteria satildeo os que envolvem pacientes incapazes Sobre esse uacuteltimo ponto v McCONNELL Terrance Op cit p89 7 Este conceito foi extraiacutedo do voto do magistrado colombiano Vladimiro Naranjo Mesa com leves alteraccedilotildees em seu texto COLOMBIA Sentencia C-23997 Disponiacutevel em httpwebminjusticisgovcojusrisprudencia Uacuteltimo acesso em ago2005 Sobre a distanaacutesia eacute muito relevante consultar PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit 8 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p30

5

tratam-nos inclusive como sinocircnimos A primeira consiste no comportamento meacutedico de

combater a morte de todas as formas como se fosse possiacutevel curaacute-la em ldquouma luta

desenfreada e (ir)racionalrdquo9 sem que se tenha em conta os padecimentos e os custos

humanos gerados O segundo refere-se ao emprego de teacutecnicas e meacutetodos

extraordinaacuterios e desproporcionais de tratamento incapazes de ensejar a melhora ou a

cura mas haacutebeis a prolongar a vida ainda que agravando sofrimentos de forma tal que

os benefiacutecios previsiacuteveis satildeo muito inferiores aos danos causados10

Em sentido oposto da distanaacutesia e distinto da eutanaacutesia tem-se a

ortotanaacutesia Trata-se da morte em seu tempo adequado natildeo combatida com os meacutetodos

extraordinaacuterios e desproporcionais utilizados na distanaacutesia nem apressada por accedilatildeo

intencional externa como na eutanaacutesia Eacute uma aceitaccedilatildeo da morte pois permite que ela

siga seu curso Eacute praacutetica ldquosensiacutevel ao processo de humanizaccedilatildeo da morte ao aliacutevio das

dores e natildeo incorre em prolongamentos abusivos com aplicaccedilatildeo de meios

desproporcionados que imporiam sofrimentos adicionaisrdquo11 Indissociaacutevel da ortotanaacutesia

eacute o cuidado paliativo voltado agrave utilizaccedilatildeo de toda a tecnologia possiacutevel para aplacar o

sofrimento fiacutesico e psiacutequico do enfermo12 Evitando meacutetodos extraordinaacuterios e

excepcionais procura-se aliviar o padecimento do doente terminal pelo uso de recursos

apropriados para tratar os sintomas como a dor e a depressatildeo13 O cuidado paliativo

pode envolver o que se denomina duplo efeito em determinados casos o uso de

algumas substacircncias para controlar a dor e a anguacutestia pode aproximar o momento da

morte A diminuiccedilatildeo do tempo de vida eacute um efeito previsiacutevel sem ser desejado pois o

objetivo primaacuterio eacute oferecer o maacuteximo conforto possiacutevel ao paciente sem intenccedilatildeo de

ocasionar o evento morte14

9 SIQUEIRA-BATISTA Rodrigo SCHRAMM Fermin Roland Op cit p33 A expressatildeo cura da morte foi cunhada por Leo Pessini Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p331 e s 10 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit especialmente as paacuteginas 163 e s Ver tambeacutem COHEN-ALMAGOR Raphael Op Cit 11 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p31 12 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p203 e s 13 Este conceito foi extraiacutedo do voto do magistrado colombiano Vladimiro Naranjo Mesa com sutis alteraccedilotildees em seu texto COLOMBIA Sentencia C-23997 Op cit 14 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p213 COLOMBIA Sentencia C-23997 Op cit voto do magistrado Vladimiro Naranjo Mesa QUILL T E et al Palliative treatments of last resort choosing the least harmful alternative Annals of Internal Medicine v132 n6 p488-493 March 2000 Disponiacutevel em wwwannalsorgcgicontent Acesso em jun2006 MORAES E SOUZA Maria Teresa de LEMONICA Lino Paciente terminal e meacutedico capacitado parceria pela qualidade de vida Bioeacutetica Conselho Federal de Medicina v11 n1 p83-100 2003 COHEN-ALMAGOR Raphael Op Cit

6

A recusa de tratamento meacutedico consiste na negativa de iniciar ou de

manter um ou alguns tratamentos meacutedicos Apoacutes o devido processo de informaccedilatildeo o

paciente ndash ou em certos casos seus responsaacuteveis ndash decide se deseja ou natildeo iniciar ou

continuar tratamento meacutedico O processo culmina com a assinatura de um Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)15 A recusa pode ser ampla ou estrita

conforme seja admitida em qualquer circunstacircncia ndash por pacientes que podem recuperar

a sua sauacutede com o tratamento que recusam ndash ou em situaccedilotildees bem determinadas de

impossibilidade de recuperaccedilatildeo da sauacutede com a intervenccedilatildeo A uacuteltima hipoacutetese referida

por alguns como limitaccedilatildeo consentida de tratamento (ou tambeacutem suspensatildeo de esforccedilo

terapecircutico) possui laccedilos com a ortotanaacutesia A recusa ampla eacute ainda alvo de muitos

debates ao passo que existe certo consenso no marco teoacuterico hegemocircnico da bioeacutetica

quanto agrave possibilidade de recusa em sentido estrito

A retirada de suporte vital (RSV) a natildeo-oferta de suporte vital

(NSV) e as ordens de natildeo-ressuscitaccedilatildeo ou de natildeo-reanimaccedilatildeo (ONR) satildeo partes

integrantes da limitaccedilatildeo consentida de tratamento A RSV significa a suspensatildeo de

mecanismos artificiais de manutenccedilatildeo da vida como os sistemas de hidrataccedilatildeo e de

nutriccedilatildeo artificiais eou o sistema de ventilaccedilatildeo mecacircnica a NSV por sua vez significa o

natildeo-emprego desses mecanismos A ONR eacute uma determinaccedilatildeo de natildeo iniciar

procedimentos para reanimar um paciente acometido de mal irreversiacutevel e incuraacutevel

quando ocorre parada cardiorrespiratoacuteria16 Nos casos de ortotanaacutesia de cuidado

paliativo e de limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) eacute crucial o consentimento do

paciente ou de seus responsaacuteveis legais pois satildeo condutas que necessitam da

voluntariedade do paciente ou da aceitaccedilatildeo de seus familiares em casos determinados A

decisatildeo deve ser tomada apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo e devidamente

registrada mediante TCLE

15 Sobre o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou consentimento informado ver CLOTET Joaquim GOLDIM Joseacute Roberto (Org) FRANCISCONI Carlos Fernando Consentimento informado e sua praacutetica na assistecircncia e pesquisa no Brasil Porto Alegre EDIPUCRS 2000 MUNtildeOZ Daniel Romero FORTES Paulo Antocircnio Carvalho O princiacutepio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido In GARRAFA Volnei (Org) Iniciaccedilatildeo agrave bioeacutetica Brasiacutelia CFM 1999 p53-70 ENGELHARDT H Tristan Jr Fundamentos da bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2000 p345-440 PESSINI Leo GARRAFA Volnei (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p469 e s (especialmente a parte IV) 16 Cf KIPPER Deacutelio Joseacute Medicina e os cuidados de final da vida uma perspectiva brasileira e latino-americana In PESSINI Leo GARRAFA Volnei (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p413-414 Consultar ainda PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit passim MORAES E SOUZA Maria Teresa de LEMONICA Lino Op cit

7

Por fim suiciacutedio assistido designa a retirada da proacutepria vida com

auxiacutelio ou assistecircncia de terceiro O ato causador da morte eacute de autoria daquele que potildee

termo agrave proacutepria vida O terceiro colabora com o ato quer prestando informaccedilotildees quer

colocando agrave disposiccedilatildeo do paciente os meios e condiccedilotildees necessaacuterias agrave praacutetica O auxiacutelio

e a assistecircncia diferem do induzimento ao suiciacutedio No primeiro a vontade adveacutem do

paciente ao passo que no outro o terceiro age sobre a vontade do sujeito passivo de

modo a interferir com sua liberdade de accedilatildeo As duas formas admitem combinaccedilatildeo isto

eacute haacute possibilidade de uma pessoa ser simultaneamente instigada e assistida em seu

suiciacutedio O suiciacutedio assistido por meacutedico eacute espeacutecie do gecircnero suiciacutedio assistido

O rearranjo conceitual apresentado atinge a antiga distinccedilatildeo entre

as formas ativa e passiva da eutanaacutesia que passaram a receber denominaccedilotildees distintas

O termo eutanaacutesia aplica-se somente agravequela que era conhecida como forma ativa17 A

conduta antes caracterizada como eutanaacutesia passiva ndash e essa eacute uma das teses centrais

do presente estudo ndash jaacute natildeo deve ser necessariamente visualizada como antieacutetica

podendo ser expressatildeo da autonomia do paciente merecedora de respeito por parte da

equipe de sauacutede No mesmo ensejo a distinccedilatildeo entre a eutanaacutesia e a distanaacutesia permite

concluir que medidas excessivas e desproporcionais (na relaccedilatildeo benefiacutecioprejuiacutezo agrave

sauacutede e agrave qualidade de vida do enfermo) natildeo devem ser empregadas agrave revelia da

vontade do paciente nem tampouco correspondem agrave boa teacutecnica caso natildeo desejadas

pelo doente seus cuidadores ou seus responsaacuteveis legais

III O descompasso entre a interpretaccedilatildeo dominante do direito vigente e a eacutetica

meacutedica

A legislaccedilatildeo penal brasileira natildeo extrai consequecircncias juriacutedicas

significativas das categorizaccedilotildees mencionadas no toacutepico anterior salvo o suiciacutedio

assistido Assim sendo tanto a eutanaacutesia quanto a ortotanaacutesia ndash aiacute compreendida a

limitaccedilatildeo do tratamento ndash constituiriam hipoacuteteses de homiciacutedio18 No primeiro caso na

modalidade comissiva e no segundo na omissiva O auxiacutelio ao suiciacutedio eacute tratado em tipo

17 Para uma visatildeo da categorizaccedilatildeo anterior do tema com a distinccedilatildeo entre eutanaacutesia ativa e passiva aleacutem dos autores jaacute referidos na nota 3 v tb TOOLEY Michael Euthanasia and assisted suicide In FREY RG e WELLMAN Christopher Heath A companion to applied ethics Malden Blackwell 2007 p 326-341 18 Coacutedigo Penal art 121 ldquoMatar algueacutem Pena ndash reclusatildeo de 6 (seis) meses a 20 (vinte) anosrdquo

8

penal proacuteprio19 Nessa interpretaccedilatildeo que corresponde ao conhecimento convencional na

mateacuteria a decisatildeo do paciente ou de sua famiacutelia de descontinuar um tratamento meacutedico

desproporcional extraordinaacuterio ou fuacutetil natildeo alteraria o caraacuteter criminoso da conduta A

existecircncia de consentimento natildeo produziria o efeito juriacutedico de salvaguardar o meacutedico de

uma persecuccedilatildeo penal Em suma natildeo haveria distinccedilatildeo entre o ato de natildeo tratar um

enfermo terminal segundo a sua proacutepria vontade e o ato de intencionalmente abreviar-

lhe a vida tambeacutem a seu pedido 20

Essa postura legislativa e doutrinaacuteria pode produzir consequecircncias

graves pois ao oferecer o mesmo tratamento juriacutedico para situaccedilotildees distintas o

paradigma legal reforccedila condutas de obstinaccedilatildeo terapecircutica e acaba por promover a

distanaacutesia Com isso endossa um modelo meacutedico paternalista que se funda na

autoridade do profissional da medicina sobre o paciente e descaracteriza a condiccedilatildeo de

sujeito do enfermo Ainda que os meacutedicos natildeo mais estejam vinculados eticamente a

esse modelo superado de relaccedilatildeo o espectro da sanccedilatildeo pode levaacute-los a adotaacute-lo Natildeo

apenas manteratildeo ou iniciaratildeo um tratamento indesejado gerador de muita agonia e

padecimento como por vezes adotaratildeo algum natildeo recomendado pela boa teacutecnica por

sua desproporcionalidade A arte de curar e de evitar o sofrimento se transmuda entatildeo

no ofiacutecio mais rude de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condiccedilotildees Natildeo

eacute apenas a autonomia do paciente que eacute agredida A liberdade de consciecircncia do

profissional da sauacutede pode tambeacutem estar em xeque21

19 Coacutedigo Penal art 122 ldquoInduzir ou instigar algueacutem a suicidar-se ou prestar-lhe auxiacutelio para que o faccedila Pena ndash reclusatildeo de 2 (dois) a 6 (seis) anos se o suiciacutedio se consuma ou reclusatildeo de 1 (um) a 3 (trecircs) anos se da tentativa de suiciacutedio resulta lesatildeo corporal de natureza graverdquo 20 Pelo conhecimento convencional no Brasil ambas as condutas seriam consideradas homiciacutedio o qual caso viesse a ser reconhecido pelo juacuteri poderia contar com uma causa especial de diminuiccedilatildeo de pena (privileacutegio) V MIRABETE Juacutelio Fabbrini Coacutedigo Penal Interpretado 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2003 E tambeacutem CAPEZ Fernando Curso de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p34 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p58 Sobre as privilegiadoras e qualificadoras SANTOS Juarez Cirino A moderna teoria do fato puniacutevel 4 ed rev e ampl Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 DODGE Raquel Elias Ferreira Eutanaacutesia aspectos juriacutedicos Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevista bio1v7eutaspectoshtm Acesso em maio 2006 BRASIL Ministeacuterio Puacuteblico Federal -1a Reg Recomendaccedilatildeo 012006 - WD - PRDC Disponiacutevel em wwwprdfmpfgovbrprdclegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em 25 nov 2006 21 Quanto ao cuidado paliativo de duplo efeito a situaccedilatildeo eacute ainda pior por razotildees notoacuterias Se um meacutedico for autorizado pelo enfermo a lanccedilar matildeo dessa teacutecnica poderaacute abreviar seu tempo de vida Se o mundo juriacutedico natildeo oferecer amparo seguro a essa accedilatildeo o temor de cometer um crime pode ensejar o uso de dosagens medicamentosas menores do que o necessaacuterio para aplacar o imenso sofrimento fiacutesico e psicoloacutegico daqueles que estatildeo no leito de morte

9

A Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 de 9112006 editada pelo

Conselho Federal de Medicina procurou contornar as deficiecircncias e insuficiecircncias de um

Coacutedigo Penal cuja parte especial eacute da deacutecada de 40 do seacuteculo passado Nessa linha

invocando sua funccedilatildeo disciplinadora da classe meacutedica bem como o art 5ordm III da

Constituiccedilatildeo pretendeu dar suporte juriacutedico agrave ortotanaacutesia Sem menccedilatildeo agrave eutanaacutesia e ao

suiciacutedio assistido ndash que continuam a ser considerados pelo Conselho como praacuteticas natildeo-

eacuteticas ndash a Resoluccedilatildeo tratou da limitaccedilatildeo do tratamento e do cuidado paliativo de doentes

em fase terminal nas hipoacuteteses autorizadas por seus parentes ou por seus familiares

Trazendo uma fundamentada Exposiccedilatildeo de Motivos a Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 tem

o conteuacutedo assim resumido em sua Ementa

ldquoNa fase terminal de enfermidades graves e incuraacuteveis eacute permitido

ao meacutedico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que

prolonguem a vida do doente garantindo-lhe os cuidados

necessaacuterios para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento na

perspectiva de uma assistecircncia integral respeitada a vontade do

paciente ou de seu representante legalrdquo

Eacute possiacutevel fazer uma defesa da Resoluccedilatildeo do Conselho Federal de

Medicina quer dentro das categorias do proacuteprio direito penal quer mediante uma leitura

de seu texto agrave luz da Constituiccedilatildeo Por ora no entanto faz-se o registro de que foi ela

suspensa por decisatildeo judicial produzida em accedilatildeo civil puacuteblica movida pelo Ministeacuterio

Puacuteblico Federal perante a Justiccedila Federal de Brasiacutelia Na peticcedilatildeo inicial de 131 paacuteginas o

Procurador da Repuacuteblica que a subscreve colocou-se frontalmente contra o conteuacutedo da

Resoluccedilatildeo Em meio a muitas consideraccedilotildees juriacutedicas morais e metafiacutesicas afirmou ldquoA

ortotanaacutesia natildeo passa de um artifiacutecio homicida expediente desprovido de razotildees loacutegicas

e violador da Constituiccedilatildeo Federal mero desejo de dar ao homem pelo proacuteprio homem

a possibilidade de uma decisatildeo que nunca lhe pertenceurdquo 22 Na decisatildeo que acolheu o

pedido de antecipaccedilatildeo de tutela entendeu o juiz de primeiro grau pela existecircncia de

ldquoaparente conflito entre a resoluccedilatildeo questionada e o Coacutedigo Penalrdquo23

22 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpnoticiaspgrmpfgovbrnoticias-do-sitepdfsACP20Ortotanasiapdf Acesso em out2007 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpprdcprdfmpfgovbrlegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em dez2006 23 V inteiro teor da decisatildeo em wwwdftrf1govbr20073400014809-3_decisao_23-10-2007doc

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A decisatildeo marca o encontro no Brasil de dois fenocircmenos do nosso

tempo a medicalizaccedilatildeo24 e a judicializaccedilatildeo25 da vida Ambos potencializados por um

terceiro fenocircmeno a sociedade espetaacuteculo em que os meios de comunicaccedilatildeo

transmitem em tempo real ao vivo e em cores dramas como os de Terri Schiavo

(EUA)26 Hannah Jones (Reino Unido)27 ou Eluana (Itaacutelia)28 O pronunciamento judicial

suspensivo da Resoluccedilatildeo exibe igualmente o descompasso entre ordenamento juriacutedico e

a eacutetica meacutedica E no mundo poacutes-positivista de reaproximaccedilatildeo entre o Direito e a Eacutetica

este eacute um desencontro que deve ser evitado A propoacutesito deve-se registrar que a

orientaccedilatildeo do Conselho Federal de Medicina estaacute em consonacircncia com as da Associaccedilatildeo

Meacutedica Mundial (AMM) as da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura (UNESCO) e as do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos

Humanos (CEDH) 29 E tambeacutem com o tratamento juriacutedico adotado em paiacuteses como

24 A expressatildeo lsquomedicalizaccedilatildeo da vidarsquo foi cunhada e definida em ILLICH Ivan The medicalization of life Journal of Medical Ethics I 1975 p73-77 25 BARROSO Luiacutes Roberto Judicializaccedilatildeo ativismo judicial e legitimidade democraacutetica Revista de Direito do Estado Rio de Janeiro n 13 2009 26 Em decorrecircncia de uma parada cardiacuteaca Terri Schiavo viveu em estado vegetativo ateacute falecer em 2005 Nos uacuteltimos sete anos de sua vida seu marido e representante legal Michael Schiavo vinha pedindo ao Judiciaacuterio dos EUA o desligamento dos tubos que a mantinham viva Para tanto afirmava que antes de entrar em estado vegetativo a mulher havia se manifestado diversas vezes no sentido de que natildeo gostaria de ser mantida viva artificialmente Agrave pretensatildeo do marido se opuseram tanto os proacuteprios pais de Terri quanto diversas autoridades norte-americanas como o Presidente Geoge W Bush A longa controveacutersia juriacutedica envolveu desde a Justiccedila Estadual da Floacuterida ateacute a Justiccedila Federal dos EUA passando pelo Legislativo e pelo Governador do Estado Por sua vez a Suprema Corte dos EUA se recusou a analisar a mateacuteria Terri Schiavo faleceu em 31 de marccedilo de 2005 O resultado de sua autoacutepsia confirmou que nenhum tratamento poderia tecirc-la ajudado a superar os danos neuroloacutegicos que sofreu V Saiba mais sobre o conflito judicial do caso Schiavo Folha Online 29mar2005 Disponiacutevel em lthttpwww1folhauolcombrfolhamundoult94u82068shtmlgt Uacuteltimo acesso 24jun2009 GOODNOUGH Abby Schiavo Autopsy Says Brain Withered Was Untreatable New York Times 16jun2005 Disponiacutevel em lthttpwwwnytimescom20050616national16schiavohtmlgt Acesso em jun2009 27 Aos cinco anos de idade Hannah Jones foi diagnosticada com uma forma rara de leucemia e desde entatildeo sua vida passou a envolver frequentes internaccedilotildees hospitalares Seu tratamento incluiu doses de um forte medicamento contra uma infecccedilatildeo o que acabou causando danos ao seu coraccedilatildeo Sua uacutenica chance de viver longamente viria com um transplante Mas a menina de treze anos recusou o tratamento afirmando que jaacute sofrera traumas demais e natildeo queria passar por novas cirurgias ndash preferia morrer com dignidade Irresignado com a decisatildeo da paciente o hospital foi ao Judiciaacuterio Decidiu-se poreacutem que Hannah era madura o suficiente para decidir por si proacutepria V PERCIVAL Jenny Teenager who won right to die I have had too much trauma Guardiancouk 11nov2008 Disponiacutevel em lthttpwwwguardiancouksociety2008nov11child-protection-health-hannah-jonesgt Acesso em jun2009 28 Eluana Englaro ficou em coma por dezessete anos desde que sofreu um acidente de carro em 1992 Seu caso causou grande comoccedilatildeo na Itaacutelia mobilizando setores ligados agrave Igreja Catoacutelica e gerando uma crise entre o Primeiro-ministro Silvio Berlusconi e o Presidente Giorgio Napolitano Por dez anos o pai da moccedila lutou para garantir o direito de deixaacute-la morrer mas soacute conseguiu em 21 de janeiro de 2009 Ela passou trecircs dias sem receber comida e hidrataccedilatildeo mas uma ldquocriserdquo acabou antecipando sua morte V Morre Eluana a italiana que estava em coma havia 17 anos G1 9fev2009 Disponiacutevel em lthttpg1globocomNoticiasMundo0MUL993961-560200htmlgt Acesso em jun2009 29 a) as Resoluccedilotildees da AMM sobre eutanaacutesia e suiciacutedio assistido consideram tais condutas antieacuteticas mas assumem que eacute direito do paciente recusar tratamento meacutedico ainda que da recusa decorra a morte e que eacute direito do paciente ter respeitada a sua escolha de que o ldquoprocesso natural da morte siga seu curso na fase terminal da doenccedilardquo b) A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO determina que

11

Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Espanha Meacutexico Reino Unido Franccedila Itaacutelia Suiacuteccedila

Sueacutecia Beacutelgica Holanda e Uruguai30

Estatildeo em choque aqui dois modelos Um de iacutendole paternalista

que desconsidera a vontade do paciente e de seus familiares privados de fazerem

escolhas morais proacuteprias O outro fundado na deontologia meacutedica valoriza a autonomia

e o diaacutelogo aceitando que a arte de curar se converta em cuidado e amparo Cabe

procurar entender e enfrentar as razotildees do desencontro entre as imposiccedilotildees juriacutedicas e

as exigecircncias eacuteticas O principal argumento contraacuterio a qualquer hipoacutetese de morte com

intervenccedilatildeo decorre da compreensatildeo do direito agrave vida como um direito fundamental

absoluto No Brasil essa valorizaccedilatildeo maacutexima da vida bioloacutegica e do modelo biomeacutedico

intensivista e interventor tem sua origem em algumas doutrinas morais abrangentes

muitas de cunho religioso que penetram na interpretaccedilatildeo juriacutedica Esta visatildeo do mundo

se manifesta em diferentes passagens da accedilatildeo civil puacuteblica acima referida

Ao avanccedilar no debate eacute preciso ter em conta que o direito agrave vida eacute

de fato especial Qualquer flexibilizaccedilatildeo de sua forccedila juriacutedica ou moral eacute delicada e deve

envolver cautelas muacuteltiplas Qualquer desprezo pela vida humana mesmo nas

circunstacircncias mais adversas eacute suspeita Um dos consensos miacutenimos que compotildeem a

ldquoqualquer intervenccedilatildeo meacutedica preventiva diagnoacutestica e terapecircutica soacute deve ser realizada com o consentimento preacutevio livre e esclarecido do indiviacuteduo envolvido baseado em informaccedilatildeo adequada O consentimento deve quando apropriado ser manifesto e poder ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razatildeo sem acarretar desvantagem ou preconceitordquo Para os casos de incapacidade haacute dispositivos especiacuteficos que visam a proteger a parcela de autonomia remanescente e os melhores interesses do envolvido c) O Conselho Europeu posicionou-se favoravelmente agrave implementaccedilatildeo de cuidados paliativos e do respeito dos direitos dos pacientes de recusarem tratamentos fuacuteteis ou extraordinaacuterios O Conselho determinou aos Estados-membros a normatizaccedilatildeo dos testamentos de vida e das diretivas avanccediladas d) ao decidir o caso Pretty a CEDH permitiu entrever que abaliza a limitaccedilatildeo consentida de tratamento em pacientes terminais ou em estado irreversiacutevel muito embora tenha se recusado a aceitar o suiciacutedio assistido Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit PARLIAMENTARY ASSEMBLY Resolution 1649 (2009) Palliative Care a model for innovative health and social policies Disponiacutevel em httpassemblycoeintmainaspLink=documentsadoptedtextta09eres1649htm Uacuteltimo acesso em mar2009 30 a) a Suprema Corte dos Estados Unidos assentou o seu posicionamento nos casos Vacco v Quill e Washington v Glucksberg et al jaacute lastreados em decisotildees anteriores como o caso Cruzan b) a Suprema Corte do Canadaacute reafirmou seu entendimento no tema em Rodriguez v British Columbia c) no Reino Unido satildeo importantes as decisotildees dos casos Airedale NHS Trust v Bland e The Queen on the Application of Mrs Dianne Pretty (Appellant) v Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home Department (Interested Party) d) a Beacutelgica e a Holanda reconhecem natildeo apenas a LCT como tambeacutem a eutanaacutesia eou o suiciacutedio assistido e) a Suiacuteccedila permite o suiciacutedio assistido f) na Espanha as decisotildees de suspensatildeo de suporte vital em pacientes terminais satildeo respeitadas e desde 2000 haacute leis sobre testamentos vitais (Ley Catalana) g) na Franccedila a limitaccedilatildeo consentida de tratamento foi permitida por lei em 2005 Cf MICCINESI Guido et al Physicianrsquos attitudes towards end-of-life decisions a comparison between seven countries Social Science amp Medicine (2005) 1961-1974 COHEN Joachim et al European public acceptance of euthanasia Socio-demographic and cultural factors associated with the acceptance of euthanasia in 33 European countries Social Science amp Medicine 63 (2006) 743-756 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p257 e s

12

dignidade humana nas sociedades ocidentais eacute a preservaccedilatildeo da vida como um valor em

si que se atinge naturalmente por sua promoccedilatildeo e proteccedilatildeo rigorosa Com efeito basta

considerar que aleacutem do seu caraacuteter substantivo o direito agrave vida eacute preacute-condiccedilatildeo eacute

instrumento que permite a proacutepria dignidade pois sua negaccedilatildeo leva agrave inexistecircncia do

sujeito da dignidade Diante de tais premissas criminalizar atos que atentem contra a

vida humana tende a ser um meio adequado dentre outros de preservaccedilatildeo da vida e da

dignidade humanas Mas nem mesmo o direito agrave vida eacute absoluto

Eacute precisamente no ambiente da morte com intervenccedilatildeo que cabe

discutir a visatildeo da dignidade que impotildee ao indiviacuteduo a vida como um bem em si Como

intuitivo natildeo se estaacute aqui diante de uma situaccedilatildeo banal temporaacuteria ou reversiacutevel na

qual um indiviacuteduo decide morrer e outros se omitem em evitar ou prestam-lhe auxiacutelio

Justamente ao contraacuterio trata-se de pessoas que em condiccedilotildees nada ordinaacuterias

reclamam a possibilidade de renunciar a intervenccedilotildees meacutedicas de prolongamento da

vida Ou em outros casos de optar pela abreviaccedilatildeo direta da vida por ato proacuteprio ou

alheio por estarem acometidos de doenccedilas terminais extremamente dolorosas ou por

enfermidades degenerativas que conduzem agrave perda paulatina da independecircncia Nessas

situaccedilotildees extremas aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito agrave

vida impedindo que ele se transforme em um insuportaacutevel dever agrave vida Se em uma

infinidade de situaccedilotildees a dignidade eacute o fundamento da valorizaccedilatildeo da vida na morte

com intervenccedilatildeo as motivaccedilotildees se invertem

O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenccedilas para

as quais a medicina desconhece a cura ou a reversatildeo contra a sua vontade ou de seus

responsaacuteveis legais enseja dor sofrimento humilhaccedilatildeo exposiccedilatildeo intrusotildees corporais

indevidas e perda da liberdade Entram em cena entatildeo outros conteuacutedos da proacutepria

dignidade Eacute que a dignidade protege tambeacutem a liberdade e a inviolabilidade do

indiviacuteduo quanto agrave sua desumanizaccedilatildeo e degradaccedilatildeo Eacute nesse passo que se verifica uma

tensatildeo dentro do proacuteprio conceito em busca da determinaccedilatildeo de seu sentido e alcance

diante de situaccedilotildees concretas De um lado a dignidade serviria de impulso para a defesa

da vida e das concepccedilotildees sociais do que seja o bem morrer De outro ela se apresenta

como fundamento da morte com intervenccedilatildeo assegurando a autonomia individual a

superaccedilatildeo do sofrimento e a morte digna31

31 MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002

13

Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

14

nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

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A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

20

disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

30

liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

31

exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

32

filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 3: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

3

para o espaccedilo das escolhas excludentes O fenocircmeno da medicalizaccedilatildeo da vida pode

transformar a morte em um processo longo e sofrido A preocupaccedilatildeo que moveu os

autores foi a de investigar possibilidades compatiacuteveis com o ordenamento juriacutedico

brasileiro capazes de tornar o processo de morrer mais humano Isso envolve minimizar

a dor e em certos casos permitir que o desfecho natildeo seja inutilmente prorrogado Ainda

um uacuteltimo registro introdutoacuterio as consideraccedilotildees sobre a morte com intervenccedilatildeo aqui

lanccediladas referem-se tatildeo-somente aos casos de pessoas em estado terminal ou em

estado vegetativo persistente

II Morte com intervenccedilatildeo os conceitos essenciais3

Nos uacuteltimos anos os estudiosos da bioeacutetica tecircm procurado realizar

uma determinaccedilatildeo leacutexica de alguns conceitos relacionados ao final da vida Muitos

fenocircmenos que eram englobados sob uma mesma denominaccedilatildeo passam a ser

identificados como categorias especiacuteficas Este esforccedilo de limpeza conceitual deveu-se agrave

necessidade de enfrentar a intensa polissemia na mateacuteria que aumentava pela incerteza

da linguagem as dificuldades inerentes a um debate jaacute em si complexo Como intuitivo

facilita a racionalidade da circulaccedilatildeo de ideias que se faccedila a distinccedilatildeo entre situaccedilotildees que

guardam entre si variaccedilotildees faacuteticas e eacuteticas importantes Em certos casos as distinccedilotildees

satildeo totalmente niacutetidas em outros bastante sutis Ainda assim eacute conveniente identificar

analiticamente as seguintes categorias operacionais a) eutanaacutesia b) ortotanaacutesia c)

distanaacutesia d) tratamento fuacutetil e obstinaccedilatildeo terapecircutica e) cuidado paliativo f) recusa

de tratamento meacutedico e limitaccedilatildeo consentida de tratamento g) retirada de suporte vital

(RSV) e natildeo-oferta de suporte vital (NSV) h) ordem de natildeo-ressuscitaccedilatildeo ou de natildeo-

reanimaccedilatildeo (ONR) e i) suiciacutedio assistido4 Algumas dessas categorias como se veraacute satildeo

espeacutecies em relaccedilatildeo ao gecircnero

3 Os conceitos aqui apresentados satildeo com sutis alteraccedilotildees e revisotildees os expostos em MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento cuidado paliativo eutanaacutesia e suiciacutedio assistido elementos para um diaacutelogo sobre os reflexos juriacutedicos da categorizaccedilatildeo In BARROSO Luiacutes Roberto A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 p 369-432 4 Utiliza-se aqui o marco teoacuterico hegemocircnico da bioeacutetica identificado como o principialismo proposto por Beauchamp e Childress a partir das noccedilotildees de obrigaccedilotildees prima facie de Ross Segundo Florecircncia Luna e Arleen L F Salles o principialismo situa-se na primeira onda de reflexatildeo sobre a bioeacutetica assim como os estudos kantianos e o utilitarismo Aleacutem dos marcos teoacutericos da primeira onda haacute os da segunda que apresentam diversos enfoques para o exame dos problemas morais complexos que exsurgem no cenaacuterio da bioeacutetica como a eacutetica da virtude o comunitarismo o feminismo e a casuiacutestica LUNA Florecircncia SALLES Arleen L F Bioeacutetica Nuevas reflexiones sobre debates claacutesicos Meacutexico DF Fondo de Cultura Econoacutemica 2008

4

O termo eutanaacutesia foi utilizado por longo tempo de forma geneacuterica

e ampla abrangendo condutas comissivas e omissivas em pacientes que se encontravam

em situaccedilotildees muito dessemelhantes Atualmente o conceito eacute confinado a uma acepccedilatildeo

bastante estreita que compreende apenas a forma ativa aplicada por meacutedicos a doentes

terminais cuja morte eacute inevitaacutevel em um curto lapso5 Compreende-se que a eutanaacutesia eacute

a accedilatildeo meacutedica intencional de apressar ou provocar a morte ndash com exclusiva finalidade

benevolente ndash de pessoa que se encontre em situaccedilatildeo considerada irreversiacutevel e

incuraacutevel consoante os padrotildees meacutedicos vigentes e que padeccedila de intensos sofrimentos

fiacutesicos e psiacutequicos Do conceito estatildeo excluiacutedas a assim chamada eutanaacutesia passiva eis

que ocasionada por omissatildeo bem como a indireta ocasionada por accedilatildeo desprovida da

intenccedilatildeo de provocar a morte Natildeo se confunde tampouco com o homiciacutedio piedoso

conceito mais amplo que conteacutem o de eutanaacutesia De acordo com o consentimento ou natildeo

daquele que padece a eutanaacutesia pode ser voluntaacuteria natildeo-voluntaacuteria e involuntaacuteria6

Por distanaacutesia compreende-se a tentativa de retardar a morte o

maacuteximo possiacutevel empregando para isso todos os meios meacutedicos disponiacuteveis ordinaacuterios

e extraordinaacuterios ao alcance proporcionais ou natildeo mesmo que isso signifique causar

dores e padecimentos a uma pessoa cuja morte eacute iminente e inevitaacutevel7 Em outras

palavras eacute um prolongamento artificial da vida do paciente sem chance de cura ou de

recuperaccedilatildeo da sauacutede segundo o estado da arte da ciecircncia da sauacutede mediante conduta

na qual ldquonatildeo se prolonga a vida propriamente dita mas o processo de morrerrdquo8 A

obstinaccedilatildeo terapecircutica e o tratamento fuacutetil estatildeo associados agrave distanaacutesia Alguns autores

5 Sobre a elaboraccedilatildeo discussatildeo e criacutetica dos conceitos ver PESSINI Leo Distanaacutesia ateacute quando prolongar a vida Satildeo Paulo Editora do Centro Universitaacuterio Satildeo Camilo Loyola 2001 (Coleccedilatildeo Bioeacutetica em Perspectiva 2) MARTIN Leonard M Eutanaacutesia e distanaacutesia In GARRAFA Volnei (Org) Iniciaccedilatildeo agrave bioeacutetica Brasiacutelia CFM p171-192 SIQUEIRA-BATISTA Rodrigo SCHRAMM Fermin Roland Eutanaacutesia pelas veredas da morte e da autonomia Ciecircncia e sauacutede coletiva v9 n1 p33 e s 2004 McCONNELL Terrance Inalienable rights the limits of consent in medicine and the law Oxford Oxford University 2000 p88 RIBEIRO Diaulas Costa Autonomia viver a proacutepria vida e morrer a proacutepria morte Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22 n8 p 1749-1754 ago 2006 Para relevantes visotildees criacuteticas COHEN-ALMAGOR Raphael Language and reality in the end-of-life The Journal of law medicine amp ethics Vol 283 Fall 2000 p267-278 BROCK Dan W Life and death philosophical essays in biomedical ethics Cambridge Cambridge University Press 2000 p169-172 6 Diz-se que eacute voluntaacuteria quando haacute expresso e informado consentimento natildeo-voluntaacuteria quando se realiza sem o conhecimento da vontade do paciente e involuntaacuteria quando eacute realizada contra a vontade do paciente No que toca agrave eutanaacutesia involuntaacuteria haacute um relevante e adequado consenso juriacutedico quanto ao seu caraacuteter criminoso Os casos mais comuns da eutanaacutesia natildeo-voluntaacuteria satildeo os que envolvem pacientes incapazes Sobre esse uacuteltimo ponto v McCONNELL Terrance Op cit p89 7 Este conceito foi extraiacutedo do voto do magistrado colombiano Vladimiro Naranjo Mesa com leves alteraccedilotildees em seu texto COLOMBIA Sentencia C-23997 Disponiacutevel em httpwebminjusticisgovcojusrisprudencia Uacuteltimo acesso em ago2005 Sobre a distanaacutesia eacute muito relevante consultar PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit 8 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p30

5

tratam-nos inclusive como sinocircnimos A primeira consiste no comportamento meacutedico de

combater a morte de todas as formas como se fosse possiacutevel curaacute-la em ldquouma luta

desenfreada e (ir)racionalrdquo9 sem que se tenha em conta os padecimentos e os custos

humanos gerados O segundo refere-se ao emprego de teacutecnicas e meacutetodos

extraordinaacuterios e desproporcionais de tratamento incapazes de ensejar a melhora ou a

cura mas haacutebeis a prolongar a vida ainda que agravando sofrimentos de forma tal que

os benefiacutecios previsiacuteveis satildeo muito inferiores aos danos causados10

Em sentido oposto da distanaacutesia e distinto da eutanaacutesia tem-se a

ortotanaacutesia Trata-se da morte em seu tempo adequado natildeo combatida com os meacutetodos

extraordinaacuterios e desproporcionais utilizados na distanaacutesia nem apressada por accedilatildeo

intencional externa como na eutanaacutesia Eacute uma aceitaccedilatildeo da morte pois permite que ela

siga seu curso Eacute praacutetica ldquosensiacutevel ao processo de humanizaccedilatildeo da morte ao aliacutevio das

dores e natildeo incorre em prolongamentos abusivos com aplicaccedilatildeo de meios

desproporcionados que imporiam sofrimentos adicionaisrdquo11 Indissociaacutevel da ortotanaacutesia

eacute o cuidado paliativo voltado agrave utilizaccedilatildeo de toda a tecnologia possiacutevel para aplacar o

sofrimento fiacutesico e psiacutequico do enfermo12 Evitando meacutetodos extraordinaacuterios e

excepcionais procura-se aliviar o padecimento do doente terminal pelo uso de recursos

apropriados para tratar os sintomas como a dor e a depressatildeo13 O cuidado paliativo

pode envolver o que se denomina duplo efeito em determinados casos o uso de

algumas substacircncias para controlar a dor e a anguacutestia pode aproximar o momento da

morte A diminuiccedilatildeo do tempo de vida eacute um efeito previsiacutevel sem ser desejado pois o

objetivo primaacuterio eacute oferecer o maacuteximo conforto possiacutevel ao paciente sem intenccedilatildeo de

ocasionar o evento morte14

9 SIQUEIRA-BATISTA Rodrigo SCHRAMM Fermin Roland Op cit p33 A expressatildeo cura da morte foi cunhada por Leo Pessini Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p331 e s 10 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit especialmente as paacuteginas 163 e s Ver tambeacutem COHEN-ALMAGOR Raphael Op Cit 11 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p31 12 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p203 e s 13 Este conceito foi extraiacutedo do voto do magistrado colombiano Vladimiro Naranjo Mesa com sutis alteraccedilotildees em seu texto COLOMBIA Sentencia C-23997 Op cit 14 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p213 COLOMBIA Sentencia C-23997 Op cit voto do magistrado Vladimiro Naranjo Mesa QUILL T E et al Palliative treatments of last resort choosing the least harmful alternative Annals of Internal Medicine v132 n6 p488-493 March 2000 Disponiacutevel em wwwannalsorgcgicontent Acesso em jun2006 MORAES E SOUZA Maria Teresa de LEMONICA Lino Paciente terminal e meacutedico capacitado parceria pela qualidade de vida Bioeacutetica Conselho Federal de Medicina v11 n1 p83-100 2003 COHEN-ALMAGOR Raphael Op Cit

6

A recusa de tratamento meacutedico consiste na negativa de iniciar ou de

manter um ou alguns tratamentos meacutedicos Apoacutes o devido processo de informaccedilatildeo o

paciente ndash ou em certos casos seus responsaacuteveis ndash decide se deseja ou natildeo iniciar ou

continuar tratamento meacutedico O processo culmina com a assinatura de um Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)15 A recusa pode ser ampla ou estrita

conforme seja admitida em qualquer circunstacircncia ndash por pacientes que podem recuperar

a sua sauacutede com o tratamento que recusam ndash ou em situaccedilotildees bem determinadas de

impossibilidade de recuperaccedilatildeo da sauacutede com a intervenccedilatildeo A uacuteltima hipoacutetese referida

por alguns como limitaccedilatildeo consentida de tratamento (ou tambeacutem suspensatildeo de esforccedilo

terapecircutico) possui laccedilos com a ortotanaacutesia A recusa ampla eacute ainda alvo de muitos

debates ao passo que existe certo consenso no marco teoacuterico hegemocircnico da bioeacutetica

quanto agrave possibilidade de recusa em sentido estrito

A retirada de suporte vital (RSV) a natildeo-oferta de suporte vital

(NSV) e as ordens de natildeo-ressuscitaccedilatildeo ou de natildeo-reanimaccedilatildeo (ONR) satildeo partes

integrantes da limitaccedilatildeo consentida de tratamento A RSV significa a suspensatildeo de

mecanismos artificiais de manutenccedilatildeo da vida como os sistemas de hidrataccedilatildeo e de

nutriccedilatildeo artificiais eou o sistema de ventilaccedilatildeo mecacircnica a NSV por sua vez significa o

natildeo-emprego desses mecanismos A ONR eacute uma determinaccedilatildeo de natildeo iniciar

procedimentos para reanimar um paciente acometido de mal irreversiacutevel e incuraacutevel

quando ocorre parada cardiorrespiratoacuteria16 Nos casos de ortotanaacutesia de cuidado

paliativo e de limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) eacute crucial o consentimento do

paciente ou de seus responsaacuteveis legais pois satildeo condutas que necessitam da

voluntariedade do paciente ou da aceitaccedilatildeo de seus familiares em casos determinados A

decisatildeo deve ser tomada apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo e devidamente

registrada mediante TCLE

15 Sobre o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou consentimento informado ver CLOTET Joaquim GOLDIM Joseacute Roberto (Org) FRANCISCONI Carlos Fernando Consentimento informado e sua praacutetica na assistecircncia e pesquisa no Brasil Porto Alegre EDIPUCRS 2000 MUNtildeOZ Daniel Romero FORTES Paulo Antocircnio Carvalho O princiacutepio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido In GARRAFA Volnei (Org) Iniciaccedilatildeo agrave bioeacutetica Brasiacutelia CFM 1999 p53-70 ENGELHARDT H Tristan Jr Fundamentos da bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2000 p345-440 PESSINI Leo GARRAFA Volnei (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p469 e s (especialmente a parte IV) 16 Cf KIPPER Deacutelio Joseacute Medicina e os cuidados de final da vida uma perspectiva brasileira e latino-americana In PESSINI Leo GARRAFA Volnei (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p413-414 Consultar ainda PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit passim MORAES E SOUZA Maria Teresa de LEMONICA Lino Op cit

7

Por fim suiciacutedio assistido designa a retirada da proacutepria vida com

auxiacutelio ou assistecircncia de terceiro O ato causador da morte eacute de autoria daquele que potildee

termo agrave proacutepria vida O terceiro colabora com o ato quer prestando informaccedilotildees quer

colocando agrave disposiccedilatildeo do paciente os meios e condiccedilotildees necessaacuterias agrave praacutetica O auxiacutelio

e a assistecircncia diferem do induzimento ao suiciacutedio No primeiro a vontade adveacutem do

paciente ao passo que no outro o terceiro age sobre a vontade do sujeito passivo de

modo a interferir com sua liberdade de accedilatildeo As duas formas admitem combinaccedilatildeo isto

eacute haacute possibilidade de uma pessoa ser simultaneamente instigada e assistida em seu

suiciacutedio O suiciacutedio assistido por meacutedico eacute espeacutecie do gecircnero suiciacutedio assistido

O rearranjo conceitual apresentado atinge a antiga distinccedilatildeo entre

as formas ativa e passiva da eutanaacutesia que passaram a receber denominaccedilotildees distintas

O termo eutanaacutesia aplica-se somente agravequela que era conhecida como forma ativa17 A

conduta antes caracterizada como eutanaacutesia passiva ndash e essa eacute uma das teses centrais

do presente estudo ndash jaacute natildeo deve ser necessariamente visualizada como antieacutetica

podendo ser expressatildeo da autonomia do paciente merecedora de respeito por parte da

equipe de sauacutede No mesmo ensejo a distinccedilatildeo entre a eutanaacutesia e a distanaacutesia permite

concluir que medidas excessivas e desproporcionais (na relaccedilatildeo benefiacutecioprejuiacutezo agrave

sauacutede e agrave qualidade de vida do enfermo) natildeo devem ser empregadas agrave revelia da

vontade do paciente nem tampouco correspondem agrave boa teacutecnica caso natildeo desejadas

pelo doente seus cuidadores ou seus responsaacuteveis legais

III O descompasso entre a interpretaccedilatildeo dominante do direito vigente e a eacutetica

meacutedica

A legislaccedilatildeo penal brasileira natildeo extrai consequecircncias juriacutedicas

significativas das categorizaccedilotildees mencionadas no toacutepico anterior salvo o suiciacutedio

assistido Assim sendo tanto a eutanaacutesia quanto a ortotanaacutesia ndash aiacute compreendida a

limitaccedilatildeo do tratamento ndash constituiriam hipoacuteteses de homiciacutedio18 No primeiro caso na

modalidade comissiva e no segundo na omissiva O auxiacutelio ao suiciacutedio eacute tratado em tipo

17 Para uma visatildeo da categorizaccedilatildeo anterior do tema com a distinccedilatildeo entre eutanaacutesia ativa e passiva aleacutem dos autores jaacute referidos na nota 3 v tb TOOLEY Michael Euthanasia and assisted suicide In FREY RG e WELLMAN Christopher Heath A companion to applied ethics Malden Blackwell 2007 p 326-341 18 Coacutedigo Penal art 121 ldquoMatar algueacutem Pena ndash reclusatildeo de 6 (seis) meses a 20 (vinte) anosrdquo

8

penal proacuteprio19 Nessa interpretaccedilatildeo que corresponde ao conhecimento convencional na

mateacuteria a decisatildeo do paciente ou de sua famiacutelia de descontinuar um tratamento meacutedico

desproporcional extraordinaacuterio ou fuacutetil natildeo alteraria o caraacuteter criminoso da conduta A

existecircncia de consentimento natildeo produziria o efeito juriacutedico de salvaguardar o meacutedico de

uma persecuccedilatildeo penal Em suma natildeo haveria distinccedilatildeo entre o ato de natildeo tratar um

enfermo terminal segundo a sua proacutepria vontade e o ato de intencionalmente abreviar-

lhe a vida tambeacutem a seu pedido 20

Essa postura legislativa e doutrinaacuteria pode produzir consequecircncias

graves pois ao oferecer o mesmo tratamento juriacutedico para situaccedilotildees distintas o

paradigma legal reforccedila condutas de obstinaccedilatildeo terapecircutica e acaba por promover a

distanaacutesia Com isso endossa um modelo meacutedico paternalista que se funda na

autoridade do profissional da medicina sobre o paciente e descaracteriza a condiccedilatildeo de

sujeito do enfermo Ainda que os meacutedicos natildeo mais estejam vinculados eticamente a

esse modelo superado de relaccedilatildeo o espectro da sanccedilatildeo pode levaacute-los a adotaacute-lo Natildeo

apenas manteratildeo ou iniciaratildeo um tratamento indesejado gerador de muita agonia e

padecimento como por vezes adotaratildeo algum natildeo recomendado pela boa teacutecnica por

sua desproporcionalidade A arte de curar e de evitar o sofrimento se transmuda entatildeo

no ofiacutecio mais rude de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condiccedilotildees Natildeo

eacute apenas a autonomia do paciente que eacute agredida A liberdade de consciecircncia do

profissional da sauacutede pode tambeacutem estar em xeque21

19 Coacutedigo Penal art 122 ldquoInduzir ou instigar algueacutem a suicidar-se ou prestar-lhe auxiacutelio para que o faccedila Pena ndash reclusatildeo de 2 (dois) a 6 (seis) anos se o suiciacutedio se consuma ou reclusatildeo de 1 (um) a 3 (trecircs) anos se da tentativa de suiciacutedio resulta lesatildeo corporal de natureza graverdquo 20 Pelo conhecimento convencional no Brasil ambas as condutas seriam consideradas homiciacutedio o qual caso viesse a ser reconhecido pelo juacuteri poderia contar com uma causa especial de diminuiccedilatildeo de pena (privileacutegio) V MIRABETE Juacutelio Fabbrini Coacutedigo Penal Interpretado 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2003 E tambeacutem CAPEZ Fernando Curso de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p34 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p58 Sobre as privilegiadoras e qualificadoras SANTOS Juarez Cirino A moderna teoria do fato puniacutevel 4 ed rev e ampl Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 DODGE Raquel Elias Ferreira Eutanaacutesia aspectos juriacutedicos Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevista bio1v7eutaspectoshtm Acesso em maio 2006 BRASIL Ministeacuterio Puacuteblico Federal -1a Reg Recomendaccedilatildeo 012006 - WD - PRDC Disponiacutevel em wwwprdfmpfgovbrprdclegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em 25 nov 2006 21 Quanto ao cuidado paliativo de duplo efeito a situaccedilatildeo eacute ainda pior por razotildees notoacuterias Se um meacutedico for autorizado pelo enfermo a lanccedilar matildeo dessa teacutecnica poderaacute abreviar seu tempo de vida Se o mundo juriacutedico natildeo oferecer amparo seguro a essa accedilatildeo o temor de cometer um crime pode ensejar o uso de dosagens medicamentosas menores do que o necessaacuterio para aplacar o imenso sofrimento fiacutesico e psicoloacutegico daqueles que estatildeo no leito de morte

9

A Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 de 9112006 editada pelo

Conselho Federal de Medicina procurou contornar as deficiecircncias e insuficiecircncias de um

Coacutedigo Penal cuja parte especial eacute da deacutecada de 40 do seacuteculo passado Nessa linha

invocando sua funccedilatildeo disciplinadora da classe meacutedica bem como o art 5ordm III da

Constituiccedilatildeo pretendeu dar suporte juriacutedico agrave ortotanaacutesia Sem menccedilatildeo agrave eutanaacutesia e ao

suiciacutedio assistido ndash que continuam a ser considerados pelo Conselho como praacuteticas natildeo-

eacuteticas ndash a Resoluccedilatildeo tratou da limitaccedilatildeo do tratamento e do cuidado paliativo de doentes

em fase terminal nas hipoacuteteses autorizadas por seus parentes ou por seus familiares

Trazendo uma fundamentada Exposiccedilatildeo de Motivos a Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 tem

o conteuacutedo assim resumido em sua Ementa

ldquoNa fase terminal de enfermidades graves e incuraacuteveis eacute permitido

ao meacutedico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que

prolonguem a vida do doente garantindo-lhe os cuidados

necessaacuterios para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento na

perspectiva de uma assistecircncia integral respeitada a vontade do

paciente ou de seu representante legalrdquo

Eacute possiacutevel fazer uma defesa da Resoluccedilatildeo do Conselho Federal de

Medicina quer dentro das categorias do proacuteprio direito penal quer mediante uma leitura

de seu texto agrave luz da Constituiccedilatildeo Por ora no entanto faz-se o registro de que foi ela

suspensa por decisatildeo judicial produzida em accedilatildeo civil puacuteblica movida pelo Ministeacuterio

Puacuteblico Federal perante a Justiccedila Federal de Brasiacutelia Na peticcedilatildeo inicial de 131 paacuteginas o

Procurador da Repuacuteblica que a subscreve colocou-se frontalmente contra o conteuacutedo da

Resoluccedilatildeo Em meio a muitas consideraccedilotildees juriacutedicas morais e metafiacutesicas afirmou ldquoA

ortotanaacutesia natildeo passa de um artifiacutecio homicida expediente desprovido de razotildees loacutegicas

e violador da Constituiccedilatildeo Federal mero desejo de dar ao homem pelo proacuteprio homem

a possibilidade de uma decisatildeo que nunca lhe pertenceurdquo 22 Na decisatildeo que acolheu o

pedido de antecipaccedilatildeo de tutela entendeu o juiz de primeiro grau pela existecircncia de

ldquoaparente conflito entre a resoluccedilatildeo questionada e o Coacutedigo Penalrdquo23

22 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpnoticiaspgrmpfgovbrnoticias-do-sitepdfsACP20Ortotanasiapdf Acesso em out2007 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpprdcprdfmpfgovbrlegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em dez2006 23 V inteiro teor da decisatildeo em wwwdftrf1govbr20073400014809-3_decisao_23-10-2007doc

10

A decisatildeo marca o encontro no Brasil de dois fenocircmenos do nosso

tempo a medicalizaccedilatildeo24 e a judicializaccedilatildeo25 da vida Ambos potencializados por um

terceiro fenocircmeno a sociedade espetaacuteculo em que os meios de comunicaccedilatildeo

transmitem em tempo real ao vivo e em cores dramas como os de Terri Schiavo

(EUA)26 Hannah Jones (Reino Unido)27 ou Eluana (Itaacutelia)28 O pronunciamento judicial

suspensivo da Resoluccedilatildeo exibe igualmente o descompasso entre ordenamento juriacutedico e

a eacutetica meacutedica E no mundo poacutes-positivista de reaproximaccedilatildeo entre o Direito e a Eacutetica

este eacute um desencontro que deve ser evitado A propoacutesito deve-se registrar que a

orientaccedilatildeo do Conselho Federal de Medicina estaacute em consonacircncia com as da Associaccedilatildeo

Meacutedica Mundial (AMM) as da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura (UNESCO) e as do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos

Humanos (CEDH) 29 E tambeacutem com o tratamento juriacutedico adotado em paiacuteses como

24 A expressatildeo lsquomedicalizaccedilatildeo da vidarsquo foi cunhada e definida em ILLICH Ivan The medicalization of life Journal of Medical Ethics I 1975 p73-77 25 BARROSO Luiacutes Roberto Judicializaccedilatildeo ativismo judicial e legitimidade democraacutetica Revista de Direito do Estado Rio de Janeiro n 13 2009 26 Em decorrecircncia de uma parada cardiacuteaca Terri Schiavo viveu em estado vegetativo ateacute falecer em 2005 Nos uacuteltimos sete anos de sua vida seu marido e representante legal Michael Schiavo vinha pedindo ao Judiciaacuterio dos EUA o desligamento dos tubos que a mantinham viva Para tanto afirmava que antes de entrar em estado vegetativo a mulher havia se manifestado diversas vezes no sentido de que natildeo gostaria de ser mantida viva artificialmente Agrave pretensatildeo do marido se opuseram tanto os proacuteprios pais de Terri quanto diversas autoridades norte-americanas como o Presidente Geoge W Bush A longa controveacutersia juriacutedica envolveu desde a Justiccedila Estadual da Floacuterida ateacute a Justiccedila Federal dos EUA passando pelo Legislativo e pelo Governador do Estado Por sua vez a Suprema Corte dos EUA se recusou a analisar a mateacuteria Terri Schiavo faleceu em 31 de marccedilo de 2005 O resultado de sua autoacutepsia confirmou que nenhum tratamento poderia tecirc-la ajudado a superar os danos neuroloacutegicos que sofreu V Saiba mais sobre o conflito judicial do caso Schiavo Folha Online 29mar2005 Disponiacutevel em lthttpwww1folhauolcombrfolhamundoult94u82068shtmlgt Uacuteltimo acesso 24jun2009 GOODNOUGH Abby Schiavo Autopsy Says Brain Withered Was Untreatable New York Times 16jun2005 Disponiacutevel em lthttpwwwnytimescom20050616national16schiavohtmlgt Acesso em jun2009 27 Aos cinco anos de idade Hannah Jones foi diagnosticada com uma forma rara de leucemia e desde entatildeo sua vida passou a envolver frequentes internaccedilotildees hospitalares Seu tratamento incluiu doses de um forte medicamento contra uma infecccedilatildeo o que acabou causando danos ao seu coraccedilatildeo Sua uacutenica chance de viver longamente viria com um transplante Mas a menina de treze anos recusou o tratamento afirmando que jaacute sofrera traumas demais e natildeo queria passar por novas cirurgias ndash preferia morrer com dignidade Irresignado com a decisatildeo da paciente o hospital foi ao Judiciaacuterio Decidiu-se poreacutem que Hannah era madura o suficiente para decidir por si proacutepria V PERCIVAL Jenny Teenager who won right to die I have had too much trauma Guardiancouk 11nov2008 Disponiacutevel em lthttpwwwguardiancouksociety2008nov11child-protection-health-hannah-jonesgt Acesso em jun2009 28 Eluana Englaro ficou em coma por dezessete anos desde que sofreu um acidente de carro em 1992 Seu caso causou grande comoccedilatildeo na Itaacutelia mobilizando setores ligados agrave Igreja Catoacutelica e gerando uma crise entre o Primeiro-ministro Silvio Berlusconi e o Presidente Giorgio Napolitano Por dez anos o pai da moccedila lutou para garantir o direito de deixaacute-la morrer mas soacute conseguiu em 21 de janeiro de 2009 Ela passou trecircs dias sem receber comida e hidrataccedilatildeo mas uma ldquocriserdquo acabou antecipando sua morte V Morre Eluana a italiana que estava em coma havia 17 anos G1 9fev2009 Disponiacutevel em lthttpg1globocomNoticiasMundo0MUL993961-560200htmlgt Acesso em jun2009 29 a) as Resoluccedilotildees da AMM sobre eutanaacutesia e suiciacutedio assistido consideram tais condutas antieacuteticas mas assumem que eacute direito do paciente recusar tratamento meacutedico ainda que da recusa decorra a morte e que eacute direito do paciente ter respeitada a sua escolha de que o ldquoprocesso natural da morte siga seu curso na fase terminal da doenccedilardquo b) A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO determina que

11

Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Espanha Meacutexico Reino Unido Franccedila Itaacutelia Suiacuteccedila

Sueacutecia Beacutelgica Holanda e Uruguai30

Estatildeo em choque aqui dois modelos Um de iacutendole paternalista

que desconsidera a vontade do paciente e de seus familiares privados de fazerem

escolhas morais proacuteprias O outro fundado na deontologia meacutedica valoriza a autonomia

e o diaacutelogo aceitando que a arte de curar se converta em cuidado e amparo Cabe

procurar entender e enfrentar as razotildees do desencontro entre as imposiccedilotildees juriacutedicas e

as exigecircncias eacuteticas O principal argumento contraacuterio a qualquer hipoacutetese de morte com

intervenccedilatildeo decorre da compreensatildeo do direito agrave vida como um direito fundamental

absoluto No Brasil essa valorizaccedilatildeo maacutexima da vida bioloacutegica e do modelo biomeacutedico

intensivista e interventor tem sua origem em algumas doutrinas morais abrangentes

muitas de cunho religioso que penetram na interpretaccedilatildeo juriacutedica Esta visatildeo do mundo

se manifesta em diferentes passagens da accedilatildeo civil puacuteblica acima referida

Ao avanccedilar no debate eacute preciso ter em conta que o direito agrave vida eacute

de fato especial Qualquer flexibilizaccedilatildeo de sua forccedila juriacutedica ou moral eacute delicada e deve

envolver cautelas muacuteltiplas Qualquer desprezo pela vida humana mesmo nas

circunstacircncias mais adversas eacute suspeita Um dos consensos miacutenimos que compotildeem a

ldquoqualquer intervenccedilatildeo meacutedica preventiva diagnoacutestica e terapecircutica soacute deve ser realizada com o consentimento preacutevio livre e esclarecido do indiviacuteduo envolvido baseado em informaccedilatildeo adequada O consentimento deve quando apropriado ser manifesto e poder ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razatildeo sem acarretar desvantagem ou preconceitordquo Para os casos de incapacidade haacute dispositivos especiacuteficos que visam a proteger a parcela de autonomia remanescente e os melhores interesses do envolvido c) O Conselho Europeu posicionou-se favoravelmente agrave implementaccedilatildeo de cuidados paliativos e do respeito dos direitos dos pacientes de recusarem tratamentos fuacuteteis ou extraordinaacuterios O Conselho determinou aos Estados-membros a normatizaccedilatildeo dos testamentos de vida e das diretivas avanccediladas d) ao decidir o caso Pretty a CEDH permitiu entrever que abaliza a limitaccedilatildeo consentida de tratamento em pacientes terminais ou em estado irreversiacutevel muito embora tenha se recusado a aceitar o suiciacutedio assistido Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit PARLIAMENTARY ASSEMBLY Resolution 1649 (2009) Palliative Care a model for innovative health and social policies Disponiacutevel em httpassemblycoeintmainaspLink=documentsadoptedtextta09eres1649htm Uacuteltimo acesso em mar2009 30 a) a Suprema Corte dos Estados Unidos assentou o seu posicionamento nos casos Vacco v Quill e Washington v Glucksberg et al jaacute lastreados em decisotildees anteriores como o caso Cruzan b) a Suprema Corte do Canadaacute reafirmou seu entendimento no tema em Rodriguez v British Columbia c) no Reino Unido satildeo importantes as decisotildees dos casos Airedale NHS Trust v Bland e The Queen on the Application of Mrs Dianne Pretty (Appellant) v Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home Department (Interested Party) d) a Beacutelgica e a Holanda reconhecem natildeo apenas a LCT como tambeacutem a eutanaacutesia eou o suiciacutedio assistido e) a Suiacuteccedila permite o suiciacutedio assistido f) na Espanha as decisotildees de suspensatildeo de suporte vital em pacientes terminais satildeo respeitadas e desde 2000 haacute leis sobre testamentos vitais (Ley Catalana) g) na Franccedila a limitaccedilatildeo consentida de tratamento foi permitida por lei em 2005 Cf MICCINESI Guido et al Physicianrsquos attitudes towards end-of-life decisions a comparison between seven countries Social Science amp Medicine (2005) 1961-1974 COHEN Joachim et al European public acceptance of euthanasia Socio-demographic and cultural factors associated with the acceptance of euthanasia in 33 European countries Social Science amp Medicine 63 (2006) 743-756 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p257 e s

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dignidade humana nas sociedades ocidentais eacute a preservaccedilatildeo da vida como um valor em

si que se atinge naturalmente por sua promoccedilatildeo e proteccedilatildeo rigorosa Com efeito basta

considerar que aleacutem do seu caraacuteter substantivo o direito agrave vida eacute preacute-condiccedilatildeo eacute

instrumento que permite a proacutepria dignidade pois sua negaccedilatildeo leva agrave inexistecircncia do

sujeito da dignidade Diante de tais premissas criminalizar atos que atentem contra a

vida humana tende a ser um meio adequado dentre outros de preservaccedilatildeo da vida e da

dignidade humanas Mas nem mesmo o direito agrave vida eacute absoluto

Eacute precisamente no ambiente da morte com intervenccedilatildeo que cabe

discutir a visatildeo da dignidade que impotildee ao indiviacuteduo a vida como um bem em si Como

intuitivo natildeo se estaacute aqui diante de uma situaccedilatildeo banal temporaacuteria ou reversiacutevel na

qual um indiviacuteduo decide morrer e outros se omitem em evitar ou prestam-lhe auxiacutelio

Justamente ao contraacuterio trata-se de pessoas que em condiccedilotildees nada ordinaacuterias

reclamam a possibilidade de renunciar a intervenccedilotildees meacutedicas de prolongamento da

vida Ou em outros casos de optar pela abreviaccedilatildeo direta da vida por ato proacuteprio ou

alheio por estarem acometidos de doenccedilas terminais extremamente dolorosas ou por

enfermidades degenerativas que conduzem agrave perda paulatina da independecircncia Nessas

situaccedilotildees extremas aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito agrave

vida impedindo que ele se transforme em um insuportaacutevel dever agrave vida Se em uma

infinidade de situaccedilotildees a dignidade eacute o fundamento da valorizaccedilatildeo da vida na morte

com intervenccedilatildeo as motivaccedilotildees se invertem

O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenccedilas para

as quais a medicina desconhece a cura ou a reversatildeo contra a sua vontade ou de seus

responsaacuteveis legais enseja dor sofrimento humilhaccedilatildeo exposiccedilatildeo intrusotildees corporais

indevidas e perda da liberdade Entram em cena entatildeo outros conteuacutedos da proacutepria

dignidade Eacute que a dignidade protege tambeacutem a liberdade e a inviolabilidade do

indiviacuteduo quanto agrave sua desumanizaccedilatildeo e degradaccedilatildeo Eacute nesse passo que se verifica uma

tensatildeo dentro do proacuteprio conceito em busca da determinaccedilatildeo de seu sentido e alcance

diante de situaccedilotildees concretas De um lado a dignidade serviria de impulso para a defesa

da vida e das concepccedilotildees sociais do que seja o bem morrer De outro ela se apresenta

como fundamento da morte com intervenccedilatildeo assegurando a autonomia individual a

superaccedilatildeo do sofrimento e a morte digna31

31 MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002

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Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

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nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

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A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 4: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

4

O termo eutanaacutesia foi utilizado por longo tempo de forma geneacuterica

e ampla abrangendo condutas comissivas e omissivas em pacientes que se encontravam

em situaccedilotildees muito dessemelhantes Atualmente o conceito eacute confinado a uma acepccedilatildeo

bastante estreita que compreende apenas a forma ativa aplicada por meacutedicos a doentes

terminais cuja morte eacute inevitaacutevel em um curto lapso5 Compreende-se que a eutanaacutesia eacute

a accedilatildeo meacutedica intencional de apressar ou provocar a morte ndash com exclusiva finalidade

benevolente ndash de pessoa que se encontre em situaccedilatildeo considerada irreversiacutevel e

incuraacutevel consoante os padrotildees meacutedicos vigentes e que padeccedila de intensos sofrimentos

fiacutesicos e psiacutequicos Do conceito estatildeo excluiacutedas a assim chamada eutanaacutesia passiva eis

que ocasionada por omissatildeo bem como a indireta ocasionada por accedilatildeo desprovida da

intenccedilatildeo de provocar a morte Natildeo se confunde tampouco com o homiciacutedio piedoso

conceito mais amplo que conteacutem o de eutanaacutesia De acordo com o consentimento ou natildeo

daquele que padece a eutanaacutesia pode ser voluntaacuteria natildeo-voluntaacuteria e involuntaacuteria6

Por distanaacutesia compreende-se a tentativa de retardar a morte o

maacuteximo possiacutevel empregando para isso todos os meios meacutedicos disponiacuteveis ordinaacuterios

e extraordinaacuterios ao alcance proporcionais ou natildeo mesmo que isso signifique causar

dores e padecimentos a uma pessoa cuja morte eacute iminente e inevitaacutevel7 Em outras

palavras eacute um prolongamento artificial da vida do paciente sem chance de cura ou de

recuperaccedilatildeo da sauacutede segundo o estado da arte da ciecircncia da sauacutede mediante conduta

na qual ldquonatildeo se prolonga a vida propriamente dita mas o processo de morrerrdquo8 A

obstinaccedilatildeo terapecircutica e o tratamento fuacutetil estatildeo associados agrave distanaacutesia Alguns autores

5 Sobre a elaboraccedilatildeo discussatildeo e criacutetica dos conceitos ver PESSINI Leo Distanaacutesia ateacute quando prolongar a vida Satildeo Paulo Editora do Centro Universitaacuterio Satildeo Camilo Loyola 2001 (Coleccedilatildeo Bioeacutetica em Perspectiva 2) MARTIN Leonard M Eutanaacutesia e distanaacutesia In GARRAFA Volnei (Org) Iniciaccedilatildeo agrave bioeacutetica Brasiacutelia CFM p171-192 SIQUEIRA-BATISTA Rodrigo SCHRAMM Fermin Roland Eutanaacutesia pelas veredas da morte e da autonomia Ciecircncia e sauacutede coletiva v9 n1 p33 e s 2004 McCONNELL Terrance Inalienable rights the limits of consent in medicine and the law Oxford Oxford University 2000 p88 RIBEIRO Diaulas Costa Autonomia viver a proacutepria vida e morrer a proacutepria morte Cadernos de Sauacutede Puacuteblica Rio de Janeiro v 22 n8 p 1749-1754 ago 2006 Para relevantes visotildees criacuteticas COHEN-ALMAGOR Raphael Language and reality in the end-of-life The Journal of law medicine amp ethics Vol 283 Fall 2000 p267-278 BROCK Dan W Life and death philosophical essays in biomedical ethics Cambridge Cambridge University Press 2000 p169-172 6 Diz-se que eacute voluntaacuteria quando haacute expresso e informado consentimento natildeo-voluntaacuteria quando se realiza sem o conhecimento da vontade do paciente e involuntaacuteria quando eacute realizada contra a vontade do paciente No que toca agrave eutanaacutesia involuntaacuteria haacute um relevante e adequado consenso juriacutedico quanto ao seu caraacuteter criminoso Os casos mais comuns da eutanaacutesia natildeo-voluntaacuteria satildeo os que envolvem pacientes incapazes Sobre esse uacuteltimo ponto v McCONNELL Terrance Op cit p89 7 Este conceito foi extraiacutedo do voto do magistrado colombiano Vladimiro Naranjo Mesa com leves alteraccedilotildees em seu texto COLOMBIA Sentencia C-23997 Disponiacutevel em httpwebminjusticisgovcojusrisprudencia Uacuteltimo acesso em ago2005 Sobre a distanaacutesia eacute muito relevante consultar PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit 8 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p30

5

tratam-nos inclusive como sinocircnimos A primeira consiste no comportamento meacutedico de

combater a morte de todas as formas como se fosse possiacutevel curaacute-la em ldquouma luta

desenfreada e (ir)racionalrdquo9 sem que se tenha em conta os padecimentos e os custos

humanos gerados O segundo refere-se ao emprego de teacutecnicas e meacutetodos

extraordinaacuterios e desproporcionais de tratamento incapazes de ensejar a melhora ou a

cura mas haacutebeis a prolongar a vida ainda que agravando sofrimentos de forma tal que

os benefiacutecios previsiacuteveis satildeo muito inferiores aos danos causados10

Em sentido oposto da distanaacutesia e distinto da eutanaacutesia tem-se a

ortotanaacutesia Trata-se da morte em seu tempo adequado natildeo combatida com os meacutetodos

extraordinaacuterios e desproporcionais utilizados na distanaacutesia nem apressada por accedilatildeo

intencional externa como na eutanaacutesia Eacute uma aceitaccedilatildeo da morte pois permite que ela

siga seu curso Eacute praacutetica ldquosensiacutevel ao processo de humanizaccedilatildeo da morte ao aliacutevio das

dores e natildeo incorre em prolongamentos abusivos com aplicaccedilatildeo de meios

desproporcionados que imporiam sofrimentos adicionaisrdquo11 Indissociaacutevel da ortotanaacutesia

eacute o cuidado paliativo voltado agrave utilizaccedilatildeo de toda a tecnologia possiacutevel para aplacar o

sofrimento fiacutesico e psiacutequico do enfermo12 Evitando meacutetodos extraordinaacuterios e

excepcionais procura-se aliviar o padecimento do doente terminal pelo uso de recursos

apropriados para tratar os sintomas como a dor e a depressatildeo13 O cuidado paliativo

pode envolver o que se denomina duplo efeito em determinados casos o uso de

algumas substacircncias para controlar a dor e a anguacutestia pode aproximar o momento da

morte A diminuiccedilatildeo do tempo de vida eacute um efeito previsiacutevel sem ser desejado pois o

objetivo primaacuterio eacute oferecer o maacuteximo conforto possiacutevel ao paciente sem intenccedilatildeo de

ocasionar o evento morte14

9 SIQUEIRA-BATISTA Rodrigo SCHRAMM Fermin Roland Op cit p33 A expressatildeo cura da morte foi cunhada por Leo Pessini Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p331 e s 10 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit especialmente as paacuteginas 163 e s Ver tambeacutem COHEN-ALMAGOR Raphael Op Cit 11 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p31 12 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p203 e s 13 Este conceito foi extraiacutedo do voto do magistrado colombiano Vladimiro Naranjo Mesa com sutis alteraccedilotildees em seu texto COLOMBIA Sentencia C-23997 Op cit 14 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p213 COLOMBIA Sentencia C-23997 Op cit voto do magistrado Vladimiro Naranjo Mesa QUILL T E et al Palliative treatments of last resort choosing the least harmful alternative Annals of Internal Medicine v132 n6 p488-493 March 2000 Disponiacutevel em wwwannalsorgcgicontent Acesso em jun2006 MORAES E SOUZA Maria Teresa de LEMONICA Lino Paciente terminal e meacutedico capacitado parceria pela qualidade de vida Bioeacutetica Conselho Federal de Medicina v11 n1 p83-100 2003 COHEN-ALMAGOR Raphael Op Cit

6

A recusa de tratamento meacutedico consiste na negativa de iniciar ou de

manter um ou alguns tratamentos meacutedicos Apoacutes o devido processo de informaccedilatildeo o

paciente ndash ou em certos casos seus responsaacuteveis ndash decide se deseja ou natildeo iniciar ou

continuar tratamento meacutedico O processo culmina com a assinatura de um Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)15 A recusa pode ser ampla ou estrita

conforme seja admitida em qualquer circunstacircncia ndash por pacientes que podem recuperar

a sua sauacutede com o tratamento que recusam ndash ou em situaccedilotildees bem determinadas de

impossibilidade de recuperaccedilatildeo da sauacutede com a intervenccedilatildeo A uacuteltima hipoacutetese referida

por alguns como limitaccedilatildeo consentida de tratamento (ou tambeacutem suspensatildeo de esforccedilo

terapecircutico) possui laccedilos com a ortotanaacutesia A recusa ampla eacute ainda alvo de muitos

debates ao passo que existe certo consenso no marco teoacuterico hegemocircnico da bioeacutetica

quanto agrave possibilidade de recusa em sentido estrito

A retirada de suporte vital (RSV) a natildeo-oferta de suporte vital

(NSV) e as ordens de natildeo-ressuscitaccedilatildeo ou de natildeo-reanimaccedilatildeo (ONR) satildeo partes

integrantes da limitaccedilatildeo consentida de tratamento A RSV significa a suspensatildeo de

mecanismos artificiais de manutenccedilatildeo da vida como os sistemas de hidrataccedilatildeo e de

nutriccedilatildeo artificiais eou o sistema de ventilaccedilatildeo mecacircnica a NSV por sua vez significa o

natildeo-emprego desses mecanismos A ONR eacute uma determinaccedilatildeo de natildeo iniciar

procedimentos para reanimar um paciente acometido de mal irreversiacutevel e incuraacutevel

quando ocorre parada cardiorrespiratoacuteria16 Nos casos de ortotanaacutesia de cuidado

paliativo e de limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) eacute crucial o consentimento do

paciente ou de seus responsaacuteveis legais pois satildeo condutas que necessitam da

voluntariedade do paciente ou da aceitaccedilatildeo de seus familiares em casos determinados A

decisatildeo deve ser tomada apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo e devidamente

registrada mediante TCLE

15 Sobre o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou consentimento informado ver CLOTET Joaquim GOLDIM Joseacute Roberto (Org) FRANCISCONI Carlos Fernando Consentimento informado e sua praacutetica na assistecircncia e pesquisa no Brasil Porto Alegre EDIPUCRS 2000 MUNtildeOZ Daniel Romero FORTES Paulo Antocircnio Carvalho O princiacutepio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido In GARRAFA Volnei (Org) Iniciaccedilatildeo agrave bioeacutetica Brasiacutelia CFM 1999 p53-70 ENGELHARDT H Tristan Jr Fundamentos da bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2000 p345-440 PESSINI Leo GARRAFA Volnei (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p469 e s (especialmente a parte IV) 16 Cf KIPPER Deacutelio Joseacute Medicina e os cuidados de final da vida uma perspectiva brasileira e latino-americana In PESSINI Leo GARRAFA Volnei (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p413-414 Consultar ainda PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit passim MORAES E SOUZA Maria Teresa de LEMONICA Lino Op cit

7

Por fim suiciacutedio assistido designa a retirada da proacutepria vida com

auxiacutelio ou assistecircncia de terceiro O ato causador da morte eacute de autoria daquele que potildee

termo agrave proacutepria vida O terceiro colabora com o ato quer prestando informaccedilotildees quer

colocando agrave disposiccedilatildeo do paciente os meios e condiccedilotildees necessaacuterias agrave praacutetica O auxiacutelio

e a assistecircncia diferem do induzimento ao suiciacutedio No primeiro a vontade adveacutem do

paciente ao passo que no outro o terceiro age sobre a vontade do sujeito passivo de

modo a interferir com sua liberdade de accedilatildeo As duas formas admitem combinaccedilatildeo isto

eacute haacute possibilidade de uma pessoa ser simultaneamente instigada e assistida em seu

suiciacutedio O suiciacutedio assistido por meacutedico eacute espeacutecie do gecircnero suiciacutedio assistido

O rearranjo conceitual apresentado atinge a antiga distinccedilatildeo entre

as formas ativa e passiva da eutanaacutesia que passaram a receber denominaccedilotildees distintas

O termo eutanaacutesia aplica-se somente agravequela que era conhecida como forma ativa17 A

conduta antes caracterizada como eutanaacutesia passiva ndash e essa eacute uma das teses centrais

do presente estudo ndash jaacute natildeo deve ser necessariamente visualizada como antieacutetica

podendo ser expressatildeo da autonomia do paciente merecedora de respeito por parte da

equipe de sauacutede No mesmo ensejo a distinccedilatildeo entre a eutanaacutesia e a distanaacutesia permite

concluir que medidas excessivas e desproporcionais (na relaccedilatildeo benefiacutecioprejuiacutezo agrave

sauacutede e agrave qualidade de vida do enfermo) natildeo devem ser empregadas agrave revelia da

vontade do paciente nem tampouco correspondem agrave boa teacutecnica caso natildeo desejadas

pelo doente seus cuidadores ou seus responsaacuteveis legais

III O descompasso entre a interpretaccedilatildeo dominante do direito vigente e a eacutetica

meacutedica

A legislaccedilatildeo penal brasileira natildeo extrai consequecircncias juriacutedicas

significativas das categorizaccedilotildees mencionadas no toacutepico anterior salvo o suiciacutedio

assistido Assim sendo tanto a eutanaacutesia quanto a ortotanaacutesia ndash aiacute compreendida a

limitaccedilatildeo do tratamento ndash constituiriam hipoacuteteses de homiciacutedio18 No primeiro caso na

modalidade comissiva e no segundo na omissiva O auxiacutelio ao suiciacutedio eacute tratado em tipo

17 Para uma visatildeo da categorizaccedilatildeo anterior do tema com a distinccedilatildeo entre eutanaacutesia ativa e passiva aleacutem dos autores jaacute referidos na nota 3 v tb TOOLEY Michael Euthanasia and assisted suicide In FREY RG e WELLMAN Christopher Heath A companion to applied ethics Malden Blackwell 2007 p 326-341 18 Coacutedigo Penal art 121 ldquoMatar algueacutem Pena ndash reclusatildeo de 6 (seis) meses a 20 (vinte) anosrdquo

8

penal proacuteprio19 Nessa interpretaccedilatildeo que corresponde ao conhecimento convencional na

mateacuteria a decisatildeo do paciente ou de sua famiacutelia de descontinuar um tratamento meacutedico

desproporcional extraordinaacuterio ou fuacutetil natildeo alteraria o caraacuteter criminoso da conduta A

existecircncia de consentimento natildeo produziria o efeito juriacutedico de salvaguardar o meacutedico de

uma persecuccedilatildeo penal Em suma natildeo haveria distinccedilatildeo entre o ato de natildeo tratar um

enfermo terminal segundo a sua proacutepria vontade e o ato de intencionalmente abreviar-

lhe a vida tambeacutem a seu pedido 20

Essa postura legislativa e doutrinaacuteria pode produzir consequecircncias

graves pois ao oferecer o mesmo tratamento juriacutedico para situaccedilotildees distintas o

paradigma legal reforccedila condutas de obstinaccedilatildeo terapecircutica e acaba por promover a

distanaacutesia Com isso endossa um modelo meacutedico paternalista que se funda na

autoridade do profissional da medicina sobre o paciente e descaracteriza a condiccedilatildeo de

sujeito do enfermo Ainda que os meacutedicos natildeo mais estejam vinculados eticamente a

esse modelo superado de relaccedilatildeo o espectro da sanccedilatildeo pode levaacute-los a adotaacute-lo Natildeo

apenas manteratildeo ou iniciaratildeo um tratamento indesejado gerador de muita agonia e

padecimento como por vezes adotaratildeo algum natildeo recomendado pela boa teacutecnica por

sua desproporcionalidade A arte de curar e de evitar o sofrimento se transmuda entatildeo

no ofiacutecio mais rude de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condiccedilotildees Natildeo

eacute apenas a autonomia do paciente que eacute agredida A liberdade de consciecircncia do

profissional da sauacutede pode tambeacutem estar em xeque21

19 Coacutedigo Penal art 122 ldquoInduzir ou instigar algueacutem a suicidar-se ou prestar-lhe auxiacutelio para que o faccedila Pena ndash reclusatildeo de 2 (dois) a 6 (seis) anos se o suiciacutedio se consuma ou reclusatildeo de 1 (um) a 3 (trecircs) anos se da tentativa de suiciacutedio resulta lesatildeo corporal de natureza graverdquo 20 Pelo conhecimento convencional no Brasil ambas as condutas seriam consideradas homiciacutedio o qual caso viesse a ser reconhecido pelo juacuteri poderia contar com uma causa especial de diminuiccedilatildeo de pena (privileacutegio) V MIRABETE Juacutelio Fabbrini Coacutedigo Penal Interpretado 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2003 E tambeacutem CAPEZ Fernando Curso de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p34 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p58 Sobre as privilegiadoras e qualificadoras SANTOS Juarez Cirino A moderna teoria do fato puniacutevel 4 ed rev e ampl Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 DODGE Raquel Elias Ferreira Eutanaacutesia aspectos juriacutedicos Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevista bio1v7eutaspectoshtm Acesso em maio 2006 BRASIL Ministeacuterio Puacuteblico Federal -1a Reg Recomendaccedilatildeo 012006 - WD - PRDC Disponiacutevel em wwwprdfmpfgovbrprdclegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em 25 nov 2006 21 Quanto ao cuidado paliativo de duplo efeito a situaccedilatildeo eacute ainda pior por razotildees notoacuterias Se um meacutedico for autorizado pelo enfermo a lanccedilar matildeo dessa teacutecnica poderaacute abreviar seu tempo de vida Se o mundo juriacutedico natildeo oferecer amparo seguro a essa accedilatildeo o temor de cometer um crime pode ensejar o uso de dosagens medicamentosas menores do que o necessaacuterio para aplacar o imenso sofrimento fiacutesico e psicoloacutegico daqueles que estatildeo no leito de morte

9

A Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 de 9112006 editada pelo

Conselho Federal de Medicina procurou contornar as deficiecircncias e insuficiecircncias de um

Coacutedigo Penal cuja parte especial eacute da deacutecada de 40 do seacuteculo passado Nessa linha

invocando sua funccedilatildeo disciplinadora da classe meacutedica bem como o art 5ordm III da

Constituiccedilatildeo pretendeu dar suporte juriacutedico agrave ortotanaacutesia Sem menccedilatildeo agrave eutanaacutesia e ao

suiciacutedio assistido ndash que continuam a ser considerados pelo Conselho como praacuteticas natildeo-

eacuteticas ndash a Resoluccedilatildeo tratou da limitaccedilatildeo do tratamento e do cuidado paliativo de doentes

em fase terminal nas hipoacuteteses autorizadas por seus parentes ou por seus familiares

Trazendo uma fundamentada Exposiccedilatildeo de Motivos a Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 tem

o conteuacutedo assim resumido em sua Ementa

ldquoNa fase terminal de enfermidades graves e incuraacuteveis eacute permitido

ao meacutedico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que

prolonguem a vida do doente garantindo-lhe os cuidados

necessaacuterios para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento na

perspectiva de uma assistecircncia integral respeitada a vontade do

paciente ou de seu representante legalrdquo

Eacute possiacutevel fazer uma defesa da Resoluccedilatildeo do Conselho Federal de

Medicina quer dentro das categorias do proacuteprio direito penal quer mediante uma leitura

de seu texto agrave luz da Constituiccedilatildeo Por ora no entanto faz-se o registro de que foi ela

suspensa por decisatildeo judicial produzida em accedilatildeo civil puacuteblica movida pelo Ministeacuterio

Puacuteblico Federal perante a Justiccedila Federal de Brasiacutelia Na peticcedilatildeo inicial de 131 paacuteginas o

Procurador da Repuacuteblica que a subscreve colocou-se frontalmente contra o conteuacutedo da

Resoluccedilatildeo Em meio a muitas consideraccedilotildees juriacutedicas morais e metafiacutesicas afirmou ldquoA

ortotanaacutesia natildeo passa de um artifiacutecio homicida expediente desprovido de razotildees loacutegicas

e violador da Constituiccedilatildeo Federal mero desejo de dar ao homem pelo proacuteprio homem

a possibilidade de uma decisatildeo que nunca lhe pertenceurdquo 22 Na decisatildeo que acolheu o

pedido de antecipaccedilatildeo de tutela entendeu o juiz de primeiro grau pela existecircncia de

ldquoaparente conflito entre a resoluccedilatildeo questionada e o Coacutedigo Penalrdquo23

22 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpnoticiaspgrmpfgovbrnoticias-do-sitepdfsACP20Ortotanasiapdf Acesso em out2007 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpprdcprdfmpfgovbrlegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em dez2006 23 V inteiro teor da decisatildeo em wwwdftrf1govbr20073400014809-3_decisao_23-10-2007doc

10

A decisatildeo marca o encontro no Brasil de dois fenocircmenos do nosso

tempo a medicalizaccedilatildeo24 e a judicializaccedilatildeo25 da vida Ambos potencializados por um

terceiro fenocircmeno a sociedade espetaacuteculo em que os meios de comunicaccedilatildeo

transmitem em tempo real ao vivo e em cores dramas como os de Terri Schiavo

(EUA)26 Hannah Jones (Reino Unido)27 ou Eluana (Itaacutelia)28 O pronunciamento judicial

suspensivo da Resoluccedilatildeo exibe igualmente o descompasso entre ordenamento juriacutedico e

a eacutetica meacutedica E no mundo poacutes-positivista de reaproximaccedilatildeo entre o Direito e a Eacutetica

este eacute um desencontro que deve ser evitado A propoacutesito deve-se registrar que a

orientaccedilatildeo do Conselho Federal de Medicina estaacute em consonacircncia com as da Associaccedilatildeo

Meacutedica Mundial (AMM) as da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura (UNESCO) e as do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos

Humanos (CEDH) 29 E tambeacutem com o tratamento juriacutedico adotado em paiacuteses como

24 A expressatildeo lsquomedicalizaccedilatildeo da vidarsquo foi cunhada e definida em ILLICH Ivan The medicalization of life Journal of Medical Ethics I 1975 p73-77 25 BARROSO Luiacutes Roberto Judicializaccedilatildeo ativismo judicial e legitimidade democraacutetica Revista de Direito do Estado Rio de Janeiro n 13 2009 26 Em decorrecircncia de uma parada cardiacuteaca Terri Schiavo viveu em estado vegetativo ateacute falecer em 2005 Nos uacuteltimos sete anos de sua vida seu marido e representante legal Michael Schiavo vinha pedindo ao Judiciaacuterio dos EUA o desligamento dos tubos que a mantinham viva Para tanto afirmava que antes de entrar em estado vegetativo a mulher havia se manifestado diversas vezes no sentido de que natildeo gostaria de ser mantida viva artificialmente Agrave pretensatildeo do marido se opuseram tanto os proacuteprios pais de Terri quanto diversas autoridades norte-americanas como o Presidente Geoge W Bush A longa controveacutersia juriacutedica envolveu desde a Justiccedila Estadual da Floacuterida ateacute a Justiccedila Federal dos EUA passando pelo Legislativo e pelo Governador do Estado Por sua vez a Suprema Corte dos EUA se recusou a analisar a mateacuteria Terri Schiavo faleceu em 31 de marccedilo de 2005 O resultado de sua autoacutepsia confirmou que nenhum tratamento poderia tecirc-la ajudado a superar os danos neuroloacutegicos que sofreu V Saiba mais sobre o conflito judicial do caso Schiavo Folha Online 29mar2005 Disponiacutevel em lthttpwww1folhauolcombrfolhamundoult94u82068shtmlgt Uacuteltimo acesso 24jun2009 GOODNOUGH Abby Schiavo Autopsy Says Brain Withered Was Untreatable New York Times 16jun2005 Disponiacutevel em lthttpwwwnytimescom20050616national16schiavohtmlgt Acesso em jun2009 27 Aos cinco anos de idade Hannah Jones foi diagnosticada com uma forma rara de leucemia e desde entatildeo sua vida passou a envolver frequentes internaccedilotildees hospitalares Seu tratamento incluiu doses de um forte medicamento contra uma infecccedilatildeo o que acabou causando danos ao seu coraccedilatildeo Sua uacutenica chance de viver longamente viria com um transplante Mas a menina de treze anos recusou o tratamento afirmando que jaacute sofrera traumas demais e natildeo queria passar por novas cirurgias ndash preferia morrer com dignidade Irresignado com a decisatildeo da paciente o hospital foi ao Judiciaacuterio Decidiu-se poreacutem que Hannah era madura o suficiente para decidir por si proacutepria V PERCIVAL Jenny Teenager who won right to die I have had too much trauma Guardiancouk 11nov2008 Disponiacutevel em lthttpwwwguardiancouksociety2008nov11child-protection-health-hannah-jonesgt Acesso em jun2009 28 Eluana Englaro ficou em coma por dezessete anos desde que sofreu um acidente de carro em 1992 Seu caso causou grande comoccedilatildeo na Itaacutelia mobilizando setores ligados agrave Igreja Catoacutelica e gerando uma crise entre o Primeiro-ministro Silvio Berlusconi e o Presidente Giorgio Napolitano Por dez anos o pai da moccedila lutou para garantir o direito de deixaacute-la morrer mas soacute conseguiu em 21 de janeiro de 2009 Ela passou trecircs dias sem receber comida e hidrataccedilatildeo mas uma ldquocriserdquo acabou antecipando sua morte V Morre Eluana a italiana que estava em coma havia 17 anos G1 9fev2009 Disponiacutevel em lthttpg1globocomNoticiasMundo0MUL993961-560200htmlgt Acesso em jun2009 29 a) as Resoluccedilotildees da AMM sobre eutanaacutesia e suiciacutedio assistido consideram tais condutas antieacuteticas mas assumem que eacute direito do paciente recusar tratamento meacutedico ainda que da recusa decorra a morte e que eacute direito do paciente ter respeitada a sua escolha de que o ldquoprocesso natural da morte siga seu curso na fase terminal da doenccedilardquo b) A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO determina que

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Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Espanha Meacutexico Reino Unido Franccedila Itaacutelia Suiacuteccedila

Sueacutecia Beacutelgica Holanda e Uruguai30

Estatildeo em choque aqui dois modelos Um de iacutendole paternalista

que desconsidera a vontade do paciente e de seus familiares privados de fazerem

escolhas morais proacuteprias O outro fundado na deontologia meacutedica valoriza a autonomia

e o diaacutelogo aceitando que a arte de curar se converta em cuidado e amparo Cabe

procurar entender e enfrentar as razotildees do desencontro entre as imposiccedilotildees juriacutedicas e

as exigecircncias eacuteticas O principal argumento contraacuterio a qualquer hipoacutetese de morte com

intervenccedilatildeo decorre da compreensatildeo do direito agrave vida como um direito fundamental

absoluto No Brasil essa valorizaccedilatildeo maacutexima da vida bioloacutegica e do modelo biomeacutedico

intensivista e interventor tem sua origem em algumas doutrinas morais abrangentes

muitas de cunho religioso que penetram na interpretaccedilatildeo juriacutedica Esta visatildeo do mundo

se manifesta em diferentes passagens da accedilatildeo civil puacuteblica acima referida

Ao avanccedilar no debate eacute preciso ter em conta que o direito agrave vida eacute

de fato especial Qualquer flexibilizaccedilatildeo de sua forccedila juriacutedica ou moral eacute delicada e deve

envolver cautelas muacuteltiplas Qualquer desprezo pela vida humana mesmo nas

circunstacircncias mais adversas eacute suspeita Um dos consensos miacutenimos que compotildeem a

ldquoqualquer intervenccedilatildeo meacutedica preventiva diagnoacutestica e terapecircutica soacute deve ser realizada com o consentimento preacutevio livre e esclarecido do indiviacuteduo envolvido baseado em informaccedilatildeo adequada O consentimento deve quando apropriado ser manifesto e poder ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razatildeo sem acarretar desvantagem ou preconceitordquo Para os casos de incapacidade haacute dispositivos especiacuteficos que visam a proteger a parcela de autonomia remanescente e os melhores interesses do envolvido c) O Conselho Europeu posicionou-se favoravelmente agrave implementaccedilatildeo de cuidados paliativos e do respeito dos direitos dos pacientes de recusarem tratamentos fuacuteteis ou extraordinaacuterios O Conselho determinou aos Estados-membros a normatizaccedilatildeo dos testamentos de vida e das diretivas avanccediladas d) ao decidir o caso Pretty a CEDH permitiu entrever que abaliza a limitaccedilatildeo consentida de tratamento em pacientes terminais ou em estado irreversiacutevel muito embora tenha se recusado a aceitar o suiciacutedio assistido Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit PARLIAMENTARY ASSEMBLY Resolution 1649 (2009) Palliative Care a model for innovative health and social policies Disponiacutevel em httpassemblycoeintmainaspLink=documentsadoptedtextta09eres1649htm Uacuteltimo acesso em mar2009 30 a) a Suprema Corte dos Estados Unidos assentou o seu posicionamento nos casos Vacco v Quill e Washington v Glucksberg et al jaacute lastreados em decisotildees anteriores como o caso Cruzan b) a Suprema Corte do Canadaacute reafirmou seu entendimento no tema em Rodriguez v British Columbia c) no Reino Unido satildeo importantes as decisotildees dos casos Airedale NHS Trust v Bland e The Queen on the Application of Mrs Dianne Pretty (Appellant) v Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home Department (Interested Party) d) a Beacutelgica e a Holanda reconhecem natildeo apenas a LCT como tambeacutem a eutanaacutesia eou o suiciacutedio assistido e) a Suiacuteccedila permite o suiciacutedio assistido f) na Espanha as decisotildees de suspensatildeo de suporte vital em pacientes terminais satildeo respeitadas e desde 2000 haacute leis sobre testamentos vitais (Ley Catalana) g) na Franccedila a limitaccedilatildeo consentida de tratamento foi permitida por lei em 2005 Cf MICCINESI Guido et al Physicianrsquos attitudes towards end-of-life decisions a comparison between seven countries Social Science amp Medicine (2005) 1961-1974 COHEN Joachim et al European public acceptance of euthanasia Socio-demographic and cultural factors associated with the acceptance of euthanasia in 33 European countries Social Science amp Medicine 63 (2006) 743-756 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p257 e s

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dignidade humana nas sociedades ocidentais eacute a preservaccedilatildeo da vida como um valor em

si que se atinge naturalmente por sua promoccedilatildeo e proteccedilatildeo rigorosa Com efeito basta

considerar que aleacutem do seu caraacuteter substantivo o direito agrave vida eacute preacute-condiccedilatildeo eacute

instrumento que permite a proacutepria dignidade pois sua negaccedilatildeo leva agrave inexistecircncia do

sujeito da dignidade Diante de tais premissas criminalizar atos que atentem contra a

vida humana tende a ser um meio adequado dentre outros de preservaccedilatildeo da vida e da

dignidade humanas Mas nem mesmo o direito agrave vida eacute absoluto

Eacute precisamente no ambiente da morte com intervenccedilatildeo que cabe

discutir a visatildeo da dignidade que impotildee ao indiviacuteduo a vida como um bem em si Como

intuitivo natildeo se estaacute aqui diante de uma situaccedilatildeo banal temporaacuteria ou reversiacutevel na

qual um indiviacuteduo decide morrer e outros se omitem em evitar ou prestam-lhe auxiacutelio

Justamente ao contraacuterio trata-se de pessoas que em condiccedilotildees nada ordinaacuterias

reclamam a possibilidade de renunciar a intervenccedilotildees meacutedicas de prolongamento da

vida Ou em outros casos de optar pela abreviaccedilatildeo direta da vida por ato proacuteprio ou

alheio por estarem acometidos de doenccedilas terminais extremamente dolorosas ou por

enfermidades degenerativas que conduzem agrave perda paulatina da independecircncia Nessas

situaccedilotildees extremas aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito agrave

vida impedindo que ele se transforme em um insuportaacutevel dever agrave vida Se em uma

infinidade de situaccedilotildees a dignidade eacute o fundamento da valorizaccedilatildeo da vida na morte

com intervenccedilatildeo as motivaccedilotildees se invertem

O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenccedilas para

as quais a medicina desconhece a cura ou a reversatildeo contra a sua vontade ou de seus

responsaacuteveis legais enseja dor sofrimento humilhaccedilatildeo exposiccedilatildeo intrusotildees corporais

indevidas e perda da liberdade Entram em cena entatildeo outros conteuacutedos da proacutepria

dignidade Eacute que a dignidade protege tambeacutem a liberdade e a inviolabilidade do

indiviacuteduo quanto agrave sua desumanizaccedilatildeo e degradaccedilatildeo Eacute nesse passo que se verifica uma

tensatildeo dentro do proacuteprio conceito em busca da determinaccedilatildeo de seu sentido e alcance

diante de situaccedilotildees concretas De um lado a dignidade serviria de impulso para a defesa

da vida e das concepccedilotildees sociais do que seja o bem morrer De outro ela se apresenta

como fundamento da morte com intervenccedilatildeo assegurando a autonomia individual a

superaccedilatildeo do sofrimento e a morte digna31

31 MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002

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Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

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nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

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A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

19

autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 5: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

5

tratam-nos inclusive como sinocircnimos A primeira consiste no comportamento meacutedico de

combater a morte de todas as formas como se fosse possiacutevel curaacute-la em ldquouma luta

desenfreada e (ir)racionalrdquo9 sem que se tenha em conta os padecimentos e os custos

humanos gerados O segundo refere-se ao emprego de teacutecnicas e meacutetodos

extraordinaacuterios e desproporcionais de tratamento incapazes de ensejar a melhora ou a

cura mas haacutebeis a prolongar a vida ainda que agravando sofrimentos de forma tal que

os benefiacutecios previsiacuteveis satildeo muito inferiores aos danos causados10

Em sentido oposto da distanaacutesia e distinto da eutanaacutesia tem-se a

ortotanaacutesia Trata-se da morte em seu tempo adequado natildeo combatida com os meacutetodos

extraordinaacuterios e desproporcionais utilizados na distanaacutesia nem apressada por accedilatildeo

intencional externa como na eutanaacutesia Eacute uma aceitaccedilatildeo da morte pois permite que ela

siga seu curso Eacute praacutetica ldquosensiacutevel ao processo de humanizaccedilatildeo da morte ao aliacutevio das

dores e natildeo incorre em prolongamentos abusivos com aplicaccedilatildeo de meios

desproporcionados que imporiam sofrimentos adicionaisrdquo11 Indissociaacutevel da ortotanaacutesia

eacute o cuidado paliativo voltado agrave utilizaccedilatildeo de toda a tecnologia possiacutevel para aplacar o

sofrimento fiacutesico e psiacutequico do enfermo12 Evitando meacutetodos extraordinaacuterios e

excepcionais procura-se aliviar o padecimento do doente terminal pelo uso de recursos

apropriados para tratar os sintomas como a dor e a depressatildeo13 O cuidado paliativo

pode envolver o que se denomina duplo efeito em determinados casos o uso de

algumas substacircncias para controlar a dor e a anguacutestia pode aproximar o momento da

morte A diminuiccedilatildeo do tempo de vida eacute um efeito previsiacutevel sem ser desejado pois o

objetivo primaacuterio eacute oferecer o maacuteximo conforto possiacutevel ao paciente sem intenccedilatildeo de

ocasionar o evento morte14

9 SIQUEIRA-BATISTA Rodrigo SCHRAMM Fermin Roland Op cit p33 A expressatildeo cura da morte foi cunhada por Leo Pessini Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p331 e s 10 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit especialmente as paacuteginas 163 e s Ver tambeacutem COHEN-ALMAGOR Raphael Op Cit 11 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p31 12 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p203 e s 13 Este conceito foi extraiacutedo do voto do magistrado colombiano Vladimiro Naranjo Mesa com sutis alteraccedilotildees em seu texto COLOMBIA Sentencia C-23997 Op cit 14 Cf PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p213 COLOMBIA Sentencia C-23997 Op cit voto do magistrado Vladimiro Naranjo Mesa QUILL T E et al Palliative treatments of last resort choosing the least harmful alternative Annals of Internal Medicine v132 n6 p488-493 March 2000 Disponiacutevel em wwwannalsorgcgicontent Acesso em jun2006 MORAES E SOUZA Maria Teresa de LEMONICA Lino Paciente terminal e meacutedico capacitado parceria pela qualidade de vida Bioeacutetica Conselho Federal de Medicina v11 n1 p83-100 2003 COHEN-ALMAGOR Raphael Op Cit

6

A recusa de tratamento meacutedico consiste na negativa de iniciar ou de

manter um ou alguns tratamentos meacutedicos Apoacutes o devido processo de informaccedilatildeo o

paciente ndash ou em certos casos seus responsaacuteveis ndash decide se deseja ou natildeo iniciar ou

continuar tratamento meacutedico O processo culmina com a assinatura de um Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)15 A recusa pode ser ampla ou estrita

conforme seja admitida em qualquer circunstacircncia ndash por pacientes que podem recuperar

a sua sauacutede com o tratamento que recusam ndash ou em situaccedilotildees bem determinadas de

impossibilidade de recuperaccedilatildeo da sauacutede com a intervenccedilatildeo A uacuteltima hipoacutetese referida

por alguns como limitaccedilatildeo consentida de tratamento (ou tambeacutem suspensatildeo de esforccedilo

terapecircutico) possui laccedilos com a ortotanaacutesia A recusa ampla eacute ainda alvo de muitos

debates ao passo que existe certo consenso no marco teoacuterico hegemocircnico da bioeacutetica

quanto agrave possibilidade de recusa em sentido estrito

A retirada de suporte vital (RSV) a natildeo-oferta de suporte vital

(NSV) e as ordens de natildeo-ressuscitaccedilatildeo ou de natildeo-reanimaccedilatildeo (ONR) satildeo partes

integrantes da limitaccedilatildeo consentida de tratamento A RSV significa a suspensatildeo de

mecanismos artificiais de manutenccedilatildeo da vida como os sistemas de hidrataccedilatildeo e de

nutriccedilatildeo artificiais eou o sistema de ventilaccedilatildeo mecacircnica a NSV por sua vez significa o

natildeo-emprego desses mecanismos A ONR eacute uma determinaccedilatildeo de natildeo iniciar

procedimentos para reanimar um paciente acometido de mal irreversiacutevel e incuraacutevel

quando ocorre parada cardiorrespiratoacuteria16 Nos casos de ortotanaacutesia de cuidado

paliativo e de limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) eacute crucial o consentimento do

paciente ou de seus responsaacuteveis legais pois satildeo condutas que necessitam da

voluntariedade do paciente ou da aceitaccedilatildeo de seus familiares em casos determinados A

decisatildeo deve ser tomada apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo e devidamente

registrada mediante TCLE

15 Sobre o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou consentimento informado ver CLOTET Joaquim GOLDIM Joseacute Roberto (Org) FRANCISCONI Carlos Fernando Consentimento informado e sua praacutetica na assistecircncia e pesquisa no Brasil Porto Alegre EDIPUCRS 2000 MUNtildeOZ Daniel Romero FORTES Paulo Antocircnio Carvalho O princiacutepio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido In GARRAFA Volnei (Org) Iniciaccedilatildeo agrave bioeacutetica Brasiacutelia CFM 1999 p53-70 ENGELHARDT H Tristan Jr Fundamentos da bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2000 p345-440 PESSINI Leo GARRAFA Volnei (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p469 e s (especialmente a parte IV) 16 Cf KIPPER Deacutelio Joseacute Medicina e os cuidados de final da vida uma perspectiva brasileira e latino-americana In PESSINI Leo GARRAFA Volnei (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p413-414 Consultar ainda PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit passim MORAES E SOUZA Maria Teresa de LEMONICA Lino Op cit

7

Por fim suiciacutedio assistido designa a retirada da proacutepria vida com

auxiacutelio ou assistecircncia de terceiro O ato causador da morte eacute de autoria daquele que potildee

termo agrave proacutepria vida O terceiro colabora com o ato quer prestando informaccedilotildees quer

colocando agrave disposiccedilatildeo do paciente os meios e condiccedilotildees necessaacuterias agrave praacutetica O auxiacutelio

e a assistecircncia diferem do induzimento ao suiciacutedio No primeiro a vontade adveacutem do

paciente ao passo que no outro o terceiro age sobre a vontade do sujeito passivo de

modo a interferir com sua liberdade de accedilatildeo As duas formas admitem combinaccedilatildeo isto

eacute haacute possibilidade de uma pessoa ser simultaneamente instigada e assistida em seu

suiciacutedio O suiciacutedio assistido por meacutedico eacute espeacutecie do gecircnero suiciacutedio assistido

O rearranjo conceitual apresentado atinge a antiga distinccedilatildeo entre

as formas ativa e passiva da eutanaacutesia que passaram a receber denominaccedilotildees distintas

O termo eutanaacutesia aplica-se somente agravequela que era conhecida como forma ativa17 A

conduta antes caracterizada como eutanaacutesia passiva ndash e essa eacute uma das teses centrais

do presente estudo ndash jaacute natildeo deve ser necessariamente visualizada como antieacutetica

podendo ser expressatildeo da autonomia do paciente merecedora de respeito por parte da

equipe de sauacutede No mesmo ensejo a distinccedilatildeo entre a eutanaacutesia e a distanaacutesia permite

concluir que medidas excessivas e desproporcionais (na relaccedilatildeo benefiacutecioprejuiacutezo agrave

sauacutede e agrave qualidade de vida do enfermo) natildeo devem ser empregadas agrave revelia da

vontade do paciente nem tampouco correspondem agrave boa teacutecnica caso natildeo desejadas

pelo doente seus cuidadores ou seus responsaacuteveis legais

III O descompasso entre a interpretaccedilatildeo dominante do direito vigente e a eacutetica

meacutedica

A legislaccedilatildeo penal brasileira natildeo extrai consequecircncias juriacutedicas

significativas das categorizaccedilotildees mencionadas no toacutepico anterior salvo o suiciacutedio

assistido Assim sendo tanto a eutanaacutesia quanto a ortotanaacutesia ndash aiacute compreendida a

limitaccedilatildeo do tratamento ndash constituiriam hipoacuteteses de homiciacutedio18 No primeiro caso na

modalidade comissiva e no segundo na omissiva O auxiacutelio ao suiciacutedio eacute tratado em tipo

17 Para uma visatildeo da categorizaccedilatildeo anterior do tema com a distinccedilatildeo entre eutanaacutesia ativa e passiva aleacutem dos autores jaacute referidos na nota 3 v tb TOOLEY Michael Euthanasia and assisted suicide In FREY RG e WELLMAN Christopher Heath A companion to applied ethics Malden Blackwell 2007 p 326-341 18 Coacutedigo Penal art 121 ldquoMatar algueacutem Pena ndash reclusatildeo de 6 (seis) meses a 20 (vinte) anosrdquo

8

penal proacuteprio19 Nessa interpretaccedilatildeo que corresponde ao conhecimento convencional na

mateacuteria a decisatildeo do paciente ou de sua famiacutelia de descontinuar um tratamento meacutedico

desproporcional extraordinaacuterio ou fuacutetil natildeo alteraria o caraacuteter criminoso da conduta A

existecircncia de consentimento natildeo produziria o efeito juriacutedico de salvaguardar o meacutedico de

uma persecuccedilatildeo penal Em suma natildeo haveria distinccedilatildeo entre o ato de natildeo tratar um

enfermo terminal segundo a sua proacutepria vontade e o ato de intencionalmente abreviar-

lhe a vida tambeacutem a seu pedido 20

Essa postura legislativa e doutrinaacuteria pode produzir consequecircncias

graves pois ao oferecer o mesmo tratamento juriacutedico para situaccedilotildees distintas o

paradigma legal reforccedila condutas de obstinaccedilatildeo terapecircutica e acaba por promover a

distanaacutesia Com isso endossa um modelo meacutedico paternalista que se funda na

autoridade do profissional da medicina sobre o paciente e descaracteriza a condiccedilatildeo de

sujeito do enfermo Ainda que os meacutedicos natildeo mais estejam vinculados eticamente a

esse modelo superado de relaccedilatildeo o espectro da sanccedilatildeo pode levaacute-los a adotaacute-lo Natildeo

apenas manteratildeo ou iniciaratildeo um tratamento indesejado gerador de muita agonia e

padecimento como por vezes adotaratildeo algum natildeo recomendado pela boa teacutecnica por

sua desproporcionalidade A arte de curar e de evitar o sofrimento se transmuda entatildeo

no ofiacutecio mais rude de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condiccedilotildees Natildeo

eacute apenas a autonomia do paciente que eacute agredida A liberdade de consciecircncia do

profissional da sauacutede pode tambeacutem estar em xeque21

19 Coacutedigo Penal art 122 ldquoInduzir ou instigar algueacutem a suicidar-se ou prestar-lhe auxiacutelio para que o faccedila Pena ndash reclusatildeo de 2 (dois) a 6 (seis) anos se o suiciacutedio se consuma ou reclusatildeo de 1 (um) a 3 (trecircs) anos se da tentativa de suiciacutedio resulta lesatildeo corporal de natureza graverdquo 20 Pelo conhecimento convencional no Brasil ambas as condutas seriam consideradas homiciacutedio o qual caso viesse a ser reconhecido pelo juacuteri poderia contar com uma causa especial de diminuiccedilatildeo de pena (privileacutegio) V MIRABETE Juacutelio Fabbrini Coacutedigo Penal Interpretado 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2003 E tambeacutem CAPEZ Fernando Curso de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p34 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p58 Sobre as privilegiadoras e qualificadoras SANTOS Juarez Cirino A moderna teoria do fato puniacutevel 4 ed rev e ampl Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 DODGE Raquel Elias Ferreira Eutanaacutesia aspectos juriacutedicos Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevista bio1v7eutaspectoshtm Acesso em maio 2006 BRASIL Ministeacuterio Puacuteblico Federal -1a Reg Recomendaccedilatildeo 012006 - WD - PRDC Disponiacutevel em wwwprdfmpfgovbrprdclegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em 25 nov 2006 21 Quanto ao cuidado paliativo de duplo efeito a situaccedilatildeo eacute ainda pior por razotildees notoacuterias Se um meacutedico for autorizado pelo enfermo a lanccedilar matildeo dessa teacutecnica poderaacute abreviar seu tempo de vida Se o mundo juriacutedico natildeo oferecer amparo seguro a essa accedilatildeo o temor de cometer um crime pode ensejar o uso de dosagens medicamentosas menores do que o necessaacuterio para aplacar o imenso sofrimento fiacutesico e psicoloacutegico daqueles que estatildeo no leito de morte

9

A Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 de 9112006 editada pelo

Conselho Federal de Medicina procurou contornar as deficiecircncias e insuficiecircncias de um

Coacutedigo Penal cuja parte especial eacute da deacutecada de 40 do seacuteculo passado Nessa linha

invocando sua funccedilatildeo disciplinadora da classe meacutedica bem como o art 5ordm III da

Constituiccedilatildeo pretendeu dar suporte juriacutedico agrave ortotanaacutesia Sem menccedilatildeo agrave eutanaacutesia e ao

suiciacutedio assistido ndash que continuam a ser considerados pelo Conselho como praacuteticas natildeo-

eacuteticas ndash a Resoluccedilatildeo tratou da limitaccedilatildeo do tratamento e do cuidado paliativo de doentes

em fase terminal nas hipoacuteteses autorizadas por seus parentes ou por seus familiares

Trazendo uma fundamentada Exposiccedilatildeo de Motivos a Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 tem

o conteuacutedo assim resumido em sua Ementa

ldquoNa fase terminal de enfermidades graves e incuraacuteveis eacute permitido

ao meacutedico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que

prolonguem a vida do doente garantindo-lhe os cuidados

necessaacuterios para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento na

perspectiva de uma assistecircncia integral respeitada a vontade do

paciente ou de seu representante legalrdquo

Eacute possiacutevel fazer uma defesa da Resoluccedilatildeo do Conselho Federal de

Medicina quer dentro das categorias do proacuteprio direito penal quer mediante uma leitura

de seu texto agrave luz da Constituiccedilatildeo Por ora no entanto faz-se o registro de que foi ela

suspensa por decisatildeo judicial produzida em accedilatildeo civil puacuteblica movida pelo Ministeacuterio

Puacuteblico Federal perante a Justiccedila Federal de Brasiacutelia Na peticcedilatildeo inicial de 131 paacuteginas o

Procurador da Repuacuteblica que a subscreve colocou-se frontalmente contra o conteuacutedo da

Resoluccedilatildeo Em meio a muitas consideraccedilotildees juriacutedicas morais e metafiacutesicas afirmou ldquoA

ortotanaacutesia natildeo passa de um artifiacutecio homicida expediente desprovido de razotildees loacutegicas

e violador da Constituiccedilatildeo Federal mero desejo de dar ao homem pelo proacuteprio homem

a possibilidade de uma decisatildeo que nunca lhe pertenceurdquo 22 Na decisatildeo que acolheu o

pedido de antecipaccedilatildeo de tutela entendeu o juiz de primeiro grau pela existecircncia de

ldquoaparente conflito entre a resoluccedilatildeo questionada e o Coacutedigo Penalrdquo23

22 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpnoticiaspgrmpfgovbrnoticias-do-sitepdfsACP20Ortotanasiapdf Acesso em out2007 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpprdcprdfmpfgovbrlegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em dez2006 23 V inteiro teor da decisatildeo em wwwdftrf1govbr20073400014809-3_decisao_23-10-2007doc

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A decisatildeo marca o encontro no Brasil de dois fenocircmenos do nosso

tempo a medicalizaccedilatildeo24 e a judicializaccedilatildeo25 da vida Ambos potencializados por um

terceiro fenocircmeno a sociedade espetaacuteculo em que os meios de comunicaccedilatildeo

transmitem em tempo real ao vivo e em cores dramas como os de Terri Schiavo

(EUA)26 Hannah Jones (Reino Unido)27 ou Eluana (Itaacutelia)28 O pronunciamento judicial

suspensivo da Resoluccedilatildeo exibe igualmente o descompasso entre ordenamento juriacutedico e

a eacutetica meacutedica E no mundo poacutes-positivista de reaproximaccedilatildeo entre o Direito e a Eacutetica

este eacute um desencontro que deve ser evitado A propoacutesito deve-se registrar que a

orientaccedilatildeo do Conselho Federal de Medicina estaacute em consonacircncia com as da Associaccedilatildeo

Meacutedica Mundial (AMM) as da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura (UNESCO) e as do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos

Humanos (CEDH) 29 E tambeacutem com o tratamento juriacutedico adotado em paiacuteses como

24 A expressatildeo lsquomedicalizaccedilatildeo da vidarsquo foi cunhada e definida em ILLICH Ivan The medicalization of life Journal of Medical Ethics I 1975 p73-77 25 BARROSO Luiacutes Roberto Judicializaccedilatildeo ativismo judicial e legitimidade democraacutetica Revista de Direito do Estado Rio de Janeiro n 13 2009 26 Em decorrecircncia de uma parada cardiacuteaca Terri Schiavo viveu em estado vegetativo ateacute falecer em 2005 Nos uacuteltimos sete anos de sua vida seu marido e representante legal Michael Schiavo vinha pedindo ao Judiciaacuterio dos EUA o desligamento dos tubos que a mantinham viva Para tanto afirmava que antes de entrar em estado vegetativo a mulher havia se manifestado diversas vezes no sentido de que natildeo gostaria de ser mantida viva artificialmente Agrave pretensatildeo do marido se opuseram tanto os proacuteprios pais de Terri quanto diversas autoridades norte-americanas como o Presidente Geoge W Bush A longa controveacutersia juriacutedica envolveu desde a Justiccedila Estadual da Floacuterida ateacute a Justiccedila Federal dos EUA passando pelo Legislativo e pelo Governador do Estado Por sua vez a Suprema Corte dos EUA se recusou a analisar a mateacuteria Terri Schiavo faleceu em 31 de marccedilo de 2005 O resultado de sua autoacutepsia confirmou que nenhum tratamento poderia tecirc-la ajudado a superar os danos neuroloacutegicos que sofreu V Saiba mais sobre o conflito judicial do caso Schiavo Folha Online 29mar2005 Disponiacutevel em lthttpwww1folhauolcombrfolhamundoult94u82068shtmlgt Uacuteltimo acesso 24jun2009 GOODNOUGH Abby Schiavo Autopsy Says Brain Withered Was Untreatable New York Times 16jun2005 Disponiacutevel em lthttpwwwnytimescom20050616national16schiavohtmlgt Acesso em jun2009 27 Aos cinco anos de idade Hannah Jones foi diagnosticada com uma forma rara de leucemia e desde entatildeo sua vida passou a envolver frequentes internaccedilotildees hospitalares Seu tratamento incluiu doses de um forte medicamento contra uma infecccedilatildeo o que acabou causando danos ao seu coraccedilatildeo Sua uacutenica chance de viver longamente viria com um transplante Mas a menina de treze anos recusou o tratamento afirmando que jaacute sofrera traumas demais e natildeo queria passar por novas cirurgias ndash preferia morrer com dignidade Irresignado com a decisatildeo da paciente o hospital foi ao Judiciaacuterio Decidiu-se poreacutem que Hannah era madura o suficiente para decidir por si proacutepria V PERCIVAL Jenny Teenager who won right to die I have had too much trauma Guardiancouk 11nov2008 Disponiacutevel em lthttpwwwguardiancouksociety2008nov11child-protection-health-hannah-jonesgt Acesso em jun2009 28 Eluana Englaro ficou em coma por dezessete anos desde que sofreu um acidente de carro em 1992 Seu caso causou grande comoccedilatildeo na Itaacutelia mobilizando setores ligados agrave Igreja Catoacutelica e gerando uma crise entre o Primeiro-ministro Silvio Berlusconi e o Presidente Giorgio Napolitano Por dez anos o pai da moccedila lutou para garantir o direito de deixaacute-la morrer mas soacute conseguiu em 21 de janeiro de 2009 Ela passou trecircs dias sem receber comida e hidrataccedilatildeo mas uma ldquocriserdquo acabou antecipando sua morte V Morre Eluana a italiana que estava em coma havia 17 anos G1 9fev2009 Disponiacutevel em lthttpg1globocomNoticiasMundo0MUL993961-560200htmlgt Acesso em jun2009 29 a) as Resoluccedilotildees da AMM sobre eutanaacutesia e suiciacutedio assistido consideram tais condutas antieacuteticas mas assumem que eacute direito do paciente recusar tratamento meacutedico ainda que da recusa decorra a morte e que eacute direito do paciente ter respeitada a sua escolha de que o ldquoprocesso natural da morte siga seu curso na fase terminal da doenccedilardquo b) A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO determina que

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Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Espanha Meacutexico Reino Unido Franccedila Itaacutelia Suiacuteccedila

Sueacutecia Beacutelgica Holanda e Uruguai30

Estatildeo em choque aqui dois modelos Um de iacutendole paternalista

que desconsidera a vontade do paciente e de seus familiares privados de fazerem

escolhas morais proacuteprias O outro fundado na deontologia meacutedica valoriza a autonomia

e o diaacutelogo aceitando que a arte de curar se converta em cuidado e amparo Cabe

procurar entender e enfrentar as razotildees do desencontro entre as imposiccedilotildees juriacutedicas e

as exigecircncias eacuteticas O principal argumento contraacuterio a qualquer hipoacutetese de morte com

intervenccedilatildeo decorre da compreensatildeo do direito agrave vida como um direito fundamental

absoluto No Brasil essa valorizaccedilatildeo maacutexima da vida bioloacutegica e do modelo biomeacutedico

intensivista e interventor tem sua origem em algumas doutrinas morais abrangentes

muitas de cunho religioso que penetram na interpretaccedilatildeo juriacutedica Esta visatildeo do mundo

se manifesta em diferentes passagens da accedilatildeo civil puacuteblica acima referida

Ao avanccedilar no debate eacute preciso ter em conta que o direito agrave vida eacute

de fato especial Qualquer flexibilizaccedilatildeo de sua forccedila juriacutedica ou moral eacute delicada e deve

envolver cautelas muacuteltiplas Qualquer desprezo pela vida humana mesmo nas

circunstacircncias mais adversas eacute suspeita Um dos consensos miacutenimos que compotildeem a

ldquoqualquer intervenccedilatildeo meacutedica preventiva diagnoacutestica e terapecircutica soacute deve ser realizada com o consentimento preacutevio livre e esclarecido do indiviacuteduo envolvido baseado em informaccedilatildeo adequada O consentimento deve quando apropriado ser manifesto e poder ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razatildeo sem acarretar desvantagem ou preconceitordquo Para os casos de incapacidade haacute dispositivos especiacuteficos que visam a proteger a parcela de autonomia remanescente e os melhores interesses do envolvido c) O Conselho Europeu posicionou-se favoravelmente agrave implementaccedilatildeo de cuidados paliativos e do respeito dos direitos dos pacientes de recusarem tratamentos fuacuteteis ou extraordinaacuterios O Conselho determinou aos Estados-membros a normatizaccedilatildeo dos testamentos de vida e das diretivas avanccediladas d) ao decidir o caso Pretty a CEDH permitiu entrever que abaliza a limitaccedilatildeo consentida de tratamento em pacientes terminais ou em estado irreversiacutevel muito embora tenha se recusado a aceitar o suiciacutedio assistido Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit PARLIAMENTARY ASSEMBLY Resolution 1649 (2009) Palliative Care a model for innovative health and social policies Disponiacutevel em httpassemblycoeintmainaspLink=documentsadoptedtextta09eres1649htm Uacuteltimo acesso em mar2009 30 a) a Suprema Corte dos Estados Unidos assentou o seu posicionamento nos casos Vacco v Quill e Washington v Glucksberg et al jaacute lastreados em decisotildees anteriores como o caso Cruzan b) a Suprema Corte do Canadaacute reafirmou seu entendimento no tema em Rodriguez v British Columbia c) no Reino Unido satildeo importantes as decisotildees dos casos Airedale NHS Trust v Bland e The Queen on the Application of Mrs Dianne Pretty (Appellant) v Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home Department (Interested Party) d) a Beacutelgica e a Holanda reconhecem natildeo apenas a LCT como tambeacutem a eutanaacutesia eou o suiciacutedio assistido e) a Suiacuteccedila permite o suiciacutedio assistido f) na Espanha as decisotildees de suspensatildeo de suporte vital em pacientes terminais satildeo respeitadas e desde 2000 haacute leis sobre testamentos vitais (Ley Catalana) g) na Franccedila a limitaccedilatildeo consentida de tratamento foi permitida por lei em 2005 Cf MICCINESI Guido et al Physicianrsquos attitudes towards end-of-life decisions a comparison between seven countries Social Science amp Medicine (2005) 1961-1974 COHEN Joachim et al European public acceptance of euthanasia Socio-demographic and cultural factors associated with the acceptance of euthanasia in 33 European countries Social Science amp Medicine 63 (2006) 743-756 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p257 e s

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dignidade humana nas sociedades ocidentais eacute a preservaccedilatildeo da vida como um valor em

si que se atinge naturalmente por sua promoccedilatildeo e proteccedilatildeo rigorosa Com efeito basta

considerar que aleacutem do seu caraacuteter substantivo o direito agrave vida eacute preacute-condiccedilatildeo eacute

instrumento que permite a proacutepria dignidade pois sua negaccedilatildeo leva agrave inexistecircncia do

sujeito da dignidade Diante de tais premissas criminalizar atos que atentem contra a

vida humana tende a ser um meio adequado dentre outros de preservaccedilatildeo da vida e da

dignidade humanas Mas nem mesmo o direito agrave vida eacute absoluto

Eacute precisamente no ambiente da morte com intervenccedilatildeo que cabe

discutir a visatildeo da dignidade que impotildee ao indiviacuteduo a vida como um bem em si Como

intuitivo natildeo se estaacute aqui diante de uma situaccedilatildeo banal temporaacuteria ou reversiacutevel na

qual um indiviacuteduo decide morrer e outros se omitem em evitar ou prestam-lhe auxiacutelio

Justamente ao contraacuterio trata-se de pessoas que em condiccedilotildees nada ordinaacuterias

reclamam a possibilidade de renunciar a intervenccedilotildees meacutedicas de prolongamento da

vida Ou em outros casos de optar pela abreviaccedilatildeo direta da vida por ato proacuteprio ou

alheio por estarem acometidos de doenccedilas terminais extremamente dolorosas ou por

enfermidades degenerativas que conduzem agrave perda paulatina da independecircncia Nessas

situaccedilotildees extremas aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito agrave

vida impedindo que ele se transforme em um insuportaacutevel dever agrave vida Se em uma

infinidade de situaccedilotildees a dignidade eacute o fundamento da valorizaccedilatildeo da vida na morte

com intervenccedilatildeo as motivaccedilotildees se invertem

O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenccedilas para

as quais a medicina desconhece a cura ou a reversatildeo contra a sua vontade ou de seus

responsaacuteveis legais enseja dor sofrimento humilhaccedilatildeo exposiccedilatildeo intrusotildees corporais

indevidas e perda da liberdade Entram em cena entatildeo outros conteuacutedos da proacutepria

dignidade Eacute que a dignidade protege tambeacutem a liberdade e a inviolabilidade do

indiviacuteduo quanto agrave sua desumanizaccedilatildeo e degradaccedilatildeo Eacute nesse passo que se verifica uma

tensatildeo dentro do proacuteprio conceito em busca da determinaccedilatildeo de seu sentido e alcance

diante de situaccedilotildees concretas De um lado a dignidade serviria de impulso para a defesa

da vida e das concepccedilotildees sociais do que seja o bem morrer De outro ela se apresenta

como fundamento da morte com intervenccedilatildeo assegurando a autonomia individual a

superaccedilatildeo do sofrimento e a morte digna31

31 MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002

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Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

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nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

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A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

19

autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 6: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

6

A recusa de tratamento meacutedico consiste na negativa de iniciar ou de

manter um ou alguns tratamentos meacutedicos Apoacutes o devido processo de informaccedilatildeo o

paciente ndash ou em certos casos seus responsaacuteveis ndash decide se deseja ou natildeo iniciar ou

continuar tratamento meacutedico O processo culmina com a assinatura de um Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)15 A recusa pode ser ampla ou estrita

conforme seja admitida em qualquer circunstacircncia ndash por pacientes que podem recuperar

a sua sauacutede com o tratamento que recusam ndash ou em situaccedilotildees bem determinadas de

impossibilidade de recuperaccedilatildeo da sauacutede com a intervenccedilatildeo A uacuteltima hipoacutetese referida

por alguns como limitaccedilatildeo consentida de tratamento (ou tambeacutem suspensatildeo de esforccedilo

terapecircutico) possui laccedilos com a ortotanaacutesia A recusa ampla eacute ainda alvo de muitos

debates ao passo que existe certo consenso no marco teoacuterico hegemocircnico da bioeacutetica

quanto agrave possibilidade de recusa em sentido estrito

A retirada de suporte vital (RSV) a natildeo-oferta de suporte vital

(NSV) e as ordens de natildeo-ressuscitaccedilatildeo ou de natildeo-reanimaccedilatildeo (ONR) satildeo partes

integrantes da limitaccedilatildeo consentida de tratamento A RSV significa a suspensatildeo de

mecanismos artificiais de manutenccedilatildeo da vida como os sistemas de hidrataccedilatildeo e de

nutriccedilatildeo artificiais eou o sistema de ventilaccedilatildeo mecacircnica a NSV por sua vez significa o

natildeo-emprego desses mecanismos A ONR eacute uma determinaccedilatildeo de natildeo iniciar

procedimentos para reanimar um paciente acometido de mal irreversiacutevel e incuraacutevel

quando ocorre parada cardiorrespiratoacuteria16 Nos casos de ortotanaacutesia de cuidado

paliativo e de limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) eacute crucial o consentimento do

paciente ou de seus responsaacuteveis legais pois satildeo condutas que necessitam da

voluntariedade do paciente ou da aceitaccedilatildeo de seus familiares em casos determinados A

decisatildeo deve ser tomada apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo e devidamente

registrada mediante TCLE

15 Sobre o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou consentimento informado ver CLOTET Joaquim GOLDIM Joseacute Roberto (Org) FRANCISCONI Carlos Fernando Consentimento informado e sua praacutetica na assistecircncia e pesquisa no Brasil Porto Alegre EDIPUCRS 2000 MUNtildeOZ Daniel Romero FORTES Paulo Antocircnio Carvalho O princiacutepio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido In GARRAFA Volnei (Org) Iniciaccedilatildeo agrave bioeacutetica Brasiacutelia CFM 1999 p53-70 ENGELHARDT H Tristan Jr Fundamentos da bioeacutetica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2000 p345-440 PESSINI Leo GARRAFA Volnei (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p469 e s (especialmente a parte IV) 16 Cf KIPPER Deacutelio Joseacute Medicina e os cuidados de final da vida uma perspectiva brasileira e latino-americana In PESSINI Leo GARRAFA Volnei (Orgs) Bioeacutetica poder e injusticcedila Satildeo Paulo Loyola 2003 p413-414 Consultar ainda PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit passim MORAES E SOUZA Maria Teresa de LEMONICA Lino Op cit

7

Por fim suiciacutedio assistido designa a retirada da proacutepria vida com

auxiacutelio ou assistecircncia de terceiro O ato causador da morte eacute de autoria daquele que potildee

termo agrave proacutepria vida O terceiro colabora com o ato quer prestando informaccedilotildees quer

colocando agrave disposiccedilatildeo do paciente os meios e condiccedilotildees necessaacuterias agrave praacutetica O auxiacutelio

e a assistecircncia diferem do induzimento ao suiciacutedio No primeiro a vontade adveacutem do

paciente ao passo que no outro o terceiro age sobre a vontade do sujeito passivo de

modo a interferir com sua liberdade de accedilatildeo As duas formas admitem combinaccedilatildeo isto

eacute haacute possibilidade de uma pessoa ser simultaneamente instigada e assistida em seu

suiciacutedio O suiciacutedio assistido por meacutedico eacute espeacutecie do gecircnero suiciacutedio assistido

O rearranjo conceitual apresentado atinge a antiga distinccedilatildeo entre

as formas ativa e passiva da eutanaacutesia que passaram a receber denominaccedilotildees distintas

O termo eutanaacutesia aplica-se somente agravequela que era conhecida como forma ativa17 A

conduta antes caracterizada como eutanaacutesia passiva ndash e essa eacute uma das teses centrais

do presente estudo ndash jaacute natildeo deve ser necessariamente visualizada como antieacutetica

podendo ser expressatildeo da autonomia do paciente merecedora de respeito por parte da

equipe de sauacutede No mesmo ensejo a distinccedilatildeo entre a eutanaacutesia e a distanaacutesia permite

concluir que medidas excessivas e desproporcionais (na relaccedilatildeo benefiacutecioprejuiacutezo agrave

sauacutede e agrave qualidade de vida do enfermo) natildeo devem ser empregadas agrave revelia da

vontade do paciente nem tampouco correspondem agrave boa teacutecnica caso natildeo desejadas

pelo doente seus cuidadores ou seus responsaacuteveis legais

III O descompasso entre a interpretaccedilatildeo dominante do direito vigente e a eacutetica

meacutedica

A legislaccedilatildeo penal brasileira natildeo extrai consequecircncias juriacutedicas

significativas das categorizaccedilotildees mencionadas no toacutepico anterior salvo o suiciacutedio

assistido Assim sendo tanto a eutanaacutesia quanto a ortotanaacutesia ndash aiacute compreendida a

limitaccedilatildeo do tratamento ndash constituiriam hipoacuteteses de homiciacutedio18 No primeiro caso na

modalidade comissiva e no segundo na omissiva O auxiacutelio ao suiciacutedio eacute tratado em tipo

17 Para uma visatildeo da categorizaccedilatildeo anterior do tema com a distinccedilatildeo entre eutanaacutesia ativa e passiva aleacutem dos autores jaacute referidos na nota 3 v tb TOOLEY Michael Euthanasia and assisted suicide In FREY RG e WELLMAN Christopher Heath A companion to applied ethics Malden Blackwell 2007 p 326-341 18 Coacutedigo Penal art 121 ldquoMatar algueacutem Pena ndash reclusatildeo de 6 (seis) meses a 20 (vinte) anosrdquo

8

penal proacuteprio19 Nessa interpretaccedilatildeo que corresponde ao conhecimento convencional na

mateacuteria a decisatildeo do paciente ou de sua famiacutelia de descontinuar um tratamento meacutedico

desproporcional extraordinaacuterio ou fuacutetil natildeo alteraria o caraacuteter criminoso da conduta A

existecircncia de consentimento natildeo produziria o efeito juriacutedico de salvaguardar o meacutedico de

uma persecuccedilatildeo penal Em suma natildeo haveria distinccedilatildeo entre o ato de natildeo tratar um

enfermo terminal segundo a sua proacutepria vontade e o ato de intencionalmente abreviar-

lhe a vida tambeacutem a seu pedido 20

Essa postura legislativa e doutrinaacuteria pode produzir consequecircncias

graves pois ao oferecer o mesmo tratamento juriacutedico para situaccedilotildees distintas o

paradigma legal reforccedila condutas de obstinaccedilatildeo terapecircutica e acaba por promover a

distanaacutesia Com isso endossa um modelo meacutedico paternalista que se funda na

autoridade do profissional da medicina sobre o paciente e descaracteriza a condiccedilatildeo de

sujeito do enfermo Ainda que os meacutedicos natildeo mais estejam vinculados eticamente a

esse modelo superado de relaccedilatildeo o espectro da sanccedilatildeo pode levaacute-los a adotaacute-lo Natildeo

apenas manteratildeo ou iniciaratildeo um tratamento indesejado gerador de muita agonia e

padecimento como por vezes adotaratildeo algum natildeo recomendado pela boa teacutecnica por

sua desproporcionalidade A arte de curar e de evitar o sofrimento se transmuda entatildeo

no ofiacutecio mais rude de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condiccedilotildees Natildeo

eacute apenas a autonomia do paciente que eacute agredida A liberdade de consciecircncia do

profissional da sauacutede pode tambeacutem estar em xeque21

19 Coacutedigo Penal art 122 ldquoInduzir ou instigar algueacutem a suicidar-se ou prestar-lhe auxiacutelio para que o faccedila Pena ndash reclusatildeo de 2 (dois) a 6 (seis) anos se o suiciacutedio se consuma ou reclusatildeo de 1 (um) a 3 (trecircs) anos se da tentativa de suiciacutedio resulta lesatildeo corporal de natureza graverdquo 20 Pelo conhecimento convencional no Brasil ambas as condutas seriam consideradas homiciacutedio o qual caso viesse a ser reconhecido pelo juacuteri poderia contar com uma causa especial de diminuiccedilatildeo de pena (privileacutegio) V MIRABETE Juacutelio Fabbrini Coacutedigo Penal Interpretado 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2003 E tambeacutem CAPEZ Fernando Curso de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p34 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p58 Sobre as privilegiadoras e qualificadoras SANTOS Juarez Cirino A moderna teoria do fato puniacutevel 4 ed rev e ampl Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 DODGE Raquel Elias Ferreira Eutanaacutesia aspectos juriacutedicos Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevista bio1v7eutaspectoshtm Acesso em maio 2006 BRASIL Ministeacuterio Puacuteblico Federal -1a Reg Recomendaccedilatildeo 012006 - WD - PRDC Disponiacutevel em wwwprdfmpfgovbrprdclegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em 25 nov 2006 21 Quanto ao cuidado paliativo de duplo efeito a situaccedilatildeo eacute ainda pior por razotildees notoacuterias Se um meacutedico for autorizado pelo enfermo a lanccedilar matildeo dessa teacutecnica poderaacute abreviar seu tempo de vida Se o mundo juriacutedico natildeo oferecer amparo seguro a essa accedilatildeo o temor de cometer um crime pode ensejar o uso de dosagens medicamentosas menores do que o necessaacuterio para aplacar o imenso sofrimento fiacutesico e psicoloacutegico daqueles que estatildeo no leito de morte

9

A Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 de 9112006 editada pelo

Conselho Federal de Medicina procurou contornar as deficiecircncias e insuficiecircncias de um

Coacutedigo Penal cuja parte especial eacute da deacutecada de 40 do seacuteculo passado Nessa linha

invocando sua funccedilatildeo disciplinadora da classe meacutedica bem como o art 5ordm III da

Constituiccedilatildeo pretendeu dar suporte juriacutedico agrave ortotanaacutesia Sem menccedilatildeo agrave eutanaacutesia e ao

suiciacutedio assistido ndash que continuam a ser considerados pelo Conselho como praacuteticas natildeo-

eacuteticas ndash a Resoluccedilatildeo tratou da limitaccedilatildeo do tratamento e do cuidado paliativo de doentes

em fase terminal nas hipoacuteteses autorizadas por seus parentes ou por seus familiares

Trazendo uma fundamentada Exposiccedilatildeo de Motivos a Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 tem

o conteuacutedo assim resumido em sua Ementa

ldquoNa fase terminal de enfermidades graves e incuraacuteveis eacute permitido

ao meacutedico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que

prolonguem a vida do doente garantindo-lhe os cuidados

necessaacuterios para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento na

perspectiva de uma assistecircncia integral respeitada a vontade do

paciente ou de seu representante legalrdquo

Eacute possiacutevel fazer uma defesa da Resoluccedilatildeo do Conselho Federal de

Medicina quer dentro das categorias do proacuteprio direito penal quer mediante uma leitura

de seu texto agrave luz da Constituiccedilatildeo Por ora no entanto faz-se o registro de que foi ela

suspensa por decisatildeo judicial produzida em accedilatildeo civil puacuteblica movida pelo Ministeacuterio

Puacuteblico Federal perante a Justiccedila Federal de Brasiacutelia Na peticcedilatildeo inicial de 131 paacuteginas o

Procurador da Repuacuteblica que a subscreve colocou-se frontalmente contra o conteuacutedo da

Resoluccedilatildeo Em meio a muitas consideraccedilotildees juriacutedicas morais e metafiacutesicas afirmou ldquoA

ortotanaacutesia natildeo passa de um artifiacutecio homicida expediente desprovido de razotildees loacutegicas

e violador da Constituiccedilatildeo Federal mero desejo de dar ao homem pelo proacuteprio homem

a possibilidade de uma decisatildeo que nunca lhe pertenceurdquo 22 Na decisatildeo que acolheu o

pedido de antecipaccedilatildeo de tutela entendeu o juiz de primeiro grau pela existecircncia de

ldquoaparente conflito entre a resoluccedilatildeo questionada e o Coacutedigo Penalrdquo23

22 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpnoticiaspgrmpfgovbrnoticias-do-sitepdfsACP20Ortotanasiapdf Acesso em out2007 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpprdcprdfmpfgovbrlegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em dez2006 23 V inteiro teor da decisatildeo em wwwdftrf1govbr20073400014809-3_decisao_23-10-2007doc

10

A decisatildeo marca o encontro no Brasil de dois fenocircmenos do nosso

tempo a medicalizaccedilatildeo24 e a judicializaccedilatildeo25 da vida Ambos potencializados por um

terceiro fenocircmeno a sociedade espetaacuteculo em que os meios de comunicaccedilatildeo

transmitem em tempo real ao vivo e em cores dramas como os de Terri Schiavo

(EUA)26 Hannah Jones (Reino Unido)27 ou Eluana (Itaacutelia)28 O pronunciamento judicial

suspensivo da Resoluccedilatildeo exibe igualmente o descompasso entre ordenamento juriacutedico e

a eacutetica meacutedica E no mundo poacutes-positivista de reaproximaccedilatildeo entre o Direito e a Eacutetica

este eacute um desencontro que deve ser evitado A propoacutesito deve-se registrar que a

orientaccedilatildeo do Conselho Federal de Medicina estaacute em consonacircncia com as da Associaccedilatildeo

Meacutedica Mundial (AMM) as da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura (UNESCO) e as do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos

Humanos (CEDH) 29 E tambeacutem com o tratamento juriacutedico adotado em paiacuteses como

24 A expressatildeo lsquomedicalizaccedilatildeo da vidarsquo foi cunhada e definida em ILLICH Ivan The medicalization of life Journal of Medical Ethics I 1975 p73-77 25 BARROSO Luiacutes Roberto Judicializaccedilatildeo ativismo judicial e legitimidade democraacutetica Revista de Direito do Estado Rio de Janeiro n 13 2009 26 Em decorrecircncia de uma parada cardiacuteaca Terri Schiavo viveu em estado vegetativo ateacute falecer em 2005 Nos uacuteltimos sete anos de sua vida seu marido e representante legal Michael Schiavo vinha pedindo ao Judiciaacuterio dos EUA o desligamento dos tubos que a mantinham viva Para tanto afirmava que antes de entrar em estado vegetativo a mulher havia se manifestado diversas vezes no sentido de que natildeo gostaria de ser mantida viva artificialmente Agrave pretensatildeo do marido se opuseram tanto os proacuteprios pais de Terri quanto diversas autoridades norte-americanas como o Presidente Geoge W Bush A longa controveacutersia juriacutedica envolveu desde a Justiccedila Estadual da Floacuterida ateacute a Justiccedila Federal dos EUA passando pelo Legislativo e pelo Governador do Estado Por sua vez a Suprema Corte dos EUA se recusou a analisar a mateacuteria Terri Schiavo faleceu em 31 de marccedilo de 2005 O resultado de sua autoacutepsia confirmou que nenhum tratamento poderia tecirc-la ajudado a superar os danos neuroloacutegicos que sofreu V Saiba mais sobre o conflito judicial do caso Schiavo Folha Online 29mar2005 Disponiacutevel em lthttpwww1folhauolcombrfolhamundoult94u82068shtmlgt Uacuteltimo acesso 24jun2009 GOODNOUGH Abby Schiavo Autopsy Says Brain Withered Was Untreatable New York Times 16jun2005 Disponiacutevel em lthttpwwwnytimescom20050616national16schiavohtmlgt Acesso em jun2009 27 Aos cinco anos de idade Hannah Jones foi diagnosticada com uma forma rara de leucemia e desde entatildeo sua vida passou a envolver frequentes internaccedilotildees hospitalares Seu tratamento incluiu doses de um forte medicamento contra uma infecccedilatildeo o que acabou causando danos ao seu coraccedilatildeo Sua uacutenica chance de viver longamente viria com um transplante Mas a menina de treze anos recusou o tratamento afirmando que jaacute sofrera traumas demais e natildeo queria passar por novas cirurgias ndash preferia morrer com dignidade Irresignado com a decisatildeo da paciente o hospital foi ao Judiciaacuterio Decidiu-se poreacutem que Hannah era madura o suficiente para decidir por si proacutepria V PERCIVAL Jenny Teenager who won right to die I have had too much trauma Guardiancouk 11nov2008 Disponiacutevel em lthttpwwwguardiancouksociety2008nov11child-protection-health-hannah-jonesgt Acesso em jun2009 28 Eluana Englaro ficou em coma por dezessete anos desde que sofreu um acidente de carro em 1992 Seu caso causou grande comoccedilatildeo na Itaacutelia mobilizando setores ligados agrave Igreja Catoacutelica e gerando uma crise entre o Primeiro-ministro Silvio Berlusconi e o Presidente Giorgio Napolitano Por dez anos o pai da moccedila lutou para garantir o direito de deixaacute-la morrer mas soacute conseguiu em 21 de janeiro de 2009 Ela passou trecircs dias sem receber comida e hidrataccedilatildeo mas uma ldquocriserdquo acabou antecipando sua morte V Morre Eluana a italiana que estava em coma havia 17 anos G1 9fev2009 Disponiacutevel em lthttpg1globocomNoticiasMundo0MUL993961-560200htmlgt Acesso em jun2009 29 a) as Resoluccedilotildees da AMM sobre eutanaacutesia e suiciacutedio assistido consideram tais condutas antieacuteticas mas assumem que eacute direito do paciente recusar tratamento meacutedico ainda que da recusa decorra a morte e que eacute direito do paciente ter respeitada a sua escolha de que o ldquoprocesso natural da morte siga seu curso na fase terminal da doenccedilardquo b) A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO determina que

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Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Espanha Meacutexico Reino Unido Franccedila Itaacutelia Suiacuteccedila

Sueacutecia Beacutelgica Holanda e Uruguai30

Estatildeo em choque aqui dois modelos Um de iacutendole paternalista

que desconsidera a vontade do paciente e de seus familiares privados de fazerem

escolhas morais proacuteprias O outro fundado na deontologia meacutedica valoriza a autonomia

e o diaacutelogo aceitando que a arte de curar se converta em cuidado e amparo Cabe

procurar entender e enfrentar as razotildees do desencontro entre as imposiccedilotildees juriacutedicas e

as exigecircncias eacuteticas O principal argumento contraacuterio a qualquer hipoacutetese de morte com

intervenccedilatildeo decorre da compreensatildeo do direito agrave vida como um direito fundamental

absoluto No Brasil essa valorizaccedilatildeo maacutexima da vida bioloacutegica e do modelo biomeacutedico

intensivista e interventor tem sua origem em algumas doutrinas morais abrangentes

muitas de cunho religioso que penetram na interpretaccedilatildeo juriacutedica Esta visatildeo do mundo

se manifesta em diferentes passagens da accedilatildeo civil puacuteblica acima referida

Ao avanccedilar no debate eacute preciso ter em conta que o direito agrave vida eacute

de fato especial Qualquer flexibilizaccedilatildeo de sua forccedila juriacutedica ou moral eacute delicada e deve

envolver cautelas muacuteltiplas Qualquer desprezo pela vida humana mesmo nas

circunstacircncias mais adversas eacute suspeita Um dos consensos miacutenimos que compotildeem a

ldquoqualquer intervenccedilatildeo meacutedica preventiva diagnoacutestica e terapecircutica soacute deve ser realizada com o consentimento preacutevio livre e esclarecido do indiviacuteduo envolvido baseado em informaccedilatildeo adequada O consentimento deve quando apropriado ser manifesto e poder ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razatildeo sem acarretar desvantagem ou preconceitordquo Para os casos de incapacidade haacute dispositivos especiacuteficos que visam a proteger a parcela de autonomia remanescente e os melhores interesses do envolvido c) O Conselho Europeu posicionou-se favoravelmente agrave implementaccedilatildeo de cuidados paliativos e do respeito dos direitos dos pacientes de recusarem tratamentos fuacuteteis ou extraordinaacuterios O Conselho determinou aos Estados-membros a normatizaccedilatildeo dos testamentos de vida e das diretivas avanccediladas d) ao decidir o caso Pretty a CEDH permitiu entrever que abaliza a limitaccedilatildeo consentida de tratamento em pacientes terminais ou em estado irreversiacutevel muito embora tenha se recusado a aceitar o suiciacutedio assistido Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit PARLIAMENTARY ASSEMBLY Resolution 1649 (2009) Palliative Care a model for innovative health and social policies Disponiacutevel em httpassemblycoeintmainaspLink=documentsadoptedtextta09eres1649htm Uacuteltimo acesso em mar2009 30 a) a Suprema Corte dos Estados Unidos assentou o seu posicionamento nos casos Vacco v Quill e Washington v Glucksberg et al jaacute lastreados em decisotildees anteriores como o caso Cruzan b) a Suprema Corte do Canadaacute reafirmou seu entendimento no tema em Rodriguez v British Columbia c) no Reino Unido satildeo importantes as decisotildees dos casos Airedale NHS Trust v Bland e The Queen on the Application of Mrs Dianne Pretty (Appellant) v Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home Department (Interested Party) d) a Beacutelgica e a Holanda reconhecem natildeo apenas a LCT como tambeacutem a eutanaacutesia eou o suiciacutedio assistido e) a Suiacuteccedila permite o suiciacutedio assistido f) na Espanha as decisotildees de suspensatildeo de suporte vital em pacientes terminais satildeo respeitadas e desde 2000 haacute leis sobre testamentos vitais (Ley Catalana) g) na Franccedila a limitaccedilatildeo consentida de tratamento foi permitida por lei em 2005 Cf MICCINESI Guido et al Physicianrsquos attitudes towards end-of-life decisions a comparison between seven countries Social Science amp Medicine (2005) 1961-1974 COHEN Joachim et al European public acceptance of euthanasia Socio-demographic and cultural factors associated with the acceptance of euthanasia in 33 European countries Social Science amp Medicine 63 (2006) 743-756 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p257 e s

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dignidade humana nas sociedades ocidentais eacute a preservaccedilatildeo da vida como um valor em

si que se atinge naturalmente por sua promoccedilatildeo e proteccedilatildeo rigorosa Com efeito basta

considerar que aleacutem do seu caraacuteter substantivo o direito agrave vida eacute preacute-condiccedilatildeo eacute

instrumento que permite a proacutepria dignidade pois sua negaccedilatildeo leva agrave inexistecircncia do

sujeito da dignidade Diante de tais premissas criminalizar atos que atentem contra a

vida humana tende a ser um meio adequado dentre outros de preservaccedilatildeo da vida e da

dignidade humanas Mas nem mesmo o direito agrave vida eacute absoluto

Eacute precisamente no ambiente da morte com intervenccedilatildeo que cabe

discutir a visatildeo da dignidade que impotildee ao indiviacuteduo a vida como um bem em si Como

intuitivo natildeo se estaacute aqui diante de uma situaccedilatildeo banal temporaacuteria ou reversiacutevel na

qual um indiviacuteduo decide morrer e outros se omitem em evitar ou prestam-lhe auxiacutelio

Justamente ao contraacuterio trata-se de pessoas que em condiccedilotildees nada ordinaacuterias

reclamam a possibilidade de renunciar a intervenccedilotildees meacutedicas de prolongamento da

vida Ou em outros casos de optar pela abreviaccedilatildeo direta da vida por ato proacuteprio ou

alheio por estarem acometidos de doenccedilas terminais extremamente dolorosas ou por

enfermidades degenerativas que conduzem agrave perda paulatina da independecircncia Nessas

situaccedilotildees extremas aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito agrave

vida impedindo que ele se transforme em um insuportaacutevel dever agrave vida Se em uma

infinidade de situaccedilotildees a dignidade eacute o fundamento da valorizaccedilatildeo da vida na morte

com intervenccedilatildeo as motivaccedilotildees se invertem

O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenccedilas para

as quais a medicina desconhece a cura ou a reversatildeo contra a sua vontade ou de seus

responsaacuteveis legais enseja dor sofrimento humilhaccedilatildeo exposiccedilatildeo intrusotildees corporais

indevidas e perda da liberdade Entram em cena entatildeo outros conteuacutedos da proacutepria

dignidade Eacute que a dignidade protege tambeacutem a liberdade e a inviolabilidade do

indiviacuteduo quanto agrave sua desumanizaccedilatildeo e degradaccedilatildeo Eacute nesse passo que se verifica uma

tensatildeo dentro do proacuteprio conceito em busca da determinaccedilatildeo de seu sentido e alcance

diante de situaccedilotildees concretas De um lado a dignidade serviria de impulso para a defesa

da vida e das concepccedilotildees sociais do que seja o bem morrer De outro ela se apresenta

como fundamento da morte com intervenccedilatildeo assegurando a autonomia individual a

superaccedilatildeo do sofrimento e a morte digna31

31 MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002

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Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

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nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

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A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

19

autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 7: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

7

Por fim suiciacutedio assistido designa a retirada da proacutepria vida com

auxiacutelio ou assistecircncia de terceiro O ato causador da morte eacute de autoria daquele que potildee

termo agrave proacutepria vida O terceiro colabora com o ato quer prestando informaccedilotildees quer

colocando agrave disposiccedilatildeo do paciente os meios e condiccedilotildees necessaacuterias agrave praacutetica O auxiacutelio

e a assistecircncia diferem do induzimento ao suiciacutedio No primeiro a vontade adveacutem do

paciente ao passo que no outro o terceiro age sobre a vontade do sujeito passivo de

modo a interferir com sua liberdade de accedilatildeo As duas formas admitem combinaccedilatildeo isto

eacute haacute possibilidade de uma pessoa ser simultaneamente instigada e assistida em seu

suiciacutedio O suiciacutedio assistido por meacutedico eacute espeacutecie do gecircnero suiciacutedio assistido

O rearranjo conceitual apresentado atinge a antiga distinccedilatildeo entre

as formas ativa e passiva da eutanaacutesia que passaram a receber denominaccedilotildees distintas

O termo eutanaacutesia aplica-se somente agravequela que era conhecida como forma ativa17 A

conduta antes caracterizada como eutanaacutesia passiva ndash e essa eacute uma das teses centrais

do presente estudo ndash jaacute natildeo deve ser necessariamente visualizada como antieacutetica

podendo ser expressatildeo da autonomia do paciente merecedora de respeito por parte da

equipe de sauacutede No mesmo ensejo a distinccedilatildeo entre a eutanaacutesia e a distanaacutesia permite

concluir que medidas excessivas e desproporcionais (na relaccedilatildeo benefiacutecioprejuiacutezo agrave

sauacutede e agrave qualidade de vida do enfermo) natildeo devem ser empregadas agrave revelia da

vontade do paciente nem tampouco correspondem agrave boa teacutecnica caso natildeo desejadas

pelo doente seus cuidadores ou seus responsaacuteveis legais

III O descompasso entre a interpretaccedilatildeo dominante do direito vigente e a eacutetica

meacutedica

A legislaccedilatildeo penal brasileira natildeo extrai consequecircncias juriacutedicas

significativas das categorizaccedilotildees mencionadas no toacutepico anterior salvo o suiciacutedio

assistido Assim sendo tanto a eutanaacutesia quanto a ortotanaacutesia ndash aiacute compreendida a

limitaccedilatildeo do tratamento ndash constituiriam hipoacuteteses de homiciacutedio18 No primeiro caso na

modalidade comissiva e no segundo na omissiva O auxiacutelio ao suiciacutedio eacute tratado em tipo

17 Para uma visatildeo da categorizaccedilatildeo anterior do tema com a distinccedilatildeo entre eutanaacutesia ativa e passiva aleacutem dos autores jaacute referidos na nota 3 v tb TOOLEY Michael Euthanasia and assisted suicide In FREY RG e WELLMAN Christopher Heath A companion to applied ethics Malden Blackwell 2007 p 326-341 18 Coacutedigo Penal art 121 ldquoMatar algueacutem Pena ndash reclusatildeo de 6 (seis) meses a 20 (vinte) anosrdquo

8

penal proacuteprio19 Nessa interpretaccedilatildeo que corresponde ao conhecimento convencional na

mateacuteria a decisatildeo do paciente ou de sua famiacutelia de descontinuar um tratamento meacutedico

desproporcional extraordinaacuterio ou fuacutetil natildeo alteraria o caraacuteter criminoso da conduta A

existecircncia de consentimento natildeo produziria o efeito juriacutedico de salvaguardar o meacutedico de

uma persecuccedilatildeo penal Em suma natildeo haveria distinccedilatildeo entre o ato de natildeo tratar um

enfermo terminal segundo a sua proacutepria vontade e o ato de intencionalmente abreviar-

lhe a vida tambeacutem a seu pedido 20

Essa postura legislativa e doutrinaacuteria pode produzir consequecircncias

graves pois ao oferecer o mesmo tratamento juriacutedico para situaccedilotildees distintas o

paradigma legal reforccedila condutas de obstinaccedilatildeo terapecircutica e acaba por promover a

distanaacutesia Com isso endossa um modelo meacutedico paternalista que se funda na

autoridade do profissional da medicina sobre o paciente e descaracteriza a condiccedilatildeo de

sujeito do enfermo Ainda que os meacutedicos natildeo mais estejam vinculados eticamente a

esse modelo superado de relaccedilatildeo o espectro da sanccedilatildeo pode levaacute-los a adotaacute-lo Natildeo

apenas manteratildeo ou iniciaratildeo um tratamento indesejado gerador de muita agonia e

padecimento como por vezes adotaratildeo algum natildeo recomendado pela boa teacutecnica por

sua desproporcionalidade A arte de curar e de evitar o sofrimento se transmuda entatildeo

no ofiacutecio mais rude de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condiccedilotildees Natildeo

eacute apenas a autonomia do paciente que eacute agredida A liberdade de consciecircncia do

profissional da sauacutede pode tambeacutem estar em xeque21

19 Coacutedigo Penal art 122 ldquoInduzir ou instigar algueacutem a suicidar-se ou prestar-lhe auxiacutelio para que o faccedila Pena ndash reclusatildeo de 2 (dois) a 6 (seis) anos se o suiciacutedio se consuma ou reclusatildeo de 1 (um) a 3 (trecircs) anos se da tentativa de suiciacutedio resulta lesatildeo corporal de natureza graverdquo 20 Pelo conhecimento convencional no Brasil ambas as condutas seriam consideradas homiciacutedio o qual caso viesse a ser reconhecido pelo juacuteri poderia contar com uma causa especial de diminuiccedilatildeo de pena (privileacutegio) V MIRABETE Juacutelio Fabbrini Coacutedigo Penal Interpretado 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2003 E tambeacutem CAPEZ Fernando Curso de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p34 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p58 Sobre as privilegiadoras e qualificadoras SANTOS Juarez Cirino A moderna teoria do fato puniacutevel 4 ed rev e ampl Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 DODGE Raquel Elias Ferreira Eutanaacutesia aspectos juriacutedicos Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevista bio1v7eutaspectoshtm Acesso em maio 2006 BRASIL Ministeacuterio Puacuteblico Federal -1a Reg Recomendaccedilatildeo 012006 - WD - PRDC Disponiacutevel em wwwprdfmpfgovbrprdclegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em 25 nov 2006 21 Quanto ao cuidado paliativo de duplo efeito a situaccedilatildeo eacute ainda pior por razotildees notoacuterias Se um meacutedico for autorizado pelo enfermo a lanccedilar matildeo dessa teacutecnica poderaacute abreviar seu tempo de vida Se o mundo juriacutedico natildeo oferecer amparo seguro a essa accedilatildeo o temor de cometer um crime pode ensejar o uso de dosagens medicamentosas menores do que o necessaacuterio para aplacar o imenso sofrimento fiacutesico e psicoloacutegico daqueles que estatildeo no leito de morte

9

A Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 de 9112006 editada pelo

Conselho Federal de Medicina procurou contornar as deficiecircncias e insuficiecircncias de um

Coacutedigo Penal cuja parte especial eacute da deacutecada de 40 do seacuteculo passado Nessa linha

invocando sua funccedilatildeo disciplinadora da classe meacutedica bem como o art 5ordm III da

Constituiccedilatildeo pretendeu dar suporte juriacutedico agrave ortotanaacutesia Sem menccedilatildeo agrave eutanaacutesia e ao

suiciacutedio assistido ndash que continuam a ser considerados pelo Conselho como praacuteticas natildeo-

eacuteticas ndash a Resoluccedilatildeo tratou da limitaccedilatildeo do tratamento e do cuidado paliativo de doentes

em fase terminal nas hipoacuteteses autorizadas por seus parentes ou por seus familiares

Trazendo uma fundamentada Exposiccedilatildeo de Motivos a Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 tem

o conteuacutedo assim resumido em sua Ementa

ldquoNa fase terminal de enfermidades graves e incuraacuteveis eacute permitido

ao meacutedico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que

prolonguem a vida do doente garantindo-lhe os cuidados

necessaacuterios para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento na

perspectiva de uma assistecircncia integral respeitada a vontade do

paciente ou de seu representante legalrdquo

Eacute possiacutevel fazer uma defesa da Resoluccedilatildeo do Conselho Federal de

Medicina quer dentro das categorias do proacuteprio direito penal quer mediante uma leitura

de seu texto agrave luz da Constituiccedilatildeo Por ora no entanto faz-se o registro de que foi ela

suspensa por decisatildeo judicial produzida em accedilatildeo civil puacuteblica movida pelo Ministeacuterio

Puacuteblico Federal perante a Justiccedila Federal de Brasiacutelia Na peticcedilatildeo inicial de 131 paacuteginas o

Procurador da Repuacuteblica que a subscreve colocou-se frontalmente contra o conteuacutedo da

Resoluccedilatildeo Em meio a muitas consideraccedilotildees juriacutedicas morais e metafiacutesicas afirmou ldquoA

ortotanaacutesia natildeo passa de um artifiacutecio homicida expediente desprovido de razotildees loacutegicas

e violador da Constituiccedilatildeo Federal mero desejo de dar ao homem pelo proacuteprio homem

a possibilidade de uma decisatildeo que nunca lhe pertenceurdquo 22 Na decisatildeo que acolheu o

pedido de antecipaccedilatildeo de tutela entendeu o juiz de primeiro grau pela existecircncia de

ldquoaparente conflito entre a resoluccedilatildeo questionada e o Coacutedigo Penalrdquo23

22 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpnoticiaspgrmpfgovbrnoticias-do-sitepdfsACP20Ortotanasiapdf Acesso em out2007 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpprdcprdfmpfgovbrlegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em dez2006 23 V inteiro teor da decisatildeo em wwwdftrf1govbr20073400014809-3_decisao_23-10-2007doc

10

A decisatildeo marca o encontro no Brasil de dois fenocircmenos do nosso

tempo a medicalizaccedilatildeo24 e a judicializaccedilatildeo25 da vida Ambos potencializados por um

terceiro fenocircmeno a sociedade espetaacuteculo em que os meios de comunicaccedilatildeo

transmitem em tempo real ao vivo e em cores dramas como os de Terri Schiavo

(EUA)26 Hannah Jones (Reino Unido)27 ou Eluana (Itaacutelia)28 O pronunciamento judicial

suspensivo da Resoluccedilatildeo exibe igualmente o descompasso entre ordenamento juriacutedico e

a eacutetica meacutedica E no mundo poacutes-positivista de reaproximaccedilatildeo entre o Direito e a Eacutetica

este eacute um desencontro que deve ser evitado A propoacutesito deve-se registrar que a

orientaccedilatildeo do Conselho Federal de Medicina estaacute em consonacircncia com as da Associaccedilatildeo

Meacutedica Mundial (AMM) as da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura (UNESCO) e as do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos

Humanos (CEDH) 29 E tambeacutem com o tratamento juriacutedico adotado em paiacuteses como

24 A expressatildeo lsquomedicalizaccedilatildeo da vidarsquo foi cunhada e definida em ILLICH Ivan The medicalization of life Journal of Medical Ethics I 1975 p73-77 25 BARROSO Luiacutes Roberto Judicializaccedilatildeo ativismo judicial e legitimidade democraacutetica Revista de Direito do Estado Rio de Janeiro n 13 2009 26 Em decorrecircncia de uma parada cardiacuteaca Terri Schiavo viveu em estado vegetativo ateacute falecer em 2005 Nos uacuteltimos sete anos de sua vida seu marido e representante legal Michael Schiavo vinha pedindo ao Judiciaacuterio dos EUA o desligamento dos tubos que a mantinham viva Para tanto afirmava que antes de entrar em estado vegetativo a mulher havia se manifestado diversas vezes no sentido de que natildeo gostaria de ser mantida viva artificialmente Agrave pretensatildeo do marido se opuseram tanto os proacuteprios pais de Terri quanto diversas autoridades norte-americanas como o Presidente Geoge W Bush A longa controveacutersia juriacutedica envolveu desde a Justiccedila Estadual da Floacuterida ateacute a Justiccedila Federal dos EUA passando pelo Legislativo e pelo Governador do Estado Por sua vez a Suprema Corte dos EUA se recusou a analisar a mateacuteria Terri Schiavo faleceu em 31 de marccedilo de 2005 O resultado de sua autoacutepsia confirmou que nenhum tratamento poderia tecirc-la ajudado a superar os danos neuroloacutegicos que sofreu V Saiba mais sobre o conflito judicial do caso Schiavo Folha Online 29mar2005 Disponiacutevel em lthttpwww1folhauolcombrfolhamundoult94u82068shtmlgt Uacuteltimo acesso 24jun2009 GOODNOUGH Abby Schiavo Autopsy Says Brain Withered Was Untreatable New York Times 16jun2005 Disponiacutevel em lthttpwwwnytimescom20050616national16schiavohtmlgt Acesso em jun2009 27 Aos cinco anos de idade Hannah Jones foi diagnosticada com uma forma rara de leucemia e desde entatildeo sua vida passou a envolver frequentes internaccedilotildees hospitalares Seu tratamento incluiu doses de um forte medicamento contra uma infecccedilatildeo o que acabou causando danos ao seu coraccedilatildeo Sua uacutenica chance de viver longamente viria com um transplante Mas a menina de treze anos recusou o tratamento afirmando que jaacute sofrera traumas demais e natildeo queria passar por novas cirurgias ndash preferia morrer com dignidade Irresignado com a decisatildeo da paciente o hospital foi ao Judiciaacuterio Decidiu-se poreacutem que Hannah era madura o suficiente para decidir por si proacutepria V PERCIVAL Jenny Teenager who won right to die I have had too much trauma Guardiancouk 11nov2008 Disponiacutevel em lthttpwwwguardiancouksociety2008nov11child-protection-health-hannah-jonesgt Acesso em jun2009 28 Eluana Englaro ficou em coma por dezessete anos desde que sofreu um acidente de carro em 1992 Seu caso causou grande comoccedilatildeo na Itaacutelia mobilizando setores ligados agrave Igreja Catoacutelica e gerando uma crise entre o Primeiro-ministro Silvio Berlusconi e o Presidente Giorgio Napolitano Por dez anos o pai da moccedila lutou para garantir o direito de deixaacute-la morrer mas soacute conseguiu em 21 de janeiro de 2009 Ela passou trecircs dias sem receber comida e hidrataccedilatildeo mas uma ldquocriserdquo acabou antecipando sua morte V Morre Eluana a italiana que estava em coma havia 17 anos G1 9fev2009 Disponiacutevel em lthttpg1globocomNoticiasMundo0MUL993961-560200htmlgt Acesso em jun2009 29 a) as Resoluccedilotildees da AMM sobre eutanaacutesia e suiciacutedio assistido consideram tais condutas antieacuteticas mas assumem que eacute direito do paciente recusar tratamento meacutedico ainda que da recusa decorra a morte e que eacute direito do paciente ter respeitada a sua escolha de que o ldquoprocesso natural da morte siga seu curso na fase terminal da doenccedilardquo b) A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO determina que

11

Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Espanha Meacutexico Reino Unido Franccedila Itaacutelia Suiacuteccedila

Sueacutecia Beacutelgica Holanda e Uruguai30

Estatildeo em choque aqui dois modelos Um de iacutendole paternalista

que desconsidera a vontade do paciente e de seus familiares privados de fazerem

escolhas morais proacuteprias O outro fundado na deontologia meacutedica valoriza a autonomia

e o diaacutelogo aceitando que a arte de curar se converta em cuidado e amparo Cabe

procurar entender e enfrentar as razotildees do desencontro entre as imposiccedilotildees juriacutedicas e

as exigecircncias eacuteticas O principal argumento contraacuterio a qualquer hipoacutetese de morte com

intervenccedilatildeo decorre da compreensatildeo do direito agrave vida como um direito fundamental

absoluto No Brasil essa valorizaccedilatildeo maacutexima da vida bioloacutegica e do modelo biomeacutedico

intensivista e interventor tem sua origem em algumas doutrinas morais abrangentes

muitas de cunho religioso que penetram na interpretaccedilatildeo juriacutedica Esta visatildeo do mundo

se manifesta em diferentes passagens da accedilatildeo civil puacuteblica acima referida

Ao avanccedilar no debate eacute preciso ter em conta que o direito agrave vida eacute

de fato especial Qualquer flexibilizaccedilatildeo de sua forccedila juriacutedica ou moral eacute delicada e deve

envolver cautelas muacuteltiplas Qualquer desprezo pela vida humana mesmo nas

circunstacircncias mais adversas eacute suspeita Um dos consensos miacutenimos que compotildeem a

ldquoqualquer intervenccedilatildeo meacutedica preventiva diagnoacutestica e terapecircutica soacute deve ser realizada com o consentimento preacutevio livre e esclarecido do indiviacuteduo envolvido baseado em informaccedilatildeo adequada O consentimento deve quando apropriado ser manifesto e poder ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razatildeo sem acarretar desvantagem ou preconceitordquo Para os casos de incapacidade haacute dispositivos especiacuteficos que visam a proteger a parcela de autonomia remanescente e os melhores interesses do envolvido c) O Conselho Europeu posicionou-se favoravelmente agrave implementaccedilatildeo de cuidados paliativos e do respeito dos direitos dos pacientes de recusarem tratamentos fuacuteteis ou extraordinaacuterios O Conselho determinou aos Estados-membros a normatizaccedilatildeo dos testamentos de vida e das diretivas avanccediladas d) ao decidir o caso Pretty a CEDH permitiu entrever que abaliza a limitaccedilatildeo consentida de tratamento em pacientes terminais ou em estado irreversiacutevel muito embora tenha se recusado a aceitar o suiciacutedio assistido Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit PARLIAMENTARY ASSEMBLY Resolution 1649 (2009) Palliative Care a model for innovative health and social policies Disponiacutevel em httpassemblycoeintmainaspLink=documentsadoptedtextta09eres1649htm Uacuteltimo acesso em mar2009 30 a) a Suprema Corte dos Estados Unidos assentou o seu posicionamento nos casos Vacco v Quill e Washington v Glucksberg et al jaacute lastreados em decisotildees anteriores como o caso Cruzan b) a Suprema Corte do Canadaacute reafirmou seu entendimento no tema em Rodriguez v British Columbia c) no Reino Unido satildeo importantes as decisotildees dos casos Airedale NHS Trust v Bland e The Queen on the Application of Mrs Dianne Pretty (Appellant) v Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home Department (Interested Party) d) a Beacutelgica e a Holanda reconhecem natildeo apenas a LCT como tambeacutem a eutanaacutesia eou o suiciacutedio assistido e) a Suiacuteccedila permite o suiciacutedio assistido f) na Espanha as decisotildees de suspensatildeo de suporte vital em pacientes terminais satildeo respeitadas e desde 2000 haacute leis sobre testamentos vitais (Ley Catalana) g) na Franccedila a limitaccedilatildeo consentida de tratamento foi permitida por lei em 2005 Cf MICCINESI Guido et al Physicianrsquos attitudes towards end-of-life decisions a comparison between seven countries Social Science amp Medicine (2005) 1961-1974 COHEN Joachim et al European public acceptance of euthanasia Socio-demographic and cultural factors associated with the acceptance of euthanasia in 33 European countries Social Science amp Medicine 63 (2006) 743-756 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p257 e s

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dignidade humana nas sociedades ocidentais eacute a preservaccedilatildeo da vida como um valor em

si que se atinge naturalmente por sua promoccedilatildeo e proteccedilatildeo rigorosa Com efeito basta

considerar que aleacutem do seu caraacuteter substantivo o direito agrave vida eacute preacute-condiccedilatildeo eacute

instrumento que permite a proacutepria dignidade pois sua negaccedilatildeo leva agrave inexistecircncia do

sujeito da dignidade Diante de tais premissas criminalizar atos que atentem contra a

vida humana tende a ser um meio adequado dentre outros de preservaccedilatildeo da vida e da

dignidade humanas Mas nem mesmo o direito agrave vida eacute absoluto

Eacute precisamente no ambiente da morte com intervenccedilatildeo que cabe

discutir a visatildeo da dignidade que impotildee ao indiviacuteduo a vida como um bem em si Como

intuitivo natildeo se estaacute aqui diante de uma situaccedilatildeo banal temporaacuteria ou reversiacutevel na

qual um indiviacuteduo decide morrer e outros se omitem em evitar ou prestam-lhe auxiacutelio

Justamente ao contraacuterio trata-se de pessoas que em condiccedilotildees nada ordinaacuterias

reclamam a possibilidade de renunciar a intervenccedilotildees meacutedicas de prolongamento da

vida Ou em outros casos de optar pela abreviaccedilatildeo direta da vida por ato proacuteprio ou

alheio por estarem acometidos de doenccedilas terminais extremamente dolorosas ou por

enfermidades degenerativas que conduzem agrave perda paulatina da independecircncia Nessas

situaccedilotildees extremas aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito agrave

vida impedindo que ele se transforme em um insuportaacutevel dever agrave vida Se em uma

infinidade de situaccedilotildees a dignidade eacute o fundamento da valorizaccedilatildeo da vida na morte

com intervenccedilatildeo as motivaccedilotildees se invertem

O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenccedilas para

as quais a medicina desconhece a cura ou a reversatildeo contra a sua vontade ou de seus

responsaacuteveis legais enseja dor sofrimento humilhaccedilatildeo exposiccedilatildeo intrusotildees corporais

indevidas e perda da liberdade Entram em cena entatildeo outros conteuacutedos da proacutepria

dignidade Eacute que a dignidade protege tambeacutem a liberdade e a inviolabilidade do

indiviacuteduo quanto agrave sua desumanizaccedilatildeo e degradaccedilatildeo Eacute nesse passo que se verifica uma

tensatildeo dentro do proacuteprio conceito em busca da determinaccedilatildeo de seu sentido e alcance

diante de situaccedilotildees concretas De um lado a dignidade serviria de impulso para a defesa

da vida e das concepccedilotildees sociais do que seja o bem morrer De outro ela se apresenta

como fundamento da morte com intervenccedilatildeo assegurando a autonomia individual a

superaccedilatildeo do sofrimento e a morte digna31

31 MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002

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Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

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nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

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A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 8: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

8

penal proacuteprio19 Nessa interpretaccedilatildeo que corresponde ao conhecimento convencional na

mateacuteria a decisatildeo do paciente ou de sua famiacutelia de descontinuar um tratamento meacutedico

desproporcional extraordinaacuterio ou fuacutetil natildeo alteraria o caraacuteter criminoso da conduta A

existecircncia de consentimento natildeo produziria o efeito juriacutedico de salvaguardar o meacutedico de

uma persecuccedilatildeo penal Em suma natildeo haveria distinccedilatildeo entre o ato de natildeo tratar um

enfermo terminal segundo a sua proacutepria vontade e o ato de intencionalmente abreviar-

lhe a vida tambeacutem a seu pedido 20

Essa postura legislativa e doutrinaacuteria pode produzir consequecircncias

graves pois ao oferecer o mesmo tratamento juriacutedico para situaccedilotildees distintas o

paradigma legal reforccedila condutas de obstinaccedilatildeo terapecircutica e acaba por promover a

distanaacutesia Com isso endossa um modelo meacutedico paternalista que se funda na

autoridade do profissional da medicina sobre o paciente e descaracteriza a condiccedilatildeo de

sujeito do enfermo Ainda que os meacutedicos natildeo mais estejam vinculados eticamente a

esse modelo superado de relaccedilatildeo o espectro da sanccedilatildeo pode levaacute-los a adotaacute-lo Natildeo

apenas manteratildeo ou iniciaratildeo um tratamento indesejado gerador de muita agonia e

padecimento como por vezes adotaratildeo algum natildeo recomendado pela boa teacutecnica por

sua desproporcionalidade A arte de curar e de evitar o sofrimento se transmuda entatildeo

no ofiacutecio mais rude de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condiccedilotildees Natildeo

eacute apenas a autonomia do paciente que eacute agredida A liberdade de consciecircncia do

profissional da sauacutede pode tambeacutem estar em xeque21

19 Coacutedigo Penal art 122 ldquoInduzir ou instigar algueacutem a suicidar-se ou prestar-lhe auxiacutelio para que o faccedila Pena ndash reclusatildeo de 2 (dois) a 6 (seis) anos se o suiciacutedio se consuma ou reclusatildeo de 1 (um) a 3 (trecircs) anos se da tentativa de suiciacutedio resulta lesatildeo corporal de natureza graverdquo 20 Pelo conhecimento convencional no Brasil ambas as condutas seriam consideradas homiciacutedio o qual caso viesse a ser reconhecido pelo juacuteri poderia contar com uma causa especial de diminuiccedilatildeo de pena (privileacutegio) V MIRABETE Juacutelio Fabbrini Coacutedigo Penal Interpretado 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2003 E tambeacutem CAPEZ Fernando Curso de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p34 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal Parte Especial v2 Satildeo Paulo Saraiva 2003 p58 Sobre as privilegiadoras e qualificadoras SANTOS Juarez Cirino A moderna teoria do fato puniacutevel 4 ed rev e ampl Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 DODGE Raquel Elias Ferreira Eutanaacutesia aspectos juriacutedicos Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevista bio1v7eutaspectoshtm Acesso em maio 2006 BRASIL Ministeacuterio Puacuteblico Federal -1a Reg Recomendaccedilatildeo 012006 - WD - PRDC Disponiacutevel em wwwprdfmpfgovbrprdclegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em 25 nov 2006 21 Quanto ao cuidado paliativo de duplo efeito a situaccedilatildeo eacute ainda pior por razotildees notoacuterias Se um meacutedico for autorizado pelo enfermo a lanccedilar matildeo dessa teacutecnica poderaacute abreviar seu tempo de vida Se o mundo juriacutedico natildeo oferecer amparo seguro a essa accedilatildeo o temor de cometer um crime pode ensejar o uso de dosagens medicamentosas menores do que o necessaacuterio para aplacar o imenso sofrimento fiacutesico e psicoloacutegico daqueles que estatildeo no leito de morte

9

A Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 de 9112006 editada pelo

Conselho Federal de Medicina procurou contornar as deficiecircncias e insuficiecircncias de um

Coacutedigo Penal cuja parte especial eacute da deacutecada de 40 do seacuteculo passado Nessa linha

invocando sua funccedilatildeo disciplinadora da classe meacutedica bem como o art 5ordm III da

Constituiccedilatildeo pretendeu dar suporte juriacutedico agrave ortotanaacutesia Sem menccedilatildeo agrave eutanaacutesia e ao

suiciacutedio assistido ndash que continuam a ser considerados pelo Conselho como praacuteticas natildeo-

eacuteticas ndash a Resoluccedilatildeo tratou da limitaccedilatildeo do tratamento e do cuidado paliativo de doentes

em fase terminal nas hipoacuteteses autorizadas por seus parentes ou por seus familiares

Trazendo uma fundamentada Exposiccedilatildeo de Motivos a Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 tem

o conteuacutedo assim resumido em sua Ementa

ldquoNa fase terminal de enfermidades graves e incuraacuteveis eacute permitido

ao meacutedico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que

prolonguem a vida do doente garantindo-lhe os cuidados

necessaacuterios para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento na

perspectiva de uma assistecircncia integral respeitada a vontade do

paciente ou de seu representante legalrdquo

Eacute possiacutevel fazer uma defesa da Resoluccedilatildeo do Conselho Federal de

Medicina quer dentro das categorias do proacuteprio direito penal quer mediante uma leitura

de seu texto agrave luz da Constituiccedilatildeo Por ora no entanto faz-se o registro de que foi ela

suspensa por decisatildeo judicial produzida em accedilatildeo civil puacuteblica movida pelo Ministeacuterio

Puacuteblico Federal perante a Justiccedila Federal de Brasiacutelia Na peticcedilatildeo inicial de 131 paacuteginas o

Procurador da Repuacuteblica que a subscreve colocou-se frontalmente contra o conteuacutedo da

Resoluccedilatildeo Em meio a muitas consideraccedilotildees juriacutedicas morais e metafiacutesicas afirmou ldquoA

ortotanaacutesia natildeo passa de um artifiacutecio homicida expediente desprovido de razotildees loacutegicas

e violador da Constituiccedilatildeo Federal mero desejo de dar ao homem pelo proacuteprio homem

a possibilidade de uma decisatildeo que nunca lhe pertenceurdquo 22 Na decisatildeo que acolheu o

pedido de antecipaccedilatildeo de tutela entendeu o juiz de primeiro grau pela existecircncia de

ldquoaparente conflito entre a resoluccedilatildeo questionada e o Coacutedigo Penalrdquo23

22 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpnoticiaspgrmpfgovbrnoticias-do-sitepdfsACP20Ortotanasiapdf Acesso em out2007 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpprdcprdfmpfgovbrlegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em dez2006 23 V inteiro teor da decisatildeo em wwwdftrf1govbr20073400014809-3_decisao_23-10-2007doc

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A decisatildeo marca o encontro no Brasil de dois fenocircmenos do nosso

tempo a medicalizaccedilatildeo24 e a judicializaccedilatildeo25 da vida Ambos potencializados por um

terceiro fenocircmeno a sociedade espetaacuteculo em que os meios de comunicaccedilatildeo

transmitem em tempo real ao vivo e em cores dramas como os de Terri Schiavo

(EUA)26 Hannah Jones (Reino Unido)27 ou Eluana (Itaacutelia)28 O pronunciamento judicial

suspensivo da Resoluccedilatildeo exibe igualmente o descompasso entre ordenamento juriacutedico e

a eacutetica meacutedica E no mundo poacutes-positivista de reaproximaccedilatildeo entre o Direito e a Eacutetica

este eacute um desencontro que deve ser evitado A propoacutesito deve-se registrar que a

orientaccedilatildeo do Conselho Federal de Medicina estaacute em consonacircncia com as da Associaccedilatildeo

Meacutedica Mundial (AMM) as da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura (UNESCO) e as do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos

Humanos (CEDH) 29 E tambeacutem com o tratamento juriacutedico adotado em paiacuteses como

24 A expressatildeo lsquomedicalizaccedilatildeo da vidarsquo foi cunhada e definida em ILLICH Ivan The medicalization of life Journal of Medical Ethics I 1975 p73-77 25 BARROSO Luiacutes Roberto Judicializaccedilatildeo ativismo judicial e legitimidade democraacutetica Revista de Direito do Estado Rio de Janeiro n 13 2009 26 Em decorrecircncia de uma parada cardiacuteaca Terri Schiavo viveu em estado vegetativo ateacute falecer em 2005 Nos uacuteltimos sete anos de sua vida seu marido e representante legal Michael Schiavo vinha pedindo ao Judiciaacuterio dos EUA o desligamento dos tubos que a mantinham viva Para tanto afirmava que antes de entrar em estado vegetativo a mulher havia se manifestado diversas vezes no sentido de que natildeo gostaria de ser mantida viva artificialmente Agrave pretensatildeo do marido se opuseram tanto os proacuteprios pais de Terri quanto diversas autoridades norte-americanas como o Presidente Geoge W Bush A longa controveacutersia juriacutedica envolveu desde a Justiccedila Estadual da Floacuterida ateacute a Justiccedila Federal dos EUA passando pelo Legislativo e pelo Governador do Estado Por sua vez a Suprema Corte dos EUA se recusou a analisar a mateacuteria Terri Schiavo faleceu em 31 de marccedilo de 2005 O resultado de sua autoacutepsia confirmou que nenhum tratamento poderia tecirc-la ajudado a superar os danos neuroloacutegicos que sofreu V Saiba mais sobre o conflito judicial do caso Schiavo Folha Online 29mar2005 Disponiacutevel em lthttpwww1folhauolcombrfolhamundoult94u82068shtmlgt Uacuteltimo acesso 24jun2009 GOODNOUGH Abby Schiavo Autopsy Says Brain Withered Was Untreatable New York Times 16jun2005 Disponiacutevel em lthttpwwwnytimescom20050616national16schiavohtmlgt Acesso em jun2009 27 Aos cinco anos de idade Hannah Jones foi diagnosticada com uma forma rara de leucemia e desde entatildeo sua vida passou a envolver frequentes internaccedilotildees hospitalares Seu tratamento incluiu doses de um forte medicamento contra uma infecccedilatildeo o que acabou causando danos ao seu coraccedilatildeo Sua uacutenica chance de viver longamente viria com um transplante Mas a menina de treze anos recusou o tratamento afirmando que jaacute sofrera traumas demais e natildeo queria passar por novas cirurgias ndash preferia morrer com dignidade Irresignado com a decisatildeo da paciente o hospital foi ao Judiciaacuterio Decidiu-se poreacutem que Hannah era madura o suficiente para decidir por si proacutepria V PERCIVAL Jenny Teenager who won right to die I have had too much trauma Guardiancouk 11nov2008 Disponiacutevel em lthttpwwwguardiancouksociety2008nov11child-protection-health-hannah-jonesgt Acesso em jun2009 28 Eluana Englaro ficou em coma por dezessete anos desde que sofreu um acidente de carro em 1992 Seu caso causou grande comoccedilatildeo na Itaacutelia mobilizando setores ligados agrave Igreja Catoacutelica e gerando uma crise entre o Primeiro-ministro Silvio Berlusconi e o Presidente Giorgio Napolitano Por dez anos o pai da moccedila lutou para garantir o direito de deixaacute-la morrer mas soacute conseguiu em 21 de janeiro de 2009 Ela passou trecircs dias sem receber comida e hidrataccedilatildeo mas uma ldquocriserdquo acabou antecipando sua morte V Morre Eluana a italiana que estava em coma havia 17 anos G1 9fev2009 Disponiacutevel em lthttpg1globocomNoticiasMundo0MUL993961-560200htmlgt Acesso em jun2009 29 a) as Resoluccedilotildees da AMM sobre eutanaacutesia e suiciacutedio assistido consideram tais condutas antieacuteticas mas assumem que eacute direito do paciente recusar tratamento meacutedico ainda que da recusa decorra a morte e que eacute direito do paciente ter respeitada a sua escolha de que o ldquoprocesso natural da morte siga seu curso na fase terminal da doenccedilardquo b) A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO determina que

11

Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Espanha Meacutexico Reino Unido Franccedila Itaacutelia Suiacuteccedila

Sueacutecia Beacutelgica Holanda e Uruguai30

Estatildeo em choque aqui dois modelos Um de iacutendole paternalista

que desconsidera a vontade do paciente e de seus familiares privados de fazerem

escolhas morais proacuteprias O outro fundado na deontologia meacutedica valoriza a autonomia

e o diaacutelogo aceitando que a arte de curar se converta em cuidado e amparo Cabe

procurar entender e enfrentar as razotildees do desencontro entre as imposiccedilotildees juriacutedicas e

as exigecircncias eacuteticas O principal argumento contraacuterio a qualquer hipoacutetese de morte com

intervenccedilatildeo decorre da compreensatildeo do direito agrave vida como um direito fundamental

absoluto No Brasil essa valorizaccedilatildeo maacutexima da vida bioloacutegica e do modelo biomeacutedico

intensivista e interventor tem sua origem em algumas doutrinas morais abrangentes

muitas de cunho religioso que penetram na interpretaccedilatildeo juriacutedica Esta visatildeo do mundo

se manifesta em diferentes passagens da accedilatildeo civil puacuteblica acima referida

Ao avanccedilar no debate eacute preciso ter em conta que o direito agrave vida eacute

de fato especial Qualquer flexibilizaccedilatildeo de sua forccedila juriacutedica ou moral eacute delicada e deve

envolver cautelas muacuteltiplas Qualquer desprezo pela vida humana mesmo nas

circunstacircncias mais adversas eacute suspeita Um dos consensos miacutenimos que compotildeem a

ldquoqualquer intervenccedilatildeo meacutedica preventiva diagnoacutestica e terapecircutica soacute deve ser realizada com o consentimento preacutevio livre e esclarecido do indiviacuteduo envolvido baseado em informaccedilatildeo adequada O consentimento deve quando apropriado ser manifesto e poder ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razatildeo sem acarretar desvantagem ou preconceitordquo Para os casos de incapacidade haacute dispositivos especiacuteficos que visam a proteger a parcela de autonomia remanescente e os melhores interesses do envolvido c) O Conselho Europeu posicionou-se favoravelmente agrave implementaccedilatildeo de cuidados paliativos e do respeito dos direitos dos pacientes de recusarem tratamentos fuacuteteis ou extraordinaacuterios O Conselho determinou aos Estados-membros a normatizaccedilatildeo dos testamentos de vida e das diretivas avanccediladas d) ao decidir o caso Pretty a CEDH permitiu entrever que abaliza a limitaccedilatildeo consentida de tratamento em pacientes terminais ou em estado irreversiacutevel muito embora tenha se recusado a aceitar o suiciacutedio assistido Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit PARLIAMENTARY ASSEMBLY Resolution 1649 (2009) Palliative Care a model for innovative health and social policies Disponiacutevel em httpassemblycoeintmainaspLink=documentsadoptedtextta09eres1649htm Uacuteltimo acesso em mar2009 30 a) a Suprema Corte dos Estados Unidos assentou o seu posicionamento nos casos Vacco v Quill e Washington v Glucksberg et al jaacute lastreados em decisotildees anteriores como o caso Cruzan b) a Suprema Corte do Canadaacute reafirmou seu entendimento no tema em Rodriguez v British Columbia c) no Reino Unido satildeo importantes as decisotildees dos casos Airedale NHS Trust v Bland e The Queen on the Application of Mrs Dianne Pretty (Appellant) v Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home Department (Interested Party) d) a Beacutelgica e a Holanda reconhecem natildeo apenas a LCT como tambeacutem a eutanaacutesia eou o suiciacutedio assistido e) a Suiacuteccedila permite o suiciacutedio assistido f) na Espanha as decisotildees de suspensatildeo de suporte vital em pacientes terminais satildeo respeitadas e desde 2000 haacute leis sobre testamentos vitais (Ley Catalana) g) na Franccedila a limitaccedilatildeo consentida de tratamento foi permitida por lei em 2005 Cf MICCINESI Guido et al Physicianrsquos attitudes towards end-of-life decisions a comparison between seven countries Social Science amp Medicine (2005) 1961-1974 COHEN Joachim et al European public acceptance of euthanasia Socio-demographic and cultural factors associated with the acceptance of euthanasia in 33 European countries Social Science amp Medicine 63 (2006) 743-756 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p257 e s

12

dignidade humana nas sociedades ocidentais eacute a preservaccedilatildeo da vida como um valor em

si que se atinge naturalmente por sua promoccedilatildeo e proteccedilatildeo rigorosa Com efeito basta

considerar que aleacutem do seu caraacuteter substantivo o direito agrave vida eacute preacute-condiccedilatildeo eacute

instrumento que permite a proacutepria dignidade pois sua negaccedilatildeo leva agrave inexistecircncia do

sujeito da dignidade Diante de tais premissas criminalizar atos que atentem contra a

vida humana tende a ser um meio adequado dentre outros de preservaccedilatildeo da vida e da

dignidade humanas Mas nem mesmo o direito agrave vida eacute absoluto

Eacute precisamente no ambiente da morte com intervenccedilatildeo que cabe

discutir a visatildeo da dignidade que impotildee ao indiviacuteduo a vida como um bem em si Como

intuitivo natildeo se estaacute aqui diante de uma situaccedilatildeo banal temporaacuteria ou reversiacutevel na

qual um indiviacuteduo decide morrer e outros se omitem em evitar ou prestam-lhe auxiacutelio

Justamente ao contraacuterio trata-se de pessoas que em condiccedilotildees nada ordinaacuterias

reclamam a possibilidade de renunciar a intervenccedilotildees meacutedicas de prolongamento da

vida Ou em outros casos de optar pela abreviaccedilatildeo direta da vida por ato proacuteprio ou

alheio por estarem acometidos de doenccedilas terminais extremamente dolorosas ou por

enfermidades degenerativas que conduzem agrave perda paulatina da independecircncia Nessas

situaccedilotildees extremas aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito agrave

vida impedindo que ele se transforme em um insuportaacutevel dever agrave vida Se em uma

infinidade de situaccedilotildees a dignidade eacute o fundamento da valorizaccedilatildeo da vida na morte

com intervenccedilatildeo as motivaccedilotildees se invertem

O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenccedilas para

as quais a medicina desconhece a cura ou a reversatildeo contra a sua vontade ou de seus

responsaacuteveis legais enseja dor sofrimento humilhaccedilatildeo exposiccedilatildeo intrusotildees corporais

indevidas e perda da liberdade Entram em cena entatildeo outros conteuacutedos da proacutepria

dignidade Eacute que a dignidade protege tambeacutem a liberdade e a inviolabilidade do

indiviacuteduo quanto agrave sua desumanizaccedilatildeo e degradaccedilatildeo Eacute nesse passo que se verifica uma

tensatildeo dentro do proacuteprio conceito em busca da determinaccedilatildeo de seu sentido e alcance

diante de situaccedilotildees concretas De um lado a dignidade serviria de impulso para a defesa

da vida e das concepccedilotildees sociais do que seja o bem morrer De outro ela se apresenta

como fundamento da morte com intervenccedilatildeo assegurando a autonomia individual a

superaccedilatildeo do sofrimento e a morte digna31

31 MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002

13

Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

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nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

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A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 9: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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A Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 de 9112006 editada pelo

Conselho Federal de Medicina procurou contornar as deficiecircncias e insuficiecircncias de um

Coacutedigo Penal cuja parte especial eacute da deacutecada de 40 do seacuteculo passado Nessa linha

invocando sua funccedilatildeo disciplinadora da classe meacutedica bem como o art 5ordm III da

Constituiccedilatildeo pretendeu dar suporte juriacutedico agrave ortotanaacutesia Sem menccedilatildeo agrave eutanaacutesia e ao

suiciacutedio assistido ndash que continuam a ser considerados pelo Conselho como praacuteticas natildeo-

eacuteticas ndash a Resoluccedilatildeo tratou da limitaccedilatildeo do tratamento e do cuidado paliativo de doentes

em fase terminal nas hipoacuteteses autorizadas por seus parentes ou por seus familiares

Trazendo uma fundamentada Exposiccedilatildeo de Motivos a Resoluccedilatildeo CFM nordm 18052006 tem

o conteuacutedo assim resumido em sua Ementa

ldquoNa fase terminal de enfermidades graves e incuraacuteveis eacute permitido

ao meacutedico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que

prolonguem a vida do doente garantindo-lhe os cuidados

necessaacuterios para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento na

perspectiva de uma assistecircncia integral respeitada a vontade do

paciente ou de seu representante legalrdquo

Eacute possiacutevel fazer uma defesa da Resoluccedilatildeo do Conselho Federal de

Medicina quer dentro das categorias do proacuteprio direito penal quer mediante uma leitura

de seu texto agrave luz da Constituiccedilatildeo Por ora no entanto faz-se o registro de que foi ela

suspensa por decisatildeo judicial produzida em accedilatildeo civil puacuteblica movida pelo Ministeacuterio

Puacuteblico Federal perante a Justiccedila Federal de Brasiacutelia Na peticcedilatildeo inicial de 131 paacuteginas o

Procurador da Repuacuteblica que a subscreve colocou-se frontalmente contra o conteuacutedo da

Resoluccedilatildeo Em meio a muitas consideraccedilotildees juriacutedicas morais e metafiacutesicas afirmou ldquoA

ortotanaacutesia natildeo passa de um artifiacutecio homicida expediente desprovido de razotildees loacutegicas

e violador da Constituiccedilatildeo Federal mero desejo de dar ao homem pelo proacuteprio homem

a possibilidade de uma decisatildeo que nunca lhe pertenceurdquo 22 Na decisatildeo que acolheu o

pedido de antecipaccedilatildeo de tutela entendeu o juiz de primeiro grau pela existecircncia de

ldquoaparente conflito entre a resoluccedilatildeo questionada e o Coacutedigo Penalrdquo23

22 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpnoticiaspgrmpfgovbrnoticias-do-sitepdfsACP20Ortotanasiapdf Acesso em out2007 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC (Wellington Divino Marques de Oliveira ndash Procurador Regional dos Direitos do Cidadatildeo1ordf Regiatildeo) Disponiacutevel em httpprdcprdfmpfgovbrlegisdocsexfile2006-11-217242563592attachREC2001-200620CFMpdf Acesso em dez2006 23 V inteiro teor da decisatildeo em wwwdftrf1govbr20073400014809-3_decisao_23-10-2007doc

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A decisatildeo marca o encontro no Brasil de dois fenocircmenos do nosso

tempo a medicalizaccedilatildeo24 e a judicializaccedilatildeo25 da vida Ambos potencializados por um

terceiro fenocircmeno a sociedade espetaacuteculo em que os meios de comunicaccedilatildeo

transmitem em tempo real ao vivo e em cores dramas como os de Terri Schiavo

(EUA)26 Hannah Jones (Reino Unido)27 ou Eluana (Itaacutelia)28 O pronunciamento judicial

suspensivo da Resoluccedilatildeo exibe igualmente o descompasso entre ordenamento juriacutedico e

a eacutetica meacutedica E no mundo poacutes-positivista de reaproximaccedilatildeo entre o Direito e a Eacutetica

este eacute um desencontro que deve ser evitado A propoacutesito deve-se registrar que a

orientaccedilatildeo do Conselho Federal de Medicina estaacute em consonacircncia com as da Associaccedilatildeo

Meacutedica Mundial (AMM) as da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura (UNESCO) e as do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos

Humanos (CEDH) 29 E tambeacutem com o tratamento juriacutedico adotado em paiacuteses como

24 A expressatildeo lsquomedicalizaccedilatildeo da vidarsquo foi cunhada e definida em ILLICH Ivan The medicalization of life Journal of Medical Ethics I 1975 p73-77 25 BARROSO Luiacutes Roberto Judicializaccedilatildeo ativismo judicial e legitimidade democraacutetica Revista de Direito do Estado Rio de Janeiro n 13 2009 26 Em decorrecircncia de uma parada cardiacuteaca Terri Schiavo viveu em estado vegetativo ateacute falecer em 2005 Nos uacuteltimos sete anos de sua vida seu marido e representante legal Michael Schiavo vinha pedindo ao Judiciaacuterio dos EUA o desligamento dos tubos que a mantinham viva Para tanto afirmava que antes de entrar em estado vegetativo a mulher havia se manifestado diversas vezes no sentido de que natildeo gostaria de ser mantida viva artificialmente Agrave pretensatildeo do marido se opuseram tanto os proacuteprios pais de Terri quanto diversas autoridades norte-americanas como o Presidente Geoge W Bush A longa controveacutersia juriacutedica envolveu desde a Justiccedila Estadual da Floacuterida ateacute a Justiccedila Federal dos EUA passando pelo Legislativo e pelo Governador do Estado Por sua vez a Suprema Corte dos EUA se recusou a analisar a mateacuteria Terri Schiavo faleceu em 31 de marccedilo de 2005 O resultado de sua autoacutepsia confirmou que nenhum tratamento poderia tecirc-la ajudado a superar os danos neuroloacutegicos que sofreu V Saiba mais sobre o conflito judicial do caso Schiavo Folha Online 29mar2005 Disponiacutevel em lthttpwww1folhauolcombrfolhamundoult94u82068shtmlgt Uacuteltimo acesso 24jun2009 GOODNOUGH Abby Schiavo Autopsy Says Brain Withered Was Untreatable New York Times 16jun2005 Disponiacutevel em lthttpwwwnytimescom20050616national16schiavohtmlgt Acesso em jun2009 27 Aos cinco anos de idade Hannah Jones foi diagnosticada com uma forma rara de leucemia e desde entatildeo sua vida passou a envolver frequentes internaccedilotildees hospitalares Seu tratamento incluiu doses de um forte medicamento contra uma infecccedilatildeo o que acabou causando danos ao seu coraccedilatildeo Sua uacutenica chance de viver longamente viria com um transplante Mas a menina de treze anos recusou o tratamento afirmando que jaacute sofrera traumas demais e natildeo queria passar por novas cirurgias ndash preferia morrer com dignidade Irresignado com a decisatildeo da paciente o hospital foi ao Judiciaacuterio Decidiu-se poreacutem que Hannah era madura o suficiente para decidir por si proacutepria V PERCIVAL Jenny Teenager who won right to die I have had too much trauma Guardiancouk 11nov2008 Disponiacutevel em lthttpwwwguardiancouksociety2008nov11child-protection-health-hannah-jonesgt Acesso em jun2009 28 Eluana Englaro ficou em coma por dezessete anos desde que sofreu um acidente de carro em 1992 Seu caso causou grande comoccedilatildeo na Itaacutelia mobilizando setores ligados agrave Igreja Catoacutelica e gerando uma crise entre o Primeiro-ministro Silvio Berlusconi e o Presidente Giorgio Napolitano Por dez anos o pai da moccedila lutou para garantir o direito de deixaacute-la morrer mas soacute conseguiu em 21 de janeiro de 2009 Ela passou trecircs dias sem receber comida e hidrataccedilatildeo mas uma ldquocriserdquo acabou antecipando sua morte V Morre Eluana a italiana que estava em coma havia 17 anos G1 9fev2009 Disponiacutevel em lthttpg1globocomNoticiasMundo0MUL993961-560200htmlgt Acesso em jun2009 29 a) as Resoluccedilotildees da AMM sobre eutanaacutesia e suiciacutedio assistido consideram tais condutas antieacuteticas mas assumem que eacute direito do paciente recusar tratamento meacutedico ainda que da recusa decorra a morte e que eacute direito do paciente ter respeitada a sua escolha de que o ldquoprocesso natural da morte siga seu curso na fase terminal da doenccedilardquo b) A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO determina que

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Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Espanha Meacutexico Reino Unido Franccedila Itaacutelia Suiacuteccedila

Sueacutecia Beacutelgica Holanda e Uruguai30

Estatildeo em choque aqui dois modelos Um de iacutendole paternalista

que desconsidera a vontade do paciente e de seus familiares privados de fazerem

escolhas morais proacuteprias O outro fundado na deontologia meacutedica valoriza a autonomia

e o diaacutelogo aceitando que a arte de curar se converta em cuidado e amparo Cabe

procurar entender e enfrentar as razotildees do desencontro entre as imposiccedilotildees juriacutedicas e

as exigecircncias eacuteticas O principal argumento contraacuterio a qualquer hipoacutetese de morte com

intervenccedilatildeo decorre da compreensatildeo do direito agrave vida como um direito fundamental

absoluto No Brasil essa valorizaccedilatildeo maacutexima da vida bioloacutegica e do modelo biomeacutedico

intensivista e interventor tem sua origem em algumas doutrinas morais abrangentes

muitas de cunho religioso que penetram na interpretaccedilatildeo juriacutedica Esta visatildeo do mundo

se manifesta em diferentes passagens da accedilatildeo civil puacuteblica acima referida

Ao avanccedilar no debate eacute preciso ter em conta que o direito agrave vida eacute

de fato especial Qualquer flexibilizaccedilatildeo de sua forccedila juriacutedica ou moral eacute delicada e deve

envolver cautelas muacuteltiplas Qualquer desprezo pela vida humana mesmo nas

circunstacircncias mais adversas eacute suspeita Um dos consensos miacutenimos que compotildeem a

ldquoqualquer intervenccedilatildeo meacutedica preventiva diagnoacutestica e terapecircutica soacute deve ser realizada com o consentimento preacutevio livre e esclarecido do indiviacuteduo envolvido baseado em informaccedilatildeo adequada O consentimento deve quando apropriado ser manifesto e poder ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razatildeo sem acarretar desvantagem ou preconceitordquo Para os casos de incapacidade haacute dispositivos especiacuteficos que visam a proteger a parcela de autonomia remanescente e os melhores interesses do envolvido c) O Conselho Europeu posicionou-se favoravelmente agrave implementaccedilatildeo de cuidados paliativos e do respeito dos direitos dos pacientes de recusarem tratamentos fuacuteteis ou extraordinaacuterios O Conselho determinou aos Estados-membros a normatizaccedilatildeo dos testamentos de vida e das diretivas avanccediladas d) ao decidir o caso Pretty a CEDH permitiu entrever que abaliza a limitaccedilatildeo consentida de tratamento em pacientes terminais ou em estado irreversiacutevel muito embora tenha se recusado a aceitar o suiciacutedio assistido Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit PARLIAMENTARY ASSEMBLY Resolution 1649 (2009) Palliative Care a model for innovative health and social policies Disponiacutevel em httpassemblycoeintmainaspLink=documentsadoptedtextta09eres1649htm Uacuteltimo acesso em mar2009 30 a) a Suprema Corte dos Estados Unidos assentou o seu posicionamento nos casos Vacco v Quill e Washington v Glucksberg et al jaacute lastreados em decisotildees anteriores como o caso Cruzan b) a Suprema Corte do Canadaacute reafirmou seu entendimento no tema em Rodriguez v British Columbia c) no Reino Unido satildeo importantes as decisotildees dos casos Airedale NHS Trust v Bland e The Queen on the Application of Mrs Dianne Pretty (Appellant) v Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home Department (Interested Party) d) a Beacutelgica e a Holanda reconhecem natildeo apenas a LCT como tambeacutem a eutanaacutesia eou o suiciacutedio assistido e) a Suiacuteccedila permite o suiciacutedio assistido f) na Espanha as decisotildees de suspensatildeo de suporte vital em pacientes terminais satildeo respeitadas e desde 2000 haacute leis sobre testamentos vitais (Ley Catalana) g) na Franccedila a limitaccedilatildeo consentida de tratamento foi permitida por lei em 2005 Cf MICCINESI Guido et al Physicianrsquos attitudes towards end-of-life decisions a comparison between seven countries Social Science amp Medicine (2005) 1961-1974 COHEN Joachim et al European public acceptance of euthanasia Socio-demographic and cultural factors associated with the acceptance of euthanasia in 33 European countries Social Science amp Medicine 63 (2006) 743-756 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p257 e s

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dignidade humana nas sociedades ocidentais eacute a preservaccedilatildeo da vida como um valor em

si que se atinge naturalmente por sua promoccedilatildeo e proteccedilatildeo rigorosa Com efeito basta

considerar que aleacutem do seu caraacuteter substantivo o direito agrave vida eacute preacute-condiccedilatildeo eacute

instrumento que permite a proacutepria dignidade pois sua negaccedilatildeo leva agrave inexistecircncia do

sujeito da dignidade Diante de tais premissas criminalizar atos que atentem contra a

vida humana tende a ser um meio adequado dentre outros de preservaccedilatildeo da vida e da

dignidade humanas Mas nem mesmo o direito agrave vida eacute absoluto

Eacute precisamente no ambiente da morte com intervenccedilatildeo que cabe

discutir a visatildeo da dignidade que impotildee ao indiviacuteduo a vida como um bem em si Como

intuitivo natildeo se estaacute aqui diante de uma situaccedilatildeo banal temporaacuteria ou reversiacutevel na

qual um indiviacuteduo decide morrer e outros se omitem em evitar ou prestam-lhe auxiacutelio

Justamente ao contraacuterio trata-se de pessoas que em condiccedilotildees nada ordinaacuterias

reclamam a possibilidade de renunciar a intervenccedilotildees meacutedicas de prolongamento da

vida Ou em outros casos de optar pela abreviaccedilatildeo direta da vida por ato proacuteprio ou

alheio por estarem acometidos de doenccedilas terminais extremamente dolorosas ou por

enfermidades degenerativas que conduzem agrave perda paulatina da independecircncia Nessas

situaccedilotildees extremas aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito agrave

vida impedindo que ele se transforme em um insuportaacutevel dever agrave vida Se em uma

infinidade de situaccedilotildees a dignidade eacute o fundamento da valorizaccedilatildeo da vida na morte

com intervenccedilatildeo as motivaccedilotildees se invertem

O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenccedilas para

as quais a medicina desconhece a cura ou a reversatildeo contra a sua vontade ou de seus

responsaacuteveis legais enseja dor sofrimento humilhaccedilatildeo exposiccedilatildeo intrusotildees corporais

indevidas e perda da liberdade Entram em cena entatildeo outros conteuacutedos da proacutepria

dignidade Eacute que a dignidade protege tambeacutem a liberdade e a inviolabilidade do

indiviacuteduo quanto agrave sua desumanizaccedilatildeo e degradaccedilatildeo Eacute nesse passo que se verifica uma

tensatildeo dentro do proacuteprio conceito em busca da determinaccedilatildeo de seu sentido e alcance

diante de situaccedilotildees concretas De um lado a dignidade serviria de impulso para a defesa

da vida e das concepccedilotildees sociais do que seja o bem morrer De outro ela se apresenta

como fundamento da morte com intervenccedilatildeo assegurando a autonomia individual a

superaccedilatildeo do sofrimento e a morte digna31

31 MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002

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Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

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nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

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A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

32

filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 10: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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A decisatildeo marca o encontro no Brasil de dois fenocircmenos do nosso

tempo a medicalizaccedilatildeo24 e a judicializaccedilatildeo25 da vida Ambos potencializados por um

terceiro fenocircmeno a sociedade espetaacuteculo em que os meios de comunicaccedilatildeo

transmitem em tempo real ao vivo e em cores dramas como os de Terri Schiavo

(EUA)26 Hannah Jones (Reino Unido)27 ou Eluana (Itaacutelia)28 O pronunciamento judicial

suspensivo da Resoluccedilatildeo exibe igualmente o descompasso entre ordenamento juriacutedico e

a eacutetica meacutedica E no mundo poacutes-positivista de reaproximaccedilatildeo entre o Direito e a Eacutetica

este eacute um desencontro que deve ser evitado A propoacutesito deve-se registrar que a

orientaccedilatildeo do Conselho Federal de Medicina estaacute em consonacircncia com as da Associaccedilatildeo

Meacutedica Mundial (AMM) as da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia

e a Cultura (UNESCO) e as do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos

Humanos (CEDH) 29 E tambeacutem com o tratamento juriacutedico adotado em paiacuteses como

24 A expressatildeo lsquomedicalizaccedilatildeo da vidarsquo foi cunhada e definida em ILLICH Ivan The medicalization of life Journal of Medical Ethics I 1975 p73-77 25 BARROSO Luiacutes Roberto Judicializaccedilatildeo ativismo judicial e legitimidade democraacutetica Revista de Direito do Estado Rio de Janeiro n 13 2009 26 Em decorrecircncia de uma parada cardiacuteaca Terri Schiavo viveu em estado vegetativo ateacute falecer em 2005 Nos uacuteltimos sete anos de sua vida seu marido e representante legal Michael Schiavo vinha pedindo ao Judiciaacuterio dos EUA o desligamento dos tubos que a mantinham viva Para tanto afirmava que antes de entrar em estado vegetativo a mulher havia se manifestado diversas vezes no sentido de que natildeo gostaria de ser mantida viva artificialmente Agrave pretensatildeo do marido se opuseram tanto os proacuteprios pais de Terri quanto diversas autoridades norte-americanas como o Presidente Geoge W Bush A longa controveacutersia juriacutedica envolveu desde a Justiccedila Estadual da Floacuterida ateacute a Justiccedila Federal dos EUA passando pelo Legislativo e pelo Governador do Estado Por sua vez a Suprema Corte dos EUA se recusou a analisar a mateacuteria Terri Schiavo faleceu em 31 de marccedilo de 2005 O resultado de sua autoacutepsia confirmou que nenhum tratamento poderia tecirc-la ajudado a superar os danos neuroloacutegicos que sofreu V Saiba mais sobre o conflito judicial do caso Schiavo Folha Online 29mar2005 Disponiacutevel em lthttpwww1folhauolcombrfolhamundoult94u82068shtmlgt Uacuteltimo acesso 24jun2009 GOODNOUGH Abby Schiavo Autopsy Says Brain Withered Was Untreatable New York Times 16jun2005 Disponiacutevel em lthttpwwwnytimescom20050616national16schiavohtmlgt Acesso em jun2009 27 Aos cinco anos de idade Hannah Jones foi diagnosticada com uma forma rara de leucemia e desde entatildeo sua vida passou a envolver frequentes internaccedilotildees hospitalares Seu tratamento incluiu doses de um forte medicamento contra uma infecccedilatildeo o que acabou causando danos ao seu coraccedilatildeo Sua uacutenica chance de viver longamente viria com um transplante Mas a menina de treze anos recusou o tratamento afirmando que jaacute sofrera traumas demais e natildeo queria passar por novas cirurgias ndash preferia morrer com dignidade Irresignado com a decisatildeo da paciente o hospital foi ao Judiciaacuterio Decidiu-se poreacutem que Hannah era madura o suficiente para decidir por si proacutepria V PERCIVAL Jenny Teenager who won right to die I have had too much trauma Guardiancouk 11nov2008 Disponiacutevel em lthttpwwwguardiancouksociety2008nov11child-protection-health-hannah-jonesgt Acesso em jun2009 28 Eluana Englaro ficou em coma por dezessete anos desde que sofreu um acidente de carro em 1992 Seu caso causou grande comoccedilatildeo na Itaacutelia mobilizando setores ligados agrave Igreja Catoacutelica e gerando uma crise entre o Primeiro-ministro Silvio Berlusconi e o Presidente Giorgio Napolitano Por dez anos o pai da moccedila lutou para garantir o direito de deixaacute-la morrer mas soacute conseguiu em 21 de janeiro de 2009 Ela passou trecircs dias sem receber comida e hidrataccedilatildeo mas uma ldquocriserdquo acabou antecipando sua morte V Morre Eluana a italiana que estava em coma havia 17 anos G1 9fev2009 Disponiacutevel em lthttpg1globocomNoticiasMundo0MUL993961-560200htmlgt Acesso em jun2009 29 a) as Resoluccedilotildees da AMM sobre eutanaacutesia e suiciacutedio assistido consideram tais condutas antieacuteticas mas assumem que eacute direito do paciente recusar tratamento meacutedico ainda que da recusa decorra a morte e que eacute direito do paciente ter respeitada a sua escolha de que o ldquoprocesso natural da morte siga seu curso na fase terminal da doenccedilardquo b) A Declaraccedilatildeo Universal sobre Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO determina que

11

Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Espanha Meacutexico Reino Unido Franccedila Itaacutelia Suiacuteccedila

Sueacutecia Beacutelgica Holanda e Uruguai30

Estatildeo em choque aqui dois modelos Um de iacutendole paternalista

que desconsidera a vontade do paciente e de seus familiares privados de fazerem

escolhas morais proacuteprias O outro fundado na deontologia meacutedica valoriza a autonomia

e o diaacutelogo aceitando que a arte de curar se converta em cuidado e amparo Cabe

procurar entender e enfrentar as razotildees do desencontro entre as imposiccedilotildees juriacutedicas e

as exigecircncias eacuteticas O principal argumento contraacuterio a qualquer hipoacutetese de morte com

intervenccedilatildeo decorre da compreensatildeo do direito agrave vida como um direito fundamental

absoluto No Brasil essa valorizaccedilatildeo maacutexima da vida bioloacutegica e do modelo biomeacutedico

intensivista e interventor tem sua origem em algumas doutrinas morais abrangentes

muitas de cunho religioso que penetram na interpretaccedilatildeo juriacutedica Esta visatildeo do mundo

se manifesta em diferentes passagens da accedilatildeo civil puacuteblica acima referida

Ao avanccedilar no debate eacute preciso ter em conta que o direito agrave vida eacute

de fato especial Qualquer flexibilizaccedilatildeo de sua forccedila juriacutedica ou moral eacute delicada e deve

envolver cautelas muacuteltiplas Qualquer desprezo pela vida humana mesmo nas

circunstacircncias mais adversas eacute suspeita Um dos consensos miacutenimos que compotildeem a

ldquoqualquer intervenccedilatildeo meacutedica preventiva diagnoacutestica e terapecircutica soacute deve ser realizada com o consentimento preacutevio livre e esclarecido do indiviacuteduo envolvido baseado em informaccedilatildeo adequada O consentimento deve quando apropriado ser manifesto e poder ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razatildeo sem acarretar desvantagem ou preconceitordquo Para os casos de incapacidade haacute dispositivos especiacuteficos que visam a proteger a parcela de autonomia remanescente e os melhores interesses do envolvido c) O Conselho Europeu posicionou-se favoravelmente agrave implementaccedilatildeo de cuidados paliativos e do respeito dos direitos dos pacientes de recusarem tratamentos fuacuteteis ou extraordinaacuterios O Conselho determinou aos Estados-membros a normatizaccedilatildeo dos testamentos de vida e das diretivas avanccediladas d) ao decidir o caso Pretty a CEDH permitiu entrever que abaliza a limitaccedilatildeo consentida de tratamento em pacientes terminais ou em estado irreversiacutevel muito embora tenha se recusado a aceitar o suiciacutedio assistido Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit PARLIAMENTARY ASSEMBLY Resolution 1649 (2009) Palliative Care a model for innovative health and social policies Disponiacutevel em httpassemblycoeintmainaspLink=documentsadoptedtextta09eres1649htm Uacuteltimo acesso em mar2009 30 a) a Suprema Corte dos Estados Unidos assentou o seu posicionamento nos casos Vacco v Quill e Washington v Glucksberg et al jaacute lastreados em decisotildees anteriores como o caso Cruzan b) a Suprema Corte do Canadaacute reafirmou seu entendimento no tema em Rodriguez v British Columbia c) no Reino Unido satildeo importantes as decisotildees dos casos Airedale NHS Trust v Bland e The Queen on the Application of Mrs Dianne Pretty (Appellant) v Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home Department (Interested Party) d) a Beacutelgica e a Holanda reconhecem natildeo apenas a LCT como tambeacutem a eutanaacutesia eou o suiciacutedio assistido e) a Suiacuteccedila permite o suiciacutedio assistido f) na Espanha as decisotildees de suspensatildeo de suporte vital em pacientes terminais satildeo respeitadas e desde 2000 haacute leis sobre testamentos vitais (Ley Catalana) g) na Franccedila a limitaccedilatildeo consentida de tratamento foi permitida por lei em 2005 Cf MICCINESI Guido et al Physicianrsquos attitudes towards end-of-life decisions a comparison between seven countries Social Science amp Medicine (2005) 1961-1974 COHEN Joachim et al European public acceptance of euthanasia Socio-demographic and cultural factors associated with the acceptance of euthanasia in 33 European countries Social Science amp Medicine 63 (2006) 743-756 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p257 e s

12

dignidade humana nas sociedades ocidentais eacute a preservaccedilatildeo da vida como um valor em

si que se atinge naturalmente por sua promoccedilatildeo e proteccedilatildeo rigorosa Com efeito basta

considerar que aleacutem do seu caraacuteter substantivo o direito agrave vida eacute preacute-condiccedilatildeo eacute

instrumento que permite a proacutepria dignidade pois sua negaccedilatildeo leva agrave inexistecircncia do

sujeito da dignidade Diante de tais premissas criminalizar atos que atentem contra a

vida humana tende a ser um meio adequado dentre outros de preservaccedilatildeo da vida e da

dignidade humanas Mas nem mesmo o direito agrave vida eacute absoluto

Eacute precisamente no ambiente da morte com intervenccedilatildeo que cabe

discutir a visatildeo da dignidade que impotildee ao indiviacuteduo a vida como um bem em si Como

intuitivo natildeo se estaacute aqui diante de uma situaccedilatildeo banal temporaacuteria ou reversiacutevel na

qual um indiviacuteduo decide morrer e outros se omitem em evitar ou prestam-lhe auxiacutelio

Justamente ao contraacuterio trata-se de pessoas que em condiccedilotildees nada ordinaacuterias

reclamam a possibilidade de renunciar a intervenccedilotildees meacutedicas de prolongamento da

vida Ou em outros casos de optar pela abreviaccedilatildeo direta da vida por ato proacuteprio ou

alheio por estarem acometidos de doenccedilas terminais extremamente dolorosas ou por

enfermidades degenerativas que conduzem agrave perda paulatina da independecircncia Nessas

situaccedilotildees extremas aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito agrave

vida impedindo que ele se transforme em um insuportaacutevel dever agrave vida Se em uma

infinidade de situaccedilotildees a dignidade eacute o fundamento da valorizaccedilatildeo da vida na morte

com intervenccedilatildeo as motivaccedilotildees se invertem

O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenccedilas para

as quais a medicina desconhece a cura ou a reversatildeo contra a sua vontade ou de seus

responsaacuteveis legais enseja dor sofrimento humilhaccedilatildeo exposiccedilatildeo intrusotildees corporais

indevidas e perda da liberdade Entram em cena entatildeo outros conteuacutedos da proacutepria

dignidade Eacute que a dignidade protege tambeacutem a liberdade e a inviolabilidade do

indiviacuteduo quanto agrave sua desumanizaccedilatildeo e degradaccedilatildeo Eacute nesse passo que se verifica uma

tensatildeo dentro do proacuteprio conceito em busca da determinaccedilatildeo de seu sentido e alcance

diante de situaccedilotildees concretas De um lado a dignidade serviria de impulso para a defesa

da vida e das concepccedilotildees sociais do que seja o bem morrer De outro ela se apresenta

como fundamento da morte com intervenccedilatildeo assegurando a autonomia individual a

superaccedilatildeo do sofrimento e a morte digna31

31 MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002

13

Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

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nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

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A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

20

disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

29

No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 11: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

11

Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Espanha Meacutexico Reino Unido Franccedila Itaacutelia Suiacuteccedila

Sueacutecia Beacutelgica Holanda e Uruguai30

Estatildeo em choque aqui dois modelos Um de iacutendole paternalista

que desconsidera a vontade do paciente e de seus familiares privados de fazerem

escolhas morais proacuteprias O outro fundado na deontologia meacutedica valoriza a autonomia

e o diaacutelogo aceitando que a arte de curar se converta em cuidado e amparo Cabe

procurar entender e enfrentar as razotildees do desencontro entre as imposiccedilotildees juriacutedicas e

as exigecircncias eacuteticas O principal argumento contraacuterio a qualquer hipoacutetese de morte com

intervenccedilatildeo decorre da compreensatildeo do direito agrave vida como um direito fundamental

absoluto No Brasil essa valorizaccedilatildeo maacutexima da vida bioloacutegica e do modelo biomeacutedico

intensivista e interventor tem sua origem em algumas doutrinas morais abrangentes

muitas de cunho religioso que penetram na interpretaccedilatildeo juriacutedica Esta visatildeo do mundo

se manifesta em diferentes passagens da accedilatildeo civil puacuteblica acima referida

Ao avanccedilar no debate eacute preciso ter em conta que o direito agrave vida eacute

de fato especial Qualquer flexibilizaccedilatildeo de sua forccedila juriacutedica ou moral eacute delicada e deve

envolver cautelas muacuteltiplas Qualquer desprezo pela vida humana mesmo nas

circunstacircncias mais adversas eacute suspeita Um dos consensos miacutenimos que compotildeem a

ldquoqualquer intervenccedilatildeo meacutedica preventiva diagnoacutestica e terapecircutica soacute deve ser realizada com o consentimento preacutevio livre e esclarecido do indiviacuteduo envolvido baseado em informaccedilatildeo adequada O consentimento deve quando apropriado ser manifesto e poder ser retirado pelo indiviacuteduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razatildeo sem acarretar desvantagem ou preconceitordquo Para os casos de incapacidade haacute dispositivos especiacuteficos que visam a proteger a parcela de autonomia remanescente e os melhores interesses do envolvido c) O Conselho Europeu posicionou-se favoravelmente agrave implementaccedilatildeo de cuidados paliativos e do respeito dos direitos dos pacientes de recusarem tratamentos fuacuteteis ou extraordinaacuterios O Conselho determinou aos Estados-membros a normatizaccedilatildeo dos testamentos de vida e das diretivas avanccediladas d) ao decidir o caso Pretty a CEDH permitiu entrever que abaliza a limitaccedilatildeo consentida de tratamento em pacientes terminais ou em estado irreversiacutevel muito embora tenha se recusado a aceitar o suiciacutedio assistido Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit PARLIAMENTARY ASSEMBLY Resolution 1649 (2009) Palliative Care a model for innovative health and social policies Disponiacutevel em httpassemblycoeintmainaspLink=documentsadoptedtextta09eres1649htm Uacuteltimo acesso em mar2009 30 a) a Suprema Corte dos Estados Unidos assentou o seu posicionamento nos casos Vacco v Quill e Washington v Glucksberg et al jaacute lastreados em decisotildees anteriores como o caso Cruzan b) a Suprema Corte do Canadaacute reafirmou seu entendimento no tema em Rodriguez v British Columbia c) no Reino Unido satildeo importantes as decisotildees dos casos Airedale NHS Trust v Bland e The Queen on the Application of Mrs Dianne Pretty (Appellant) v Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home Department (Interested Party) d) a Beacutelgica e a Holanda reconhecem natildeo apenas a LCT como tambeacutem a eutanaacutesia eou o suiciacutedio assistido e) a Suiacuteccedila permite o suiciacutedio assistido f) na Espanha as decisotildees de suspensatildeo de suporte vital em pacientes terminais satildeo respeitadas e desde 2000 haacute leis sobre testamentos vitais (Ley Catalana) g) na Franccedila a limitaccedilatildeo consentida de tratamento foi permitida por lei em 2005 Cf MICCINESI Guido et al Physicianrsquos attitudes towards end-of-life decisions a comparison between seven countries Social Science amp Medicine (2005) 1961-1974 COHEN Joachim et al European public acceptance of euthanasia Socio-demographic and cultural factors associated with the acceptance of euthanasia in 33 European countries Social Science amp Medicine 63 (2006) 743-756 PESSINI Leo Distanaacutesia Op cit p257 e s

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dignidade humana nas sociedades ocidentais eacute a preservaccedilatildeo da vida como um valor em

si que se atinge naturalmente por sua promoccedilatildeo e proteccedilatildeo rigorosa Com efeito basta

considerar que aleacutem do seu caraacuteter substantivo o direito agrave vida eacute preacute-condiccedilatildeo eacute

instrumento que permite a proacutepria dignidade pois sua negaccedilatildeo leva agrave inexistecircncia do

sujeito da dignidade Diante de tais premissas criminalizar atos que atentem contra a

vida humana tende a ser um meio adequado dentre outros de preservaccedilatildeo da vida e da

dignidade humanas Mas nem mesmo o direito agrave vida eacute absoluto

Eacute precisamente no ambiente da morte com intervenccedilatildeo que cabe

discutir a visatildeo da dignidade que impotildee ao indiviacuteduo a vida como um bem em si Como

intuitivo natildeo se estaacute aqui diante de uma situaccedilatildeo banal temporaacuteria ou reversiacutevel na

qual um indiviacuteduo decide morrer e outros se omitem em evitar ou prestam-lhe auxiacutelio

Justamente ao contraacuterio trata-se de pessoas que em condiccedilotildees nada ordinaacuterias

reclamam a possibilidade de renunciar a intervenccedilotildees meacutedicas de prolongamento da

vida Ou em outros casos de optar pela abreviaccedilatildeo direta da vida por ato proacuteprio ou

alheio por estarem acometidos de doenccedilas terminais extremamente dolorosas ou por

enfermidades degenerativas que conduzem agrave perda paulatina da independecircncia Nessas

situaccedilotildees extremas aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito agrave

vida impedindo que ele se transforme em um insuportaacutevel dever agrave vida Se em uma

infinidade de situaccedilotildees a dignidade eacute o fundamento da valorizaccedilatildeo da vida na morte

com intervenccedilatildeo as motivaccedilotildees se invertem

O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenccedilas para

as quais a medicina desconhece a cura ou a reversatildeo contra a sua vontade ou de seus

responsaacuteveis legais enseja dor sofrimento humilhaccedilatildeo exposiccedilatildeo intrusotildees corporais

indevidas e perda da liberdade Entram em cena entatildeo outros conteuacutedos da proacutepria

dignidade Eacute que a dignidade protege tambeacutem a liberdade e a inviolabilidade do

indiviacuteduo quanto agrave sua desumanizaccedilatildeo e degradaccedilatildeo Eacute nesse passo que se verifica uma

tensatildeo dentro do proacuteprio conceito em busca da determinaccedilatildeo de seu sentido e alcance

diante de situaccedilotildees concretas De um lado a dignidade serviria de impulso para a defesa

da vida e das concepccedilotildees sociais do que seja o bem morrer De outro ela se apresenta

como fundamento da morte com intervenccedilatildeo assegurando a autonomia individual a

superaccedilatildeo do sofrimento e a morte digna31

31 MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002

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Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

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nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

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A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

19

autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 12: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

12

dignidade humana nas sociedades ocidentais eacute a preservaccedilatildeo da vida como um valor em

si que se atinge naturalmente por sua promoccedilatildeo e proteccedilatildeo rigorosa Com efeito basta

considerar que aleacutem do seu caraacuteter substantivo o direito agrave vida eacute preacute-condiccedilatildeo eacute

instrumento que permite a proacutepria dignidade pois sua negaccedilatildeo leva agrave inexistecircncia do

sujeito da dignidade Diante de tais premissas criminalizar atos que atentem contra a

vida humana tende a ser um meio adequado dentre outros de preservaccedilatildeo da vida e da

dignidade humanas Mas nem mesmo o direito agrave vida eacute absoluto

Eacute precisamente no ambiente da morte com intervenccedilatildeo que cabe

discutir a visatildeo da dignidade que impotildee ao indiviacuteduo a vida como um bem em si Como

intuitivo natildeo se estaacute aqui diante de uma situaccedilatildeo banal temporaacuteria ou reversiacutevel na

qual um indiviacuteduo decide morrer e outros se omitem em evitar ou prestam-lhe auxiacutelio

Justamente ao contraacuterio trata-se de pessoas que em condiccedilotildees nada ordinaacuterias

reclamam a possibilidade de renunciar a intervenccedilotildees meacutedicas de prolongamento da

vida Ou em outros casos de optar pela abreviaccedilatildeo direta da vida por ato proacuteprio ou

alheio por estarem acometidos de doenccedilas terminais extremamente dolorosas ou por

enfermidades degenerativas que conduzem agrave perda paulatina da independecircncia Nessas

situaccedilotildees extremas aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito agrave

vida impedindo que ele se transforme em um insuportaacutevel dever agrave vida Se em uma

infinidade de situaccedilotildees a dignidade eacute o fundamento da valorizaccedilatildeo da vida na morte

com intervenccedilatildeo as motivaccedilotildees se invertem

O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenccedilas para

as quais a medicina desconhece a cura ou a reversatildeo contra a sua vontade ou de seus

responsaacuteveis legais enseja dor sofrimento humilhaccedilatildeo exposiccedilatildeo intrusotildees corporais

indevidas e perda da liberdade Entram em cena entatildeo outros conteuacutedos da proacutepria

dignidade Eacute que a dignidade protege tambeacutem a liberdade e a inviolabilidade do

indiviacuteduo quanto agrave sua desumanizaccedilatildeo e degradaccedilatildeo Eacute nesse passo que se verifica uma

tensatildeo dentro do proacuteprio conceito em busca da determinaccedilatildeo de seu sentido e alcance

diante de situaccedilotildees concretas De um lado a dignidade serviria de impulso para a defesa

da vida e das concepccedilotildees sociais do que seja o bem morrer De outro ela se apresenta

como fundamento da morte com intervenccedilatildeo assegurando a autonomia individual a

superaccedilatildeo do sofrimento e a morte digna31

31 MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002

13

Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

14

nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

15

A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

16

miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

32

filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 13: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

13

Como se viu ateacute aqui o Direito vigente ndash na interpretaccedilatildeo

dominante ndash e a eacutetica meacutedica apontam direccedilotildees diferentes em tema de morte com

intervenccedilatildeo32 Nesse mesmo contexto a dignidade da pessoa humana se apresenta de

maneira ambivalente sendo invocada para justificar as duas posiccedilotildees contrapostas Os

toacutepicos seguintes procuram aprofundar as possibilidades de sentido da dignidade humana

e seu papel nas escolhas e nas imposiccedilotildees que envolvem a fronteira entre a vida e a

morte

IV Dignidade da pessoa humana ideias essenciais

Como assinalado anteriormente a dignidade da pessoa humana

tornou-se ao final da Segunda Guerra Mundial um dos grandes consensos eacuteticos do

mundo ocidental Ela eacute mencionada em incontaacuteveis documentos internacionais em

Constituiccedilotildees leis e decisotildees judiciais33 No plano abstrato a dignidade traz em si

grande forccedila moral e juriacutedica capaz de seduzir o espiacuterito e angariar adesatildeo quase

unacircnime Tal fato todavia natildeo minimiza a circunstacircncia de que se trata de uma ideia

polissecircmica34 que funciona de certa maneira como um espelho cada um projeta nela a

sua proacutepria imagem de dignidade E muito embora natildeo seja possiacutevel nem desejaacutevel

reduzi-la a um conceito fechado e plenamente determinado natildeo se pode escapar da

32 Haacute todavia ao menos um precedente divulgado em que decisatildeo judicial chancelou a recusa de obstinaccedilatildeo terapecircutica Tratou-se de caso envolvendo um bebecirc de oito meses portador de amiotrofia espinhal progressiva tipo I uma doenccedila geneacutetica incuraacutevel degenerativa e com curto prognoacutestico meacutedico de sobrevida A hipoacutetese vem narrada em DINIZ Deacutebora Quando a morte eacute um ato de cuidado obstinaccedilatildeo terapecircutica em crianccedilas Cadernos de Sauacutede Puacuteblica 22(8)1741-1748 Rio de Janeiro ago 2006

33 Para uma revisatildeo profunda do tema inclusive quanto a documentos anteriores agrave Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos de 1948 consultar McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretation of human rights The European Journal of International Law Vol19 nordm4 2008 p664-671 Destaca-se que o autor nota que em documentos mais atuais natildeo apenas a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo passou a figurar nos preacircmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos como tambeacutem foi introduzida na parte substantiva dos textos Ele percebe ainda que nos documentos regionais a expressatildeo figura nos preacircmbulos dos principais instrumentos Inter-Americanos aacuterabes africanos e alguns europeus ldquo(hellip) [e] com isso parece demonstrar um destacado grau de convergecircncia acerca da dignidade como um princiacutepio central de organizaccedilatildeordquo (traduccedilatildeo livre) 34 Autores admitem no conceito de dignidade diferentes ldquodimensotildeesrdquo e ldquoelementosrdquo V SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana construindo uma compreensatildeo juriacutedico-constitucional necessaacuteria e possiacutevel In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Dimensotildees da dignidade Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 p13-43 para quem a dignidade possui dimensotildees a) ontoloacutegica b) relacional e comunicativa c) de limite e de tarefa d) histoacuterico-cultural E MORAES Maria Celina Bodin de O conceito de dignidade humana substrato axioloacutegico e conteuacutedo normativo In SARLET Ingo Wolfgang (Org) Constituiccedilatildeo Direitos Fundamentais e Direito Privado Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p105-147 para quem a dignidade envolve quatro elementos a) a liberdade b) a integridade psico-fiacutesica c) a igualdade d) a solidariedade

14

nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

15

A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

31

exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

32

filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 14: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

14

nccedilotildees terminoloacutegicas

necessidade de lhe atribuir sentidos miacutenimos Onde natildeo haacute consenso impotildeem-se

escolhas justificadas e conve

Na temaacutetica da morte com intervenccedilatildeo por exemplo a abstraccedilatildeo

polissemia e natureza especular da dignidade permitem que ela seja invocada pelos dois

lados do debate35

Tal fato conduz a argumentos circulares tornando difiacutecil seu emprego

nesse cenaacuterio36 Essa plasticidade e ambiguidade do discurso da dignidade jaacute levou

autores a sustentar a inutilidade do conceito como um slogan ambivalente que pouco

acrescenta agrave soluccedilatildeo de desacordos e dilemas morais37 A criacutetica eacute relevante mas natildeo

deve levar ao descarte da ideia basilar do discurso eacutetico contemporacircneo ao menos no

mundo ocidental inclusive por seu grande apelo ao espiacuterito Ao reveacutes ela reforccedila a

necessidade de se dar agrave locuccedilatildeo dignidade humana maior densidade juriacutedica

objetividade e precisatildeo Ateacute porque as dificuldades que ela apresenta no plano aplicativo

ndash isto eacute como criteacuterio de soluccedilatildeo de conflitos ndash natildeo desmerecem o seu papel como

elemento de justificaccedilatildeo no plano moral38 Na sequecircncia uma tentativa inicial de

densificaccedilatildeo do conceito agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro

35 Nas palavras de Suzan Millns ldquoMais particularmente parece que a elasticidade do discurso da dignidade com a sua capacidade de conduzir a diversas direccedilotildees significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes suas famiacutelias a equipe meacutedica o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte) Sua natureza duacuteplice por consequumlecircncia quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos parece em uacuteltima anaacutelise minar a causa daqueles que tentam usaacute-la para assegurar seu direito de morrer com dignidaderdquo (traduccedilatildeo livre) MILLNS Suzan Death dignity and discrimination the case of Pretty v United Kingdom German Law Journal v3 n10 October 2002 36 NOVAIS Jorge Reis Renuacutencia a direitos fundamentais In MIRANDA Jorge Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituiccedilatildeo de 1976 Coimbra Coimbra 1996 p327-328 37 CF MACKLIN Ruth British Medical Journal 2003 3271419-1420 Na mesma linha a autora expressou seu pensar na obra sobre o lsquoduplo padratildeo na pesquisa meacutedicarsquo ldquoQuem poderia se opor ao respeito agrave dignidade Provavelmente ningueacutem afirmaria que os seres humanos natildeo devem ser tratados com respeito por sua dignidade Contudo o conceito eacute tatildeo vago que se aproxima de ser vazio de significado sem esclarecimentos mais profundos Isso torna as demandas pela dignidade humana especialmente problemaacuteticas no contexto da compreensatildeo e aplicaccedilatildeo de argumentos que invocam a dignidade humana como base para accedilotildees ou poliacuteticas de vaacuterios tipos Nem acadecircmicos nem os elaboradores de diretrizes e declaraccedilotildees nacionais regionais ou internacionais parecem ter analisado o conceito de dignidade humana de uma forma tal que torne claros os criteacuterios de sua aplicaccedilatildeo Mas muito do discurso da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas e dos oacutergatildeos europeus se baseia na vaga e imprecisa noccedilatildeo de dignidade humana quando da formulaccedilatildeo de diretrizes e declaraccedilotildees O lsquorespeito pela dignidade humanarsquo se tornou em alguns contextos um mero slogan como na afirmaccedilatildeo de que a clonagem eacute lsquocontraacuteria agrave dignidade humanarsquo e mesmo lsquouma violaccedilatildeo das dignidade da espeacutecie humanarsquo () Quando desafiados a explicar precisamente como a produccedilatildeo de uma crianccedila por meio de transplante nuclear constitui uma violaccedilatildeo agrave dignidade humana aqueles que o alegam se viram contra os desafiadores e os acusam de algum tipo de cegueira moral por natildeo conseguirem reconhecer a dignidade inerente a todos os seres humanosrdquo (traduccedilatildeo livre) MACKLIN Ruth Double standards in medical research in developing countries Cambridge Cambridge 2004 p196-197 38 Vaacuterios textos buscaram discutir relativizar ou negar a posiccedilatildeo de Macklin dentre eles ANDORNO Roberto La notion de digniteacute humaine est-elle superflue en bioeacutethique Disponiacutevel em wwwcontrepointphilosophiquech Acesso em nov2006 ANDORNO Roberto Dignity of the person in the light of international biomedical law Medicina e Morale Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica Deontologia e Morale Medica v1 p91-104 2005 ASHCROFT Richard E Making sense o f dignity

15

A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

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miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

31

exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

32

filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 15: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituiccedilatildeo

brasileira como um dos fundamentos da Repuacuteblica (art 1ordm III) Funciona assim como

fator de legitimaccedilatildeo das accedilotildees estatais e vetor de interpretaccedilatildeo da legislaccedilatildeo em geral

Na sua expressatildeo mais essencial dignidade significa que toda pessoa eacute um fim em si

mesma consoante uma das enunciaccedilotildees do imperativo categoacuterico kantiano39 A vida de

qualquer ser humano tem um valia intriacutenseca objetiva Ningueacutem existe no mundo para

atender os propoacutesitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade O

valor ou princiacutepio da dignidade humana veda precisamente essa instrumentalizaccedilatildeo ou

funcionalizaccedilatildeo de qualquer indiviacuteduo Outra expressatildeo da dignidade humana eacute a

responsabilidade de cada um por sua proacutepria vida pela determinaccedilatildeo de seus valores e

objetivos Como regra geral as decisotildees cruciais na vida de uma pessoa natildeo devem ser

impostas por uma vontade externa a ela40 No mundo contemporacircneo a dignidade

humana tornou-se o centro axioloacutegico dos sistemas juriacutedicos a fonte dos direitos

materialmente fundamentais o nuacutecleo essencial de cada um deles

De fato no plano dos direitos individuais ela se expressa na

autonomia privada que decorre da liberdade e da igualdade das pessoas Integra o

conteuacutedo da dignidade a autodeterminaccedilatildeo individual e o direito ao igual respeito e

consideraccedilatildeo As pessoas tecircm o direito de eleger seus projetos existenciais e de natildeo

sofrer discriminaccedilotildees em razatildeo de sua identidade e de suas escolhas No plano dos

direitos poliacuteticos ela se traduz em autonomia puacuteblica no direito de participaccedilatildeo no

processo democraacutetico Entendida a democracia como uma parceria de todos em um

projeto de autogoverno41 cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de

influenciar o processo de tomada de decisotildees natildeo apenas do ponto de vista eleitoral

mas tambeacutem atraveacutes do debate puacuteblico e da organizaccedilatildeo social Por fim a dignidade estaacute

subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais que correspondem ao

Journal of Medical Ethics v31 p 679-682 2005 ANJOS Maacutercio Fabri dos Dignidade Humana em debate Bioeacutetica Brasiacutelia Conselho Federal de Medicina Disponiacutevel em httpwwwportalmedicoorgbrrevistabio12v1seccoesseccao04pdf Acesso em mai2006 39 KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo da metafiacutesica dos costumes Lisboa Ediccedilotildees 70 2004 p 68 e s 40 Sobre essas duas ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoprinciacutepiosrdquo da dignidade ndash o do valor intriacutenseco da vida humana e da responsabilidade pessoal ndash v DWORKIN Ronald Is democracy possible here Princeton e Oxford Princenton University Press 2006 p 9 e s 41 DWORKIN Ronald Is democracy hellip Ob Cit p xii

16

miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

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Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 16: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

16

miacutenimo existencial42 Todo indiviacuteduo tem direito a prestaccedilotildees e utilidades imprescindiacuteveis

agrave sua existecircncia fiacutesica e moral cuja satisfaccedilatildeo eacute ademais preacute-condiccedilatildeo para o proacuteprio

exerciacutecio da autonomia privada e puacuteblica Seria possiacutevel estender e aprofundar o debate

a fim de fazer a ligaccedilatildeo entre dignidade e direitos de nova geraccedilatildeo como os de natureza

ambiental e o direito agrave paz Mas o desvio seria excessivamente longo para os fins desse

trabalho

Assim sem prejuiacutezo das muitas variaccedilotildees existentes sobre o tema

identifica-se um consenso razoaacutevel no sentido de se considerar a dignidade humana o

fundamento e a justificaccedilatildeo uacuteltima dos direitos fundamentais A preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo

desses direitos tecircm uma dimensatildeo individual e outra social A dimensatildeo individual estaacute

ligada ao sujeito do direito seus comportamentos e suas escolhas A dimensatildeo social

envolve a atuaccedilatildeo do Estado e de suas instituiccedilotildees na concretizaccedilatildeo do direito de cada

um e em certos casos de intervenccedilatildeo para que comportamentos individuais natildeo

interfiram com direitos proacuteprios de outros ou de todos A intervenccedilatildeo estatal portanto

pode ser (i) de oferta de utilidades que satisfaccedilam a dignidade (ii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais que violem a dignidade do proacuteprio agente e (iii) de restriccedilatildeo a

condutas individuais para que natildeo violem a dignidade de outros ou determinados valores

comunitaacuterios As dimensotildees individual e social da atuaccedilatildeo fundada na dignidade humana

satildeo tambeacutem referidas respectivamente pelas designaccedilotildees de dignidade como

autonomia e como heteronomia43

V A dignidade humana como autonomia

A dignidade como autonomia como poder individual

(empowerment) eacute a concepccedilatildeo subjacente aos grandes documentos de Direitos

42 A respeito do lsquoaspecto materialrsquo da dignidade humana e seu elo com o miacutenimo existencial consultar sobre todos TORRES Ricardo Lobo O direito ao miacutenimo existencial Rio de Janeiro Renovar 2009 BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia juriacutedica dos princiacutepios constitucionais ndash o princiacutepio da dignidade da pessoa humana 2ordf ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2008 RAWLS John Uma teoria da justiccedila Trad Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos Op Cit p63 BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos do novo direito constitucional brasileiro (Poacutes-modernidade teoria criacutetica e poacutes-positivismo) Revista Diaacutelogo Juriacutedico Salvador CAJ - Centro de Atualizaccedilatildeo Juriacutedica v I nordm 6 setembro 2001 Disponiacutevel em httpwwwdireitopublicocombr Uacuteltimo acesso em dez2008 Em uma intensa pesquisa sobre o conteuacutedo da expressatildeo dignidade humana em decisotildees de cortes internacionais e estrangeiras Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existecircncia de consenso justaposto no uso da locuccedilatildeo Um dos elementos muito frequumlentes eacute exatamente a associaccedilatildeo entre dignidade e as condiccedilotildees materiais miacutenimas agrave existecircncia humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p292 e s 43 Sobre autonomia e heteronomia v KANT Immanuel Fundamentaccedilatildeo Ob Cit p 75

17

Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 17: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

17

Humanos do seacuteculo XX44 bem como a inuacutemeras constituiccedilotildees do segundo poacutes-guerra

Esta eacute a visatildeo que serve de fundamento e justificaccedilatildeo para os direitos humanos e

fundamentais podendo-se nela destacar quatro aspectos essenciais a) a capacidade de

autodeterminaccedilatildeo b) as condiccedilotildees para o exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo c) a

universalidade e d) a inerecircncia da dignidade ao ser humano A ideia de dignidade como

autonomia eacute especialmente relevante para os propoacutesitos do presente trabalho Eacute que nele

se procura retirar o tema da morte com intervenccedilatildeo do domiacutenio dos tabus e das

concepccedilotildees abrangentes para trazecirc-lo para o acircmbito do debate acerca dos direitos

humanos e fundamentais E determinar se existe afinal o direito a uma morte no tempo

certo como fruto de uma escolha individual

A dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar a

capacidade de autodeterminaccedilatildeo o direito de decidir os rumos da proacutepria vida e de

desenvolver livremente a proacutepria personalidade Significa o poder de realizar as escolhas

morais relevantes assumindo a responsabilidade pelas decisotildees tomadas Por traacutes da

ideia de autonomia estaacute um sujeito moral capaz de se autodeterminar traccedilar planos de

vida e realizaacute-los Nem tudo na vida naturalmente depende de escolhas pessoais Haacute

decisotildees que o Estado pode tomar legitimamente em nome de interesses e direitos

diversos Mas decisotildees sobre a proacutepria vida de uma pessoa escolhas existenciais sobre

religiatildeo casamento ocupaccedilotildees e outras opccedilotildees personaliacutessimas que natildeo violem direitos

de terceiros natildeo podem ser subtraiacutedas do indiviacuteduo sob pena de se violar sua dignidade

O segundo aspecto destacado diz respeito agraves condiccedilotildees para o

exerciacutecio da autodeterminaccedilatildeo Natildeo basta garantir a possibilidade de escolhas livres mas

eacute indispensaacutevel prover meios adequados para que a liberdade seja real e natildeo apenas

retoacuterica Para tanto integra a ideia de dignidade o denominado miacutenimo existencial (v

supra) a dimensatildeo material da dignidade instrumental ao desempenho da autonomia

Para que um ser humano possa traccedilar e concretizar seus planos de vida por eles

assumindo responsabilidades eacute necessaacuterio que estejam asseguradas miacutenimas condiccedilotildees

econocircmicas educacionais e psicofiacutesicas O terceiro e o quarto aspectos da dignidade

como autonomia ndash universalidade e inerecircncia ndash costumam andar lado a lado O cunho

ontoloacutegico da dignidade isto eacute seu caraacuteter inerente e intriacutenseco a todo ser humano

44 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity in bioethics and biolaw Oxford Oxford University Press 2004 p 10

18

impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

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autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

22

principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

30

liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

31

exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

32

filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 18: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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impotildee que ela seja respeitada e promovida de modo universal45 Ela eacute conferida a todas

as pessoas independentemente de sua condiccedilatildeo nacional cultural social econocircmica

religiosa ou eacutetnica46 A contingecircncia espaccedilo-temporal e a contingecircncia entre pessoas

(como mais ou menos dignas) representam uma afronta para a dignidade sem prejuiacutezo

de certos temperamentos admitidos em razatildeo do multiculturalismo47

A identificaccedilatildeo da dignidade humana com a liberdadeautonomia

com a habilidade humana de autodeterminaccedilatildeo eacute frequente na doutrina ainda que natildeo

com caraacuteter exclusivo ou mesmo predominante48 Eacute certo que em domiacutenios como o da

bioeacutetica inclusive e especialmente nas pesquisas cliacutenicas a autonomia figura como

princiacutepio fundamental por ser o modelo baseado no consentimento livre e esclarecido

dos sujeitos49 Tambeacutem na jurisprudecircncia estrangeira eacute possiacutevel encontrar decisotildees

fundadas na noccedilatildeo de dignidade como autonomia No julgamento do caso Rodriguez50 a

Suprema Corte canadense fez expressa menccedilatildeo agrave ldquohabilidade individual de fazer escolhas

45 Roberto Andorno intitula de lsquoStandard Attitudersquo (atitude padratildeo) a aceitaccedilatildeo da universalidade da dignidade humana bem como de sua funccedilatildeo de justificaccedilatildeo e de fundaccedilatildeo dos direitos fundamentais e dos direitos humanos ANDORNO Roberto The paradoxical notion of human dignity Persona ndash Revista Electroacutenica de derechos Existenciales nordm9 set 2002 Disponiacutevel em httpwwwrevistapersonacomarPersona099Andornohtm Acesso em dez2008 Como exemplos PIOVESAN Flaacutevia Declaraccedilatildeo Universal de Direitos Humanos desafios e perspectivas In MARTEL Letiacutecia de Campos Velho (org) Estudos contemporacircneos de Direitos Fundamentais Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p346 e s Em sentido semelhante embora utilizando o termo pessoa BARROSO Luiacutes Roberto Fundamentos teoacutericos e filosoacuteficos Op Cit p26 Ana Paula de Barcellos reconhece o vieacutes ontoloacutegico da dignidade humana BARCELLOS Ana Paula de A eficaacutecia Op Cit p126 nota nordm213 Ingo Sarlet embora aponte alguns problemas e contestaccedilotildees sobre a inerecircncia da dignidade ao ser humano reafirma que a dignidade humana possui uma dimensatildeo ontoloacutegica SARLET Ingo Wolfgang As dimensotildees da dignidade da pessoa humana Op Cit p19-20 46 Passa-se ao largo do debate referido como ldquocontingecircncia epistemoloacutegicardquo acerca da razatildeo pela qual se afirma que os seres humanos possuem valor intriacutenseco Vale dizer qual eacute a caracteriacutestica ou propriedade que os distingue dos demais seres especialmente dos animais natildeo-humanos A ideia da dignidade como autonomia e do valor intriacutenseco do ser humano dependeria assim da aceitaccedilatildeo e da manutenccedilatildeo de uma cultura que a defenda V BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p22 V tb SERNA Pedro La dignidad de la persona como principio del derecho puacuteblico Derechos e Libertades ndash Revista del Instituto Bartolomeacute de Las Casas Madrid nordm10 p294-295 47 V PIOVESAN Flaacutevia A declaraccedilatildeo Op Cit p346 e s e KYMLICKA Will Multiculturalismo liberal In SARMENTO Daniel PIOVESAN Flaacutevia IKAWA Daniela (orgs) Igualdade diferenccedila e direitos humanos Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiano MARTINS-COSTA Judith Bioeacutetica e dignidade da pessoa humana rumo agrave construccedilatildeo do biodireito Bioeacutetica y Bioderecho Rosaacuterio Vol 5 2000 p40 48 Na linha do caraacuteter primacialmente autonomista da dignidade que natildeo eacute dominante na doutrina nacional vejam-se BORGES Roxana Cardoso Brasileiro Direitos da personalidade e autonomia privada 2ordf ed rev Satildeo Paulo Saraiva 2007146-147 e CUNHA Alexandre dos Santos A normatividade da pessoa humana - o estatuto juriacutedico da personalidade e o Coacutedigo Civil de 2002 Rio de Janeiro Forense 2005 passim 49 LUNA Florencia Consentimento livre e esclarecido ainda uma ferramenta uacutetil na eacutetica em pesquisa In DINIZ Debora SUGAI Andreacutea GUILHEM Dirce SQUINCA Flaacutevia Eacutetica em pesquisa temas globais Brasiacutelia UnB 2008 p 153 e s 50 CANADAacute Rodriguez v British Columbia (Attorney General) [1993] 3 SCR 519 Data 30 de setembro de 1993 Disponiacutevel em httpscclexumumontrealcaen19931993rcs3-5191993rcs3-519html Uacuteltimo acesso em mai2006

19

autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 19: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

19

autocircnomasrdquo embora no caso concreto tenha impedido o suiciacutedio assistido51 Na

Suprema Corte americana o mesmo conceito foi invocado em decisotildees como Lawrence

v Texas a propoacutesito da legitimidade das relaccedilotildees homoafetivas52 Na mesma linha da

dignidade como autonomia foi a decisatildeo da Corte Constitucional da Colocircmbia ao decidir

pela inconstitucionalidade da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia O julgado fez expressa menccedilatildeo a

uma perspectiva secular e pluralista que deve respeitar a autonomia moral do

indiviacuteduo53

A visatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua

liberdade e seus direitos fundamentais Com ela satildeo fomentados o pluralismo a

diversidade e a democracia de uma maneira geral Todavia a prevalecircncia da dignidade

como autonomia natildeo pode ser ilimitada ou incondicional Em primeiro lugar porque a o

proacuteprio pluralismo pressupotildee naturalmente a convivecircncia harmoniosa de projetos de

vida divergentes de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisatildeo Aleacutem

51 Com efeito a Corte validou a distinccedilatildeo feita pela legislaccedilatildeo canadense entre recusa de tratamento ndash reconhecida como direito do paciente ndash e o suiciacutedio assistido que eacute proibido Por 5 votos a 4 negou o direito de uma mulher com esclerose lateral ndash enfermidade degenerativa irreversiacutevel ndash de controlar o modo e o momento da proacutepria morte com assistecircncia de um profissional de medicina Na decisatildeo restou lavrado ldquoO que a revisatildeo precedente demonstra eacute que o Canadaacute e outras democracias ocidentais reconhecem e aplicam o princiacutepio da santidade da vida como um princiacutepio geral que eacute sujeito a limitadas e estreitas exceccedilotildees em situaccedilotildees nas quais as noccedilotildees de autonomia pessoal e dignidade devem prevalecer Todavia essas mesmas sociedades continuam a traccedilar distinccedilotildees entre formas ativas e passivas de intervenccedilatildeo no processo de morrer e com pouquiacutessimas exceccedilotildees proiacutebem o suiciacutedio assistido em situaccedilotildees semelhantes agrave da apelante A tarefa entatildeo se torna a de identificar as razotildees sobre as quais essas diferenccedilas satildeo baseadas e determinar se elas satildeo suportaacuteveis constitucionalmenterdquo 52 Em Lawrence discutiu-se uma decisatildeo da deacutecada de 1980 na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relaccedilotildees sexuais entre pessoas do mesmo sexo O caso Lawrence reverteu a decisatildeo anterior Lawrence v Texas 539 US 558 (2003) Embora as menccedilotildees agrave dignidade humana natildeo sejam tatildeo frequentes nas manifestaccedilotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos haacute outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de lsquodignidade como autonomiarsquo como por exemplo a) Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v Casey 112 US 2791 (1992) onde se discutiu a constitucionalidade de uma lei da Pensilvacircnia que regulamentava restritivamente a praacutetica do aborto b) Thornburgh v American College of Obstetricians and Gynecologists 476 US 747 (1986) na discussatildeo sobre o aborto no voto do Justice Blackmun b) Roper v Simons a respeito da proibiccedilatildeo da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos Cf McCRUDDEN Christopher Human dignity Op cit p688 e 695 53 ldquoEn Colombia a la luz de la Constitucioacuten de 1991 es preciso resolver esta cuestioacuten desde una perspectiva secular y pluralista que respete la autonomiacutea moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior La decisioacuten entonces no puede darse al margen de los postulados superiores El artiacuteculo 1 de la Constitucioacuten por ejemplo establece que el Estado colombiano estaacute fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana esto significa que como valor supremo la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su maacutexima expresioacuten (hellip) Este principio atiende necesariamente a la superacioacuten de la persona respetando en todo momento su autonomiacutea e identidadrdquo COLOMBIA Sentencia C-23997 Demanda de Inconstitucionalidad contra el artiacuteculo 326 del decreto 100 de 1980 ndash Coacutedigo Penal Magistrado Ponente dr Carlos Gaiviria Diaz 20 de mayo de 1997 Disponiacutevel em httpwwwramajudicialgovcocsj_portaljspframesindexjspidsitio=6ampruta=jurisprudenciaconsultajsp Acesso em mai 2005 citando as decisotildees T-401 de 1992 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz e Sentencia T-090 de 1996 Magistrado Ponente Eduardo Cifuentes Muntildeoz Eacute preciso salientar que tal foi a posiccedilatildeo majoritaria da Corte Nos votos de dissidecircncia a proposta de entender a lsquodignidade humana como autonomiarsquo foi muito criticada Ao defender a posiccedilatildeo majoritaacuteria foram mencionados julgados anteriores da Corte nos quais a lsquodignidade como autonomiarsquo foi a concepccedilatildeo prevalente

20

disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

22

principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

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7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 20: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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disso escolhas individuais podem produzir impactos natildeo apenas sobre as relaccedilotildees

intersubjetivas mas tambeacutem sobre o corpo social e em certos casos sobre a

humanidade como um todo Daiacute a necessidade de imposiccedilatildeo de valores externos aos

sujeitos Da dignidade como heteronomia

VI A dignidade humana como heteronomia

A lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz uma visatildeo da dignidade

ligada a valores compartilhados pela comunidade antes que a escolhas individuais54

Nela se abrigam conceitos juriacutedicos indeterminados como bem comum interesse puacuteblico

moralidade ou a busca do bem do proacuteprio indiviacuteduo Nessa acepccedilatildeo a dignidade natildeo eacute

compreendida na perspectiva do indiviacuteduo mas como uma forccedila externa a ele tendo em

conta os padrotildees civilizatoacuterios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa

Como intuitivo o conceito de rsquodignidade como heteronomiarsquo funciona muito mais como

uma constriccedilatildeo externa agrave liberdade individual do que como um meio de promovecirc-la

Inuacutemeros autores chancelam a noccedilatildeo de dignidade como freio agrave liberdade no sentido de

obstar escolhas que possam comprometer valores sociais ou a dignidade do proacuteprio

indiviacuteduo cuja conduta se cerceia55

Do paraacutegrafo anterior se extrai como consequecircncia que na

concepccedilatildeo heterocircnoma a dignidade natildeo tem na liberdade seu componente central mas

ao reveacutes eacute a dignidade que molda o conteuacutedo e daacute limite agrave liberdade Existem algumas

decisotildees que satildeo consideradas emblemaacuteticas para a visatildeo da lsquodignidade como

heteronomiarsquo Uma delas por variados fatores tornou-se muito conhecida no Brasil o

caso do arremesso de anotildees O Prefeito da cidade de Morsang-sur-Orge interditou a

54 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p29 55 VILHENA Oscar Vieira (col de Flaacutevia Scabin) Direitos Fundamentais ndash uma leitura da jurisprudecircncia do STF Satildeo Paulo Malheiros 2006 p67 Apoacutes explicitar a visatildeo autonomista da dignidade o autor explora o pensamento kantiano e demonstra que apesar de nele residir uma versatildeo autonomista haacute tambeacutem espaccedilo para a heteronomista ldquoO princiacutepio da dignidade expresso no imperativo categoacuterico refere-se substantivamente agrave esfera de proteccedilatildeo da pessoa enquanto fim em si e natildeo como meio para a realizaccedilatildeo de objetivos de terceiros A dignidade afasta os seres humanos da condiccedilatildeo de objetos agrave disposiccedilatildeo de interesses alheios Nesse sentido embora a dignidade esteja intimamente associada agrave ideacuteia de autonomia da livre escolha ela natildeo se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra ndash qual seja o da ausecircncia de constrangimentos A dignidade humana impotildee constrangimentos a todas as accedilotildees que natildeo tomem a pessoa como fim Esta a razatildeo pela qual do ponto de vista da liberdade natildeo haacute grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos degradantes Se o anatildeo decidiu agrave margem de qualquer coerccedilatildeo submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneraccedilatildeo qual o problema De fato da perspectiva da liberdade natildeo haacute problema algum A questatildeo eacute se podemos em nome de nossa liberdade colocar em risco nossa dignidade Colocada em termos claacutessicos seria vaacutelido o contrato em que permito a minha escravidatildeo Da perspectiva da dignidade certamente natildeordquo

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 21: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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atividade conhecida como lancer de nain atraccedilatildeo existente em algumas casas noturnas

da regiatildeo metropolitana de Paris Consistia ela em transformar um anatildeo em projeacutetil

sendo arremessado de um lado para outro de uma discoteca A casa noturna tendo

como litisconsorte o proacuteprio deficiente fiacutesico (Sr Wackenheim) recorreu da decisatildeo para

o tribunal administrativo que anulou o ato do Prefeito por excegraves de pouvoir O Conselho

de Estado todavia na qualidade de mais alta instacircncia administrativa francesa reformou

a decisatildeo e restabeleceu a proibiccedilatildeo A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial

natildeo foram consideradas obstaacuteculos ao entendimento que prevaleceu justamente por

haver ele se fundado na defesa da dignidade da pessoa humana56

Satildeo tambeacutem consideradas paradigmaacuteticas da ideia de lsquodignidade

como heteronomiarsquo as decisotildees que consideram iliacutecitas relaccedilotildees sexuais sadomasoquistas

consentidas57 Tanto no Reino Unido quanto na Beacutelgica prevaleceu o ponto de vista de

que o consentimento natildeo poderia funcionar como defesa em situaccedilotildees de violecircncia fiacutesica

Embora a expressatildeo lsquodignidade humanarsquo natildeo tenha sido diretamente empregada no caso

inglecircs a tese esposada eacute plenamente conciliaacutevel com a lsquodignidade como heteronomiarsquo58

Na visatildeo dos Lordes que compuseram a maioria a sociedade estaacute autorizada a recorrer

ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam impactar

moralmente o grupo social ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a

privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes59 Jaacute na decisatildeo

belga a dignidade humana como limite agrave liberdade em sua versatildeo heterocircnoma foi o

56 A decisatildeo assim lavrou ldquoQue le respect de la digniteacute de la personne humaine est une des composantes de lrsquoordre public que lrsquoautoriteacute investie du pouvoir de police municipale peut mecircme en lrsquoabsence de circonstances locales particuliegraveres interdire une attraction qui porte atteinte au respet de la digniteacute de la personne humainerdquo (Que o respeito agrave dignidade da pessoa humana eacute um dos componentes da ordem puacuteblica que a autoridade investida do poder de poliacutecia municipal pode mesmo na ausecircncia de circunstacircncias locais particulares interditar uma atraccedilatildeo atentatoacuteria agrave dignidade da pessoa humana) V LONG WIL BRAIBANT DEVOLVEacute E GENEVOIS Le grands arrecircts de la jurisprudence administrative Paris Dalloz 1996 p 790 e s Veja-se em liacutengua portuguesa o comentaacuterio agrave decisatildeo elaborado por BARBOSA GOMES Joaquim B O poder de poliacutecia e o princiacutepio da dignidade da pessoa humana na jurisprudecircncia francesa in Seleccedilotildees Juriacutedicas ADV n 12 1996 p 17 s V tb CUNHA Alexandre dos Santos Dignidade Op Cit p249 Conveacutem reportar que este jogo natildeo se apresentou apenas na Franccedila A situaccedilatildeo ocorreu tambeacutem em Portugal e vem se mostrando nos Estados Unidos da Ameacuterica Conferir KUFLIK Arthur The inalienabilty of autonomy Philosophy and public affairs Vol 13 nordm 4 (autumm 1984) p271-298 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de Os direitos fundamentais Op Cit p333 n111 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p25 e s 57 UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown [1993] All ER 75 Disponiacutevel em httpwwwparliamentthe-stationery-officecompald199798ldjudgmtjd970724brown01htm Uacuteltimo acesso em dez2008 CEDH Affaire KA et AD c Belgique (Requecirctes nordms 4275898 et 4555899) 2005 58 Pode-se entrever a motivaccedilatildeo com ecircnfase no voto do Lord Coleridge (maioria) UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Cit 59 Lord Mustill e o Lord Slynn of Hadley dissentiram UNITED KINGDOM House of Lords R v Brown Em variados pontos a decisatildeo faz lembrar a contenda entre HLA Hart e Lord Devlin HART HLA Law liberty and morality Stanford Stanford University 2007 LORD DEVLIN Patrick The enforcement of morals Oxford Oxford University 1968

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principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

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julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 22: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

22

principal fundamento do julgado60 Nos dois casos a Corte Europeia de Direitos Humanos

confirmou as decisotildees dos Estados embora natildeo se tenha ancorado na dignidade

humana61

Outro caso tiacutepico de consideraccedilatildeo da lsquodignidade como heteronomiarsquo

refere-se aos chamados peep shows O Tribunal Federal Administrativo alematildeo

considerou atentatoacuteria agrave dignidade humana a realizaccedilatildeo deste tipo de apresentaccedilatildeo uma

vez que uma pessoa submete-se como objeto agrave vontade de outra ldquoessa violaccedilatildeo da

dignidade humana natildeo eacute removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua

em um peep show age voluntariamente A dignidade do homem eacute um valor objetivo

inalienaacutevel o seu respeito natildeo pode ser renunciado pelo indiviacuteduordquo62 Do excerto

percebe-se que a dignidade humana foi tomada como ldquoum valor objetivordquo que

ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indiviacuteduo natildeo considere

estar atingido na sua dignidade Nessa linha de entendimento ldquoonde a dignidade

humana assim concebida estiver em jogo a livre escolha eacute irrelevanterdquo63

O exame de decisotildees judiciais que se fundaram na dignidade

humana em diferentes partes do mundo revela a existecircncia de uma visatildeo comunitarista

e restritiva de direitos (rights-constraining) em oposiccedilatildeo agrave visatildeo individualista e

protetiva de direitos (rights-supporting)64 Nessa perspectiva que se justapotildee agrave ideia de

lsquodignidade como heteronomiarsquo as Cortes aceitaram ou impuseram limites por exemplo

agrave liberdade de expressatildeo visando a evitar a proliferaccedilatildeo da pornografia e da indececircncia

e tambeacutem dos chamados discursos do oacutedio65 Paralelamente tambeacutem haacute diversos

60 Haacute que se ter atenccedilatildeo aos fatos deste caso que satildeo bastante diferentes daqueles de R v Brown Cf CEDH Affaire KA et AD Cit 61 CEDH Laskey Jaggard and Brown v United Kingdom 1997 Disponiacutevel em httpcmiskpechrcoeinttkp197viewaspitem=1ampportal=hbkmampaction=htmlamphighlight=Laskey2C20|20Jaggard20|20Brown20|20v20|20United20|20Kingdomampsessionid=25693996ampskin=hudoc-en Uacuteltimo acesso em dez2008 Apenas o voto do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteccedilatildeo da moral puacuteblica relacionando-a com a dignidade humana rdquoOs perigos da permissividade excessiva que pode conduzir agrave indulgecircncia agrave pedofilia (hellip) ou agrave tortura de terceiros foram destacadas na Conferecircncia Mundial de Estocolmo A proteccedilatildeo da vida privada significa a proteccedilatildeo da intimidade e da dignidade de uma pessoa natildeo a proteccedilatildeo da sua desonra ou a promoccedilatildeo da imoralidade criminosardquo 62 Cf ULLRICH Dierk Concurring visions human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany Global Jurist Frontiers Vol3 nordm1 2003 p83 63 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 64 Sobre o ponto v especialmente o jaacute referido estudo de McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip 65 Sobre a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio para a proteccedilatildeo da dignidade humana satildeo citadas decisotildees da Corte de Israel da Comissatildeo Europeia de Direitos Humanos do Canadaacute e tambeacutem da Aacutefrica do Sul e da Hungria No Brasil um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibiccedilatildeo dos discursos do oacutedio foi justamente a

23

julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 23: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

23

julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor

de sua proacutepria dignidade dando a ela uma dimensatildeo heterocircnoma Em muitas situaccedilotildees

o conceito eacute utilizado como forma de impor um ponto de vista moral abrangente que

varia de lugar para lugar66 Aliaacutes em alguns documentos mais recentes sobre bioeacutetica

como a Convenccedilatildeo Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e a Declaraccedilatildeo Universal

do Genoma Humano e Direitos Humanos da UNESCO a expressatildeo dignidade humana

trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados ou seja tende agrave

dignidade como heteronomia67

Na peticcedilatildeo inicial da accedilatildeo civil puacuteblica contra a resoluccedilatildeo do

Conselho Federal de Medicina que autorizava a ortotanaacutesia estaacute subjacente a lsquodignidade

como heteronomiarsquo O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes

terminais e seus familiares estatildeo destituiacutedos de capacidade para tomar decisotildees

referentes aos tratamentos meacutedicos que seratildeo ou natildeo realizados torna claro que a

lsquodignidade como autonomiarsquo natildeo se faz presente em seu raciociacutenio A priori pessoas satildeo

destituiacutedas de sua autonomia sem qualquer exame das particularidades do caso sem

qualquer anaacutelise individualizada por profissionais da habilidade para tomar decisotildees

Descarta-se sumariamente a possibilidade de os pacientes terminais ou seus

responsaacuteveis legais optarem pela limitaccedilatildeo consentida de tratamento que eacute considerada

na peccedila exordial como uma fuga uma facilidade Indigno seria natildeo enfrentar o

sofrimento e natildeo lutar contra a morte ou seja a escolha da morte eacute um mal em si ou eacute

uma escolha que pode ser reputada errocircnea por uma sociedade poliacutetica Como a

dignidade pode limitar a liberdade satildeo os pacientes e seus responsaacuteveis considerados

dignidade humana McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p 699 e s BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 66 McCRUDDEN Christopher Human dignityhellip Op Cit p675 ldquoo que emerge dessas diferenccedilas eacute que algumas jurisdiccedilotildees usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente que parece significativamente diferente de regiatildeo para regiatildeordquo 67 Sobre o ponto v BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignity Op Cit p34 29-33 p38-44 Todavia os autores reconhecem nesses documentos elementos ainda que menos fortes da lsquodignidade como autonomiarsquo Conferir os documentos e seus relatoacuterios CONSELHO DA EUROPA Convenccedilatildeo para a proteccedilatildeo dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face agraves aplicaccedilotildees da biologia e da medicina (04041997) COUNCIL OF EUROPE Convention for the protection of Human Rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine Convention on Human Rights and Biomedicine ndash Explanatory Report (17121996) UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (11111997) Importa conferir ainda a Declaraccedilatildeo Universal de Bioeacutetica e Direitos Humanos da UNESCO O texto eacute posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana agrave autonomia com mais intensidade UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (19102005)

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

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7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 24: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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impedidos de decidir Eacute uma compreensatildeo heterocircnoma do que eacute ou natildeo digno para o ser

humano em seu leito de morte68

Em suma pode-se dizer que a lsquodignidade como heteronomiarsquo traduz

uma ou algumas concepccedilotildees de mundo e do ser humano que natildeo dependem

necessariamente da liberdade individual No mais das vezes ela atua exatamente como

um freio agrave liberdade individual em nome de valores e concepccedilotildees de vida

compartilhados Por isso a lsquodignidade como heteronomiarsquo eacute justificada na busca do bem

para o sujeito para a preservaccedilatildeo da sociedade ou comunidade para o aprimoramento

moral do ser humano dentre outros objetivos Entretanto assim como a lsquodignidade

como autonomiarsquo a lsquodignidade como heteronomiarsquo tambeacutem possui inconsistecircncias

teoacutericas e praacuteticas Como criacuteticas principais eacute possiacutevel compendiar a) o emprego da

expressatildeo como um roacutetulo justificador de poliacuteticas paternalistas69 juriacutedico-moralistas e

perfeccionistas b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da

dignidade especialmente em sociedades democraacutetico-pluralistas c) perda da forccedila

juriacutedico-poliacutetica da locuccedilatildeo lsquodignidade humanarsquo d) problemas praacuteticos e institucionais na

definiccedilatildeo dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade poliacutetica

68 BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL ACP nordm20073400014809-3 Peticcedilatildeo Inicial Cit BRASIL MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO FEDERAL Recomendaccedilatildeo nordm012006 ndash WD ndash PRDC Cit 69 O paternalismo juriacutedico eacute um princiacutepio que justificaria a constriccedilatildeo de um direito de liberdade (geral ou especiacutefico) autorizando o emprego da coerccedilatildeo da proibiccedilatildeo do natildeo-reconhecimento juriacutedico de atos ou de mecanismos anaacutelogos para a proteccedilatildeo do indiviacuteduo ou grupo contra comportamentos proacuteprios auto-infligidos ou consentidos sem contar com o endosso atual dos que satildeo destinataacuterios da medida Satildeo institutos afins a) o moralismo juriacutedico a1) em sentido estrito pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral mesmo que natildeo cause nem dano nem ofensa a terceiros a2) em sentido amplo pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros sem que causem dano ou ofensa b) o princiacutepio do benefiacutecio aos demais eacute justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibiccedilatildeo for provavelmente necessaacuteria para a produccedilatildeo de algum benefiacutecio a terceiros c) o perfeccionismo eacute justificado ao Estado proibir condutas que satildeo provavelmente necessaacuterias para o aprimoramento do caraacuteter dos indiviacuteduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados) d) o moralismo juriacutedico paternalista o princiacutepio refere-se agrave manutenccedilatildeo de um ambiente moral em uma sociedade poliacutetica ou seja que uma sociedade mesmo liberal deve preservar a ideia de lsquoum mundo moralmente melhorrsquo V FEINBERG Joel Legal paternalism In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p3-18 DWORKIN Gerald Paternalism Op cit p19-35 DWORKIN Gerald Paternalism some second thoughts In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p105-112 FEINBERG Joel Harm to others ndash the moral limits of the criminal law (vol I) Oxford Oxford University 1986 ALEMANY Macaacuterio Garciacutea El concepto y la justificacioacuten del paternalismo Tesis de Doctorado Alicante 2005 p160-161 Disponiacutevel em httpwwwcervantesvirtualcomFichaObrahtmlRef=14591ampext=pdfampportal=0 Acesso em set2007 BROCK Dan Paternalism and promoting the good In SARTORIUS Rolf (ed) Paternalism Minnesota Minnesota University 1987 p 237-260 ATIENZA Manuel Discutamos sobre paternalismo Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 p203 DWORKIN Ronald A virtude soberana A teoria e a praacutetica da igualdade Trad Jussara Simotildees Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (especialmente os capiacutetulos 5 e 6) VALDEacuteS Ernesto Garzoacuten iquestEacutes eticamente justificable el paternalismo juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho nordm5 1988 DWORKIN Gerald Moral Paternalism Law and Philosophy (2005) 24 p305-319

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Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

31

exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

32

filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 25: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

25

Relatados os principais conteuacutedos da expressatildeo dignidade humana

constata-se que as versotildees autocircnoma e heterocircnoma competem entre si sem se

excluiacuterem Cabe verificar entatildeo a aplicaccedilatildeo de ambos os conceitos no contexto da morte

com intervenccedilatildeo70

VII Autonomia versus heteronomia qual dignidade

A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenccedilatildeo

e ampliaccedilatildeo da liberdade humana desde que respeitados os direitos de terceiros e

presentes as condiccedilotildees materiais e psicofiacutesicas para o exerciacutecio da capacidade de

autodeterminaccedilatildeo A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteccedilatildeo de

determinados valores sociais e no proacuteprio bem do indiviacuteduo aferido por criteacuterios externos

a ele No primeiro caso prevalecem o consentimento as escolhas pessoais e o

pluralismo No segundo o paternalismo e institutos afins ao lado dos valores morais

compartilhados pela sociedade A liberdade e as escolhas individuais satildeo limitadas

mesmo quando natildeo interfiram com direitos de terceiros71 Como se pode intuir

singelamente a dignidade como autonomia legitima diferentes modalidades de morte

com intervenccedilatildeo desde que o consentimento seja genuiacuteno informado e livre de

privaccedilotildees materiais Jaacute a dignidade como heteronomia serve de fundamento agrave proibiccedilatildeo

da morte com intervenccedilatildeo72

70 Natildeo se explorou aqui a denominada ldquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidaderdquo De acordo com ela o conteuacutedo da dignidade humana seria desenvolvido a partir do diaacutelogo entre atores morais autocircnomos mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos Como em outros ambientes teoacutericos eacute bem de ver que as situaccedilotildees ideais de diaacutelogo e as exigecircncias teoacutericas formuladas para o plano discursivo satildeo de implementaccedilatildeo muito difiacutecil nas sociedades atuais BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p45 A proposta dialoacutegica eacute identificada pelos autores como uma forma de lsquodignidade como heteronomiarsquo A lsquoconcepccedilatildeo dialoacutegica da dignidadersquo tem por base os escritos habermasianos HABERMAS Juumlrgen O futuro da natureza humana ndash a caminho da eugenia liberal Trad Karina Jannini Satildeo Paulo Martins Fontes 2004 71 McCRUDDEN Christopher Human dignity and judicial interpretationhellip Op Cit passim ULLRICH Dierk Concurring visions human dignityhellip Op Cit p 83 BEYLEVELD Deryck BROWNSWORD Roger Human dignityhellip Op cit p 20 e s 72 Eacute bem de ver que eacute na cena atual que a lsquodignidade como heteronomiarsquo apresenta-se como oacutebice agrave morte com intervenccedilatildeo pois em eacutepocas preteacuteritas ela foi empregada por alguns regimes como o nazista para definir de modo externo ao sujeito e mesmo contra a sua vontade as vidas indignas de serem vividas trazendo agrave tona uma cultura de extermiacutenio altamente discriminatoacuteria e cruel Na eacutepoca tais assassinatos eram cognominados eutanaacutesia mas hoje eles seriam reputados genociacutedio ou em alguns casos mistanaacutesia a morte em tempo equiacutevoco fundada em discriminaccedilotildees erros preconceitos e falta de acesso agrave proteccedilatildeo e agrave promoccedilatildeo da sauacutede Sobre o termo mistanaacutesia NABARRO Sonia Wendt Morte dilemas eacuteticos do morrer Arquivos do Conselho Federal de Medicina do Paranaacute Curitiba v23 nordm92 OutDez2006 p185-244

26

Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

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7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 26: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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Trazendo o debate para o acircmbito do sistema juriacutedico brasileiro natildeo

parece possiacutevel adotar de forma excludente um ou outro vieacutes da dignidade humana

Mas tendo como ponto de partida a Constituiccedilatildeo afigura-se fora de duacutevida o predomiacutenio

da ideia de dignidade como autonomia Dentro de uma perspectiva histoacuterica a Carta de

1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista constituindo o

marco inicial da reconstruccedilatildeo democraacutetica do Brasil73 Daiacute a sua ecircnfase nas liberdades

pessoais parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias

procedimentais A dignidade como heteronomia obteve menos ecircnfase Como visto ela se

move em torno de conceitos indeterminados como ldquomoral puacuteblicardquo e ldquobons costumesrdquo

por exemplo que nem figuram no texto constitucional brasileiro74 Outras locuccedilotildees

como ldquointeresse puacuteblicordquo e ldquoordem puacuteblicardquo satildeo mencionados no texto para hipoacuteteses

bem contadas e de aplicaccedilatildeo especiacutefica que natildeo incluem ndash ao menos expressamente ndash a

restriccedilatildeo a direitos fundamentais

As diferenccedilas em relaccedilatildeo a textos constitucionais anteriores

portanto demarcam a superaccedilatildeo de modelos inspirados na imposiccedilatildeo de uma moralidade

social unitaacuteria carente de dialeacutetica e de pluralismo Na histoacuteria nacional esta sempre foi

a porta de entrada para o paternalismo o perfeccionismo moral e para a intoleracircncia

combustiacuteveis para o arbiacutetrio e o autoritarismo Com isso natildeo se quer sustentar todavia

que a Constituiccedilatildeo de 1988 sirva de fundamento e justificaccedilatildeo para um individualismo

exacerbado para um primado caoacutetico de vontades individuais unidas apenas pela

geografia Haacute uma dimensatildeo comunitarista no texto constitucional que se manifesta em

diferentes instacircncias Nela se destacam os compromissos com o bem de todos a

erradicaccedilatildeo da pobreza e a solidariedade social De parte isso a Constituiccedilatildeo reconhece

a relevacircncia de instituiccedilotildees que satildeo expressotildees coletivas do eu como a famiacutelia os

partidos poliacuteticos e os sindicatos A tudo isso se somam certos consensos substantivos

73 BARROSO Luiacutes Roberto (org) A reconstruccedilatildeo democraacutetica do direito puacuteblico no Brasil Rio de Janeiro Renovar 2007 74 Na Constituiccedilatildeo de 1967 as locuccedilotildees lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restriccedilatildeo da liberdade de culto (art150 sect5ordm) Na Constituiccedilatildeo de 1946 haacute dispositivo anaacutelogo ao mencionado e duas vezes a lsquoordem puacuteblicarsquo eacute o autorizador expresso para restriccedilatildeo de direitos a reuniatildeo paciacutefica e a permanecircncia de estrangeiro no territoacuterio nacional (art141 sect7ordm e sect 11 respectivamente) A Constituiccedilatildeo de 1937 por seu turno foi mais proacutediga na utilizaccedilatildeo dos termos lsquomoral puacuteblicarsquo lsquomoralidade puacuteblicarsquo lsquobons costumesrsquo e lsquoordem puacuteblicarsquo para autorizar a restriccedilatildeo expressa de direitos como a) liberdade de manifestaccedilatildeo do pensamento (art15 b) b) a liberdade de culto (art122 4ordm) c) o direito de manifestaccedilatildeo dos parlamentares (art43) e d) como justificadores da instituiccedilatildeo por lei da censura preacutevia (art15 a) e da conduccedilatildeo dos rumos da educaccedilatildeo (art132) Do exposto percebe-se que a Constituiccedilatildeo de 1988 efetivamente consagrou o natildeo uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restriccedilatildeo de Direitos Fundamentais

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

30

liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

32

filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 27: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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impeditivos de condutas que afetem a dignidade75 Estes e outros elementos permitem

identificar uma sociedade poliacutetica ligada por valores sociais e morais comuns

Na jurisprudecircncia do Supremo Tribunal Federal haacute inuacutemeros

julgados que se referem agrave dignidade humana Por vezes o emprego da locuccedilatildeo eacute

puramente ornamental Em muitos casos ela natildeo eacute o uacutenico ou o principal fundamento de

decidir sendo frequentemente associada a um direito fundamental especiacutefico como

reforccedilo argumentativo Sem embargo eacute possiacutevel detectar uma predominacircncia da ideia de

dignidade como autonomia sobre a dignidade como heteronomia76 A anaacutelise dos

diferentes votos permite apontar certas formulaccedilotildees recorrentes que figuram como

ldquoconsensos sobrepostosrdquo77 na mateacuteria que podem ser assim sumariados a) correlaccedilatildeo

da foacutermula do lsquohomem objetorsquo ou da natildeo instrumentalizaccedilatildeo dos seres humanos agrave

liberdade humana e agraves garantias constitucionais da liberdade78 b) manutenccedilatildeo da

75 A Constituiccedilatildeo de 1988 possui diversos elementos substantivos dessa natureza como a proibiccedilatildeo dos trabalhos forccedilados das penas crueacuteis de morte (ressalva feita agrave guerra) perpeacutetuas da tortura e da imposiccedilatildeo de tratamento desumano ou degradante bem como a proibiccedilatildeo da comercializaccedilatildeo de oacutergatildeos e tecidos do corpo humano Cf BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 art 5ordm III art5ordm XLVII 76 Quanto agrave dignidade como autonomia especialmente (a) a discussatildeo sobre a recepccedilatildeo de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional poacutes-88 Nos votos demarcado estaacute o cunho pluralista e protetor das liberdades A correlaccedilatildeo direta com a dignidade estaacute no voto do Min Relator e indiretamente perpassa todo o decisum (b) a discussatildeo da constitucionalidade da proibiccedilatildeo de progressatildeo de regime nos crimes hediondos Eacute bem de ver todavia que haacute insinuaccedilatildeo de um elemento da lsquodignidade como heteronomiarsquo em alguns votos desse acoacuterdatildeo dado o modo de compreender a ressocializaccedilatildeo dos condenados criminalmente Poreacutem impera a vertente autonomista como atesta longo trecho da lavra do Min Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade o crime e o pecado A laicidade e a pluralidade satildeo consideradas limites ao jus puniendi o que estaacute de todo associado agrave lsquodignidade como autonomiarsquo (c) o elo entre dignidade e as condiccedilotildees miacutenimas de vida Quanto agrave dignidade como heteronomia o caso paradigmaacutetico eacute sem duacutevida o chamado caso Ellwanger acerca dos discursos do oacutedio Entretanto eacute bom trazer agrave tona que a CF88 conteacutem dispositivo especiacutefico sobre o crime de racismo (art 5ordm XLII) BRASIL STF ADPF nordm130-7DF ndash MC Rel Min Carlos Britto 07112008 BRASIL STF HC nordm82959-7SP Rel Min Marco Aureacutelio 01092006 BRASIL STF HC nordm82424RS Rel Min Moreira Alves 19032004 77 Consenso sobreposto eacute uma expressatildeo cunhada por John Rawls Ao elaborar sua ceacutelebre teoria da justiccedila tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo assumindo que eacute um traccedilo permanente da cultura poliacutetica de uma democracia a convivecircncia de diversas crenccedilas religiosas filosoacuteficas poliacuteticas e morais Para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de uma sociedade poliacutetica faz-se necessaacuteria a adesatildeo razoaacutevel de todos a princiacutepios baacutesicos de justiccedila A partir dessa adesatildeo primeira formam-se mediante emprego do procedimento da razatildeo puacuteblica outros pontos de consenso poliacutetico justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indiviacuteduos ou grupos que natildeo compartilham as mesmas crenccedilas Tais pontos satildeo o chamado consenso sobreposto RAWLS John Justiccedila como equumlidade ndash uma reformulaccedilatildeo Trad Claacuteudia Berliner Rev Teacutecnica Aacutelvaro de Vita Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p44-53 78 A foacutermula do homem-objeto oriunda do direito germacircnico tem por base os trabalhos de Duumlrig que por sua vez partiu de premissas kantianas Como exemplo vaacuterios julgados tornaram cediccedilo que o indiviacuteduo natildeo pode a pretexto de manutenccedilatildeo da ordem e da seguranccedila puacuteblicas (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos se natildeo deu causa agrave mora processual ou se ressalvados outros fatos muito relevantes exauriu-se a justificativa para mantecirc-lo preso (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razatildeo da gravidade ou da repercussatildeo do crime ainda que hediondo tampouco por fundamentos decisoacuterios geneacutericos (c) ter o seu silecircncio na persecuccedilatildeo penal interpretado em seu desfavor (d) natildeo ser devidamente citado em processo penal Na linha de casos a motivaccedilatildeo eacute a de que o indiviacuteduo natildeo pode ser mais uma engrenagem do processo penal ou seja

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integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

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7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 28: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

28

integridade fiacutesica e moral dos indiviacuteduos79 c) proibiccedilatildeo da tortura da imposiccedilatildeo de

tratamento desumano ou degradante e da crueldade80

Eacute possiacutevel assentar assim que o conceito de dignidade como

autonomia tem presenccedila mais forte no texto constitucional com alguma permeabilidade

agrave dignidade como heteronomia A prevalecircncia dessa uacuteltima fora dos casos expressos ou

inequiacutevocos envolveraacute especial ocircnus argumentativo Na jurisprudecircncia do STF a

despeito da adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como heteronomia em um ou outro caso eacute

possiacutevel identificar um razoaacutevel consenso em relaccedilatildeo a certos conteuacutedos da dignidade

como autonomia Ele reside justamente na compreensatildeo de ser a dignidade humana o

escudo protetor da ldquoinviolabilidade do indiviacuteduordquo ndash especialmente no que tange a

diferentes formas de manifestaccedilatildeo da liberdade ndash assim como fundamento de proteccedilatildeo

da sua integridade fiacutesica e psiacutequica e do repuacutedio ao tratamento cruel desumano ou

degradante Merece referecircncia nesse contexto a longa linha de precedentes do Superior

Tribunal de Justiccedila sobre dano moral Tal modalidade de dano caracterizado por

elementos como ldquodor sofrimento e humilhaccedilatildeordquo tambeacutem avilta a dignidade humana81

natildeo pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da maacutequina persecutoacuteria estatal impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade Ademais por insistecircncia do Min Gilmar Mendes a prisatildeo instrumental agrave extradiccedilatildeo estaacute sendo revisitada pois como entende o Ministro o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acoacuterdatildeo que discutiu a competecircncia para o julgamento de crimes de reduccedilatildeo de pessoas agrave condiccedilatildeo anaacuteloga agrave de escravo Pese embora ser o conteuacutedo da dignidade passiacutevel de leitura como lsquoheteronomiarsquo pois a escravidatildeo eacute considerada um mal em si o seu conteuacutedo eacute fortemente relacionado agrave preservaccedilatildeo da liberdade humana e de suas preacute-condiccedilotildees Cf BRASIL STF HC nordm92604-5SP Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm88548-9SP Rel Min Gilmar Mendes 26092008 BRASIL STF HC nordm91657-1SP Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91414-4BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91121-8MS Rel Min Gilmar Mendes 28032008 BRASIL STF HC nordm91524-8BA Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF HC nordm91662PR Rel Min Celso de Melo 04042008 (neste acoacuterdatildeo o ponto principal da motivaccedilatildeo eacute o due processo f law) BRASIL STF HC nordm92842MT Rel Min Gilmar Mendes 25042008 BRASIL STF RE 398041-6PA Rel Min Joaquim Barbosa 19122008 79 O leading case quanto agrave integridade fiacutesica parece ser o que versou sobre a possibilidade de realizaccedilatildeo compulsoacuteria de exame de DNA para fins de comprovaccedilatildeo de paternidade Mesmo que deveras relevante o interesse do outro poacutelo da relaccedilatildeo processual o STF considerou que a realizaccedilatildeo forccedilada de exames invade a privacidade a intimidade e a integridade fiacutesica individuais protegidas pela dignidade Mais recente foi a discussatildeo sobre o uso de algemas que culminou inclusive na ediccedilatildeo da Suacutemula Vinculante nordm11 O uso acriterioso de algemas e a divulgaccedilatildeo abusiva de imagens de indiviacuteduos nessa condiccedilatildeo foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos BRASIL STF HC nordm71373-4RS 22111996 BRASIL STF HC nordm89429-1RO 02022007 80 Importante referir os acoacuterdatildeos e a Suacutemula sobre o uso de algemas bem como a decisatildeo acerca do crime de tortura perpetrado contra crianccedilas e adolescentes BRASIL STF HC nordm70389-5 SP 10082001 Na doutrina estrangeira eacute interessantiacutessima a produccedilatildeo de Waldron no tema WALDRON Jeremy Inhuman and degrading treatment a non-realist view NYU Public Law Colloquium April 23 (second draft) 81 Eacute efetivamente longa essa linha de precedentes Como ilustraccedilatildeo destacam-se BRASIL STJ REsp910794RJ Rel Min Denise Arruda 04122008 BRASIL STJ 802435PE Rel Min Luiz Fux 30102006 Do uacuteltimo vale destacar trecho ldquo10 Deveras a dignidade humana retrata-se na visatildeo Kantiana na autodeterminaccedilatildeo na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivecircncia sadia Eacute de se indagar qual a aptidatildeo de um cidadatildeo para o exerciacutecio de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi

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No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 29: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

29

No plano infraconstitucional especialmente no entrelaccedilamento da

bioeacutetica com o Direito a versatildeo autonomista da dignidade prevalece nitidamente O

modelo adotado em diversas leis e regulaccedilotildees eacute centrado no consentimento do paciente

seus responsaacuteveis dos sujeitos de pesquisa ou outros envolvidos82 Ateacute mesmo no

campo da morte com intervenccedilatildeo encontram-se enunciados normativos fundados no

consentimento para as hipoacuteteses de ortotanaacutesia cuidado paliativo internaccedilatildeo domiciliar

e escolha do local da morte83 Em suma agrave luz do sistema juriacutedico brasileiro eacute possiacutevel

afirmar uma certa predominacircncia da dignidade como autonomia sem que se deslegitime

o conceito de dignidade como heteronomia O que significa dizer que como regra geral

devem prevalecer as escolhas individuais Mas natildeo invariavelmente

VIII O direito agrave morte digna em busca de consensos miacutenimos

No ambiente da morte com intervenccedilatildeo a ideia de dignidade como

autonomia deve prevalecer por diferentes razotildees A primeira delas eacute de cunho normativo

e foi explorada no toacutepico anterior o sistema constitucional daacute maior importacircncia agrave

uma morte em vida que se caracterizou pela supressatildeo ilegiacutetima de sua liberdade de sua integridade moral e fiacutesica e de sua inteireza humanardquo

82 A confirmar a assertiva a) a legislaccedilatildeo vigente sobre transplantes de oacutergatildeos inter vivos e post mortem fulcrada no consentimento Tamanha eacute a relevacircncia do consentimento que o sistema de doaccedilatildeo presumida inicialmente instituiacutedo foi alvo de intensa polecircmica o que gerou alteraccedilatildeo no texto legal A nova forma que deixa ao encargo do consentimento dos familiares tambeacutem causa dissenso havendo sustentaccedilotildees bastante razoaacuteveis no sentido de que a decisatildeo do provaacutevel doador se formulada deveria prevalecer sobre a da famiacutelia (Lei nordm94341997 com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm102112001) b) a Resoluccedilatildeo 19696 do Conselho Nacional de Sauacutede cujo paradigma de proteccedilatildeo dos sujeitos de pesquisa estaacute centrado no consentimento livre e esclarecido c) a regulamentaccedilatildeo das teacutecnicas de reproduccedilatildeo assistida adota por princiacutepio o consentimento informado de pacientes e doadores (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da gestaccedilatildeo por substituiccedilatildeo (hipoacutetese de reproduccedilatildeo assistida) determina que uma vez seguidos certos padrotildees haacute de prevalecer o consentimento da gestante por substituiccedilatildeo e dos pais bioloacutegicos (CFM Resoluccedilatildeo nordm13581992) d) a regulamentaccedilatildeo da cirurgia de transgenitalizaccedilatildeo eacute orientada pela manifestaccedilatildeo do desejo expresso (CFM Resoluccedilatildeo nordm16522002) e) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de ceacutelulas tronco embrionaacuterias em pesquisa ou processo terapecircutico prevista pela Lei de Biosseguranccedila e reafirmada pelo STF (Lei nordm111052005) 83 Satildeo os seguintes documentos a) a Carta de Direitos dos Usuaacuterios do Sistema de Sauacutede aprovada pela Portaria nordm675GM2006 do Ministeacuterio da Sauacutede b) Lei Covas (assim intitulada em razatildeo do ex-Governador Maacuterio Covas que afirmou sancionaacute-la como Governador e como paciente) do Estado de Satildeo Paulo c) a Lei no 36132001 do Estado do Rio de Janeiro d) a Lei no 127702005 do Estado de Pernambuco e) a Lei no28042001 do Distrito Federal f) a Lei no 142542003 do Estado do Paranaacute e) Lei no162792006 do Estado de Minas Gerais Cf MARTEL Letiacutecia de Campos Velho Limitaccedilatildeo de tratamento Op Cit Merece relevo a Resoluccedilatildeo nordm4195 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes (Conanda) que estabelece os Direitos das crianccedilas e adolescentes hospitalizados ldquo20 Direito a ter uma morte digna junto a seus familiares quando esgotados todos os recursos terapecircuticos disponiacuteveisrdquo BRASIL Conselho Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente Resoluccedilatildeo ndeg 41 de Outubro de 1995 (DOU 171995)

30

liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

32

filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

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7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 30: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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liberdade individual do que agraves metas coletivas84 Ademais do ponto de vista filosoacutefico eacute

melhor a foacutermula que reconhece o indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas

e de assumir responsabilidades por elas Note-se a propoacutesito que ao se valorizar a

autonomia natildeo se estaacute definindo o resultado o paciente ndash ou seu responsaacutevel em

certos casos ndash poderaacute optar entre vaacuterias possibilidades que incluem o prolongamento

maacuteximo da vida seu natildeo-prolongamento artificial e em situaccedilotildees-limite sua abreviaccedilatildeo

Tambeacutem em relaccedilatildeo aos profissionais de sauacutede a dignidade como autonomia eacute o melhor

criteacuterio assegura-lhes o direito de natildeo realizar procedimentos que natildeo considerem

adequados permite que atendam agrave vontade do paciente de natildeo lhe causar sofrimento

inuacutetil sem excluir a possibilidade de objeccedilatildeo de consciecircncia por parte do meacutedico caso

natildeo esteja de acordo com as escolhas manifestadas

Registre-se que a adoccedilatildeo do criteacuterio da dignidade como

heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade Eacute que no seu interior haacute duas

proposiccedilotildees que competem entre si e de certa forma neutralizam-se De um lado a que

valoriza a preservaccedilatildeo da vida humana como um bem em si de outro a proibiccedilatildeo de

impor aos indiviacuteduos tratamento desumano ou degradante Jano com suas duas faces

Reitere-se uma vez mais que o pressuposto faacutetico da tese aqui desenvolvida inclui a

impossibilidade de cura melhora ou reversatildeo do quadro cliacutenico importando o tratamento

em extensatildeo da agonia e do sofrimento sem qualquer perspectiva para o paciente Em

outros cenaacuterios por certo seria admissiacutevel a aplicaccedilatildeo da dignidade como

heteronomia85 Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnoacutestico do

prognoacutestico e das alternativas existentes O consentimento por sua vez deve ser aferido

por padrotildees seguros para que se tenha certeza de que as decisotildees foram tomadas de

modo livre consciente e esclarecido86 Relembre-se por fim que as condiccedilotildees para o

84 No fundo as situaccedilotildees em que as imposiccedilotildees externas se datildeo em nome do direito de terceiros envolve a demarcaccedilatildeo ou a ponderaccedilatildeo entre autonomias A questatildeo portanto eacute de alteridade da igual dignidade do outro e natildeo propriamente de heteronomia 85 Eacute o que ocorre por exemplo quando se trata de portadores de transtornos mentais ou de adictos que potildeem em risco as proacuteprias vidas muitas vezes com a autonomia jaacute nebulosa Satildeo submetidos a tratamentos e a situaccedilotildees que julgam humilhantes e degradantes mas a justificaccedilatildeo estaacute na temporariedade na possibilidade de reversatildeo e de recuperaccedilatildeo ou ainda na de uma subsistecircncia sem padecimentos insuportaacuteveis 86 Quanto aos pacientes impossibilitados de manifestar sua vontade ou os civilmente incapazes eacute tarefa planejar como seraacute feito o processo de decisoacuterio Para tanto a referecircncia seria a manifestaccedilatildeo anterior de vontade enquanto o indiviacuteduo manteacutem a capacidade decisoacuteria por meio de lsquodiretrizes antecipadasrsquo e de lsquotestamentos de vidarsquo que podem conter a indicaccedilatildeo de um responsaacutevel por tomar decisotildees (decisatildeo por substituiccedilatildeo) Se ausentes os instrumentos caberia recuperar o estilo de vida e os valores edificados pelo indiviacuteduo no curso de sua existecircncia e moldaacute-los lado a lado com os melhores interesses do enfermo No ponto v por todos BROCK Dan W Surrogate decision making for incompetent adults na ethical framework In MAPPES Thomas A DeGRAZIA David Biomedical Ethics Fifth Edition New York McGraw-Hill 2000 p350-

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exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 31: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

31

exerciacutecio da liberdade satildeo decisivas nesse contexto Isso significa ausecircncia de privaccedilotildees

materiais que abrange natildeo apenas a despreocupaccedilatildeo de ser um peso para os entes

queridos como tambeacutem o acesso a sistemas adequados de sauacutede

Ao se concluir pela prevalecircncia da ideia de dignidade como

autonomia na morte com intervenccedilatildeo deve-se admitir como escolhas possiacuteveis por

parte do paciente ndash ou seus familiares e responsaacuteveis ndash a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido Contudo em um ambiente juriacutedico e meacutedico no qual a ortotanaacutesia seja

tratada de maneira adequada as alternativas da eutanaacutesia e do suiciacutedio assistido seratildeo

excepcionais raras mesmo Eacute bem de ver que o debate juriacutedico e moral sobre essas duas

uacuteltimas categorias consumiria tempo e energia sem garantia de sucesso a curto prazo

Em razatildeo disso no momento presente torna-se mais importante a busca do consenso

em torno da ortotanaacutesia que inclui a limitaccedilatildeo consentida de tratamento o cuidado

paliativo e as intervenccedilotildees de duplo efeito A legitimaccedilatildeo de um modelo intermediaacuterio se

justifica especialmente pelo fato de que no Brasil natildeo se tem feito qualquer

diferenciaccedilatildeo juriacutedica significativa entre a obstinaccedilatildeo terapecircutica de um lado e as

condutas ativas e intencionais de abreviaccedilatildeo da vida de outro

Pesquisas desenvolvidas em paiacuteses que oficialmente implementaram

foacutermulas intermediaacuterias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de

eutanaacutesia e de suiciacutedio assistido foi substancialmente reduzido87 Portanto antes de

trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com

intervenccedilatildeo deve-se investir energia em um consenso possiacutevel em relaccedilatildeo agrave ortotanaacutesia

que envolve escolhas morais menos draacutesticas88 Enfatize-se bem agrave luz das premissas

355 Em junho de 2009 o parlamento alematildeo aprovou lei sobre diretrizes antecipadas e testamentos de vida validando mais de 9 milhotildees de atos dessa natureza entatildeo existentes 87 Cf QUILL Timothy E et al The debate over physician-assisted suicide empirical data and convergent views Annals of Internal Medicine Vol 128 issue 7 april 1998 Em entrevista concedida em 2007 Diego Gracia afirmou que ldquoLa eutanasia seraacute una excepcioacuten cuando los cuidados paliativos sean los adecuadosrdquo Disponiacutevel em httpwwwsiisnetdocumentoshemeroteca703164pdf Acesso em abr2009 88 A proacutepria Igreja Catoacutelica em documento da Sagrada Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute intitulado Declaraccedilatildeo sobre a Eutanaacutesia apoacutes reiterar sua condenaccedilatildeo ao aborto agrave eutanaacutesia e ao suiciacutedio assistido admitiu expressamente a recusa de tratamento nos seguintes termos ldquoEacute sempre liacutecito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar Natildeo se pode portanto impor a ningueacutem a obrigaccedilatildeo de recorrer a uma teacutecnica que embora jaacute em uso ainda natildeo estaacute isenta de perigos ou eacute demasiado onerosa Recusaacute-la natildeo equivale a um suiciacutedio significa antes aceitaccedilatildeo da condiccedilatildeo humana preocupaccedilatildeo de evitar pocircr em acccedilatildeo um dispositivo meacutedico desproporcionado com os resultados que se podem esperar enfim vontade de natildeo impor obrigaccedilotildees demasiado pesadas agrave famiacutelia ou agrave colectividade Na iminecircncia de uma morte inevitaacutevel apesar dos meios usados eacute liacutecito em consciecircncia tomar a decisatildeo de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precaacuterio e penoso da vida sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes Por isso o meacutedico natildeo tem motivos para se angustiar como se natildeo

32

filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

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7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 32: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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filosoacuteficas aqui assentadas em relaccedilatildeo agrave dignidade da pessoa humana a eutanaacutesia e o

suiciacutedio assistido satildeo possibilidades com elas compatiacuteveis Poreacutem em lugar de um debate

puacuteblico que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos optou-se por construir

uma soluccedilatildeo que possa ser aceita por todos A seguir breve detalhamento das

proposiccedilotildees centrais em relaccedilatildeo ao tema que satildeo aqui reputadas como plenamente

compatiacuteveis com a Constituiccedilatildeo e a legislaccedilatildeo em vigor podendo ser desde jaacute

concretizadas Satildeo elas a) a limitaccedilatildeo consentida de tratamento b) o cuidado paliativo

e o controle da dor c) os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos

profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

A limitaccedilatildeo consentida de tratamento (LCT) constitui uma das

poliacuteticas puacuteblicas cruciais para a dignidade da pessoa humana no final da vida Pacientes

terminais em estado vegetativo persistente ou portadores de doenccedilas incuraacuteveis

dolorosas e debilitantes devem ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensatildeo e

intensidade dos procedimentos que lhe seratildeo aplicados Tecircm direito de recusar a

obstinaccedilatildeo terapecircutica Nesse contexto a omissatildeo de atuaccedilatildeo do profissional de sauacutede

em atendimento agrave vontade livre esclarecida e razoaacutevel do paciente ou de seus

responsaacuteveis legais natildeo pode ser considerada crime Natildeo haacute na hipoacutetese a intenccedilatildeo de

provocar o evento morte mas sim de impedir a agonia e o sofrimento inuacutetil A

imposiccedilatildeo de tratamento contra a vontade do paciente e contra o que a equipe meacutedica

considera recomendaacutevel viola a autonomia dos indiviacuteduos e dos profissionais O papel do

Direito nesse particular deve ser o de disciplinar a genuinidade do consentimento e os

cuidados a serem adotados89 Natildeo mais A suspensatildeo da Resoluccedilatildeo CFM 18052006 por

decisatildeo judicial constitui um retrocesso na mateacuteria e impede o exerciacutecio de uma

autonomia individual protegida constitucionalmente

tivesse prestado assistecircncia a uma pessoa em perigordquo V httpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_pohtml Acesso em jun2009

89 A doutrina identifica como imprescindiacuteveis aleacutem dos pressupostos civilistas jaacute definidos para o consentimento os seguintes passos a) verificaccedilatildeo da origem da decisatildeo e da maturidade da manifestaccedilatildeo de vontade por profissionais habilitados apoacutes o adequado processo de informaccedilatildeo b) confirmaccedilatildeo do diagnoacutestico e do prognoacutestico c) verificaccedilatildeo da inocorrecircncia de depressatildeo trataacutevel d) verificaccedilatildeo da adequaccedilatildeo dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos e) verificaccedilatildeo de eventuais conflitos de interesses entre a instituiccedilatildeo hospitalar a equipe de sauacutede e os interesses dos pacientes e de seus responsaacuteveis f) garantia de assistecircncia plena se desejada e verificaccedilatildeo da inexistecircncia de conflitos econocircmicos g) verificaccedilatildeo da inexistecircncia de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou responsaacuteveis legais h) debate dos casos e condutas por Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica quando ainda natildeo houver posicionamento em situaccedilotildees anaacutelogas i) formulaccedilatildeo de TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) especiacutefico Estes passos foram definidos a partir de estudos diversos especialmente os de Timothy E Quill

33

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

34

conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

35

evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 33: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor lastreiam-se

em uma filosofia de atenccedilatildeo e amparo quando o diagnoacutestico e o prognoacutestico indicam que

os esforccedilos de cura seratildeo pouco frutiacuteferos e que haveraacute sofrimento no processo de

morte A ideia central eacute aumentar e manter a qualidade de vida do enfermo da sua

famiacutelia e de seu cuidador direcionando atividades ao controle da dor dos sintomas

(respiratoacuterios digestivos da fadiga da anorexia e da caquexia da depressatildeo do deliacuterio

da anguacutestia) e de outros problemas sejam fiacutesicos psicoloacutegicos espirituais e ateacute mesmo

juriacutedicos90 Na medicina contemporacircnea os cuidados paliativos possuem status de

cientificidade paralelo ao da sauacutede curativa91 Natildeo obstante satildeo intensos os obstaacuteculos

aos cuidados paliativos dentre os quais a) o desconhecimento b) o apego agrave medicina

curativa c) os conflitos de interesses entre diferentes ramos profissionais em sauacutede d)

os conflitos de interesses econocircmicos pelo natildeo emprego de algumas tecnologias

altamente avanccediladas e da natildeo realizaccedilatildeo de alguns procedimentos ciruacutergicos e)

dificuldade de acesso a substacircncias restritas empregadas no controle da dor f)

inseguranccedila dos profissionais da sauacutede mormente meacutedicos quanto agrave aceitaccedilatildeo legal de

praacuteticas de cuidados paliativos92

Os Comitecircs Hospitalares de Bioeacutetica (ou Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica

ndash CBs) satildeo colegiados multidisciplinares instituiacutedos com o objetivo de discutir dilemas e

90 Diz-se juriacutedicos porque haacute casos nos quais algumas anguacutestias que acometem os enfermos podem ser relativas a questotildees testamentaacuterias partilhas de regularizaccedilatildeo de uniotildees de reconhecimento de paternidade de ajuste de pensotildees e de benefiacutecios (eg levantamento de FGTS) dentre outros Cf CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em cuidados paliativos In OLIVEIRA Reinaldo Ayer de (org) Cuidado Paliativo Satildeo Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de Satildeo Paulo 2008 p613-630 91 A OMS assim define os cuidados paliativos ldquoCuidado paliativo eacute uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e de suas famiacutelias que enfrentam problemas associados a uma doenccedila que ameaccedila sua vida atraveacutes da prevenccedilatildeo e do aliacutevio do sofrimento por meio de identificaccedilatildeo precoce avaliaccedilatildeo impecaacutevel e tratamento da dor e de outros problemas fiacutesicos psicossociais e espirituaisrdquo (traduccedilatildeo livre) WORLD HEALTH ORGANIZATION Palliative Care Definition Disponiacutevel em httpwwwwhointcancerpalliativedefinitionen Acesso em mar2009 92 No Brasil os profissionais envolvidos com cuidados paliativos demonstram temor quanto a possiacuteveis sanccedilotildees juriacutedicas em razatildeo da ausecircncia de lei especiacutefica sobre o assunto e da confusatildeo da atividade com o homiciacutedio improacuteprio ou a omissatildeo de socorro e na seara civilista com a negligecircncia V CARVALHO Ricardo Tavares de Legislaccedilatildeo em Op Cit A situaccedilatildeo conflitiva dos profissionais de cuidados paliativos no Brasil ficou bem expressa no Boletim Informativo da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 30032009 Disponiacutevel em httpwwwpaliativoorgbrBoletinsaspBoletimAtivo=22 Acesso em abr2009 Haacute inseguranccedila tambeacutem sobre substacircncias de duplo efeito para controle da dor tanto no acesso aos faacutermacos quanto no seu emprego que pode ser indevidamente interpretado como eutanaacutesia Na mateacuteria haacute a Portaria 19GMMS de 2002 que instituiu o Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos e constituiu um Grupo Teacutecnico Assessor do Programa Nacional de Assistecircncia agrave Dor e Cuidados Paliativos aleacutem da Portaria 2439GMMS de 2005 que reconheceu os cuidados paliativos como parte da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Oncoloacutegica

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

37

7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 34: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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conflitos morais ocorridos na praacutetica cliacutenica Os CBs buscam uma soluccedilatildeo prudencial93

debatendo de forma plural os pontos relevantes de um caso concreto visando sempre

respeitar a autonomia e os direitos fundamentais da equipe de sauacutede dos enfermos e de

seus familiares Suas orientaccedilotildees natildeo satildeo compulsoacuterias Sua composiccedilatildeo assegura a

diversidade admitindo membros das mais diversas aacutereas da sauacutede e tambeacutem juristas

teoacutelogos representantes dos usuaacuterios dos sistemas de sauacutede e da comunidade entre

outros94 Os CBs costumam atuar mediante provocaccedilatildeo seja da equipe de sauacutede ndash

especialmente em caso de dissenso entre seus membros ndash seja dos pacientes e de seus

familiares Os pacientes terminais ou em estado vegetativo persistente constituem uma

populaccedilatildeo especialmente vulneraacutevel e de baixa visibilidade Assim os CBs podem

funcionar como o foacuterum que traz agrave luz as demandas dessa parcela de indiviacuteduos

desobstruindo deacuteficits de representaccedilatildeo em foacuteruns majoritaacuterios de tomada de decisatildeo e

de construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas No Brasil ainda existe muito desconhecimento

acerca dos CBs95

Por fim outra importante poliacutetica refere-se agrave educaccedilatildeo dos

profissionais da sauacutede e a informaccedilatildeo do puacuteblico em geral A bioeacutetica eacute um ramo do

conhecimento recentemente sedimentado surgido essencialmente da necessidade cada

vez mais presente de os profissionais da sauacutede pacientes familiares e a comunidade

em geral tomarem posiccedilatildeo diante de dilemas e de conflitos morais ensejados pela

93 GRACIA Diego Teoria e praacutectica de los comiteacutes de eacutetica In MARTINEZ JL (ed) Comiteacutes de bioeacutetica Madrid Comillas 2033 p194 e s 94 A nomenclatura dos CBs pode variar Fora do Brasil usa-se lsquoComitecircs de Bioeacuteticarsquo tanto para designar os Comitecircs de Eacutetica em Pesquisa (dedicados agrave bioeacutetica na pesquisa envolvendo seres humanos) e os Comitecircs Hospitalares Neste ensaio as atenccedilotildees estatildeo voltadas apenas para os Comitecircs de Bioeacutetica Cliacutenica Segundo a UNESCO um Comitecirc de Bioeacutetica eacute ldquoum comitecirc que lida sistemaacutetica e continuamente com as dimensotildees eacuteticas (a) das ciecircncias da sauacutede (b) das ciecircncias da vida e (c) das poliacuteticas inovadoras na aacuterea da sauacutede O termo lsquocomitecircs de bioeacuteticarsquo simplesmente aponta que o grupo ndash um diretor [chairperson] e os membros ndash se reuniraacute para abordar questotildees que natildeo satildeo simplesmente factuais mas satildeo profundamente normativas Isto eacute eles natildeo se reuacutenem apenas para determinar o que eacute ou natildeo certo [what is or is not the case] em relaccedilatildeo a certo domiacutenio de interesse A atuaccedilatildeo do comitecirc vai aleacutem do niacutevel factual dos dados empiacutericos Ele eacute criado para responder natildeo apenas a pergunta lsquoComo devo decidir e agirrsquo mas agrave questatildeo mais ampla lsquoComo devemos decidir e agirrsquo Isso nos levaraacute da eacutetica ndash um ramo tradicional da filosofia ndash para a poliacutetica lsquoComo um governo deve agirrsquordquo (traduccedilatildeo livre) UNESCO Guia nordm2 ndash Bioethics committees at work procedures and policies Guide n2 2005 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm2 - Educating bioethics committees Guide n3 2007 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009 UNESCO Guia nordm1 - Establishing bioethics committees Guide n1 Disponiacutevel em httpportalunescoorgshsethics Acesso em abr2009BORGES Gustavo Silveira Os comitecircs de bioeacutetica e as vias de acesso agrave justiccedila criminal Dissertaccedilatildeo de Mestrado Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul 2007 miacutemeo p50 e s 95 Cf COcircRREA Ana Paula Reche GARRAFA Volnei Conselho Nacional de Bioeacutetica ndash a iniciativa brasileira Revista Brasileira de Bioeacutetica v1 nordm4 2005 p401 passim Aleacutem de serem relativamente novos - as primeiras iniciativas datam de pouco mais de dez anos ndash ainda eacute muito pequeno o nuacutemero de CBs Entretanto haacute frentes pela implementaccedilatildeo de um Conselho Nacional de Bioeacutetica e pela difusatildeo de CBs em ambiente hospitalar

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

36

assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

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7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

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evoluccedilatildeo tecno-cientiacutefica Para enfrentaacute-los impotildee-se que sejam trabalhadas e

aprimoradas ndash e tambeacutem compreendidas ndash as habilidades de julgamento moral dos

integrantes dos sistemas de sauacutede dos seus usuaacuterios e do puacuteblico Consequentemente a

aproximaccedilatildeo dos profissionais desde seus cursos de graduaccedilatildeo dos marcos teoacutericos da

bioeacutetica da anaacutelise criacutetica dos casos do humanismo e da empatia pelo outro precisa de

estiacutemulo Aleacutem da abertura em ambiente acadecircmico e profissional deve-se valorizar a

informaccedilatildeo ao puacuteblico em geral capaz de ensejar o debate e de promover o exerciacutecio de

moralidade criacutetica nos pontos difiacuteceis da bioeacutetica O conhecimento adequado dos dados

relevantes contribui para a reduccedilatildeo do sensacionalismo e da passionalidade96

IX Conclusatildeo

O presente estudo procurou refletir sobre a morte com intervenccedilatildeo

agrave luz da dignidade da pessoa humana Sua hipoacutetese de trabalho recaiu sobre pessoas

que se encontram em estado terminal ou em estado vegetativo persistente Eacute possiacutevel

enunciar algumas das principais ideias desenvolvidas nas proposiccedilotildees seguintes

1 A morte eacute uma fatalidade natildeo uma escolha Por essa razatildeo eacute difiacutecil sustentar a

existecircncia de um direito de morrer Contudo a medicina e a tecnologia contemporacircneas

satildeo capazes de transformar o processo de morrer em uma jornada mais longa e sofrida

do que o necessaacuterio em uma luta contra a natureza e o ciclo natural da vida Nessa

hora o indiviacuteduo deve poder exercer sua autonomia para que a morte chegue na hora

certa sem sofrimentos inuacuteteis e degradantes Toda pessoa tem direito a uma morte

digna

2 No contexto da morte com intervenccedilatildeo alguns conceitos devem ser bem demarcados

Eutanaacutesia consiste no comportamento ativo e intencional de abreviaccedilatildeo da vida de um

doente terminal adotado pelo profissional de sauacutede com finalidade benevolente Suiciacutedio

96 Ver a respeito RITTMANN F C PIZZI Jovino A Bioeacutetica um estranho conceito para a Comunicaccedilatildeo Social In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP RITTMANN F C PIZZI Jovino Bioeacutetica e os novos desafios de uma comunicaccedilatildeo In VII Congresso Brasileiro de Bioeacutetica - I Congresso Mundial Extraordinaacuterio da Sociedade Internacional de Bioeacutetica e I Congresso da RedbioeacuteticaUnesco 2007 Satildeo PauloSP Como exemplo podem ser citadas as imagens de Eluana mundialmente transmitidas Apesar de ela ter permanecido por 17 anos em estado vegetativo persistente as fotos veiculadas foram as de uma moccedila saudaacutevel e ativa de 21 anos quando na realidade Eluana jaacute estava com 38 anos imobilizada e inconsciente desde os 21

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

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7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

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assistido eacute a retirada da proacutepria vida com auxiacutelio de terceiro Distanaacutesia eacute o retardamento

maacuteximo da morte inclusive com o emprego de meios extraordinaacuterios e desproporcionais

Ortotanaacutesia identifica a morte no tempo certo de acordo com as leis da natureza sem o

emprego de meios extraordinaacuterios ou desproporcionais de prolongamento da vida

Elementos essenciais associados agrave ortotanaacutesia satildeo a limitaccedilatildeo consentida de tratamento

e os cuidados paliativos

3 A dignidade da pessoa humana na sua expressatildeo mais essencial significa que todo

indiviacuteduo eacute um fim em si mesmo Natildeo deve por essa razatildeo servir de instrumento agrave

satisfaccedilatildeo dos interesses de outros indiviacuteduos ou agrave realizaccedilatildeo de metas coletivas A

dignidade eacute fundamento e justificaccedilatildeo dos direitos fundamentais que devem conviver

entre si e harmonizar-se com valores compartilhados pela sociedade Ela pode se

apresentar como uma condiccedilatildeo interna ao indiviacuteduo ndash dignidade como autonomia ndash ou

como produto de uma atuaccedilatildeo externa a ele ndash dignidade como heteronomia

4 A concepccedilatildeo da dignidade como autonomia valoriza o indiviacuteduo sua liberdade e seus

direitos fundamentais A dignidade como heteronomia por sua vez funciona como uma

limitaccedilatildeo agrave liberdade individual pela imposiccedilatildeo de valores sociais e pelo cerceamento de

condutas proacuteprias que possam comprometer a dignidade do indiviacuteduo No sistema

constitucional brasileiro embora haja lugar para expressotildees heterocircnomas da dignidade

ela se manifesta predominantemente sob a forma de autonomia individual

5 No contexto da morte com intervenccedilatildeo deve prevalecer a ideia de dignidade como

autonomia Aleacutem do fundamento constitucional que daacute mais valor agrave liberdade individual

do que agraves metas coletivas ela se apoacuteia tambeacutem em um fundamento filosoacutefico mais

elevado o reconhecimento do indiviacuteduo como um ser moral capaz de fazer escolhas e

assumir responsabilidades por elas

6 A prevalecircncia da noccedilatildeo de dignidade como autonomia admite como escolhas

possiacuteveis em tese por parte do paciente a ortotanaacutesia a eutanaacutesia e o suiciacutedio

assistido Todavia onde a ortotanaacutesia eacute disciplinada adequadamente do ponto de vista

meacutedico e juriacutedico a eutanaacutesia e o suiciacutedio assistido perdem muito de sua expressatildeo

ficando confinados a situaccedilotildees excepcionais e raras

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7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico

Page 37: A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE E AUTONOMIA INDIVIDUAL NO FINAL DA VIDA - Luiz Barroso

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7 Admitida a ortotanaacutesia como uma foacutermula intermediaacuteria capaz de produzir consenso

entre diferentes visotildees do tema da morte com intervenccedilatildeo quatro ideias centrais devem

ser trabalhadas pela comunidade meacutedica juriacutedica e pela sociedade a) a limitaccedilatildeo

consentida de tratamento b) o cuidado paliativo e o controle da dor c) os Comitecircs

Hospitalares de Bioeacutetica e d) a educaccedilatildeo dos profissionais e a informaccedilatildeo do puacuteblico