A Nova Era ea Revolução Cultural - Olavo de Carvalho

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  • 8/2/2019 A Nova Era ea Revoluo Cultural - Olavo de Carvalho

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    3a edio,revista e aumentada.

    ndice

    INTRODUO GERAL TRILOGIA...........................................................................................2

    MANUAL DO USURIO ................................................................................................................2

    PREFCIO SEGUNDA EDIO NOTA PRVIA [ DA 1A EDIO ] ....................................7

    Captulo I: Lana Caprina, ou: A sabedoria do Sr. Capra, ................................................................14

    Captulo II: Sto. Antonio Gramsci e a salvao do Brasil ...............................................................27

    Captulo III: A Nova Era e a Revoluo Cultural............................................................................45

    Apndice I As esquerdas e o crime organizado...........................................................................49

    Apndice II O Brasil do PT .........................................................................................................55

    Observaes finais ...........................................................................................................................59

    The blood-dimmed tide is loosed, and everywhereThe ceremony of innocence is drowned;The best lack all conviction, while the worstAre full of passionate intensity.

    William Butler YEATS,The Second Coming.

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    INTRODUO GERAL TRILOGIA

    MANUAL DO USURIO

    de O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileirase dos volumes que o antecederam:A Nova Era e a Revoluo Cultural: Fritjof Capra & Antonio

    Gramsci e O Jardim das Aflies: De Epicuro Ressurreio de Csar Ensaio sobre oMaterialismo e a Religio Civil.

    Texto lido no Lanamento de O Imbecil Coletivo. Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, 22 deagosto de 1996.

    O Imbecil Coletivo encerra a trilogia iniciada comA Nova Era e a Revoluo Cultural ( 1994 ) e

    prosseguida com O Jardim das Aflies ( 1995 ).Cada um dos trs livros pode ser compreendido sem os outros dois. O que no se pode , por ums deles, captar o fundo do pensamento que orienta a trilogia inteira.

    A funo de O Imbecil Coletivo na coleo bastante explcita e foi declarada no Prefcio:descrever, mediante exemplos, a extenso e a gravidade de um estado de coisas atual e brasileiro do qualA Nova Era dera o alarma e cuja precisa localizao no conjunto da evoluo das idiasno mundo fora diagnosticada em O Jardim das Aflies.

    O sentido da srie , portanto, nitidamente, o de situar a cultura brasileira de hoje no quadro maior

    da histria das idias no Ocidente, num perodo que vai de Epicuro at a "Nova Retrica" deChaim Perelman. Que eu saiba, ningum fez antes um esforo de pensar o Brasil nessa escala.Meus nicos antecessores parecem ter sido Darcy Ribeiro, Mrio Vieira de Mello e GilbertoFreyre, o primeiro com a tetralogia iniciada com O Processo Civilizatrio, o segundo com

    Desenvolvimento e Cultura, o terceiro com sua obra inteira. Separo-me deles, no entanto, pordiferenas essenciais: Ribeiro emprega uma escala muito maior, que comea no Homem deNeanderthal, mas ao mesmo tempo procura abranger esse imenso territrio desde o prisma de umadeterminada cincia emprica, a Antropologia, e fundado numa base filosficadecepcionantemente estreita, que o marxismo nu e cru. Vieira de Mello, com muito maisenvergadura filosfica, no se aventura a remontar alm do perodo da Revoluo Francesa, comalgumas incurses at o Renascimento e a Reforma. Quanto a Gilberto, o ciclo que lhe interessa

    o que se inicia com as grandes navegaes. De modo geral, os estudiosos da identidade brasileiraderam por pressuposto que, tendo entrado na Histria no perodo chamado "moderno", o Brasilno tinha por que tentar enxergar-se num espelho temporal mais amplo. Estou, portanto, sozinhona jogada, e posso alegar em meu favor o temvel mrito da originalidade.

    Temvel porque originalidade singularidade, e a mente humana est mal equipada para perceberas singularidades como tais: ou as expele logo do crculo de ateno, para evitar o incmodo deadaptar-se a uma forma desconhecida, ou as apreende somente pelas analogias parciais e desuperfcie que permitem assimil-las erroneamente a alguma classe de objetos conhecidos. Entre arejeio silenciosa e o engano loquaz, minha trilogia no tem muitas chances de ser bemcompreendida.

    Mas a singularidade, nela, no est s no assunto. Est tambm nos postulados filosficos que afundamentam e na forma literria que escolhi para apresent-la, ou antes, que sem escolha me foiimposta pela natureza do assunto e pelas circunstncias do momento.

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    Quanto forma, o leitor h de reparar que difere nos trs volumes. O primeiro compe-se de doisensaios de tamanho mdio, colocados entre duas introdues, vrios apndices, um punhado denotas de rodap e uma concluso. O todo d primeira vista a idia de textos de origens diversas

    juntados pela coincidncia fortuita de assunto. A um exame mais detalhado, revela a unidade daidia subjacente, encarnada no smbolo que fiz imprimir na capa: os monstros bblicos Behemot eLeviat, na gravura de William Blake, o primeiro imperando pesadamente sobre o mundo, o

    macio poder de sua pana firmemente apoiado sobre as quatro patas, o segundo agitando-se nofundo das guas, derrotado e temvel no seu rancor impotente. No usei a gravura de Blake porboniteza, mas para indicar que atribuo a esses smbolos exatamente o sentido que lhes atribuiuBlake. Detalhe importante, porque essa interpretao no nenhuma alegoria potica, mas, comoassinalou Kathleen Raine emBlake and Tradition, a aplicao rigorosa dos princpios dosimbolismo cristo. Na Bblia, Deus, exibe Behemot a J, dizendo: "Eis Behemot, que crieicontigo" ( J, 40:10 ). Aproveitando a ambigidade do original hebraico, Blake traduz o "contigo"porfrom thee, "de ti", indicando a unidade de essncia entre o homem e o monstro: Behemot aum tempo um poder macrocsmico e uma fora latente na alma humana. Quanto a Leviat, Deuspergunta: "Porventura poders pux-lo com o anzol e atar sua lngua com uma corda?" ( J,40:21 ), tornando evidente que a fora da revolta est na lngua, ao passo que o poder de Behemot,

    como se diz em 40:11, reside no ventre. Maior clareza no poderia haver no contraste de um poderpsquico e de um poder material: Behemot o peso macio da necessidade natural, Leviat ainfranatureza diablica, invisvel sob as guas o mundo psquico que agita com a lngua.

    O sentido que Blake registra nessas figuras no uma "interpretao", na acepo negativa queSusan Sontag d a esta palavra: , como deve ser toda boa leitura de texto sacro, a traduo diretade um simbolismo universal. Para Blake, embora Behemot represente o conjunto das forasobedientes a Deus, e Leviat o esprito de negao e rebelio, ambos so igualmente monstros,foras csmicas desproporcionalmente superiores ao homem, que movem combate uma outra no

    cenrio do mundo, mas tambm dentro da alma humana. No entanto no ao homem, nem aBehemot, que cabe subjugar o Leviat. S o prprio Deus pode faz-lo. A iconografia cristmostra Jesus como o pescador que puxa o Leviat para fora das guas, prendendo sua lngua comum anzol. Quando, porm, o homem se furta ao combate interior, renegando a ajuda do Cristo,ento se desencadeia a luta destrutiva entre a natureza e as foras rebeldes antinaturais, ouinfranaturais. A luta transfere-se da esfera espiritual e interior para o cenrio exterior da Histria. assim que a gravura de Blake, inspirada na narrativa bblica, nos sugere com a fora sinttica deseu simbolismo uma interpretao metafsica quanto origem das guerras, revolues ecatstrofes: elas refletem a demisso do homem ante o chamamento da vida interior. Furtando-seao combate espiritual que o amedronta, mas que poderia vencer com a ajuda de Jesus Cristo, ohomem se entrega a perigos de ordem material no cenrio sangrento da Histria. Ao faz-lo,

    move-se da esfera da Providncia e da Graa para o mbito da fatalidade e do destino, onde oapelo ajuda divina j no pode surtir efeito, pois a j no se enfrentam a verdade e o erro, ocerto e o errado, mas apenas as foras cegas da necessidade implacvel e da rebelio impotente.No plano da Histria mais recente, isto , no ciclo que comea mais ou menos na poca do

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    Iluminismo, essas duas foras assumem claramente o sentido do rgido conservadorismo e dahbris revolucionria. Ou, mais simples ainda, direita e esquerda.

    O drama inteiro a descrito pode-se resumir iconograficamente no esquema em cruz que coloqueidepois em O Jardim das Aflies, mas que j est subentendido emA Nova Era e a RevoluoCultural, pois constitui a estrutura mesma do enfoque analtico pelo qual procuro a apreender a

    significao das duas correntes de idias mencionadas no ttulo: o holismo neocapitalista deFritjof Capra e o empreendimento gramsciano de devastao cultural.

    Nesse primeiro volume, a forma adotada inicialmente no podia ser mais clara e foi imposta pelanatureza mesma do assunto: uma introduo, um captulo para Capra, outro para Gramsci, umretrospecto comparativo e uma concluso inescapvel: as ideologias, quaisquer que fossem,estavam sempre limitadas dimenso horizontal do tempo e do espao, opunham o coletivo aocoletivo, o nmero ao nmero; perdida a vertical que unia a alma individual universalidade doesprito divino, o singular ao Singular, perdia-se junto com ela o sentido de escala, o senso daspropores e das prioridades, de modo que as ideologias tendiam a ocupar totalitariamente ocenrio inteiro da vida espiritual e a negar ao mesmo tempo a totalidade metafsica e a unidade do

    indivduo humano, reinterpretando e achatando tudo no molde de uma cosmovisounidimensional.

    As notas e apndices, que aparentemente colocam alguma desordem na forma do conjunto,servem a a dois propsitos opostos e complementares: de um lado, indicar as bases mais geraisque o argumento conservava implcitas, mostrando ao leitor que a anlise de Capra e Gramsci eraapenas a ponta visvel de uma investigao muito mais ampla que, quela altura, s meus alunosconheciam atravs das aulas e apostilas do Seminrio de Filosofia, mas que, nas condies de umavida anormalmente agitada, eu no estava certo de poder redigir por completo algum dia; de outrolado, indicar que minhas anlises no pairavam do cu das meras teorias, mas que se aplicavam compreenso de fatos polticos que se desenrolavam na cena brasileira na hora mesma em que euia escrevendo o livro da as arestas polmicas que do a trechos desse ensaio uma aparncia de

    jornalismo de combate. Se alguns leitores no viram no livro mais que essa superfcie comooutros no vero em O Imbecil Coletivo seno a crtica de ocasio a certos figures do dia e em O

    Jardim das Aflies um ataque ao establishmentuspiano , no posso dizer que perderam nada,pois o restante e o melhor do que se contm nesses livros no foi feito realmente para essesleitores e bom mesmo que permanea invisvel aos seus olhos.

    Se no primeiro volume permiti que a idia central fosse apenas esboada em fragmentos, um tanto maneira minimalista, para que o leitor, antes pressentindo-a do que percebendo-a, tivesse otrabalho de ir busc-la no fundo de si mesmo em vez de simplesmente peg-la na superfcie da

    pgina, no segundo, O Jardim das Aflies, segui a estratgia inversa: ser o mais explcitopossvel e dar exposio o mximo de unidade, obrigando o leitor a seguir uma argumentaocerrada, sem saltos ou interrupes, ao longo de quatrocentas pginas. Mas, para no dar a ilusode que essa forma completa abrangesse a totalidade do meu pensamento a respeito do tema,

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    espalhei ao longo do texto centenas de notas de rodap que indicavam os pressupostos tericosimplcitos, as possibilidades de aprofundamentos por realizar ( ou j realizados s oralmente emaula ), e mil e uma sementes de desenvolvimentos possveis e interessantes, que eu realizaria setivesse uma vida sem fim, mas que os leitores inteligentes bem podem ir realizando por sua conta.A unidade de argumentao de O Jardim das Aflies, que na minha inteno, confirmada poralguns leitores, d a esse livro no obstante pesadssimo e complexo a legibilidade de um romance

    policial, mostra assim no ser a unidade cerrada de um sistema, mas a unidade de um holon, comodiria Arthur Koestler: algo que, visto de um lado, um todo em si, e, de outro lado, parte de umtodo mais vasto. Esta homologia de parte e todo repete-se, por sua vez, na estrutura interna dolivro, onde o evento aparentemente insignificante que lhe serve de ponto de partida j contm, nasua escala microcsmica, ou microscpica, as linhas gerais da interpretao global da histria doOcidente, que apresentada nos captulos restantes. Aqueles leitores que se queixaram de que umlivro to substancioso comeasse pelo comentrio polmico de um acontecimento menor,mostraram no compreender bem uma das mensagens principais do livro, que a de que, luz deuma metafsica da Histria, no h propriamente acontecimentos menores o grande e o pequenoesto coeridos na unidade orgnica de um Sentido que tudo pervade. Aquilo que nada pesa naordem causal pode muito revelar na ordem da significao.

    E, na verdade, se houvesse acontecimentos perfeitamente insignificantes, que nada merecessemseno o desprezo e o silncio, o terceiro volume da srie, O Imbecil Coletivo, no poderia sequerter sido escrito: pois o que nele apresento um mostrurio comentado de banalidades culturaisque muito significam precisamente na medida em que no valem nada. E, se decidi reuni-las numvolume, dando-lhes a dignidade de serem lembradas quando seus autores j nada mais foremseno sombras no Hades, que o sepulcro do irrelevante, foi precisamente porque entendi que,partindo de cada uma delas, e girando em crculos concntricos cada vez mais amplos, se poderiachegar a vises de escala universal semelhantes quela em que, partindo de uma picuinha culturalocorrida no Museu de Arte de So Paulo em 1990, mostrei aos leitores de O Jardim das Aflies ocombate de Leviat e Behemot no horizonte inteiro da histria Ocidental. E, no podendo refazer

    tamanho esforo hermenutico a cada nova babaquice cultural que lesse nos jornais, decidi reuniralgumas e oferec-las aos leitores como amostras para fins de exerccio. O Imbecil Coletivo ,portanto, o livro de tarefas que acompanha o texto-base trazido em O Jardim das Aflies, ficando

    A Nova Era como abreviatura para principiantes. Quem leia assim O Imbecil Coletivo, buscandoali as lies de casa para reconstituir, desde trs dezenas de exemplos, os lineamentos da viso daHistria e do mtodo interpretativo exposto nos volumes anteriores, e buscando sempre a unidadeorgnica entre a parte e o todo, entre a viso filosfica de uma cultura milenar e as amostras daincultura momentnea de um pas esquecido margem da Histria, esse ter conquistado para si amelhor parte do que lhe dei. Pois assim que se lem os livros dos filsofos, mesmo quando setrate apenas de um filosofinho como este que lhes fala.

    Admito que, se em qualquer dos trs livros tivesse adotado uma forma expositiva mais ao gostoacadmico, eu no precisaria estar agora chamando a ateno para uma unidade de pensamentoque transpareceria primeira vista. Mas essa visibilidade custaria a perda de todas as referncias vida autntica e o aprisionamento do meu discurso numa redoma lingstica que no combina nemcom o meu temperamento nem com a regra que me impus alguns anos atrs, de nunca falarimpessoalmente nem em nome de alguma entidade coletiva, mas sempre diretamente em meuprprio nome apenas, sem qualquer retaguarda mais respeitvel que a simples honorabilidade deum animal racional, bem como de nunca me dirigir a coletividades abstratas, mas sempre eunicamente a indivduos de carne e osso, despidos das identidades provisrias que o cargo, aposio social e a filiao ideolgica superpem quela com que nasceram e com a qual ho de

    comparecer, um dia, ante o Trono do Altssimo. Estou profundamente persuadido de que somentenesse nvel de discurso se pode filosofar autenticamente.

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    Ademais, existe algum mrito pedaggico em no ser bem arrumadinho, em poder dispor os dadosno na ordem mais costumeira em que os desejaria o espectador preguioso, mas em desarrum-los inteligentemente de modo a obrigar o leitor a tomar parte ativa na investigao. E h um prazerimenso em misturar os gneros literrios quando se autor de um livreto que antes os distinguiu ecatalogou com requintes de rigidez formal1.

    Estou imensamente satisfeito de ter podido concluir esta trilogia e de poder estar aqui hoje, nestacelebrao que para mim menos a do lanamento de um livro que a da concluso de uma parte,de uma etapa da tarefa que me cabe nesta vida. Tarefa que , em essncia, a de romper o crculode limitaes e constrangimentos que o discurso ideolgico tem imposto s inteligncias destepas, a de vincular a nossa cultura s correntes milenares e mais altas da vida espiritual no mundo,a fazer em suma com que o Brasil, em vez de se olhar somente no espelho estreito damodernidade, imaginando que quatro sculos so a histria inteira do mundo, consiga se enxergarna escala do drama humano ante o universo e a eternidade. Tarefa que , no seu mais elevado eambicioso intuito, a de remover os obstculos mentais que hoje impedem que a cultura brasileirareceba uma inspirao mais forte do esprito divino e possa florescer como um dom magnfico atoda a humanidade.

    22/08/96

    NOTAS

    1. V. Os Gneros Literrios: Seus Fundamentos Metafsicos ( Rio, Stella Caymmi / IAL,1993 ) Voltar

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    PREFCIO SEGUNDA EDIO

    DECORRIDOS alguns meses da primeira edio, rapidamente esgotada, os acontecimentos nofizeram seno confirmar com igual rapidez os diagnsticos que apresentei neste livro.

    O Brasil vive, de um lado, uma crise profunda da inteligncia, de que reflexo o deslumbramentoapalermado com que recebemos e enaltecemos, como altas produes do esprito, as idias maissonsas e descabidas que nos chegam do estrangeiro. O sr. Capra no foi o ltimo da srie. Depoisdele recebemos a visita e as luzes do sr. Richard Rorty, cuja proposta, filosoficamente indecorosae moralmente repugnante, os pensadores locais no ousaram criticar seno com precaues edesculpas que raiavam o servilismo1.

    Esse fenmeno , em parte, efeito passivo da crise da inteligncia norte-americana, como expliconum outro livro que dever sair logo aps esta segunda edio2.

    Mas, de outro lado, ele tambm o resultado de uma poltica deliberadamente conduzida pelosmovimentos de esquerda, interessados em reduzir toda a vida intelectual brasileira a um corounanimista de reclamaes. O rebaixamento das artes, da filosofia e at de algumas cincias condio de megafones da propaganda revolucionria, que os melhores pensadores marxistassempre rejeitaram como uma tentao aviltante, tornou-se a praxe estabe lecida, que ningumousa contestar, menos pelo temor de um revide explcito do que pela certeza absoluta de que seusouvintes j no podero compreend-lo, to longe esto de imaginar que a cultura possa ter outrose mais elevados fins. Pois o dogma da cultura militante no se adotou como opo consciente,vencedora no confronto com outras concepes possveis, mas se infiltrou sorrateiramente, comoum pressuposto implcito, aproveitando-se da ignorncia das novas geraes, que ao despertarem

    para o mundo da "cultura" j a encontram identificada propaganda ideolgica como se este fosseo seu estado natural e seu destino eterno. O pior que essa propaganda j no transmite sequeridias ou smbolos de uma doutrina revolucionria, mas limita-se a repetir, de maneira rasa, literale direta, as reivindicaes do dia: fora Collor, morte aos corruptos, viva o Betinho, queremossexo. Todos os anes do Congresso, reunidos e somados, no fizeram tanto mal a este pas quantoessa prostituio completa da inteligncia s ambies polticas imediatas e s paixes maiscorriqueiras. O dinheiro perdido pode-se ganhar novamente; o esprito, quando se vai, no voltamais. Os templos abandonados a experincia universal tornam-se para sempre covis defeiticeiros e bandidos.

    Pelo efeito conjugado da decadncia norte-americana e da ao local tendente a amassar e fundir

    todos os crebros deste pas na frma sem rosto do "intelectual coletivo" gramsciano, o fato quea inteligncia nacional est indo ladeira abaixo, ao mesmo tempo que sobe, das ruas e dos campos,o rumor sombrio de uma revoluo em marcha.

    Sim, o Brasil est inequivocamente entrando numa atmosfera de revoluo comunista. Aimbecilizao no seno um sintoma: o temporrio obscurecimento da luz, mencionado pelo IChing, no qual se geram, entre as dobras da noite, os monstros que iro povoar as vises de umdespertar temvel.

    Esses monstros j no so to pequenos para que um olhar atento no consiga enxerg-los eespantar-se com a velocidade com que vo crescendo no ventre da inconscincia nacional.

    O prprio unanimismo da intelectualidade um dos sinais. Mas outro, aparentementecontraditrio, a proliferao das reivindicaes gremiais, do esprito de diviso, na hora em queo pas mais necessita do sacrifcio das partes pelo bem do todo. Em cada classe, em cada regio,

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    em cada sindicato, em cada empresa, em cada famlia, em cada alma, o que se nota umsentimento agudo e exasperado dos prprios direitos e o completo amortecimento do senso dodever. o predomnio desastroso do reivindicar e protestar sobre o criar e oferecer. Quanto menoscumpre sua obrigao, mais cada um se cr no direito de acusar o prximo. O governo reprime osaumentos abusivos de preos enquanto protege as elevadas taxas de juros e alimenta a gigantescatnia petrolfera que pela majorao peridica dos combustveis vai marcando o compasso para a

    subida generalizada do custo de vida. O pai de famlia vocifera contra a corrupo dos polticosenquanto solicita a um contador que "d uns retoques" na sua declarao de rendimentos paratornar mais verossmil a mentira que o isentar do imposto. As empresas censuram o governo noinstante mesmo em que elevam os preos de seus produtos e servios acima de tudo quantopermite a lei e recomenda a decncia. A esquerda clama contra as oligarquias enquanto promovegreves de funcionrios pblicos voltadas diretamente contra os direitos da populao. Osintelectuais e artistas clamam contra as injustias enquanto levam vida de prncipes s expensas doerrio pblico. A imprensa acusa, delata, aponta homens e instituies ao oprbrio, enquantodiscretamente, em congressos de profissionais longe dos olhos da multido, confessa sua prpriafalta de decoro, tica e dignidade. Os sem-terra exibem diante das cmeras sua pobreza comoventeenquanto gastam fortunas em operaes paramilitares que o prprio exrcito no teria verba para

    sustentar. O discurso do unanimismo , como o coro entusistico das torcidas durante a Copa, no seno um Ersatz, a ostentao de uma unidade postia que encobre a luta covarde e sem regras detodos contra todos. O egosmo, a inconscincia, a maldade ganham terreno a cada nova investidada "campanha pela tica".

    Quia bono? A quem aproveita o crime? Quem lucra com a dilacerao da alma nacional numconfronto vil de todos os egoismos e de todas as inconscincias? As pesquisas de opiniorespondem que, de todos os brasileiros, o nico que no tem medo de ser feliz j ganhou quarentapor cento das intenes de voto para a Presidncia.

    Poderia ser uma coincidncia, o efeito acidental de uma conjuntura. Mas, recuando em busca das

    suas razes, vemos que esse efeito foi longamente desejado e meticulosamente preparado pelamais hbil e talentosa gerao de intelectuais ativistas j nascida neste pas. A gerao que,derrotada pela ditadura militar, abandonou os sonhos de chegar ao poder pela luta armada e sededicou, em silncio, a uma reviso de sua estratgia, luz dos ensinamentos de AntonioGramsci. O que Gramsci lhe ensinou foi abdicar do radicalismo ostensivo para ampliar a margemde alianas; foi renunciar pureza dos esquemas ideolgicos aparentes para ganhar eficincia naarte de aliciar e comprometer; foi recuar do combate poltico direto para a zona mais profunda dasabotagem psicolgica. Com Gramsci ela aprendeu que uma revoluo da mente deve preceder arevoluo poltica; que mais importante solapar as bases morais e culturais do adversrio do queganhar votos; que um colaborador inconsciente e sem compromisso, de cujas aes o partido

    jamais possa ser responsabilizado, vale mais que mil militantes inscritos. Com Gramsci elaaprendeu uma estratgia to vasta em sua abrangncia, to sutil em seus meios, to complexa equase contraditria em sua pluralidade simultnea de canais de ao, que praticamenteimpossvel o adversrio mesmo no acabar colaborando com ela de algum modo, tecendo, comoprofetizou Lnin, a corda com que ser enforcado.

    A converso formal ou informal, consciente ou inconsciente da intelectualidade de esquerda estratgia de Antonio Gramsci o fato mais relevante da Histria nacional dos ltimos trinta anos. nela, bem como em outros fatores concordantes e convergentes, que se deve buscar a origemdas mutaes psicolgicas de alcance incalculvel que lanam o Brasil numa situao claramentepr-revolucionria, que at o momento s dois observadores, alm do autor deste livro, souberam

    assinalar, e alis mui discretamente

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    .A expectativa, a esperana, o anseio da revoluo so to velhos, to arraigados na alma daintelligentzia nacional4 que, mesmo diante do fracasso mundial do socialismo, ela no ter foras

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    para resistir tentao de faz-la, agora que a conjuntura local, pela primeira vez na nossaHistria, lhe oferece os meios de chegar ao poder. O Brasil, de fato, tem um descompasso crnicoem relao ao tempo da Histria universal. O reconhecimento mundial da debacle do comunismoecoou neste pas paradoxalmente, segundo a lgica humana, mas coerentemente, segundo alinha constante da Histria nacional como um toque de esperana: chegou a nossa vez deconquistar aquilo que j ningum mais quer.

    Durante algum tempo, nutri a insensata esperana de que o PT expeliria de si o venenogramsciano e se transformaria no grande partido socialista, ou trabalhista, de que o Brasil precisapara compensar, na defesa do interesse dos pequenos, o avano neoliberal aparentementeirreversvel no mundo, e propiciar, pelo sadio jogo de foras, o movimento regular e harmnico darotatividade do poder que a pulsao normal do organismo democrtico. Movido por essa iluso,votei em Lula para presidente. Hoje no votaria nele nem para vereador em So Bernardo. que,pela sucesso de acontecimentos desde a campanha do impeachment, o PT mostrou sua vocao,para mim surpreendente, de partido manipulador e golpista, capaz de conduzir o pas s viasfraudulentas da "revoluo passiva" gramsciana, usando para isso dos meios mais covardes eilcitos a espionagem poltica, a chantagem psicolgica, a prostituio da cultura, o boicote a

    medidas saneadoras, a agitao histrica que apela aos sentimentos mais baixos da populao ,e de adornar esse pacote de sujidades com um discurso moralista que recende a sacristia. Opartido que, para sabotar um candidato, promove no lanamento da nova moeda algo como uma"greve preventiva" sob a espantosa alegao de umapossibilidade terica de danos salariaisfuturos, sabendo que essa greve resultar em aumento do preo dos combustveis e em retomadado ciclo inflacionrio, dando facticiamente confirmao retroativa aos danos anunciados, que,francamente, decidiu imitar o capeta: produz o mal para no ventre dele gerar o dio, e no ventredo dio o discurso de acusao. A greve dos petroleiros no deu certo, mas ela o mais puroexemplo do que o povo denomina "apelao": o recurso extremo usado para fins levianos.

    Se o PT faz isso, porque perdeu sua confiana no futuro majestoso a que o destinava a nossa

    democracia em formao, e, excitado por indcios de um sucesso momentneo que teme norepetir-se nunca mais, resolveu apostar tudo no jogo voraz e suicida do it's now or never. Noquer mais apenas eleger o presidente, governar bem, submeter seu desempenho ao julgamentopopular daqui a cinco anos, fazer Histria no ritmo lento e natural dos moinhos dos deuses: quertomar o poder, fazer a Revoluo, desmantelar os adversrios, expelir da poltica para sempre osque poderiam derrot-lo em eleies futuras. Nos termos da poesia de Murillo Mendes, preferiu,s "lentas sandlias do bem, as velozes hlices do mal". A mitologia gramsciana, diagnosticandopomposamente a "transio para um novo bloco histrico", deu uma legitimao verbal a essaspretenses, e eis que o Brasil, mal tendo ingressado no caminho da democracia, j se apressa aabandon-lo pelo atalho da Revoluo. Aonde ele leva, algo que o mundo sabe, mas que importao conhecimento do mundo s hordas de menores-de-idade que a lisonja esquerdista consagradaem norma constitucional transformou na parcela decisiva do eleitorado, dando-lhes poder antes delhes dar educao? O que importa aproveitar o momento, levar a todo preo o Lulal, carregadonos ombros de garotos raivosos, insolentes e analfabetos, e, antes que o "consenso passivo" dapopulao tenha tempo de avaliar o que se passa, atrelar irreversivelmente o pas ao carro-bombaque se precipita, morro abaixo, no rumo da Revoluo.

    A gerao que atingiu a idade adulta no momento em que a ditadura fechava as portas de acesso vida poltica est agora com cinqenta anos. Ao longo dos ltimos trinta ela esperou, sonhou,planejou, desejou, cobiou entre lgrimas de rancor impotente, e, sobretudo, leu muito AntonioGramsci. Que a Revoluo socialista j tenha mostrado ao mundo sua verdadeira face, que ela j

    tenha provado cabalmente que no vale a pena, isto pouco interessa. A gerao dos guerrilheirosfar o que longamente se preparou para fazer. Pouco importa que, pelo relgio do mundo, tenhapassado a hora. O fim da festa , para o catador de lixo, o sinal de que a sua festa est paracomear.

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    Por essas razes que este livro, aparentemente constitudo de pedaos inconexos, comea amostrar, pela fora dos acontecimentos externos, a unidade que, no plano literrio, o autor noteve o tempo ou o engenho de lhe dar. Sob a aparncia comprometedora de uma salada histricaque mistura Lnin, oI Ching, Max Weber, Freud e o Comando Vermelho, ele aponta, pela ordeme, segundo creio, com lgica, o sintoma e a causa da doena da intelectualidade brasileira: aorigem ao menos parcial da nossa vulnerabilidade falsa mensagem do sr. Capra est nas idias

    de Antonio Gramsci, transformadas em prtica pela gerao de intelectuais esquerdistas que, naIlha Grande, fez ofcio de parteira do Comando Vermelho, e que agora d o tom da vida mentalneste pas. Se, na primeira edio, no consegui dar desse fenmeno uma exposio seguida ecoesa, tendo de adotar, em vez disso, um enfoque prismtico e desnivelado, antes sugerindo emfragmentos do que declarando por extenso o sentido do conjunto, no foi por nenhuma intenoprofunda: foi por autntica incapacidade de fazer de outro modo. Mas no creio, por isto, merecercensura: afinal, aqui foi dito aos trancos e pedaos o que ningum mais disse de maneira alguma.Do primeiro a esboar a unidade de um quadro confuso, no se exige que seja completo; e doprimeiro a anunciar um perigo terrvel, no se exige que fale claro e ordenado segundo o bomestilo. Esbaforido e gaguejante, semilouco e abstruso, ele afinal presta um servio de emergncia.Como diz um provrbio rabe: "No repares em quem sou, mas recebe o que te dou."5

    Rio de Janeiro, junho de 1994.

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    NOTA PRVIA [ DA 1A

    EDIO ]

    A "NOVA ERA" da qual Fritjof Capra se tornou festejado porta-voz e a "Revoluo Cultural" deAntonio Gramsci tm algo em comum: ambas pretendem introduzir no esprito humanomodificaes vastas, profundas e irreversveis. Ambas convocam ruptura com o passado, e

    propem humanidade um novo cu e uma nova terra.

    A primeira vem alcanando imensa repercusso nos crculos cientficos e empresariaisbrasileiros. A segunda, sem fazer tanto barulho, exerce h trs dcadas uma influncia marcante

    no curso da vida poltica e cultural neste pas.

    Nenhuma das duas foi jamais submetida ao mais breve exame crtico. Aceitas por mera simpatia primeira vista, penetram, propagam-se, ganham poder sobre as conscincias, tornam-se forasdecisivas na conduo da vida de milhes de pessoas que jamais ouviram falar delas, mas que

    padecem os efeitos do seu impacto cultural.

    Para os adeptos e propagadores conscientes das duas novas propostas, nada mais reconfortantedo que a passividade atnita com que o pblico letrado brasileiro tudo recebe, tudo admite, tudoabsorve e copia, com aquele talento para a imitao maquinal que compensa a falta deverdadeira inteligncia.

    Mas a Revoluo Cultural de Gramsci e o movimento da "Nova Era" no so simples modas, quese possam adotar e abandonar vontade, com a despreocupao de quem troca de cuecas. So

    propostas de imensa envergadura, que, uma vez aceitas, mesmo implicitamente, mesmoinformalmente, mesmo hipoteticamente, levam a conseqncias de alcance incalculvel. Essasconseqncias no pouparo, decerto, aqueles que tiverem aderido s suas causas por mero

    passatempo, sem uma clara conscincia das responsabilidades em jogo. No pouparo ningumque esteja dentro do seu raio de ao. E todos estamos.

    , portanto, uma leviandade suicida absorver idias como essas sem um exame crtico preliminar. este exame que inauguro no presente livreto, ciente de que, ao faz-lo, me adianto a uma lerdaopinio pblica que nem de longe levantou ainda as questes aqui discutidas, mas nem por isto o

    fao com menor atraso em relao s exigncias de minha prpria conscincia, que me cobraeste trabalho desde que pela primeira vez falei em pblico sobre estes assuntos, em l987. Falador

    prolfico, sou tardo em escrever, motivo pelo qual meu sentimento de urgncia se transforma, svezes, em sentimento de culpa. A urgncia, no caso, era a de esclarecer a ligao entre aquelasduas correntes de pensamento; ligao que, uma vez percebida, revela a inconsistncia de ambas,e de ambas nos liberta. Por no perceb-la, a mente brasileira gira hoje em falso em torno doeixo balizado por esses dois plos. Pelo nmero de adeptos e pelos postos estratgicos que algunsdestes ocupam na sociedade, Capra e Gramsci dominam as duas correntes mentais mais atuantesdeste pas. O fato de que jamais tenham sido confrontados e de que a idia mesma de confront-

    los soe estranha mostra apenas que o pas no tem clara conscincia das alternativas em que sedebate, e que a vida mental nele tende a cindir-se em devoes estanques a deuses que sedesconhecem mutuamente e que mutuamente se hostilizam nas trevas, como espadachinsvendados. Trata-se portanto, aqui, de esclarecer um conflito subconsciente, em que o destino de

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    um pas se decide entre as sombras de um sonho. Brasil sonmbulo: para que sustentas comdinheiro e lisonjas os teus intelectuais, se no para te revelarem a ti mesmo, para te dizerem oque se passa contigo para alm da superfcie do noticirio?

    Os trs captulos que compem este livro reproduzem, tanto quanto possvel, o contedo de aulase conferncias que dei sobre os respectivos temas, seja no Seminrio Permanente de Filosofia e

    Humanidades, que dirijo no Instituto de Artes Liberais, seja fora dele. O captulo sobre FritjofCapra foi redigido e distribudo aos meus alunos em setembro de l993, quando se anunciava aprxima vinda ao Brasil do guru da Nova Era, promovida pela Universidade Holstica deBraslia. Os outros, seus naturais complementos como se ver, foram escritos agora em fevereirode l994, especialmente para este livro. Os apndices ilustram detalhes que importam compreenso do Cap. II.

    Reconheo que, ao menos quanto a Gramsci, o exame que apresento superficial, que haveriaainda milhares de coisas a dizer que aqui no foram ditas.6 Mas algum tem de comear, e, na

    falta de melhores crebros que se dispusessem a digerir o assunto, a coisa sobrou para mim.Quanto a Capra, ele est longe de representar a "Nova Era" na sua totalidade; embora alguns

    vejam nele uma sntese desse movimento, ele constitui apenas um seu sintoma, ainda que agudo esonante. Que ningum me censure, portanto, a incompletude destas anlises: minhas amostraslevam o rtulo de amostras, com altiva modstia. Tambm no tem, este trabalho, a menor

    pretenso de interferir no curso das coisas. Seu nico anseio fornecer, aos que tenham umsincero desejo de compreender os acontecimentos, alguns meios de faz-lo. Ora, os que tm essedesejo so sempre poucos, no meio do vozerio, entusistico ou ameaador, dos que crem jsaber tudo e que no aguardam seno com impacincia que o mundo se curve s suas propostas.

    queles poucos e silenciosos, portanto, dedicado este trabalho. Dentre eles, destaco oromancista Herberto Sales, que leu em verso datilogrfica o primeiro captulo e lhe fezreferncias generosas, que agradeo comovido. Tanto mais comovido porque, se eu tivesse deescolher um guru estilstico, ele no seria outro, na presente fase da nossa literatura, seno

    Herberto Sales. Destaco ainda o valente grupo de alunos e ouvintes que h anos acompanha meutrabalho com um interesse que me reconforta.

    Rio, fevereiro de l994

    Olavo de Carvalho

    NOTAS

    1. V. Jos Arthur Gianotti, "Conversa com Richard Rorty",Jornal do Brasil, 26 de maio de1994. no mnimo estranho que um homem como Gianotti, to valente ao expor idias polticasmesmo quando lhe atraiam a ira dos sumos-sacerdotes da esquerda nacional, se cubra de cautelasao criticar um pensamento to vulnervel como o de Rorty. Explica-se, talvez, pela crnicatimidez uspiana, inibio intelectual que se tornou, em verso fetichizada, a caricatura tupiniquimdo "rigor" ensinado pelos primeiros mestres franceses fundadores da USP. O "rigor"uspiano na verdade moleza, tremor da gelia terceiromundana ante a autoridade dos dolos damoda compensao junguiana pela petulncia ante o legado espiritual do passado. Mesmo emsua verso original europia, herdeira de nobres tradies filosficas, um rigorismo acadmicoinibitrio torna-se muitas vezes o refgio comunitrio onde o intelecto mal dotado vai abrigar-se

    contra os perigos da investigao solitria vale dizer, contra o exerccio mesmo da filosofia. Overdadeiro rigor filosfico, ao contrrio, pura coragem interior, no se curva seno ante aevidncia e no tem nada de temor reverencial adolescente ( ou colonial ) ante os prestgiosacadmicos do dia. Com a ascenso da intelectualidade paulista ao primeiro plano da vida

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    nacional, a inverso uspiana do rigor, que devota ao prestgio o culto que nega verdade, ameaacontaminar o pensamento brasileiro como um todo, selando a morte da inteligncia nesta parte domundo. Nada vai aqui contra Gianotti, homem capaz e correto, que s peca por admirar quem nomerece ou por fingir admirar, talvez, j que o floreio bajulatrio involuntariamente irnico outra marca registrada do estilo uspiano, onde faz as vezes de polidez acadmica. Voltar2. O Imbecil Coletivo. Atualidades Inculturais Brasileiras, Rio, IAL & Stella CaymmiEditora, 1994, que forma, com o presente volume e com O Jardim das Iluses. Epicuro e aRevoluo Gnstica, que tambm vir a pblico em breve, uma trilogia dedicada ao estudo dapatologia cultural brasileira na presente fase da nossa Histria. Voltar3. Um deles foi Fernando Henrique Cardoso (Jornal do Brasil, 11 nov. 93 ), um homem queconhece as esquerdas muito bem e que, por isto mesmo, sentiu o dever de se opor a elas nomomento em que mais poderia ajud-las. O outro foi Oliveiros da Silva Ferreira, que vemexplorando o assunto em vrios artigos publicados em O Estado de S. Paulo. Voltar4. O mito da Revoluo Brasileira um componente ativo dopathos esquerdista desde adcada de 30. "Fadado a um grande destino, o Brasil seria a terceira grande revoluo nestesculo. A primeira, a Unio Sovitica, segunda a Repblica Popular da China, e a terceira, aRepblica Democrtica Popular do Brasil" ( Lus Mir,A Revoluo Impossvel, So Paulo, Best

    Seller, 1994, p. 10 ). Voltar5. Nada retirei nem alterei do original nesta Segunda Edio, apenas corrigi erros de grafia,acrescentei este Prefcio, uns quantos adendos, e adendos de adendos, e muitas notas de rodap. Oleitor austero achar que so excrescncias complicatrias, mas gosto delas justamente por isso,porque eliminam do texto a enganosa linearidade e lhe do aquele aspecto vivente de redenervosa, de trama vegetal, que faz com que, precisamente, um texto seja um texto. Voltar6. Limito-me ao estudo da estratgia e, mais brevemente, de alguns aspectos da gnoseologia,sem tocar por exemplo na sociologia gramsciana, que mereceria no por seu valor cientfico,mas pela fora persuasiva da sua alucinante falsificao da realidade um exame mais atento.Prometo faz-lo no livro O Antroplogo Antropfago. A Misria das Cincias Sociais, a sair noano que vem. Tambm no pude seno mencionar de longe as concepes estticas e literrias de

    Gramsci, to influentes at hoje, mas sobre as quais no pretendo escrever nada nunca, se osdeuses me pouparem esse castigo. [ Nota da 2a. ed. ]

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    I

    LANA CAPRINA,OU: A SABEDORIA DO SR. CAPRA

    NO COMEO de novembro7 estar chegando ao Brasil o sr. Fritjof Capra, chamado pelaUniversidade Holstica de Braslia para falar sobre a Nova Era que ele anuncia no seu livro OPonto de Mutao.

    A voz do sr. Capra no clamar no deserto. A Universidade Holstica j reuniu uma congregaode intelectuais locais para dizer-lhe amm. Entre os aclitos contam-se Frei Betto e o ex-reitor daUnB, Christovam Buarque. O sr. Capra, j se v, no um escritor como os outros: um lder,uma autoridade espiritual e, admitamos logo, um profeta.

    O contedo de suas profecias bastante conhecido: O Ponto de Mutao anda at nas mos dascrianas, que o debatem nas escolas. Mas, segundo a Universidade Holstica, isso no basta. O sr.Capra tem de ser ouvido por todos os amigos da espcie humana. Pois, embora homnimo de umcineasta que se celebrizou pelas fitas de happy end, ele no garante nenhum final feliz para onosso sculo a no ser que a humanidade siga os seus conselhos. Passemos portanto a examin-los, com a urgncia requerida pelo caso.

    Segundo o sr. Capra, a histria do mundo chegou a um turning point, e deve mudar o seu curso.As trs principais mudanas em pauta so as seguintes: primeira, a humanidade deixar de

    consumir combustveis fsseis ( petrleo ); segunda, o patriarcado vai acabar; terceira, oparadigma cientfico vigente ser substitudo por um outro, de base holstica. Estas trs coisas jesto acontecendo, mas, assegura o sr. Capra, urge apressar a sua consumao, que marcar oadvento da Nova Era.

    Ao falar do primeiro item, o sr. Capra muito breve, como convm aos profetas. Em vez daslongas anlises que concede aos dois outros temas, ele emite apenas esta profecia: "Esta dcadaser marcada pela transio da era do combustvel fssil para uma nova era solar, acionada porenergia renovvel oriunda do Sol." Tendo o livro sido publicado em 1981, a dcada a que o sr.Capra se refere terminou em 1990. Bem, nem todos os profetas do sorte. Mas, se a mencionadaprofecia vier a cumprir-se com quatro, cinco ou nove dcadas de atraso, o sr. Capra sempre poder

    alegar que S. Joo Evangelista tambm no foi muito preciso quanto data do Apocalipse.

    Como muitos outros profetas, o sr. Capra pode queixar-se de ser um incompreendido. Eu, porexemplo, no compreendo como que o mundo poderia ter saltado direto da era dos combustveisfsseis para a da energia solar, sem passar pela era atmica, na qual j estvamos na data deemisso da profecia e na qual continuamos a estar aps a data do seu vencimento. Mas talvez aintuio proftica do sr. Capra opere velocidade da luz, saltando etapas. Eis a alis um bommotivo para saltarmos logo para o item seguinte, j que o primeiro captulo da mutao no teveum happy end.

    O patriarcado consiste, segundo o sr. Capra, num complexo de trs elementos: primeiro, o

    domnio do homem sobre a mulher; segundo, o domnio da espcie humana sobre a natureza;terceiro, o predomnio da razo ( faculdade masculina ) sobre a intuio ( feminina ). So trslados de um fenmeno nico, que o sr. Capra resume como a supremacia doyang sobre oyin.

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    , como se v, um tipo especial de patriarcado, bem diferente daquele que podemos encontrar noslivros de histria e sociologia. Pois estes nos dizem que o aumento do poderio tcnico sobre anatureza abalou o regime de propriedade rural no qual se esteava o patriarcado; e que o adventodo Imprio da Razo, trazido no bojo da Revoluo Francesa, promoveu logo em seguida aigualdade de direitos para homens e mulheres, desferindo o golpe de misericrdia na autoridadedopater familias. Em suma, que das trs coisas que o sr. Capra rene sob o rtulo comum de

    "patriarcado", duas so precisamente o contrrio. Mas os profetas no ligam para as cinciasprofanas.Non enim cogitationes meae cogitationes vestrae, j nos tinha advertido a Bblia. O sr.Capra, com efeito, no pensa como ns.

    Mas h algo nele que pelo menos alguns de ns podem compreender perfeitamente bem. Sendo algica, no seu entender, uma expresso do abominvel patriarcado cujo fim ele deseja, ele nopoderia mesmo obedec-la sem tornar-se, ipso facto, ilgico. ento por uma simples questo delgica que ele opta por ser ilgico. Qualquer beb de colo pode compreender isto. O difcil compreend-lo quando j no se um beb de colo. Para ser admitido nos cus da Nova Era, oleitor deve portanto tornar-se como os pequeninos.

    Eis aqui um caso tpico. Para livrar-se do odioso patriarcado, diz o nosso profeta, a humanidadedeveria inspirar-se no exemplo da civilizao chinesa, cuja concepo da natureza humana,expressa sobretudo noI Ching, "est em flagrante contraste com a da nossa cultura patriarcal".Buscando agora munio antipatriarcal nas pginas doI Ching, o leitor encontrar, no hexagrama37, as seguintes recomendaes: "A esposa deve ser sempre guiada pela vontade do senhor dacasa, isto , pelo pai, pelo marido ou pelo filho adulto. O lugar dela dentro de casa." A vida queBetty Friedan pediu a Deus. Alis, segundo informa Marcel Granet no clssicoLa CivilisationChinoise8, o feudalismo chins, perodo no qual se redigiu o grosso dos comentrios doI Ching,"repousa sobre o reconhecimento do predomnio masculino". A China a que o sr. Capra se refereno deve portanto ser a mesma que os gegrafos profanos conhecem por esse nome.

    O que o sr. Capra no pode mesmo ser acusado de facciosismo sinfilo. Pois, se ele rejeita algica ocidental, nem por isto se curva s exigncias da oriental. Segundo ele, oyang representa arazo analtica, que divide, e oyin a intuio, que unifica. Os chineses, nada entendendo destassutilezas, representaram o divisivoyang por um trao contnuo, e o unificante yin por um traodividido ao meio. Na Nova Era, as edies doI Ching viro devidamente retificadas.

    Enquanto essas edies no aparecem, o sr. Capra j vai tratando, por conta, de introduzir nopensamento chins umas modificaes mais srias. Ele diz, por exemplo, que na civilizaochinesa o homem no procura dominar a natureza, mas integrar-se nela. Novamente, a sabedoriachinesa do sr. Capra pegou a China desprevenida: um chins nem mesmo entenderia essa frase,pela razo de que na sua lngua no h uma palavra que signifique "natureza" no sentido ocidental,isto , ao mesmo tempo o mundo visvel e a ordem invisvel que o governa ( ambiguidade que aslnguas modernas herdaram do gregophysis ). O chins nisto, com o perdo da palavra, mais"analtico": tem um termo para designar o mundo visvel ( khien ), e um outro ( khouen ) para aordem invisvel. Para compensar, o mundo visvel ou khien abrange, "sinteticamente", tanto anatureza terrestre quanto a sociedade humana. O sr. Capra no diz a qual das duas "naturezas" ohomem deveria integrar-se, mas claro que ningum poderia integrar-se em ambassimultaneamente e de um mesmo modo. Os antigos chineses j haviam advertido isto, e

    resolveram a contradio propondo uma dualidade de atitudes para fazer face a esse duplo aspectoda natureza: o sbio, diz oI Ching, deve buscar ativamente integrar-se na ordem invisvel oukhouen ( chamada por isto "perfeio ativa" ) e contornar suavemente as exigncias da naturezaterrestre ( khien ou "perfeio passiva" ). Dito de outro modo: integrar-se na ordem celeste,

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    integrando em si e superando dialeticamente a ordem terrestre ( e portanto absorvendo-a, por suavez, na ordem celeste ). O "celeste" e o "terrestre", nesse sentido, identificam-se respectivamenteao dharma e ao kharma da tradio hindu. O homem no se "integra" no kharma, porm "absorve-o" na medida em que se integra no dharma: livra-se do peso da terra na medida em que atende aoapelo celeste. Exatamente no mesmo sentido diz o cristianismo que o homem vence a necessidadenatural na medida em que segue as vias da Providncia. No bem o que diz o sr. Capra.

    O ideograma Wang ( "o Imperador" ) esclarece isso melhor. Ele constitui, por si, um compndiode cosmologia chinesa. Compe-se de trs traos horizontais o Cu em cima, a Terra em baixo,o Homem no meio, formando a trade Tien-Ti-Jen, "Cu-Terra-Homem" cortados por um traovertical, o Tao, que se traduz um tanto convencionalmente por Lei ou Harmonia. A Harmoniaconsiste em que cada coisa fique no lugar que lhe cabe, de modo que, por trs de todas asmudanas por que passa o mundo, a ordem suprema no seja violada ( embora neste mundo deaparncias ela o seja necessariamente, pois, como dizia o Evangelho, " necessrio que hajaescndalo"; mas no fim todas as desordens parciais so reintegradas na ordem total ).

    Na Trade chinesa, o homem chamado "filho do Cu e da Terra". Sendo o Cu o pai, j se v,

    pelo hexagrama 37, quem que manda. O homem governa portanto o mundo visvel, mas no ofaz por arbtrio prprio, e sim em nome de uma ordem transcendente. Tien no significa o "cu"no sentido material, mas a "perfeio celeste" ou mais propriamente a "vontade do Cu"; emingls, que o sr. Capra compreende melhor, no o sky, mas o heaven, morada do Esprito Santo. Osbio ou imperador apreende no invisvel a vontade do Cu e a pe em execuo na Terra. Na salacentral do seu palcio, ele cumpre diariamente ritos de um complexo simbolismo geomtrico enumerolgico ( similar ao do pitagorismo ), mediante os quais os arqutipos celestes "descem"( exatamente como na missa "desce" o Esprito Santo ) para trazer Terra a ordem e a harmonia.Se o imperador pra de fazer os ritos, a Terra sociedade e natureza ao mesmo tempo entraem convulso, espalham-se por toda parte a ignorncia, o medo, a violncia, a fome, a peste.

    No era s a interrupo dos ritos que podia trazer a catstrofe. "O imperador escreve MaxWeber emA Religio da China tinha de se conduzir segundo os imperativos ticos dasescrituras clssicas. O monarca chins permanecia basicamente um pontfice. Ele tinha de provarque era mesmo 'filho do Cu', o regente aprovado pelos Cus, para que o povo, sob o seu governo,vivesse bem. Se os rios arrebentavam os diques ou a chuva no caa apesar de todos os ritos, istoera prova acreditava-se expressamente de que o imperador no tinha as qualidadescarismticas requeridas pelo Cu."

    O homem governa a Terra, mas em nome do Cu. Governa comopontifex, "construtor de pontes",que liga a Terra ao Cu atravs do Reto Caminho, o Tao. Caso se afaste do Reto Caminho, eleperde de vista a Vontade do Cu e j no pode governar seno em nome prprio, como tirano eusurpador. A, num choque de retorno, ele perde seu poder e cai sob o domnio das potnciasterrestres que antes comandava. Como a Terra designa ao mesmo tempo a natureza fsica e asociedade humana, o choque pode significar tanto uma revoluo civil ou golpe militar, quantouma tempestade ou terremoto. O monarca que cai representa, por analogia, qualquer homem que,rompendo com a ordem celeste, perca de vista o seu destino ideal e caia presa das paixesabissais. a situao descrita no hexagrama 36, O Obscurecimento da Luz: "Primeiro ele subiu aoCu, depois mergulhou nas profundezas da Terra." O comentrio tradicional, resumido porRichard Wilhelm, o seguinte: "O poder da treva subiu a um posto to alto que pode trazer dano aquantos estejam do lado do bem e da luz. Mas no fim o poder das trevas perece por sua prpriaobscuridade."

    J se v que o conselho do sr. Capra, afetado pela ambiguidade da palavra "natureza", pode terdois significados opostos: com "integrar-se", pretende ele que obedeamos Vontade do Cu ou

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    que mergulhemos nas profundezas da Terra? As falas dos profetas, quando obscuras, mereceminterpretao. Interpretemos.

    Na verso do sr. Capra, o Cu no mencionado. A trade fica reduzida a uma dualidade: de umlado o homem, de outro a natureza visvel. O macho e a fmea. O yang e oyin. A cada um s restaa alternativa de subjugar o outro ou "integrar-se" nele. O homem da civilizao industrial optou

    pela primeira hiptese. O sr. Capra advoga a segunda. verdade o que diz o sr. Capra, que a civilizao ocidental optou por dominar a natureza. Mas verdade tambm que, desde o Renascimento ao menos, ela apagou ( exatamente como o sr.Capra ) toda referncia a uma ordem transcendente ( Tien ) e deixou o homem sozinho, face a facecom a natureza material. Desde ento a histria das idias ocidentais tem sido marcada por umaoscilao pendular entre as ideologias da dominao e as ideologias da submisso: classicismo eromantismo, revoluo e reao, historicismo e naturalismo, cientificismo e misticismo, ativismoprometico e evasionismo quietista, marxismo e existencialismo e, last not least, revoluocultural socialista versus ideologia da "Nova Era".

    neste ltimo par de opostos que reside a chave para a compreenso do nosso profeta. O sr.Capra acerta na mosca ( nenhum profeta pode realizar o prodgio de errar sempre ) ao dizer quesua viso da histria cultural uma alternativa ao marxismo. Para Marx e seus epgonos, anatureza nada mais que o cenrio da histria humana. Est a no como um ser, uma substnciaontolgica que o homem deva contemplar e respeitar em sua constituio objetiva, mas comomatria-prima a ser apropriada e transformada livremente segundo o arbtrio humano. A natureza,em Marx, ancilla industriae. O marxismo prossegue a tradio de prometeanismo revolucionriodo Renascimento, potencializando-a mediante a submisso completa e explcita da natureza histria. A isto que se ope a ideologia da Nova Era.

    Mas ela no se ope somente ao marxismo em geral, e sim a uma forma especfica de marxismo,

    que tambm, como ela, quis operar uma "mutao", um giro de cento e oitenta graus na orientaodo pensamento humano. O fundador desta corrente marxista foi o idelogo italiano AntonioGramsci ( 1891-1937 ). O gramscismo prope uma revoluo cultural que subverta todos oscritrios admitidos do conhecimento, instaurando em seu lugar um "historicismo absoluto", noqual a funo da inteligncia e da cultura j no seja captar a verdade objetiva, mas apenas"expressar" a crena coletiva, colocada assim fora e acima da distino entre verdadeiro e falso. a total submisso do "objeto" ( natureza ) ao "sujeito" ( humanidade histrica ). Neste novoparadigma, a nfase da atividade cientfica j no cai no conhecimento objetivo da natureza( descrio exata da sua aparncia visvel e investigao dos princpios invisveis que agovernam ), mas sim na sua transformao pela tcnica e pela indstria, a isto correspondendo, naesfera das idias, uma espcie de "revoluo permanente" de todas as categorias de pensamento asuceder-se numa acelerao vertiginosa do devir histrico.

    Contra isto levantou-se a ideologia da Nova Era. Ao prometeanismo revolucionrio, ela ope a"integrao na natureza"; acelerao da histria, o equilbrio "ecolgico" da Nova OrdemMundial; e, ao historicismo absoluto, o "fim da Histria". Capra inconcebvel sem Fukuyama.Capra a casca da qual Fukuyama o miolo. Todo o vistoso "esoterismo" da Nova Era, com suasiniciaes secretas, seus gurus, seus magos e seus ritos, no constitui seno o exoterismo, oaparato religioso externo e social, cujo interior, cujo "sentido esotrico" na verdade uma cinciabem moderna, racional e profana: o planejamento estratgico. Fukuyama est para Capraexatamente como o esoterismo est para o exoterismo, como a Igreja de Joo est para a Igreja de

    Pedro. Mas ambas, cada qual no seu plano e pelos meios que lhe so prprios, combatem ummesmo adversrio.

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    O gramscismo fez muito sucesso nos anos 60, inspirando a febre passageira do eurocomunismo erevigorando algumas esperanas comunistas. No Brasil, conquistou praticamente a esquerdainteira, e o PT um partido essencialmente gramsciano, admita-o ou no explicitamente. Mas ointento de renovao foi fraco e tardio: o comunismo acabou sendo derrotado pela ascensomundial da ideologia da Nova Era. Afinal, a mistura de fsica quntica e simbolismos orientais,experincias psquicas e sexo livre, promessas de paz e miragens de auto-realizao, que essa

    ideologia oferece, infinitamente mais sedutora do que qualquer "historicismo absoluto". OBrasil, sempre atrasado, um dos poucos lugares do mundo onde o combate ainda prossegue, comum feroz ncleo de remanescentes gramscianos oferecendo uma quixotesca resistncia local aosexrcitos triunfantes da Nova Era.

    Mas, se o prometeanismo revolucionrio representou o mximo da hybris, da avidez dominadorado homem sobre a natureza, a ideologia da Nova Era no outra coisa seno o choque de retornoanunciado peloI Ching.

    A Nova Era venceu a revoluo gramsciana. Mas foi uma teratomaquia: um combate de monstros.Diriam os chineses que foi um combate suicida: que, sem a obedincia comum a Tien, a luta entre

    Ti eJen s pode terminar pelo "Obscurecimento da Luz". A vitria da Nova Era prenuncia,portanto, o prximo passo do ciclo das mutaes: a humanidade vai cair da autoglorificaoprometica na passividade inerme; vai integrar-se, "ecologicamente", no equilbrio da NovaOrdem Mundial, onde o conformismo coletivo ser assegurado mediante a justa repartio dosmeios de satisfazer as paixes mais baixas e mediante um arremedo de religiosidade externa quedar a essas paixes uma aura lisonjeira de "profundidade" e "autoconhecimento".

    Pode-se interpretar isso psicanaliticamente. Grard Mendel, no seu livroLa Rvolte contre lePre, uma das mais importantes contribuies das ltimas dcadas psicanlise freudiana, dizque, ao longo da histria, o impulso do homem para superar o pai tem sido, como pretendia Freud,um dos mais potentes motores do progresso. Mas este impulso, prossegue ele, pode tomar duas

    direes: ou o homem supera e vence opai carnal integrando-se na ordem racional representadapelopai ideal, ou manda logo s urtigas a ordem ideal para, livre de toda trava moral, matar o paicarnal e tomar posse da me. Esta ltima alternativa a revolta prometica, a que se segue, numchoque de retorno, a queda no irracional, a regresso uterina, a "integrao" do homem nas trevas.Da, segundo Mendel, a importncia antropolgica, e tambm psicoteraputica, das palavras damais clebre orao crist: a "revolta contra o pai" s saudvel e frutfera quando empreendida"em nome do Pai". Trocando em midos chineses: o pai carnal , para o homem adulto (Jen ),nada mais que um aspecto de Ti, a Terra. preciso submet-lo ordem celeste, Tien ou pai ideal,para a ento poder assumir, sem usurpao nem violncia, o governo justo e harmnico da Terra.Sempre achei que o dr. Freud tinha algo de chins.

    Nos termos de Mendel, a revoluo gramsciana a revolta destrutiva contra o pai, e a ideologia daNova Era, com seus apelos fuso das conscincias individuais numa sopa de miragens holsticas, a regresso uterina que se lhe segue. Todas as regresses uterinas anunciam-se pela exacerbaoda fantasia, pelo chamamento hipntico das esperanas insensatas, pela anteviso medinica dedelcias sem fim. Todas terminam na escravido abjeta, na passividade inerme ante a agresso dasforas abissais, no obscurecimento da luz.

    inevitvel que haja escndalo. A Nova Era venceu o prometeanismo gramsciano, e sai de baixo:l vem o hexagrama 36. There's coming a shitstorm e Fritjof Capra o seu profeta. Mas, no fim,que por certo no se anuncia breve, o poder das trevas sucumbir por fora da sua prpria

    obscuridade.

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    Findo o perodo das trevas, assegura oApocalipse, a loucura dos novos profetas que arrastaram ahumanidade ao erro ser exibida plena luz do dia, e todos a vero.

    Como a Nova Era ainda mal comeou, no est na hora de fazer o show completo. Por enquanto,tudo o que se pode fazer dar umas amostras preliminares, que atestem, para as geraesvindouras, a realidade de um passado que lhes parecer inverossmil. Como disse o sbio Richard

    Hooker ante o avano do besteirol puritano no sc. XVI, quando tudo isto tiver passado "aposteridade poder saber que no deixamos, pelo silncio negligente, as coisas se passarem comonum sonho".

    De amostras est cheio o livro do sr. Capra. Porm manda a justia que as selecionemos segundo agradao de importncia que lhes d o prprio autor. Devemos portanto agora examinar o terceiro"ponto de mutao": a revoluo do paradigma cientfico.

    Neste terreno o sr. Capra no parece estar em desvantagem como no mundo chins, que sconheceu por fontes de terceira mo. Doutor em fsica pela Universidade de Viena, ele no podeignorar a histria da cincia ocidental como ignora a civilizao chinesa. Mas quem disse que no

    pode? Aos profetas tudo possvel.

    Segundo o sr. Capra, "o paradigma ora em transformao dominou a nossa cultura por muitascentenas de anos"; ele "compreende certo nmero de idias" que "incluem a crena de que omtodo cientfico a nica abordagem vlida do conhecimento; a concepo do universo comoum sistema mecnico composto de unidades materiais elementares; a concepo da vida emsociedade como uma luta competitiva pela existncia". Essas concepes tm os nomesrespectivos de: cientificismo, mecanicismo e social-darwinismo ou darwinismo social. Repito:segundo o sr. Capra, elas dominam a nossa cultura h muitas centenas de anos. Isto sugere duasperguntas. Primeira: Que "dominar uma cultura?" Segunda: Quanto "muitas centenas"?

    Dizemos que uma certa idia domina uma cultura quando: primeiro, ela acreditada pelosintelectuais mais importantes de todos os setores; segundo, as idias concorrentes ou j no sofrteis, quer dizer, j no se expressam em obras poderosas e significativas, ou entodesapareceram completamente de cena. Assim, por exemplo, o cristianismo dominou a IdadeMdia porque, de um lado, todos os filsofos e os homens cultos em geral eram cristos e, deoutro lado, as correntes de pensamento no-crists, ainda que persistindo vivas pelo menos nosubconsciente coletivo, no produziram nesse perodo nenhuma obra digna de ateno. Dizemosque o marxismo dominou a cultura sovitica at a dcada de 60 porque nesse perodo nenhumintelectual eminente que residisse na URSS produziu nenhuma idia que sasse dos quadrosconceptuais do marxismo e porque as subcorrentes no-marxistas ( exceto no exlio e em lnguasocidentais ) nada criaram de significativo.

    Nesse sentido estrito, nenhuma das trs idias que compem o "paradigma dominante" jamais foidominante em parte alguma do Ocidente. Desde que surgiram, as trs foram incessantementecontestadas, combatidas, refutadas, rejeitadas no todo ou em parte por intelectuais importantes. Deoutro lado, correntes abertamente hostis a essas idias continuaram frteis o bastante para produziralgumas das obras mais significativas de seus respectivos campos.

    Vejamos o mecanicismo. Como pode ser "dominante" uma corrente que, desde seu nascimento, rejeitada por gigantes como Leibniz, Schelling, Vico, Schopenhauer, Driesch, Fechner, Boutroux,Nietzsche, Weber, Kierkegaard e muitos outros, at ser derrubada no sculo XX pela teoria de

    Planck?A rigor, o mecanicismo s foi dominante, e mesmo assim com reservas, numa certa parte domundo, que para o sr. Capra "o" mundo: os crculos universitrios anglo-saxnicos. Que esse

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    mundinho tradicionalmente presunoso e seguro de si se abra hoje para novas idias, que sedisponha at a ouvir os orientais sem a tradicional incompreenso colonialista, sem dvida umanovidade auspiciosa. Mas uma novidade local. No h meio mais seguro de tornar provinciano umpovo do que persuadi-lo de que ele o centro do mundo. Desde esse momento ele declarainexistente ou irrelevante tudo o que saia do seu campo de viso, e quando finalmente descobrealgo que todo o resto do mundo j sabia d a esta descoberta uns ares de revoluo mundial.

    Quanto ao cientificismo, tanto se escreveu contra ele, que perfeitamente errado consider-lodominante mesmo num sentido atenuado do termo. Para isto seria preciso excluir do primeiroplano da cultura o marxismo, a psicanlise, a fenomenologia, o neotomismo e o existencialismo,pelo menos. Aqui, novamente, o sr. Capra toma como mundialmente dominante a opinio de umgrupo restrito.

    O darwinismo social, por sua vez, s chegou a ser dominante, como crena pblica, num nicopas do mundo: nos Estados Unidos. Nunca entrou, por exemplo, nos pases comunistas e nomundo islmico, que, somados, completam quase dois teros da humanidade. Nos pasescatlicos, foi recebido desde logo como perversa anomalia, suscitando reaes de escndalo de

    que do testemunho as encclicas sociais dos papas desde pelo menos Leo XIII.

    Mas, alm de afirmar que essas trs crenas "dominam o mundo", o sr. Capra ainda assegura queo fazem "h muitas centenas de anos". Contemos a histria.

    A mais velha das trs o mecanicismo. Prenunciado por Descartes, foi formulado plenamente porIsaac Newton ( Princpios Matemticos da Filosofia Natural, 1687 ), mas s se tornou conhecidoda intelectualidade europia em geral a partir de 1738, quando Voltaire divulgou em linguagemcompreensvel aos leigos os Elementos da Filosofia de Newton.

    No foi s fazendo divulgao cientfica que Voltaire promoveu a vitria de Newton. Ele tanto

    difamou com ironias grosseiras o principal opositor de Newton, G.-W. von Leibniz, que oscontemporneos cessaram de prestar ateno ao que este dizia. Leibniz caiu em quase descrditoat o sculo XX, quando a redescoberta de suas idias ocasionou avanos prodigiosos nasmatemticas, na lgica e nas cincias da natureza. A nova fsica de Planck e Heisenberg veio a darrazo a Leibniz contra Newton, substituindo o mecanicismo pelo probabilismo. Esta substituiopoderia ter ocorrido dois sculos antes, se Voltaire, imperador da opinio pblica no sculo XVIII,no tivesse tecido em torno de Leibniz uma teia de preconceitos duradouros. Por ironia, Voltaireentrou para a Histria como o inimigo de todo atraso e de todo preconceito.

    Mas, de qualquer modo, a opinio de Voltaire no se propagou com a velocidade do raio.Demorou duas ou trs dcadas, pelo menos, para tornar-se crena dominante na Europa inteira.Por volta de l780, o mecanicismo gozava de um prestgio invejvel, e pode ser dito, desde ento,dominante, se dominante no quer dizer unanimemente aceito, ou aceito sem reservas. No sepode esquecer a oposio que lhe moveram o vitalismo de Goethe e Driesch, o contingencialismode Boutroux e muitas outras correntes, at o golpe de misericrdia desferido por Planck eHeisenberg.

    No momento em que o sr. Capra redigia O Ponto de Mutao, o mecanicismo estava completandoportanto dois sculos de glria incessantemente contestada e de periclitante reinado sobre asfaces majoritrias do mundo acadmico. Isto bem diferente de um domnio de muitos sculossobre todo o mundo.

    Quanto ao darwinismo social, um filhote do darwinismo biolgico e no poderia ter nascidoantes do pai. O princpio da "subsistncia do mais apto" surgiu como uma teoria biolgica e s

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    depois, aos poucos, foi se transformando num argumento ideolgico para a legitimao retroativada concorrncia capitalista.

    A Origem das Espcies de 1859. Herbert Spencer, nos seus Primeiros Princpios, publicados eml862, amplia o alcance das idias evolucionistas, fazendo delas um princpio sociolgico.Paralelamente, ocultistas como Allan Kardec e Madame Blavatski pegam no ar o termo

    "evoluo" e lhe do um sentido mstico, ou misticide: j no so somente os anfbios queevoluem em rpteis, e estes em mamferos; so as almas desencarnadas que, no outro mundo,evoluem em "seres de luz", subindo na escala csmica enquanto os macacos descem das rvores.Revestida de mil e um sentidos, a palavra "evoluo" se dissemina, e surgem os debates pblicos,que atraem a ateno dos intelectuais para o potencial poltico-ideolgico do evolucionismo. Osdebates alcanam um auge de sucesso com a conferncia de Thomas Henry Huxley, "Evoluo etica", em 1892. A est aberto o caminho para a legitimao do capitalismo liberal pela"sobrevivncia do mais apto". O resto vem com os livros de Gustav Ratzenhofer (Natureza eFinalidade da Poltica, 1893 ) e William G. Sumner ( Folkways, l906 ), que fundamentamexplicitamente a noo de "evoluo social", dando aos idelogos capitalistas o precioso slogande que necessitavam. O darwinismo social tem, portanto, pouco mais ou pouco menos do que um

    sculo. Tinha menos no momento em que o sr. Capra redigia o seu livro.

    Finalmente, o cientificismo. A rejeio formal e completa, em nome da cincia, de qualquerexplicao filosfica ou teolgica da realidade, foi proposta, pela primeira vez, por AugustoComte (Discurso sobre o Esprito Positivo, l844 ). Mas Comte ainda reservava para a filosofia atarefa de sntese e ordenao do conhecimento cientfico, e Comte s foi aceito sem contestaonum nico lugar deste planeta: no Brasil! ( Em 1914, o positivista Alain atribua a guerra mundialao fato de nenhum outro pas do globo haver seguido o exemplo do Brasil, que adotara nabandeira republicana o positivismo como doutrina oficial do Estado: Ordem e Progresso , comefeito, o resumo da filosofia comtiana. ) Uma declarao formal e taxativa de cientificismo, com acompleta demisso de todas as demais formas de conhecimento como vazias ou insignificantes, s

    veio mesmo em 1934, com Rudolf Carnap, em Sintaxe Lgica da Linguagem. Mas Carnap no eranenhum Voltaire, para contar com a imediata aprovao de um vasto pblico. A maioria dosfilsofos do sculo XX rejeitou categoricamente o cientificismo, que s exerceu domnio sobregrupos determinados, principalmente no mundo anglo-saxo. Contemporaneamente declaraode Carnap, o matemtico e filsofo Edmund Husserl, fundador dafenomenologia escola queiria gerar Heidegger, Scheler, Hartmann, Sartre e Merleau-Ponty, entre outros , fazia naUniversidade de Praga as clebres conferncias depois reunidas no livroA Crise das CinciasEuropias, em que negava o cientificismo pela base e desde dentro: as cincias fsicas, dizia ele,haviam perdido o seu essencial fundamento cientfico e j no serviam como modelo deconhecimento da realidade. Husserl era e pelo menos to influente quanto Carnap, embora notanto no mundo anglo-saxnico que o limite do horizonte mental do sr. Capra.

    Em suma, o cientificismo, que "domina a nossa cultura desde h sculos", est completandosessenta primaveras neste ano de 1994. Mas, para cmulo, sua primeira manifestao ostensiva jfoi posterior, de trs dcadas, publicao dos primeiros trabalhos de Max Planck, cujoindeterminismo viria a ser uma das bases do "novo paradigma" cujo advento o sr. Capra veioagora nos anunciar. O novo paradigma um tanto anterior ao velho.

    O sr. Capra, como se v, pouco entende dos assuntos em que exerce, para um pblicomultitudinrio, uma autoridade proftica. Ele prima pela carncia de informao elementar sobre acosmologia chinesa, na qual diz basear sua viso da histria cultural, bem como sobre a histria

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    cultural mesma, que ele procura, mediante generalizaes grosseiras, e escandalosas alteraes dacronologia, encaixar fora num modelo preconcebido.

    No questiono, aqui, a validade da proposta holstica em geral. Reservo-me o direito de faz-lonum outro trabalho. Apenas creio que ela deve ter defensores um pouco mais qualificados do queo sr. Capra.

    Meu propsito foi dar um testemunho sobre um fato de relevncia mundial, que acontece bemdiante das nossas barbas, e de cuja realidade as geraes vindouras tero o direito de duvidar.Pois, para a razo e o bom-senso, no verossmil que milhares de intelectuais de prestgio, emseu juzo perfeito, possam aceitar e aplaudir como um marco da histria do pensamento uma obracomo O Ponto de Mutao, que no atende sequer aos requisitos mnimos de informaofidedigna, de autenticidade das fontes e de rigor conceptual que se exigem de uma tese demestrado. Dentre tantos outros defeitos que um livro pode ter, este padece do nico que no sepode tolerar em hiptese alguma: a ignoratio elenchi, a ignorncia completa do assunto. O sr.Capra define o seu livro, pretensiosamente, como um novo modelo de histria cultural baseadonas concepes chinesas do homem e do universo. Mas ele no estudou o suficiente nem a

    histria cultural nem as concepes chinesas para que sua opinio a respeito possa ter qualquerimportncia objetiva, fora do seu crculo de convivncia pessoal. O contedo de sua propaladasabedoria do assunto pura lana caprina.

    O sucesso deste livro s pode ser explicado por um nico fator, inteiramente alheio ao seu valorintrnseco: sua oportunidade. Ele diz o que as pessoas desejam ouvir, no momento em que odesejam. Ele oferece uma perspectiva sedutora a um pblico que pede para ser seduzido.

    Que esse pblico no inclua somente populares incultos, mas intelectuais de projeo, e que estesse prontifiquem a aceitar as promessas do autor sem pedir-lhe sequer as credenciais cientficas quese exigem de um estudante de faculdade, realmente um acontecimento inverossmil.

    Mas, dizia Aristteles, no mesmo verossmil que tudo sempre se passe de maneira verossmil.O inverossmil aconteceu. Ele atesta que, aps sculos de fria iconoclstica voltada contra todasas crenas do passado e os valores de outras civilizaes, a opinio letrada do Ocidente enfim secansou de ser arrogante; mas, em vez de um arrependimento sincero, est encenando diante de nsum arremedo de converso, que deixa mostra todas as marcas do fingimento histeriforme.Estonteada pela viso sbita de suas prprias culpas, ela abjurou de toda precauo crtica comoquem repele um vcio do passado; e entregou-se, inerme e crdula, ao culto do primeiro dolo quelhe ofereceu uma promessa de alvio. Ela pensa ou finge pensar que esse dolo o seu salvador.Na verdade a sua Nmesis.

    Mas no s ela que est enganada. O profeta do engano tambm se engana: ele imagina trazer aomundo a sabedoria, quando traz o obscurecimento e a confuso. Imagina trazer uma novaprofecia, quando traz o cumprimento de uma velha maldio.

    Mas no posso encerrar estas consideraes sobre o profeta da Nova Era sem fazer, tambm eu,uma profecia: nos sculos vindouros, quando puderem encarar o nosso tempo com algumaobjetividade, o fenmeno da Nova Era ser considerado um escndalo que depe contra a

    inteligncia humana. foroso que venha o escndalo. Nada se pode fazer para evit-lo. Nem mesmo vou sugerir,como Jesus, que se amarre ao seu portador uma pesada pedra, para jog-lo ao fundo do mar. Pois,

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    como diria o hexagrama 36, ele j est no fundo. Tudo o que posso fazer deixar posteridade, sevier a ter notcia destas pginas, um testemunho pessoal destes tempos obscuros: Nem todos, nemtodos acreditaram no falso profeta9.

    AdendoH no livro do sr. Capra uma infinidade de erros e contra-sensos, alm dos mencionados. Apont-los e corrigi-los todos requereria um volumoso comentrio: uma lei constitutiva da mente humanaconcede ao erro o privilgio de poder ser mais breve do que a sua retificao.

    Mas vale a pena dar mais algumas amostras, para que o leitor veja quanto um erro nas premissaspode ser frtil em consequncias:

    l. O sr. Capra combate o uso da energia nuclear, mesmo para fins pacficos, mas, ao mesmotempo, faz da fsica moderna um dos fundamentos do "novo paradigma" que prope. Ele separa a

    fsica enquanto modalidade de conhecimento terico e a natureza das suas aplicaes prticas,como se uma no decorresse da outra necessariamente.

    O sr. Capra , nisto, perfeitamente inconsequente com o mtodo holstico que advoga. Para oholismo, toda separao estanque entre uma idia e suas manifestaes prticas nada mais queum abstratismo. Holisticamente falando, o efeito benfico ou destrutivo dos engenhos nuclearestem de estar arraigado no prprio modus cognoscendi que os produziu. Se o sr. Capra enxergaligaes at mesmo entre o mecanicismo e a estrutura da famlia patriarcal, como pode ser cegopara as relaes, muito mais prximas, entre o contedo teortico de uma cincia e suasaplicaes prticas?

    2. Em nossa sociedade, afirma o sr. Capra, o trabalho entrpico ( trabalho repetitivo que no deixaefeitos duradouros, como por exemplo cozinhar um jantar que ser consumido imediatamente ) desvalorizado, e por isto atribudo s mulheres e aos grupos minoritrios. Esta desvalorizao,diz ele, tpica da sociedade industrial.

    Nesse caso, deveramos considerar sociedades industriais as tribos do Alto Xingu, as cidades-Estado da antiga Grcia, a sociedade europia da Idade Mdia. No existiu jamais uma sociedadeem que os servios entrpicos fossem mais valorizados que os outros.

    Mas, segundo o sr. Capra, existiu. Ele d como exemplos os mosteiros de monges budistas ecristos, onde cozinhar uma honra e limpar as privadas um mrito invejvel. Ser precisoexplicar ao sr. Capra que uma ordem monstica no constitui uma "sociedade", mas umacomunidade minoritria que pressupe em torno a existncia de uma sociedade a cujos valorespossa se opor? Se, dentro de um mosteiro, o trabalho entrpico tem valor, justamente porque noo tem na sociedade maior em torno. Os trabalhos humildes adquirem ali dentro um valor espirituale disciplinar justamente na medida em que no "mundo" tm pouco prestgio social ou valoreconmico. A desvalorizao social do trabalho entrpico no caracterstica da sociedadeindustrial, mas da sociedade humana em geral; inversamente, a sua valorizao espiritual umtrao distintivo das minorias espiritualizadas envolvidas em alguma forma de rejeio religiosa do"mundo".

    3. "Tradies como o vedanta, a ioga, o budismo e o taoismo assemelham-se muito mais apsicoterapias do que a filosofias ou religies", diz o sr. Capra. Bem, se h um trao caractersticodo Ocidente moderno, que o distingue radicalmente das tradies orientais, justamente odesenvolvimento, nele, de uma psicologia como cincia independente de qualquer referncia

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    mstica ou religiosa; e, em decorrncia, o esforo para dar uma explicao "psicolgica" de todosos fenmenos espirituais. Ao englobar as tradies espirituais do Oriente no conceito de"psicoterapia", o sr. Capra mostra a tpica incapacidade do cientificista moderno para apreendertudo quanto h nelas de puramente metafsico e no-psicolgico.

    Dizer, ademais, que essas tradies "se baseiam no conhecimento emprico e, assim, apresentam

    mais afinidades com a cincia moderna" pretender enquadrar fora as idias orientais numamoldura ocidental e moderna, para torn-las aceitveis ao provincianismo acadmico. Aconteceque, nessa operao, tudo que h nelas de essencialmente oriental se perde por completo. Ovedanta, por exemplo, afirma categoricamente que a experincia no pode trazer conhecimentoespiritual de espcie alguma, e esta afirmao mesmo um dos pontos basilares da doutrina, queo sr. Capra parece desconhecer completamente: toda experincia ao, e a ao, no sendo ocontrrio da ignorncia, no pode destru-la ( cf.Brihadaranyaka Upanishad, livro 10 ).

    Por esse exemplo, v-se que o sr. Capra est muito mais preso a esquemas mentais de acadmicoocidental mdio do que desejaria deixar transparecer. Algum mais prximo da perspectivaoriental jamais procuraria explicar as doutrinas sapienciais da ndia ou da China luz da moderna

    psicologia ocidental, mas, ao contrrio, emitiria sobre esta, em nome delas, um julgamentobastante severo ( v., por exemplo, Wolfgang Smith, Cosmos and Transcendence, New York, l970,ou Titus Burckhardt, Scienza Moderna e Sagezza Tradizionale, Torino, l968 ).

    4. Aps realar o sentido holstico das concepes fisiolgicas de Hipcrates, o sr. Capra insinuaque esse sentido desapareceu completamente da medicina ocidental e agora temos de ir busc-lona tradio chinesa: "A noo chinesa do corpo como um sistema indivisvel de componentesinter-relacionados est muito mais prxima da moderna abordagem sistmica do que do modelocartesiano clssico." Se o sr. Capra no seguisse o hbito ocidental moderno de saltar direto dopensamento grego para o Renascimento, teria reparado que a mesma concepo holstica dominatodo o pensamento mdico e biolgico do Ocidente medieval, com destaque para Sto. Alberto

    Magno e Roger Bacon. Na verdade, as concepes chinesas so muito mais parecidas com as daIdade Mdia que com a "moderna abordagem sistmica".

    5. Ao explicar a psicoterapia de Arthur Janov, o sr. Capra diz que, segundo este eminentepsiquiatra, as neuroses so tipos simblicos de comportamento que "representam as defesas dapessoa contra a excessiva dor associada a traumas de infncia". Quem quer que tenha lido Janovsabe que, na teoria deste, a etiologia das neuroses no de ordem traumtica, mas reside nafrustrao constante e habitual de necessidades bsicas, frustrao que s vezes no sequerpercebida no nvel consciente. Um trauma, na psicopatologia de Janov, nada mais que um fatorsuperveniente. A minimizao da importncia etiolgica dos traumas justamente o quesingulariza o sistema de Janov. Embora conhecendo o assunto de orelhada, o sr. Capra no seinibe de opinar a respeito com ar professoral: "O sistema conceitual de Janov no suficientemente amplo para explicar experincias transpessoais..." O que certamente no amplo o conhecimento que o sr. Capra tem do sistema de Janov.

    Sugestes de Leitura

    Alm das obras citadas no texto, o leitor poder consultar com proveito as seguintes:

    l. Quem aprecie o holismo e deseje ter uma informao sria a respeito, sem aberraes caprinas ecom mais ensinamento valioso, leia o livro de Jol de Rosnay, Le Macroscope. Vers une VisionGlobale ( Paris, Le Seuil, l975 ). O prof. de Rosnay ensinou no MIT e trabalha no Instituto Pasteurde Paris. interessante ler tambm as obras de Edgar Morin, que foi alis quem lanou a

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    expresso "novo paradigma". V. especialmente La Mthode, em dois tomos ( I,La Nature de laNature, Paris, Le Seuil, l977; II,La Vie de la Vie, id., 1980 ).

    2. OI Ching tem trs tradues ocidentais famosas: a de James Legge ( verso brasileira de E.Peixoto de Souza e Maria Judith Martins, So Paulo, Hemus, l972 ), a de Richard Wilhelm( verso inglesa de Cary F. Baynes, London, Routledge and Kegan Paul, l95l, vrias reedies;

    verso brasileira de Lya Luft e Alayde Mutzembecher, So Paulo, Nova Acrpole ), e a de P.-L.F. Philastre:Le Yi:King. Livre des Changements de la Dynastie des Tsheou. Annales du MuseGuimet, t. huitime, 2 vols. ( Paris, Adrien Maisonneuve, l975 ). Um estudo srio do assuntorequer o exame das trs. A de Wilhelm mais didtica e fcil de consultar. Legge enfatiza muitoas ligaes estruturais entre as partes e abre para um estudo mais aprofundado. Das trs a dePhilastre de longe a mais interessante, pois a nica que transcreve integralmente e pela ordemas glosas das dez "geraes" de comentaristas chineses.

    3. Sobre os smbolos da tradio chinesa, v. o livro clssico de Ren Gunon,La Grande Triade( Paris, Gallimard, 1957 ). Convm recorrer ainda, quanto aos ideogramas, obra monumental doPe. L. Wieger, Chinese Characters. Their Origin, Etimology, History, Classification and

    Signification. A Thorough Study from Chinese Documents, transl. by L. Davrout, s. j. ( New York,Dover, 1965; a primeira edio de 1915 ).

    4. Sobre o pensamento chins ainda indispensvel, a quem deseje aprofundar o assunto, estudar:quanto s concepes cosmolgicas, Marcel Granet,La Pense Chinoise ( Paris, Albin Michel,l968 ) eLa Rligion des Chinois ( Paris, Payot, 1980 ). Quanto s instituies e ao governo,Granet,La Civilisation Chinoise ( Paris, La Renaissance du Livre, 1929 ). Sobre a moral, o direitoe as classes sociais, Max Weber, The Religion of China, transl. by H. H. Gerth and C. WrightMills ( New York, The Free Press, 195l ).

    5. Um "novo modelo de histria cultural" baseado em concepes orientais algo que j estava

    realizado pelo menos desde l945, emLe Rgne de la Quantit et les Signes des Temps, de RenGunon ( Paris, Gallimard ). Um monumento de sabedoria.

    6. Sobre a disputa Leibniz-Newton pode-se ler: Jos Ortega y Gasset,La Idea de Principio enLeibniz y la Evolucin de la Teora Deductiva ( em Obras Completas, t. 8, Madrid, Alianza,1983 ); Paul Hazard,La Crise de la Conscience Europenne 1660-1715 ( Paris, Gallimard, 1961 );Edwin A. Burtt,As Bases Metafsicas da Cincia Moderna, trad. Jos Viegas Filho e OrlandoArajo Henriques ( Braslia, UnB, 1983 ).

    NOTAS

    7. Escrito em setembro de 1993. Voltar8. Livro I, Cap. III. Voltar9. Tendo enviado a Frei Betto uma cpia deste captulo antes de sua publicao em livro,recebi dele uma resposta em duas linhas, que um singular documento psicolgico. Ela diz:"Apesar das suas reservas, o evento [ NB: recepo ao sr. Capra ] foi bom para quem l esteve."Deve ter sido mesmo um barato, imagino eu. Mas o ilustre frade no me compreendeu. Longe demim depreciar o evento em si a organizao do programa, o servio de som ou o tempero dossalgadinhos. O que eu disse que no presta a filosofia do sr. Capra, subentendendo que celebr-

    la num congresso de intelectuais jogar dinheiro fora; e quanto melhor o evento, mais lamentvelo desperdcio. Caso, porm, o missivista tenha pretendido alegar a qualidade do evento como umargumento em favor do sr. Capra, isto seria o mesmo que dizer que o preo da vela prova aqualidade do defunto. Alm disso, que opinio se poderia ter de um pensador que argumentasse

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    em favor de uma filosofia mediante a alegao de que ela lhe d a oportunidade de freqentarlugares agradveis? [ N. da 2 ed. ]

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    II

    STO. ANTONIO GRAMSCIE A SALVAO DO BRASIL

    QUEM DESEJE reduzir a um quadro coerente o aglomerado catico de elementos que se agitamna cena brasileira, tem de comear a desenh-lo tomando como centro um personagem que nuncaesteve aqui, do qual a maioria dos brasileiros nunca ouviu falar, e que ademais est morto h maisde meio sculo, mas que, desde o reino das sombras, dirige em segredo os acontecimentos nestaparte do mundo.

    Refiro-me ao idelogo italiano Antonio Gramsci. Tendo-se tornado praxe entre as esquerdasjamais pronunciar o nome de Gramsci sem acrescentar-lhe a meno de que se trata de um mrtir,apresso-me a declarar que o referido passou onze anos numa priso fascista, de onde remeteu ao

    mundo, mediante no sei que artifcio, os trinta e trs cadernos de notas que hoje constituem, paraos fiis remanescentes do comunismo brasileiro, a bblia da estratgia revolucionria. Mas noest s nisso a razo da aura beatfica que envolve o personagem. Da estratgia, tal como vista porele, constitua um captulo importante a criao de um novo calendrio dos santos, que pudessedesbancar, na imaginao popular, o prestgio do hagiolgio catlico ( uma vez que a Igreja, naviso dele, era o maior obstculo ao avano do comunismo ). O novo panteo seria inteiramenteconstitudo de lderes comunistas clebres, e baseado no critrio segundo o qual "RosaLuxemburgo e Karl Liebknecht so maiores do que os maiores santos de Cristo" palavrastextuais de Gramsci. Os seguidores do novo culto, com inteira lgica, puseram ainda mais alto naescala celeste o instituidor do calendrio, motivo pelo qual no se pode falar dele sem acorrespondente uno. E eu, temeroso como o sou de todas as coisas do alm, no poderia iniciaresta breve exposio do gramscismo brasileiro sem a preliminar invocao ao seu patrono, emquem se d