A morte como semente para a vida

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    1 INTRODUO

    A morte tem sido um tema ao mesmo tempo discutido e negado na sociedade atual.

    Para esta constatao, basta ver as redes sociais, onde tudo vida, tudo mximo, e, quando

    aparece, vem em forma de alguma homenagem morte de algum, ou a alguma quebra de

    relacionamento, mas dificilmente fala-se de si prprio. Certamente no se est falando apenas

    da morte real, do corpo, do velrio e enterro. Est se falando da morte simblica, aquela que

    nos faz penar dia a dia, mas que tambm nos faz, aos poucos, renascer para uma nova vida.

    Assim sendo, esta conotao de que a morte pode trazer a vida, ser trabalhada neste

    artigo. Esta delimitao do tema foi encontrada aps a leitura de livros de psicologia

    junguiana que abordam este tema com esta conotao, mas no com estas palavras.

    A nfase a ser tratada neste trabalho ser sempre a do ponto de vista simblico, onde

    cada indivduo poder significar o tema de uma forma pessoal e subjetiva, como a morte.

    2. DESENVOLVIMENTO

    Onde est a morte? Essa pergunta pode ter uma resposta interessante se pensada de

    uma forma no regular. Ao nascer, o ser humano j se depara com a morte. Ao deixar atotalidade de ser um com o outro para ser nico na vida, enfrenta-se uma morte. A morte

    daquilo que era perfeito, unssono, simbitico. Desde ento passam-se por vrias outras

    pequenas mortes, at a derradeira morte fsica.

    Antes ainda, no a liberao de milhes de espermatozoides que viabilizam a

    chegada de um, eventualmente alguns poucos, ao vulo? Todos os outros cumprem seu papel

    de ponte para estes, 'morrendo', mas sustentando a vida.

    At que a semente no caia do p, e no morra da forma de fruta, pode virar outrarvore? E a lagarta, se no morresse para a vida de lagarta, viraria borboleta? Se a natureza, a

    vida fsica, assim o faz, torna-se justo pensar que tambm nossa vida psquica nos apresenta

    mortes para que sejam sementes para a vida.

    Hillman diz que " difcil compreender que amor e morte possam ser metafricos -

    afinal de contas, algo precisa ser real, diz o ego, o grande literalista, positivista, realista.

    Facilmente perdemos o contato com as formas sutis da morte" (HILLMAN, 2013, p.105).

    As formas sutis da morte exploradas por Hillman so as perdas, pequenas ou grandes

    do dia a dia. Em maior ou menor intensidade, estas perdas atingem a vida de todos, e, se no

    conseguir lidar com isto, poder-se- perder a noo de ganho.

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    Este mesmo ego, que resiste s perdas, faz com que seja difcil o aprendizado sobre

    este tema. Trazida e sedimentada ao longo dos anos, esta forma de pensar deixa a pessoa

    presa em questes onde o ganho aquilo que acontece de bom, e a perda o que acontece de

    ruim.

    No se pode ter dentes permanentes sem perder os de leite. Quando estes no caem

    naturalmente, precisam ser arrancados com um procedimento mdico, ou atrapalham a vinda

    dos permanentes, aqueles que podero mastigar o alimento para adulto, aqueles que sero

    usados por toda a vida para mastigar, iniciar a digesto do alimento, que ir alimentar o corpo.

    Levando isto para o mbito simblico, pode-se ver que a perda pode oferecer muitos

    ganhos, alm da capacidade momentnea de percepo. Goethe (apud HOLLIS, 1998, p.7)

    nos diz queNo nos dado compreender diretamente a verdade, que idntica ao divino. Nss a percebemos no reflexo, no exemplo e no smbolo, em aparies singulares erelacionadas. Ela se apresenta a ns como uma espcie de vida incompreensvel parans, e, no entanto, no conseguimos nos livrar do desejo de compreend-la.

    Ver a perda como algo necessrio pode ser difcil. Porm, se buscada

    simbolicamente, esta verdade oculta, esta vida que brota da morte, pode ser vista.

    Se mesmo a perda do lugar perfeito do Uroboros, do ventre onde tudo se sustenta

    sozinho, um passo to importante para a vida, por que o restante desta deveria ser diferente?Eis o maior ganho que o ser humano pode ter: a prpria vida, que chega atravs de uma

    morte. Somente com este maior dom que se pode ter acesso aos outros.

    Na Mitologia vemos a morte como uma necessidade ao novo. Cronos, o Tit no

    poder, sucumbe para que a nova vida surja, dando lugar a Zeus, o deus que traz uma nova

    ordem prendendo os tits vencidos no monte Trtaro (BRANDO, 2013).

    Na Alquimia no diferente: na primeira das operaes alqumicas, a nigredo, o

    incio do processo, o caos da inconscincia, a matria prima, abarca a operao mortificatio

    para o processo de deixar morrer, sendo pertinente, portanto, experincia da morte

    (EDINGER, 2006, p. 165). Edinger ainda afirma que "todavia, essas imagens sombrias com

    frequncia levam a imagens altamente positivas - crescimento, ressurreio, renascimento"

    (EDINGER, 2006, p. 166).

    Assim, aps esta morte alqumica, acontece a albedo, o branco que purifica e depois

    inflada de sangue, a rubedo, surgindo assim a vida( EDINGER, 2006).

    A tendncia do ser humano em evitar ou no aceitar este processo, o qual ocorre

    independente do nosso esforo contrrio, leva a alma um abismo, onde vai aos poucos se

    distanciando, deixando toda a atuao para o ego, j vazio da prpria alma. No refletir com

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    Quando o sujeito no ressignifica a perda, ela se torna apenas um sofrimento, sem o

    grande gatilho que ele implicitamente traz para a vida. Desta forma a felicidade torna-se um

    fim, e no pontos de sustentao para a jornada.

    Jung props que uma neurose "precisa ser compreendida como o sofrimento de uma

    alma que no encontrou significado" (JUNG, CW 11, p. 497). Assim, ao se deparar com as

    situaes de sofrimento, deve-se olhar para este como um sintoma, ou melhor, como uma

    mensagem da alma indicando para o ego que ali h algo de importante, assim como uma febre

    no deixada de lado, pois pode haver uma infeco.

    Ao falar sobre a alma, Jung d a ideia que esta seja nossa personalidade interna, pois

    assim como a experincia diria nos autoriza a falar de uma personalidade externa,tambm nos autoriza a aceitar a existncia de uma personalidade interna. Este omodo como algum se comporta em relao aos processos psquicos internos, atitude interna, o carter que apresenta ao inconsciente. Denomino persona a atitudeexterna, o carter externo; e a atitude interna denomino anima, alma. (JUNG, 2008,

    p. 391)

    Sobre o motivo do sofrimento, Rubem Alves em seu conto 'Por qu?' diz que "Quem

    faz esta pergunta se encontra diante de um enigma, algo que no entende. No entende e di.

    preciso que o no entendido doa para que a pergunta brote" (ALVES, 2011, p. 171). Aquilo

    que no di, no chama a ateno, e por isto d-se menos importncia.

    Alves (2011) ainda fala neste mesmo conto que o sofrimento poderia serpropositalmente causado por causa de uma desobedincia, mas com seus argumentos refuta

    esta possibilidade. Tambm fala que este poderia ter uma finalidade puramente pedaggica,

    para nos fazer melhores, e novamente descarta esta possibilidade. Ao final do conto explica

    que prefere acreditar em outra coisa. Aqui abre-se uma porta: qual o significado do

    sofrimento?

    Ao no refletir sobre a ferida que est originando este sofrimento, nega-se uma parte

    importante de si mesmo, e cada vez mais forte precisa ser a anestesia imposta si mesmo em

    relao ao Si-Mesmo, centro e totalidade da psique e "fator que ordena todo esse sistema

    [psquico] e o mantm unido e coeso" (STEIN, 2006, p. 152). Somatiza-se fazendo padecer o

    corpo, pois os sinais no pararo de aparecer, e por no estar aberto mensagem, perde-se o

    contato com o significado, ficando apenas com o sofrimento estril, que j no gera a vida.

    A jornada ao profundo, ao que o sofrimento quer falar sobre cada um, leva o ser

    humano que no olha para dentro de si ao pavor, e a resistncia a isto se torna inevitvel, pois

    lembra-o da prpria morte corprea.

    Desde a infncia aprende-se a evitar o sofrimento, seja para si ou para os outros. No

    colocar o dedo na tomada e no fazer birra para no chatear o pai ou a me fazem parte deste

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    aprendizado. Assim formamos nossa sombra pessoal, temida pelo ego, que deseja seus

    sofrimentos esquecidos.

    O ego se forma neste contexto de que o que bom deve permanecer, e o que no ,

    deve ser de alguma forma retirado. Se segurana, felicidade, estabilidade, etc., so

    importantes ao ego e ele o nosso complexo consciente, o sndico que mantm a porta para o

    inconsciente sob 'controle', ento esta evitao ao sofrimento no est naturalmente errada.

    Opus contra maturam, segundo Jung, o trabalho psquico no processo de individuao ao ir

    contra ao que na nossa natureza precisa modificar-se.

    Uma das respostas pergunta feita acima, que o significado do sofrimento

    encontrar o significado! Qual significado? "H tambm as dores da alma que nenhuma

    cirurgia consegue curar" (ALVES, 2011, p. 42). Cada alma tem as suas feridas, e cada uma

    delas tem o seu significado pessoal.

    Em Joo 3:7, Jesus fala que "necessrio vos nascer de novo". Este nascimento

    simblico, pois a morte que d origem a este nascimento tambm o . Assim como aprende-se

    que algumas coisas inicialmente conhecidas como ruins e mais tarde reaprende-se que podem

    no ser to ruins, pode-se remodelar o ego, fazendo-o renascer, de forma que este possa ao

    menos aceitar as condies da alma e ouvi-la, para assim, talvez, acolh-la e entender seus

    significados.Se o indivduo no chega no nvel do significado a alma, para ser ouvida, aumenta o

    estmulo, que pode ser um sofrimento, pois quer ser vista, e novamente, para abafar e no dar

    ouvidos eles, precisam-se de anestsicos mais e mais fortes. Se o indivduo entrar neste

    crculo vicioso, no apenas o sofrimento intil ao processo, como o torna cada vez mais

    pesado.

    Se no revisitar estes momentos de morte e no estiver aberto ao seu significado, ou

    pelo menos sua apresentao, tambm no possvel abrir-se sua redeno.T. S. Eliot (2004) em seu poema Little Gidding diz que ao final de nossa longa

    explorao, chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos, ento, pela

    primeira vez". Talvez seja este o grande aprendizado da alma para o ego: ensin-lo a criar a

    vida a partir das sementes dadas por ela e j conhecidas pelo indivduo, eventualmente

    disfaradas ou ocultas de sua forma final, mas ainda cheias daquilo que exatamente precisa-se

    para ser, cheias de um novo significado no visto anteriormente.

    Pensando em mitologia, pode-se fazer uma descrio anloga: ao olhar nos olhos dos

    deuses em sua forma divina o ser humano seria pulverizado, petrificado, ficaria louco ou

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    simplesmente morreria. Olhar diretamente para a alma, sem seus sintomas, poderia ser o

    estado de felicidade absoluto que tanto se procura, mas, se algum o fizesse, morreria.

    Porm, como os deuses mudam suas formas para que possam estar entre os humanos,

    tambm a alma se transmuta para revelar-se. Quem pensaria que um mendigo poderia ser um

    deus? Ou quem poderia pensar que um sofrimento poderia ser a alma barganhando,

    mendigando nossa ateno? Em Mateus 25:40, Jesus diz que "todas as vezes que fizerem isto

    [caridade] a um destes pequeninos [mendigos], foi a mim que o fizeste".

    No filme Festa no Cu (2014), de direo de Jorge R. Gutierrez, Katrina, la Muerte,

    se transforma em uma senhora idosa que pede algo ao protagonista, Manolo, e em troca lhe

    daria sua bno. Em outro filme, Imortais (2011), de direo de Tarsem Singh, o prprio

    Zeus se transforma em um velho, que instiga Teseu a salvar a humanidade do rei Hiprion.

    Se cada um consegue guardar seus momentos e sentimentos de alegria, de ternura, de

    coisas que so realmente importantes, no seria prudente tambm guardar os que agradam

    menos? Este o acolhimento do sinal da alma, o renascimento: aceitar nossa humanidade, ou

    seja, acolher nossas mortes, para que os deuses no se tornem doenas (JUNG, 1929/2003),

    mas a salvao.

    Ao contrrio, o que geralmente se faz com as partes ruins de si mesmo que so

    colocadas em algum lugar, inacessvel conscincia. Tornam-se sombra, junto com seussignificados. Quando pequenos, todos ensinam a esconder as coisas ruins, os sentimentos de

    raiva, de medo, etc. Na vida adulta, fica-se com o aprendizado de que as coisas ruins no so

    boas, e devem ser evitadas.

    Contudo, ao deslocar as coisas 'ruins' para a sombra, junto vai tambm uma grande

    fatia de energia, e ao chegar aos 20 anos, conserva-se uma fatia muito pequena daquela

    original, pois o restante foi posto em uma sacola, a sombra. (BLY, 2005, p. 30-31).

    Ao acessar esta sombra e integr-la novamente ao que se , esta parte perdida deenergia torna-se vida novamente. Isto ocorre muitas vezes ao longo da vida, mais para uns

    que para outros, pois "nossa sombra continua a ser o grande fardo do autoconhecimento, o

    elemento destrutivo que no quer ser conhecido" (ZWEIG e ABRAMS, 2005, p. 15) e nem

    todos esto dispostos a este 'fardo do autoconhecimento'.

    Ao permitir-se viver suas partes menos aceitas, est tambm permitindo ter de volta

    sua criatividade, sua fora criadora, a fora motriz da vida, ou seja, trazendo aquilo que estava

    'morto', para a vida.

    Hillman (2011, p.264) diz que

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    Se nos aproximamos de ns mesmos para nos curar e colocamos o "eu" no centro,isso com muita frequncia degenera no objetivo de curar o ego ficar mais forte,tornar-se melhor e crescer de acordo com os objetivos do ego, que em geral socpias mecnicas dos objetivos da sociedade. Mas quando nos aproximamos de nsmesmos para curar essas firmes e intratveis fraquezas congnitas de obstinao,

    cegueira, mesquinhez, crueldade, impostura e ostentao, defrontamo-nos com anecessidade de todo um novo modo de ser; nele, o ego precisa servir, ouvir ecooperar com um exrcito de desagradveis figuras da sombra e descobrir acapacidade de amar at mesmo o mais insignificante desses traos.

    O ego, centro da conscincia, prefere ter o poder, o controle. Ou melhor, a fantasia

    do controle, e, assim, aquilo que incontrolvel tido como ruim. Se ruim, diz o ego, deve

    ser jogado 'fora', e assim perde-se a chance de resgatar uma parte perdida, cheia de energia

    criativa, de vida nova, pois "a conscincia egica parece achar fcil identificar-se com o

    heri" (JACOBY, 1971), que, supe o ego, no mesquinho nem tampouco cruel ou

    ostentador.

    Desta forma, o ego, o heri, olha naturalmente para o alto e avante, em uma

    obstinada luta contra o 'mal', para manter a paz e o controle sobre tudo o que no est de

    acordo com suas leis, e, ao faz-lo, acaba por sufocar a necessidade antiherica da alma.

    Mas seriam todas as mortes que trariam vida? Por certo que no. Toda a morte que

    no for trabalhada, olhada, entendida, ou, pelo menos, vivida com respeito este pedido de

    alma, poder ser em vo.

    Este um fator chave ao crescimento: tornar-se consciente de si mesmo. Somente

    quando a experincia levada ao pessoal, acolhida com valor de alma, que ela pode ser uma

    semente para a vida. Contudo seu significado nem sempre entendido no momento em que

    est ocorrendo.

    Havia um amigo que tinha sempre sonhos e vises de um lobisomem. A criatura no

    era assustadora, mas era feia, imprevisvel e primitiva, apesar de nunca ter atacado ningum.

    Ele estava geralmente em uma caverna, preso por uma corrente de segurana duvidosa, com

    um gancho sem fechadura na pata traseira. Ele poderia sair dali com um simples movimento

    da pata. Mas no saa. Em uma sesso de terapia, ele visualizou o lobisomem e fez uma

    reverncia a ele, abaixando a cabea e dando-lhe a mo em sinal de respeito. Imediatamente

    os pelos do lobisomem caram ao cho enquanto ia para a sada da caverna. Parando um

    pouco antes de sair, deu uma olhada para trs e nunca mais apareceu.

    Este lobisomem sem dvida algo comumente visto como mau, como um ser que

    pode destruir. Apesar de no existir na vida 'real', existe dentro da alma, e pode devorar ou

    destruir aquilo que achar necessrio. Mesmo assim, estava ali, esperando o respeito e

    reconhecimento para tornar-se mais humano.

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    Assim tambm podem-se tratar as situaes menos agradveis. Com uma reverncia,

    no daquele que se coloca como menos perante o outro, e sim como algum que reconhece

    seu valor e sua importncia. Mas para chegar a isto necessrio querer olhar por este prisma.

    Perguntar-se 'como isto pode me trazer vida?' pode ser um desafio a ouvir uma resposta

    indesejada, mas com certeza recompensante.

    Hollis diz que "a meta da vida no a felicidade, mas o significado" (HOLLIS, 1999,

    p.9). Sem dvida a felicidade desejvel por todos, mas quando fazem desta uma meta, um

    objetivo de vida, algo sair errado.

    Em tempos de alegria, de prosperidade, so menos comuns as reflexes acerca do

    que pode ser melhor, do que pode trazer mais alma situao. Em tempos de perdas, de

    crises, h mais reflexo, mais busca. Se esta busca for honesta, a soluo vir, no na campina

    ensolarada, mas nos "pantanais da alma, as savanas do sofrimento, que fornecem o contexto

    para a estimulao e a obteno do significado". (HOLLIS, 1999, p. 9)

    Em administrao fala-se em concorrncia. Uma empresa que est no topo, sem

    concorrncia, o oceano azul, se diferencia mas pode cair no erro de no inovar, de no buscar

    seu melhor. J a que est enfrentando forte concorrncia, o oceano vermelho, obrigada a

    inovar, sair do seu estado atual, para sobreviver. Se fizer isto com sucesso, ir para o oceano

    azul, at seu prximo desafio (MAUBORGNE e KIM, 2005). Esta metfora pode ser usadapara a alma, apesar de sua simplicidade.

    Como uma criana que precisa passar pela dor do crescimento para se tornar adulta,

    tambm a alma deve passar pelos aprendizados para crescer e amadurecer, e assim caminhar

    em uma direo cujo objetivo o significado da jornada, e no um 'felizes para sempre'.

    Ao escolher fechar os olhos para o significado, fecha-se a possibilidade deste

    crescimento, e a morte evitada a qualquer custo, sob a linda bandeira do 'eu mereo ser

    feliz!'.Certamente que todos merecem, e naturalmente sempre h a calmaria aps uma

    tempestade. Mas "so os pantanais onde a alma fabricada e forjada, onde encontramos no

    apenas o gravitasda vida, como tambm seu propsito, sua dignidade e seu mais profundo

    significado"(HOLLIS, 1999, p.11).

    Quando algo ruim, isto o pessoalmente. Alguma coisa ou situao pode ser ruim

    para um e no para outro. Aquilo que est fora, que est refletindo o interior e lembrando que

    ruim tambm pessoalmente evitado.

    Ao quebrar esta ponte, ao no permitir que Hermes traga do mundo inferior seus

    fantasmas, perde-se a chance de buscar o significado. Certamente ele achar outra forma de

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    trazer isto tona, emocionalmente ou fisicamente, mas a esta altura quem j est cego no

    voltar a ver facilmente.

    Assim, entra-se em um crculo vicioso, pois os sintomas "so expresses de um

    desejo de cura" (HOLLIS, 1999, p. 13), e se no se quer v-los, no se pode fazer muito com

    seus significados e nem com as feridas que os representam.

    Abster-se destes sintomas leva o indivduo a um lugar comum, na multido, sendo

    levado pela paradoxal rotina, que oprime mas ao mesmo tempo sustenta.

    Mas h uma centelha sempre acesa, uma forma sempre nova de Hermes, trazer do

    mundo inferior nossos sofrimentos. Hermes o deus grego que "frequentemente

    acompanhava as pessoas que iam de um reino para outro [...] que sinalizava os limites e

    tambm o deus que cruzava todos eles" (BOLEN, 2002, p. 246).

    Uma destas formas pode ser os sonhos, que vo autorregulando a psique, mantendo o

    ego em seu lugar de comandante sem deixar de ter os acessos necessrios individuao.

    Certamente uma pessoa aberta isto, consciente deste movimento, pode ter maiores chances

    de sucesso, mas no garantia de nada.

    Como o fogo alqumico que transforma a matria prima negra (nigredo) em material

    branco (albedo) em seu prprio tempo e no deve ser apressado, ou como um alimento que

    cozido e no deve ficar nem cru e nem queimado, tambm nosso sofrimento no deve serapressado. Diferentes formas de diminuir o sofrimento so usadas, mas seria interessante se

    apenas fossem usadas na medida em que no eliminassem o sofrimento, mas apenas ajudasse

    o indivduo a suport-lo.

    Uma das formas de reduzir o sofrimento na busca por algum que possa ajudar.

    Dentre estas pessoas encontram-se, entre outros, os terapeutas. Sobre a terapia, Hollis (1999,

    p. 12) diz que "o objetivo da terapia no , portanto, remover o sofrimento, e sim passar

    atravs dele em direo a uma conscincia ampliada capaz de sustentar a polaridade deopostos dolorosos".

    Estes opostos dolorosos so, como j dito, processados com certa dificuldade pelo

    ego, que deseja o controle. Opostos e dolorosos so palavras evitadas para quem precisa de

    controle.

    No se pode dizer que equilbrio a soluo ltima para estes opostos, apesar de

    poder ser um passo em direo esta busca da conscincia ampliada. Se fosse a soluo,

    bastaria comer com equilbrio, dormir uma quantidade exata de horas, trabalhar sempre da

    mesma forma equilibrada e sem grandes desvios.

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    Mas isto nem de longe resolve a situao, pois por mais equilibrada, por mais no

    caminho do meio que ande uma pessoa, ela ainda ter que se confrontar com seus fantasmas,

    aquilo que ela mesma matou e enterrou, conscientemente ou no, mas que insistem em no

    permanecerem em suas covas.

    Antes disto, o equilbrio total pode ser um batimento cardaco inexistente, uma linha

    reta, sem sstole e distole. Novamente os opostos: s h o equilbrio da vida porque sstole e

    distole existem, s h o equilbrio porque o desequilbrio existe.

    Pode-se considerar a morte o desequilbrio da vida, onde uma s existe porque o

    outro existe. Mais que entender conscientemente este conceito, pode-se aceit-lo como sendo

    possvel, e assim a abertura ao significado pode tornar-se possvel.

    Se como mencionado anteriormente a meta da vida no a felicidade, mas o

    significado, e, para este autor, o significado vem da morte (morte simblica que nos leva

    vida atravs do significado), ento pode-se dizer como Jung que "a meta da vida a morte",

    pois esta trar o significado.

    Muitas religies tem diferentes conceitos acerca da morte, e em diferentes culturas

    tem-se diferentes tratativas, mas sempre h um mistrio. Sempre h um algo a mais, uma

    preparao, ritual ou conceitos de ps vida para todos os gostos.

    Tambm nos filmes, msicas, literatura, arte, ou onde quer que se olhe h este tema,apesar dos esforos humanos de no a acolher. Ou seja, sempre um assunto levado em conta

    mas no efetivamente posto na conta.

    No mistrio cristo a morte de Jesus que abre as portas do cu para que todos os

    que acreditam nele possam entrar no paraso. Antes de sua morte no havia esta possibilidade.

    Simbolicamente pode-se pegar emprestado este conceito e psicologiz-lo: sem a morte do

    heri, daquele que salva, no h salvao, no h paraso. Seu sofrimento e agonia nos

    momentos anteriores morte como as grandes e profundas tristezas e depresses,descomunais regresses de libido que enfrenta-se em momentos especficos da vida.

    Aceitar a cruz e carreg-la, apesar do no entendimento de muitos, pode ser o

    primeiro passo para o significado, e assim, para a redeno. Se as neuroses so sofrimentos de

    uma alma que ainda no encontrou seu significado, aceitar conscientemente a tarefa, mesmo

    sem saber sua exata proporo, pode ser um primeiro passo.

    Mas para isto necessrio no perder de vista o objetivo, que a prpria jornada, e

    transcender o sofrimento, no se apegando a ele como algo profundamente seu e nem o

    afastando como se no o fosse.

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    Complicada e baseada em opostos, assim a jornada. Sem um mapa ou bssola,

    sobram apenas os fragmentos que brotam do inconsciente atravs de sonhos ou pedidos de

    alma atravs de felicidades ou pantanais.

    Assim como pode-se correr o risco de erroneamente entender a felicidade como a

    meta da vida, pode-se tambm entender o sofrimento como esta meta. Trazido ao longo dos

    anos por algumas culturas e religies, a crena de que o sofrimento redentor pode ser

    verdadeira, mas pode tambm ser uma cilada.

    Ao apegar-se profundamente ao sofrimento, este j no aceito pelo significado que

    ele pode trazer ou pelo que ele pode representar, mas pelo sofrimento puramente purgador,

    como uma expiao dos pecados, onde perde-se a dualidade e ele torna-se algo bom para

    reparar algo mau.

    No esta a ideia apresentada por este breve artigo. A dualidade condio

    imperativa para que o significado ressurja, ou seja, para que a morte se torne vida. Assim j

    no h algo bom e outro algo ruim. Algo ruim e bom ao mesmo tempo, unificados e

    equilibrados em um nico ser, como o hermafrodita da alquimia, que "se unifica na coniuntio,

    a fim de aparecer de novo ao fim sob a forma radiante do 'lumen novum'(nova luz)" (JUNG,

    2011, p. 313), e assim mostrando a "natureza paradoxal da meta" (JUNG, 2012, p. 205).

    Estes opostos sim, o equilbrio desejado, no como constncia alva e inerte, mascomo dinmica rubra, como o sangue, que quando para, morre e mata.

    Elton John em um parte de sua msica The Circle of Life, aqui traduzida pelo autor,

    expressa uma parte deste sentimento:

    Alguns de ns caem pela estradaEnquanto outros alcanam as estrelasAlguns de ns navegam acima dos problemasEnquanto outros tem que viver com as cicatrizesH muito para se conseguir aquiMais para se encontrar do que o que j foi encontrado

    Mas o sol se move alto no cu azul safiraE mantm-se, ora grande, ora pequeno, neste ciclo sem fim

    Neste ciclo sem fim h muito mais para ser encontrado, e mesmo que se viva com as

    cicatrizes, mesmo que se caia pela estrada, o sol ainda se move alto no cu, dando a cada dia

    uma nova chance desta busca, e mesmo aps o ltimo pr-do-sol, o processo no

    interrompido, continuando com apsique no inconsciente coletivo.

    Segundo Hollis (1999)Psyche a palavra grega para alma, e uma de suas razes o

    verbo respirar, anlogo ao vento invisvel que penetra o corpo na hora do nascimento e que

    parte na hora da morte. Quando o significado no buscado, a alma falta, e quando ela falta

    no h o vento que a sustenta, ou seja, h morte.

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    *#

    Esta morte leva o indivduo depresso, perda do sentido da vida e a tantas outras

    dificuldades no pela presena da morte, mas pela ausncia do significado. Assim, mesmo

    uma ao corriqueira como trabalho ou uma simples caminhada, se no feita com alma, leva

    morte, lenta e precisa, arrastando ao longo dos anos o indivduo ao abismo onde os opostos

    no se tocam.

    Mas esta mesma morte que contm a vida como semente incubada, esperando a

    terra e a gua que iro fecund-la. neste cenrio que pode-se desenvolver uma nova rvore:

    uma semente, terra, gua e clima. Mas isto depender sempre do indivduo e da fasca de vida

    que sempre habita dentro de si.

    A semente o contedo da prpria morte, que contm em si o potencial para a vida.

    A terra e a gua so os contedos trazidos ao longo do tempo e armazenados em algum lugar

    possvel de ser acessado. Cada semente tem sua terra e sua quantidade de gua determinada.

    O clima a motivao, o enredo, o ambiente em que est sendo conduzida esta morte. Um

    ambiente teraputico, se feito tambm com alma, pode ser um clima perfeito para a lenta

    germinao desta vida escondida.

    Da nascer uma nova vida, uma rvore, que novamente dar frutos, renovar o ar,

    trar sombra e novas sementes. como os filmes ou novelas que acabam com o nascimento

    de uma criana, uma reconciliao com a alma esquecida que dar incio uma nova etapa eum novo aprendizado.

    Talvez seja este um dos desejos da alma, a reconciliao. Como visto anteriormente,

    coloca-se muito de si mesmo na sombra. Talvez nossa alma no deseje desta forma, e um de

    seus mtodos seja o de fazer o ego provar um pouco do que ela padece - a morte. Assim,

    experimentamos o sofrimento, carregado de significado que no recebeu ateno e volta cada

    vez mais expressivo.

    Uma bela definio deste paradoxo trazida pelo autor Aldo Carotenuto, que,falando sobre o suicdio, traz com preciso um resumo sobre o tema. Diz ele que

    A tenso para o suicdio no exprime, pois, somente uma pulso destrutiva [...], mastambm, paradoxalmente, pode ser lida como uma mensagem "cifrada" que nosremete a uma realidade profundamente diversa, at de sinal oposto, isto , ao desejode uma vida nova. Trata-se de um momento muito delicado, porque necessrioesclarecermos com ns mesmos se a vida de fato nos entregou morte ou se, aocontrrio, quer indicar-nos o percurso doloroso e totalizante da descoberta da alma(CAROTENUTO, 2011, p. 213).

    Esta descoberta da alma, falada no texto referido atravs do suicdio, e no texto

    presente atravs da metfora da morte simblica, a mesma alma descrita por Barcelos,quando este diz que

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    *$

    A alma volta sempre s suas mesmas feridas, ela insiste sempre nas mesmas figurase emoes, vemos os mesmos temas nos sonhos por muitos e muitos anos. Dessengulo, a psicopatologia aponta para a circularidade da alma, outra noo muitoantiga. A alma repete-se infinitamente, e na repetio est uma tentativa deaprofundamento (BARCELOS, 1991)

    Ao encontrar este aprofundamento, talvez no paradoxo do sofrimento e da dor ou

    talvez nas emoes mais tranquilizadoras, poder-se- entrar em contato com o que

    verdadeiro dentro, acalentando a alma e dando ao ego a paz, sentida como reflexo da 'misso

    cumprida' do autoconhecimento.

    Esta pode ser uma das sadas do complexo paradoxo pantanoso ao qual Hollis (1999)

    se referia, e que seria um dos momentos de alegria e felicidade, experimentados como

    combustvel para a continuao da jornada, j que esta nunca estar completamente cumprida:

    o sentido para o ego, necessrio sua estruturao, e o significado alma, necessrio sua

    permanncia no processo.

    notvel a facilidade com que estas duas palavras, sentido e significado, no se

    encontram no dia a dia. Ao seguir, por exemplo, os passos predeterminados por outros, pode-

    se perder a alma, e, como Cronos devorava seus filhos, ser devorado pela necessidade, ou pela

    comodidade. De qualquer forma, decide-se o que se pode, com as condies que se tem em

    cada momento.

    Nesta situao, ao longo do tempo, perde-se o sentido e o significado, ficando apenas

    reagindo aos estmulos, num eterno comportamento respondente, condicionado ao ideal de

    mundo engolido e assimilado como alimento atravs do tempo.

    A alma, que deseja a profundidade, em sua circularidade continua a mandar os seus

    estmulos, os quais, nesta conjuntura, no podem mais serem respondidos, pois j no h mais

    o fio de Ariadne que conduz para fora deste labirinto e para a luz (BRANDO, 2013, p. 58),

    mas que, ao contrrio, leva para dentro sem levar ao profundo.

    Ainda assim, quando o olho no brilha, o corao no pulsa e o pulmo no inflacomo poderiam, h a chance de ser resgatado. Destino, sorte, acaso, Deus, deuses, ou

    qualquer outro nome que se d, h o momento em que, ao estar pronta, a semente, cai da

    rvore, e pode passar, solitria e constante, pelo seu processo de germinar.

    Rubem Alves (2008, p. 11-12), em seu conto 'Ostra feliz no faz prolas', retrata de

    forma alegrica e acurada a tragdia que se torna beleza. Ele diz que uma ostra que vivia

    sozinha e incomodada, diferente das outras, vivia com dor por causa de um gro de areia que

    havia entrado em sua carne. Um pescador a pegou em suas redes e encontrou dentro dela uma

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    *%

    prola, que ela havia feito para transformar as asperezas e arestas duras do gro de areia em

    algo suportvel e belo.

    A esta altura o leitor pode estar se perguntando se seria esta a nica forma de

    encontrar o significado e reaver a alma perdida. Por certo que no. Qualquer coisa que

    permita o encontro com a alma ter o mesmo efeito. Uma pessoa que tenha uma paixo por

    msica, por exemplo, pode encontrar ali a alma. A msica ir toc-la de uma forma que esta

    poder ser a porta que se abrir para a alma. Uma pessoa havia dito que no precisava de

    terapia pois j fazia muay thai, a arte marcial tailandesa. Certamente que funcionava!

    O que acontece para esta apologia ao sofrimento ser to importante que nem

    sempre pode-se estar ouvindo ou compondo msica, ou em um ringue, ou em qualquer outro

    lugar de se desejaria. Pior, pode-se no estar nunca neste lugar onde algum pode se tornar

    mais do que os olhos podem ver.

    Ao no ouvir o chamado da alma, que poderia a certa altura, por exemplo, ter

    mostrado a vocao que se deveria ter seguido mas no foi percebida, fecha-se uma parte

    importante de si mesmo e assim entra-se no crculo vicioso que vai envenenando lenta e

    constantemente a vida. Parte do desenvolvimento psquico fica preso naquele momento, e, at

    que no se volte para busc-lo, reclama a ateno perdida.

    De que outra forma poderia algum notar o que perdeu se no sentisse sua perda?Certamente uma das melhores formas de valorizar um dia sem enxaqueca ter um dia com

    ela! Em outras palavras, como poderia algum conhecer pela primeira vez o que j se

    conhece? Ressignificando. Ressignificando o dia sem enxaqueca, mesmo tendo vivido tantos

    desta forma. E o sofrimento o grande poema recitado pela alma, que sempre sabe qual

    soneto cantar para ser notada, ou relida.

    A msica o 'Papa pop' da banda Engenheiros do Hawaii diz que "todo mundo est

    revendo o que nunca foi visto". Indubitavelmente esta uma das formas que a alma tem paramostrar o que precisa: mostrar novamente o que j foi visto. Porm, nem todos esto

    conscientemente o fazendo.

    Assim, os que evitam este encontro consigo mesmo ignorando os chamados da alma

    caem em um crculo vicioso, que inicia com a assepsia quilo que tido como feio, impuro ou

    podre em si mesmo. Como uma ferida no cicatrizada e tampouco tratada, esta cria pus e

    afasta o olhar de quem no a quer acolher, afinal, como no dito popular, o que os olhos no

    vem, o corao no sente. Ser?

    Como o obsessivo-compulsivo que lava constantemente as mos, acaba por pegar da

    mesma forma a doena, no pelo excesso de sujeira, mas pelo excesso de limpeza que

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    *&

    fragilizou a pele, deixando-a exposta. Pensa estar afastando a doena, mas est apenas

    aumentando sua intensidade e mudando a forma como ela chega, pois "o destino do homem

    sempre moldado por aquele ponto em que residem seus temores" (JAFF, 1989 apud STEIN,

    1998)

    Os que se aventuram por este caminho, por esta opus contra naturam, estaro sempre

    buscando, no raro, nos mesmosscriptsas suas 'curas' mas no como o Ssifo, que rola sua

    pedra para cima e espera cair para rol-la novamente, num frenesi sem sentido, mas sim em

    um crculo virtuoso, onde cada volta ao mesmo tema traz consigo um novo aprendizado,

    fazendo conhecer pela primeira vez o lugar j conhecido.

    O discurso muito ouvido sobre a necessidade de paz para a humanidade pode ser

    equiparado com o equilbrio desejado internamente. Contudo, este equilbrio resultado de

    um longo e constante olhar para dentro, para a alma, sem deixar de dar conta do que est fora,

    o dia a dia e suas responsabilidades. Os que escolhem no olhar para os sinais que lhes so

    dados acabam por se demorar neste desenvolvimento.

    Este aprendizado a duras penas muito bem exposto pelo poeta Rilke, que diz

    no acredite que quem procura consol-lo vive sem esforo, em meio s palavrassimples e tranquilas que s vezes lhe fazem bem. A vida dele tem muita labuta emuita tristeza e permanece muito atrs dessas coisas. Se fosse de outra maneira,nunca teria encontrado aquelas palavras (RILKE, 2014, p. 83).

    Como um animal feroz que ataca para defender seus filhotes, tambm a alma ir

    defender seu territrio e seus interesses, e se no houver a compreenso disto, pode-se correr

    o risco de entender mal o recado.

    O mesmo poeta ainda diz que "em toda doena h muitos dias em que o mdico no

    pode fazer nada alm de esperar" (RILKE, 2014, p. 81). Sim, h tempos em que os pantanais

    da alma so momentos de solido e no se pode fazer muito alm de esperar. Contudo h de

    se ter o cuidado para no deixar os msculos psquicos perderem seu tnus.

    Mas como esperar, ou como estar disposto a fazer isto no mundo ps-moderno onde

    tudo rpido e acontece ao mesmo tempo? No trabalho, em casa, na escola, uma das ordens

    rapidez. Ainda quando esta no necessria, acaba-se por correr apenas porque se est

    acostumado a faz-lo.

    Como uma pessoa que procura algo para fazer e se distrair para no sentir a saudade

    de algum que no chega, ou no chegar, tambm aquele que no quer ver os sinais se ocupa

    para no ouvir aquilo que teme, pois se ouvir ter que pensar, e assim ter uma "dor de ideia"

    (ALVES, 2011, p. 111-116).

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    *'

    Buscar a alma novamente entrar na morte, aceitando-a e permitindo que algo morra

    para que algo renasa, permitindo o fluxo necessrio de sstole e distole, o paradoxal

    movimento onde um no sobrevive sem o outro, mas que juntos suportam a vida.

    Lenine em sua msica 'Pacincia' fala deste fluxo onde necessria a calma e,

    contudo, no se pode parar. Segue abaixo transcrita a letra da msica.

    Mesmo quando tudo pedeUm pouco mais de calmaAt quando o corpo pedeUm pouco mais de almaA vida no paraEnquanto o tempo aceleraE pede pressa

    Eu me recuso fao horaVou na valsaA vida to raraEnquanto todo mundo espera a cura do malE a loucura finge que isso tudo normalEu finjo ter pacinciaO mundo vai girando cada vez mais velozA gente espera do mundo e o mundo espera de nsUm pouco mais de pacinciaSer que o tempo que me falta pra perceber?Ser que temos esse tempo pra perder?E quem quer saberA vida to rara, to rara

    Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calmaAt quando o corpo pede um pouco mais de almaEu sei,A vida no paraa vida no para, no (LENINE, 2006)

    Se o indivduo olhar apenas para fora, estar abraando a demanda externa, que pede

    pressa, acelera, e nem sempre permite o olhar para dentro, para o que vital. Assim este

    torna-se uma folha solta num vendaval, sendo jogado para onde o vento sopra, inconsciente

    de seu prprio movimento, onde tentando evitar a morte, a encontra.

    Contudo, no se pode fugir muito disto, pois a vida no para, e nem todos esto

    dispostos a virar monges! Pode-se ver uma bifurcao de caminhos, e, se no estiver

    acostumado com as reflexes internas, perceber que h um caminho do meio pode passar em

    branco.

    O caminho do meio ser criado, inventado, desbravado por cada um, de uma forma

    nica, conforme as necessidades de sua alma, sem deixar o mundo externo de fora.

    Novamente o paradoxo dos opostos mostra a necessidade de unio destes extremos para se

    trilhar um caminho convergente e slido.

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    *(

    E quando a conscincia se cansa deste caminho, muito mais denso que o da folha que

    se deixa levar? Bom, naturalmente todos precisam de um 'bando' durante o pega-pega. Uns

    cansam mais, outros menos, uns correm mais, outros menos, mas hora ou outra, todos

    descansam um pouco. Desta forma, tambm o inconsciente permite 'bandos'! So momentos

    de descanso para a conscincia, onde se pode recarregar as foras.

    H uma outra msica, do padre Zezinho, chamada Maria de minha infncia, onde

    conta uma histria que diz que quando era criana ele rezava todas as noites, esquecendo

    algumas palavras, mas rezando como algum que amava. Depois o tempo passa e ele se

    esquece desta amizade, perdendo o costume da criana inocente. O tempo passa, e "embora

    cansado, sem rezar como eu devo, eu de ti Maria, no me esqueo" (ZEZINHO, 1972)

    Esta a histria da alma com a conscincia. Na infncia, a espontaneidade da criana

    permite uma abertura e um direcionamento da alma. Com o passar do tempo, e do achar-se

    sbio, esquece-se desta guia e passa-se a preferir outras coisas. Com sorte, o amadurecimento,

    os calos e esfoles da jornada, trazem de volta uma parte daquela disposio a ouvir e a

    refletir, que, ainda que no ideal, permite uma aproximao mais consciente que a primeira.

    Assim, a morte contm em si a essncia da vida. Sempre que algo morre, algo

    tambm nasce. Se esta simbologia for acolhida, o significado ir aparecer, pois o mais

    importante estar disposto a ouvir e a perceber que as coisas podem ser vistas por outrongulo.

    3 CONCLUSO

    Apesar da extenso e profundidade do tema, a mensagem deste artigo muito

    simples e clara: de coisas normalmente vistas como ruins, podem sair coisas boas.Contudo a dificuldade do ser humano em aceitar isto parece ser um grande entrave

    no entendimento deste mecanismo. Assim, a alma, que precisa ser ouvida para sobreviver

    eroso dos dias envia seu mais forte estmulo para o ser humano: o sofrimento.

    Estes pantanais da alma onde passa-se boa parte da jornada chamada vida convida o

    indivduo reflexo, que, ocupado demais com os estmulos externos acaba por esquecer, ou

    se entreter com estes, a ponto de deixar sua prpria alma de lado, trocando-a por algo que lhe

    valha mais, em uma errnea porm comum deciso.

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    *)

    Esta deciso no necessariamente consciente, mas carregada de um senso comum,

    arrastada por um destino nem sempre escolhido, mas massivo o suficiente para soterrar os

    clamores da j enfraquecida alma.

    Como a fnix que ressurge das cinzas, a alma faz passar pelo fogo o ego, retirando

    suas impurezas e transformando em ouro a improvvel e desvalorizada matria-prima escura,

    desprezado por todos os que desejam o ouro mas no seu custoso processo.

    Desta forma, ao olhar o horizonte e acreditar cegamente em um futuro onde a

    felicidade a palavra de ordem, sacrifica-se a essncia da busca, a jornada onde os cascalhos

    que entram no sapato podem ser mais significativos que a pedra, grande porm transponvel,

    que aparece eventualmente ao longo do caminhar.

    Carregam-se por quilmetros as leves gramas dos cascalhos que alfinetam os ps,

    criando feridas cada vez maiores, onde a soluo culpar, e esquecer, onde foram adquiridos

    ao invs de parar e retir-los.

    Esta metfora exemplifica como so as dores da alma: prefere-se viver anos com a

    dor do que parar para olh-la de perto, com respeito e reverncia, tendo a chance de dar-lhes

    voz, e, quem sabe, acalm-las. A diferena desta metfora para o que realmente acontece,

    que a consequncia no imediata e nem claramente conectada com a causa.

    Muito mais fcil tratar o corpo, e anestesiar seus sinais, do que tentar compreenderou aceitar a ferida da alma revisitando a prpria histria ou fazendo as pazes consigo mesmo.

    Reconciliar-se com a alma preciso. E para isto necessrio acolher suas imagens,

    seus discretos pedidos ou seus altos brados, e ali encontrar seu significado, para no tornarem-

    se neuroses ou doenas. l que est a verdadeira vida e de l que vir a redeno, que a

    vida plena no paraso pessoal no idealizado, mas possvel, pois como disse So Francisco em

    sua orao: ' morrendo que se vive para a vida eterna'.

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