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Autora: Rosita de Nazaré Sidrim Nassar
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Resumo
Mostrar como a negociação coletiva que se processa entre trabalhadores e as empresas
de exploração de minérios na região dos Carajás modifica a ideia de que a
autocomposição seria a forma ideal para solução dos conflitos trabalhistas, em virtude
do extraordinário aumento de ações que tem por objeto matéria disciplinada em acordos
ou convenções coletivas, nos quais observa-se a renúncia por parte dos sindicatos dos
empregados de direitos consagrados em lei, sem qualquer vantagem em contrapartida.
Em seguida, evidenciar que os direitos em questão são fundamentais e incidem nas
relações entre particulares, principalmente nas marcadas pela desigualdade. A dimensão
objetiva dos direitos fundamentais faz com que ele se irradie para todas as relações
sociais, mesmo àquelas das quais não participa o poder público. Assim, na elaboração
de uma norma coletiva estão os sindicatos representativos dos empregados vinculados
aos direitos fundamentais não podendo postergá-los ou reduzi-los, ao fundamento da
autonomia privada.
2
A NEGOCIAÇÃO COLETIVA E A EFICÁCIA VINCULANTE DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS SOCIAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS.
Rosita de Nazaré Sidrim Nassar1
1 – INTRODUÇÃO
Dentre as diferentes formas de solução de conflitos a autocomposição sempre foi
proclamada como a melhor, a mais civilizada por implicar na criação de regras para
disciplinar o relacionamento entre os próprios entes que as instituem. No âmbito do
Direito do Trabalho se manifesta por meio da negociação coletiva, apontada como ideal
para o futuro das relações laborais. Se cogitava que o conteúdo do Direito do Trabalho
seria totalmente negociado e, por conseqüência, diminuiria o volume dos litígios
submetidos à apreciação do Poder Judiciário.
Não se vê a concretização de semelhante expectativa diante da verdadeira
avalanche de ações que ingressam quotidianamente na Justiça do Trabalho, cujo objeto
é exatamente a discussão de cláusulas de normas coletivas, seja de convenções, seja de
acordos coletivos, sobretudo nas Varas trabalhistas situadas na região minerária dos
Carajás.
Essas cláusulas, sob o fundamento de privilegiar a negociação coletiva,
consagram autênticas renúncias de direito e o pior é que se trata de direitos
fundamentais, de natureza indisponível, de titularidade indiscutível, tranquilamente
consagrados na legislação vigente, inclusive na Constituição, portanto inegociáveis.
Exemplos delas são as que os empregados renunciam às horas extras, a integralidade de
seu pagamento e parte do tempo destinado ao repouso seja intra ou interjornada, seja ao
semanal.
Outras tem por objeto direito que podem até ser alvo de negociação, porém esta
não ocorre, pois apenas os empregados abrem mão do direito que lhe é conferido pela
ordem jurídica, sem receber nenhuma contrapartida – pelo menos esta não figura no
documento que resulta do processo negocial. Significa, em outras palavras, a
inexistência de verdadeira transação.
1 Professora da Universidade Federal do Pará, Mestre pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro;Doutor pela Universidade de São Paulo. Juíza do Tribunal Regional
do Trabalho da 8ª Região. Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho.
3
É sabido que a fragilidade de nossa organização sindical, que ainda não
conheceu a liberdade em sua plenitude e que não conta com uma legislação de fomento
e promoção, constitui uma das principais causas dessa deplorável situação.
O comportamento iníquo de entidades sindicais que, na qualidade de
representantes de um conjunto de pessoas hipossuficientes, abrem mão dos direitos
destes perante às entidades patronais, remete à Antígona, de Sófocles. Mais
precisamente, às leis criadas pelo tirano Creonte que vedou o sepultamento dos
cidadãos que haviam se revoltado contra o governo, com a cominação da pena de morte
ao transgressor e, dentre eles, figurava Polinice, irmão de Antígona, que assim
denunciou a injustiça da situação:
“Sim, pois não foi decisão de Zeus; e a Justiça a deusa que habita com as
divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos;
tampouco acredito que tua proclamação tenha legitimidade para conferir a
um mortal o poder de infringir as leis divinas, nunca escritas, porém
irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas,
sim! e ninguém pode dizer desde quando vigoram! Decretos como o que
proclamaste, eu, que não tenho o poder de homem algum, posso violar sem
merecer a punição dos deuses! Que vou morrer bem o sei; é inevitável; e
morreria mesmo sem teu decreto. E para dizer a verdade, se morrer antes do
meu tempo, será para mim uma vantagem! Quem vive como eu, envolta em
tanto luto e desgraça que perde com a morte? Por isso, a sorte que me
reservas é um mal de bem pouca monta; muito mais grave seria aceitar que o
filho de minha mãe jazesse insepulto. Tudo o mais me é indiferente! Se
julgas que cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me
acusa de loucura! 2 Aqui, Creonte são os sindicatos celebrantes do acordo. E tal como ele, as
partes acordantes desrespeitaram leis comuns reconhecidas pelo consenso universal.3
Essas leis são aquelas que protegem o trabalhador, direitos humanos de
segunda dimensão (ou geração), reconhecidos no momento em que o Estado Social se
propõe a solucionar a desigualdade social e econômica surgida ou enfatizada no período
liberal.
O problema da fragilidade de nossa organização sindical, apesar da
importância com que se reveste, escapa ao objetivo deste estudo, nele pretende-se
enfocar a fundamentalidade dos direitos que são alvo do processo de negociação
coletiva e a impossibilidade de serem transacionados.
A temática envolve a questão, ainda controvertida, da eficácia dos direitos
fundamentais sociais nas relações entre particulares.
2 Antígona. tradução Jean Melville. São Paulo. Martin Claret, 2005, p. 96
3 COMPARATO, Fábio Konder. "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos". Ed.
Saraiva: São Paulo, 2004, p. 40.
4
Após tecer considerações sobre os direitos fundamentais, destacando os de
natureza social, pretende-se demonstrar neste breve estudo que com o surgimento do
Estado Social, com a consequente irradiação dos princípios constitucionais no direito
privado, não se pode mais sustentar a vinculação apenas do Poder Público aos direitos
fundamentais sociais.
2 – DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS
Os direitos sociais, objeto das negociações coletivas, cujos titulares são os
trabalhadores, são direitos fundamentais.
Figuram no capítulo II, do Título II da Constituição brasileira de 1988, que
trata "Dos Direitos e Garantias Fundamentais", estabelecendo no § 1º do art. 5º deste
título, que as normas que o definem tem aplicação imediata.
A expressão "direitos fundamentais" apareceu pela primeira vez na
Constituição alemã, aprovada na Igreja de São Paulo em Francoforte, em 1848, a qual
estabeleceu o rol dos "direitos fundamentais do Povo Alemão". O qualificativo
"fundamentais" indica que o papel do Estado foi de "reconhecimento" e não de
"criação" de direitos. Assim, restava estabelecido o caráter pré-estadual e de
indisponibilidade dos direitos.4
São direitos “inerentes à própria condição humana” e, por isso, “devem ser
reconhecidos a todos e não podem ser havidos como mera concessão dos que exercem o
poder”. 5
São inalienáveis tendo sido proclamados na Declaração de Independência dos
Estados Unidos da América, redigida por Thomas Jefferson, em 04/07/1776, e adotada
pelas 13 Colônias britânicas da costa leste da América do Norte:
“Nós consideramos estas verdades como evidentes em si; que todos
os homens são criados iguais; que todos são dotados pelo seu Criador de
certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca
da felicidade; que para assegurar estas liberdades, governos são instituídos
entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos
governados; que sempre que alguma forma de governo se tornar destrutiva
destes fins, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo,
pondo seus fundamentos em tais princípios e organizando seus poderes em
4 QUEIROZ, Cristina. Direito Constitucional. As instituições do Estado Democrático e
Constitucional.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Coimbra. Editora Coimbra , 2009,
p.364-365
5 COMPARATO, Fábio Konder. Op. Cit., p. 114
5
tal forma que lhe pareça a mais provável de realizar sua segurança e
felicidade”. 6 Foram qualificados como inatos pela Declaração do Bom Povo de Virgínia,
publicada em 16 de junho de 1776:
“1. Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e
independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais ao entrarem no
estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou
despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade
com os meios de adquirir e possuir a propriedade de bens, bem como de
procurar e obter a felicidade e a segurança”.7
Este dispositivo é considerado como o “registro de nascimento dos direitos
humanos na História”, na expressão de Comparato8
O mesmo autor assinala que:
“O reconhecimento dos direitos humanos de caráter econômico e social foi o
principal benefício que a humanidade recolheu do movimento socialista,
iniciado na primeira metade do século XIX. O titular desses direitos, com
efeito, não é o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre
conviveu maravilhosamente. É o conjunto dos grupos sociais esmagados
pela miséria, a doença, a fome e a marginalização. Os socialistas
perceberam, desde logo, que esses flagelos sociais não eram cataclismos da
natureza nem efeitos necessários da organização racional das atividades
econômicas, mas sim verdadeiros dejetos do sistema capitalista de produção,
cuja lógica consiste em atribuir aos bens de capital um valor muito superior
ao das pessoas.
Os direitos humanos de proteção do trabalhador são, portanto,
fundamentalmente anticapitalistas, e, por isso mesmo, só puderam prosperar
a partir do momento histórico em que os donos do capital foram obrigados a
se compor com trabalhadores. Não é de admirar, assim, que a transformação
radical das condições de produção no final do século XX, tornando cada vez
mais dispensável a contribuição da força de trabalho e privilegiando o lucro
especulativo, tenha enfraquecido gravemente o respeito a esses direitos em
quase todo o mundo”.9 Vale lembrar, ainda, que o direito à limitação do tempo de trabalho figura no art.
XXIV da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
“Todo homem tem direito à repouso e lazer, inclusive à limitação razoável
das horas de trabalho e as férias remuneradas periódicas”.
Quanto à denominação direitos humanos ou fundamentais, a doutrina,
especialmente Ingo Wolfgang Sarlet, faz a distinção entre os termos direitos humanos
e fundamentais, tomando por base o critério de positivação ou da concreção positiva
desses direitos.
Assim a denominação direitos fundamentais, que são sempre direitos humanos
6 apud Paul Singer. A cidadania para todos. In: História da cidadania/ Jaime Pinsky e
Carla Bassanezi Pinsky, orgs. 2 ed. São Pulo: Contexto, 2003, p. 201
7 COMPARATO, Fábio Konder. Op. Cit., p. 114
8 Op. Cit., p. 49
9 Op. cit., p. 53-54
6
porque seu titular será sempre o homem (mesmo quando representado por entes
coletivos), designa os direitos do homem, reconhecidos e tornados concretos pelo
direito positivo constitucional de cada Estado, ao passo que a expressão direitos
humanos tem conotação mais ampla e indica os direitos outorgados ao ser humano em
virtude desta condição e que ainda não foram positivados pela constituição de cada
país. A terminologia direitos humanos relaciona-se a posições jurídicas referentes ao
ser humano de maneira geral sem considerar a ordem constitucional a qual esteja
ligado, possuindo conotação universal, isto é de validade para todos os povos e épocas.
Revestem-se, pois, de caráter supranacional ou internacional.
Os direitos humanos não se confundem com os direitos naturais na medida
em que ao se positivarem em normas de direito internacional adquirem dimensão
histórica e relativa, desligando-se, assim, da noção de direito natural.
Devido a interligação existente entre os direitos humanos e os fundamentais, há
na doutrina posicionamento no sentido de negar qualquer diferença entre o conteúdo
dos dois termos: direitos humanos e fundamentais, como é o caso de Sérgio Rezende
de Barros que, inclusive, utiliza a expressão direitos humanos fundamentais. Tanto é
verdadeira a íntima correlação existente entre os direitos humanos e os fundamentais
que a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra se inspirou na Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, bem como nos diversos documentos
internacionais e regionais que a sucederam.
Costuma-se classificar os direitos fundamentais em dimensões ou gerações que
manifestam seu processo evolutivo, ou seja, seu reconhecimento progressivo. O termo
dimensão e não geração é preferido pela doutrina por indicar a expansão e
fortalecimento desses direitos enquanto que geração conduz à falsa ideia de que uma
fase substituiu a outra.
Os direitos fundamentais de primeira dimensão são os civis e políticos.
Constituem o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a
lei, complementados pelas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão,
de imprensa, de manifestação, reunião, associação, etc.) e pelos direitos de participação
política, como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva. O direito de igualdade,
entendido como igualdade formal (perante a lei) e algumas garantias processuais
enquadram-se nesta categoria.
Caracterizam-se como direitos de defesa do indivíduo frente ao Estado.
Correspondem à esfera de não intervenção do Estado e de autonomia individual em face
7
de seu poder. Apresentam caráter negativo uma vez que propõem uma abstenção e não
a uma atuação positiva aos poderes públicos. Segundo Paulo Bonavides, são “direitos
de resistência ou de oposição perante o Estado”. 10
Os direitos fundamentais de segunda dimensão são os econômicos, sociais e
culturais. Atribuem ao Estado um comportamento ativo na realização da justiça social.
A nota distintiva desses direitos é a sua dimensão positiva uma vez que não se trata
mais do abstencionismo estatal, mas de sua intervenção no sentido de proporcionar um
direito de participação no bem estar social. Conferem ao cidadão o direito a prestações
sociais estatais, como assistência social, saúde, educação, trabalho etc...
Apesar de contempladas de forma embrionária antes do segundo pós-guerra,
foram as constituições promulgadas posteriormente que os consagraram de modo
expressivo.
Abrangem além das prestações positivas, as liberdades sociais como a liberdade
de sindicalização, a liberdade de greve, assim como o reconhecimento dos direitos
fundamentais dos trabalhadores, como por exemplo o direito à férias e ao repouso
semanal remunerado, a garantia de um salário mínimo, a limitação da jornada de
trabalho.
Os direitos sociais aqui mencionados são concernentes à pessoa individualmente
considerada. A expressão “social” se justifica em virtude de os direitos de segunda
dimensão serem considerados uma densificação do princípio da justiça social e
representarem respostas às reinvidicações das camadas menos favorecidas,
especialmente do operariado, com o intuito de compensar sua extrema inferioridade em
relação aos proprietários dos meios de produção que os empregavam.
Os direitos fundamentais de terceira dimensão correspondem aos direitos de
solidariedade e fraternidade. Seu traço característico está no desligamento da noção do
homem-indivíduo e se destinarem a tutelar grupos humanos. Dentre eles encontram-se
os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio-
ambiente, à qualidade de vida, direito à utilização e conservação do patrimônio
histórico e cultural e o direito de comunicação. Incluem-se como de terceira dimensão o
direito contra manipulações genéticas, ao direito de morrer com dignidade, ao direito à
mudança de sexo.
10 Curso de Direito Constitucional, p. 517
8
Fala-se em uma quarta dimensão dos direitos fundamentais, porém esta
tendência não foi acolhida pela ordem jurídica internacional nem pelas ordens
constitucionais internas.11
Os direitos fundamentais ocupam posição de grande relevância no Estado
Constitucional. Estão intimamente ligados as noções de Constituição e de Estado de
Direito. Integram a essência do Estado constitucional. Na perspectiva de H.P. Schneider
podem ser considerados conditio sine qua non do Estado Constitucional democrático.12
Passaram a ser ao mesmo tempo a base e o fundamento (basis and foundation of
government), conforme previsto na declaração de direitos da ex-colonia inglesa da
Virgínia, realizando a ideia de que o exercício do poder do Estado condiciona-se aos
limites estabelecidos na sua Constituição.13
Por outro lado, encontram-se estreitamente
relacionados à ideia de democracia e de Estado Social, sendo responsáveis pela
concretização do princípio da dignidade da pessoa humana e dos valores da igualdade,
liberdade e justiça.14
É relevantíssimo, portanto, o papel desempenhadao pelos direitos fundamentais,
dentre eles, os sociais tem ainda a função de garantir o denominado mínimo existencial
que traduzem as condições materiais mínimas para uma existência digna. Heinrich
Scholler, citado por Sarlet, sustenta que a dignidade humana somente estará garantida
“quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos
fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da
personalidade”.15
O mínimo existencial distingue-se do mínimo vital que equivale ao
mínimo de sobrevivência. Este ponto interessa muito à demonstração da
impossibilidade de negociação dos direitos fundamentais do trabalhador.
3 – A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS
No Estado Liberal reinava a ideia de que para preservar a liberdade era
necessário limitar a autoridade estatal, despontando a noção de direitos subjetivos
11 Idem, p. 54-68
12 Apud Ingo Wolfgang Sarlet. Op. Cit., p.70
13 Sarlet, Op. Cit., p.70
14 Sarlet, Op. Cit., p. 74
15 Direitos Fundamentais Sociais, “Mínimo Existencial” e Direito Privado: Breves Notas
sobre Alguns Aspectos da Possível Eficácia dos Direitos Sociais nas Relações entre
Particulares”.In: Direitos Fundamentais – Estudos em homenagem ao Prof. Ricardo Lobo
Torres Rio de Janeiro:Renovar, 2006. p. 567
9
públicos, os quais somente se exerciam perante o Estado e este, por seu turno não
intervinha no âmbito da liberdade individual do cidadão. Os direitos fundamentais
nesta primeira etapa se faziam valer contra o ente estatal que se encontrava numa
posição de superioridade em relação aos titulares dos direitos. Os direitos fundamentais
se projetavam como liberdades públicas por serem exercidas frente ao Estado. Eram
liberdades negativas por imporem deveres de omissão ao Estado. Somente este deveria
respeitar e observar tais direitos. Vivia-se a democracia da polis antiga (“liberdade dos
antigos”), caracterizada pela preponderância dos interesses e direitos individuais sobre
os de natureza coletiva.16
Em suma, no liberalismo não havia interesse na incidência valorativa dos
direitos fundamentais nas relações jurídicas interprivadas, pois a concepção vigorante
era de que somente o Estado poderia desrespeitar os direitos e garantias individuais.
Outrossim, a atuação estatal deveria ser mínima (liberdades negativas por
constituirem espaços de não intervenção estatal) para que as relações sociais se
desenvolvessem harmoniosamente. Estado e sociedade, eram universos completamente
diferentes, submetidos a lógicas próprias independentes. O Direito Público, no qual
vigoravam os direitos fundamentais com o intuito de tutelar o indivíduo, dominava na
esfera do Estado. O Direito Privado, inspirado pelo princípio da autonomia da vontade,
incidia sobre as relações entre os particulares.
Neste primeiro momento os direitos fundamentais assumiam a feição de
direitos de defesa para proteger os indivíduos contra as interferências dos poderes
públicos no âmbito pessoal, de modo que os direitos fundamentais faziam sentido
apenas no relacionamento entre as pessoas e o Estado.
A vontade individual, considerada meio de dignificação da pessoa humana e de
legitimação dos vínculos, ocupava lugar central no modelo liberal. Incumbia ao Estado
garantir proteção à vontade das partes, reconhecendo os efeitos jurídicos por elas
desejados, sem questionamento acerca da situação econômica e social das partes
envolvidas na celebração do contrato.
Como é sabido a liberdade e igualdade entre as partes contratantes, grande
conquista da revolução francesa, demonstrou-se, com o passar dos tempos, meramente
jurídico-formal. Não se concretizava na prática, diante da disparidade econômica e
social, existente entre as partes contratantes. Anatole France evidenciou esta situação de
16 QUEIROZ, Cristina. Op. cit., p. 370
10
forma lapidar quando escreveu: “A majestosa igualdade das leis proíbe tanto ao rico
como ao pobre dormir sob pontes, de mendigar nas ruas ou furtar um pão” 17
Enfim o Estado liberal demonstrou sua incapacidade em atender aos novos
anseios sociais no sentido da concessão de um tratamento efetivamente justo.
O Estado social tenta satisfazer as reivindicações sociais, abandonando a postura
absenteísta, não intervencionista, de mero expectador e passa a assumir um papel mais
ativo no seio das relações sociais e econômicas. No campo das relações contratuais
compreendeu-se que para haver justiça, não é suficiente que se afirme a igualdade das
partes, mas que se conceda condições para que ela se efetive. Isto foi particularmente
acentuado na esfera das relações trabalhistas, nas quais se procurou compensar a
inferioridade econômica do empregado, mediante a concessão de tratamento jurídico
superior.
Há, então, neste modelo de Estado a tentativa de conciliar as liberdades públicas
com os direitos sociais.
Altera-se a concepção de que a agressão aos direitos fundamentais somente
parte do Estado e admite-se que também pode advir da ação dos particulares. Significa,
em outras palavras, a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, a eficácia
dos direitos fundamentais nas relações jurídicas particulares, também denominada
eficácia “privada” ou “horizontal” dos direitos fundamentais.
Salienta Sarlet que no Estado social este não somente aumenta sua atuação,
como a sociedade passa a exercer ativamente o poder, de maneira que a liberdade
individual precisa ser protegida não apenas contra os poderes públicos, mas também
contra os socialmente mais poderosos, isto é, detentores do poder econômico e social,
uma vez que é nesta seara que as liberdades estão vulneráveis.18
No Estado social as constituições estabelecem diretrizes para as instâncias
política, econômica, bem como para as relações privadas. Assumem o papel “dirigente”,
regulador da ordem econômica e social, como ensina Paulo Lobo.19
As partes contratantes ainda que amparadas no princípio da autonomia da
vontade no desenvolvimento das relações jurídicas devem respeitar os direitos
fundamentais referentes ao tipo de relação que desejam celebrar.
17 MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução ao Direito do Trabalho. Rio de Janeiro:
Forense, 1956, p.328
18 SARLET. Op. Cit., p.402
19 Contrato e Mudança Social. Revista dos Tribunais v. 722, 1995, p.40
11
Constata-se, assim, que os direitos fundamentais possuem uma dupla natureza.
Garantem direitos subjetivos e princípios objetivos conformadores da ordem do Estado
de direito, concedendo aos direitos fundamentais uma noção material que abrange sua
dimensão jurídico-objetiva.20
Tais princípios não podem ser ignorados pelas normas de direito privado
(infraconstitucionais), as quais devem ser interpretadas de acordo com os valores
informadores das normas de direitos fundamentais. Deste modo, a perspectiva jurídico-
objetiva dos direitos fundamentais manifesta sua irradiação para todas as relações
sociais, das quais não participa o poder público.21
Na evolução dos direitos fundamentais é possível observar que inicialmente
havia apenas a eficácia vertical e que apenas com a trasmutação do Estado liberal para o
social é que se pode falar de uma eficácia vertical e uma horizontal dos direitos
fundamentais sociais.
A vertical é a que incide sobre o Estado e é aquela que originalmente se
verificou quando os direitos fundamentais eram vistos apenas como direitos de defesa
do indivíduo contra o poder público. A horizontal é a vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais, da qual se passou a cogitar com o Estado Social quando surge a
ideia da irrradiação dos preceitos constitucionais a todos os tipos de relações sociais.
4 - A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS
E A AUTONOMIA DA VONTADE NA NEGOCIAÇÃO COLETIVA.
CONCLUSÃO
Embora a eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações privadas seja
um dos temas mais controvertidos do Direito Constitucional, é induvidoso que esta
controvérsia não alcança as normas instituidoras de direitos fundamentais sociais
relativos aos trabalhadores que devem ser observadas diretamente pelo empregador.
Ao discutir sobre a eficácia dos direitos fundamentais sociais, Sarlet declara que
não há se questionar uma vinculação dos particulares aos direitos fundamentais quanto
aos direitos dos trabalhadores que tem por destinatário os empregadores que são, em
geral, particulares22
.
20 QUEIROZ, Cristina. op. cit., p.366
21 Sarlet, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p.407
22 op. cit., p 424
12
Do mesmo modo Angela Almeida e Sérgio Augustin dizem que a vinculação
dos particulares aos direitos fundamentais, não gera maiores dificuldades no tocante
aos direitos trabalhistas porque concebidos para incidir sobre relações privadas.23
Pergunta-se :E quando o destinatário é o sindicato na qualidade de representante
dos empregados no caso da negociação coletiva? Situação em que celebra uma
convenção ou um acordo coletivo estabelecendo normas para disciplinar o
relacionamento entre empregados e empregadores pertencentes às categorias envolvidas
na negociação. Estaria ele vinculado aos direitos fundamentais sociais? Ou, prevaleceria
a autonomia da vontade?
A resposta é que ficam também vinculados. Não podem renunciar direitos
incluídos no catálogo dos direitos fundamentais em nome da autononomia privada. Há
países em que a Constituição proclama expressamente a vinculação de particulares aos
direitos fundamentais. É, por exemplo, o caso de Portugal que no art. 18º-1 da Carta
Constitucional prescreve: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos,
liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas”.
Os direitos fundamentais em razão do princípio da supremacia da Constituição e
da unidade material da ordem jurídica incidem sobre a totalidade desta, inclusive sobre
a esfera privada. Os direitos fundamentais se incluem no núcleo material da
Constituição, atuando como instrumento de unificação material do ordenamento
jurídico.24
Por outro lado, sua aplicação se impõe pela necessidade de se proteger o
indivíduo contra ofensas aos direitos fundamentais praticadas por outras pessoas ou
entes privados.25
Significa que no seio das relações privadas, como é curial, existem
situações de desigualdades, decorrentes do fato de alguns indivíduos possuirem maior
poder econômico e social que outros, sendo impossível aceitar agressões ou
discriminações à dignidade da pessoa humana, noção umbilicalmente ligada à de
direitos fundamentais.26.
Outro fundamento importante para a vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais são os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade
social, sendo o primeiro um dos fundamentos da república brasileira (art. 1º, III) e o
23 A Eficácia Dos Direitos Fundamentais Sociais Nas Relações Privadas: Parâmetros
Ético-Jurídicos, p. 402
24 STEIMNETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, p. 104
25 Sarlet, p. 403
26 Idem, p. 404
13
segundo um de seus objetivos: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária
(art. 3º, I).
No que diz respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, este somente
se concretizará mediante a garantia de fruição dos direitos fundamentiais.
Sarlet assinala haver relativo consenso sobre a eficácia vinculante dos direitos
fundamentais na esfera privada diante de relações marcadas pela desigualdade, em que
há possibilidade de agressão à dignidade das pessoa humana. Isto porque estas
hipóteses se assemelham às relações que se travam entre os particulares e os poderes
públicos. Nas relações entre os particulares caracterizadas por relativa igualdade
prevalece o princípio da liberdade.27
Esta necessidade de proteção do ser humano contra o desrespeito aos direitos
fundamentais praticados por outros indivíduos ainda mais se acentua no âmbito das
relações trabalhistas em virtude da flagrante desigualdade entre as partes contratantes,
sendo esta a razão pela qual o Direito do Trabalho é norteado por princípios protetores.
No campo das relações laborais, admite-se a negociação, que implica em
concessões recíprocas e não em renúncia, dos direitos que não concernem à proteção da
saúde do empregado, considerados de disponibilidade relativa. Todavia, os direitos
revestidos de indisponibilidade absoluta que visam à preservação da saúde, tais como,
por eemplo, as normas de segurança e medicina do trabalho e as concernentes à duração
do tempo de trabalho, são inegociáveis.
Em virtude da dimensão objetiva dos direitos fundamentais que faz com que ele
se irradie para todas as relações sociais, mesmo daquelas das quais não participa o
poder público, na elaboração de uma norma coletiva estão os sindicatos representativos
dos empregados vinculados aos direitos fundamentais não podendo postergá-los ou
reduzi-los ao fundamento da autonomia privada.
É certo que a Lei Maior, ao consagrar a livre iniciativa como fundamento da
ordem econômica, tutela também a autonomia privada que é o poder reconhecido aos
particulares de estabelecer regras jurídicas para pautar seu comportamento, no caso do
direito do trabalho é a chamada autonomia privada coletiva. O reconhecimento deste
poder não significa que seu exercício se faça sem considerar os direitos fundamentais.
27 Idem, p.406
14
É importante que se leve em conta a limitação da autonomia privada pela
dignidade da pessoa humana que atua como espécie de defesa da pessoa contra seus
próprios atos, pois a ninguém se reconhece a faculdade de violar a própria dignidade.28
Enfim a constitucionalização do direito privado, a eficácia vinculante dos
direitos fundamentais sociais nas relações entre particulares, impede que o sindicato, em
nome dos empregados transacione ou simplesmesnte renuncie direitos revestidos de
indisponibilidade absoluta, sob pena de grave ofensa à ordem constitucional.
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