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1 CHELOTTI, M. C.; PESSÔA, V. L. S. . A nova geografia agrária da Campanha Gaúcha/RS-BR:a (re)criação da produção familiar em domínio do espaço latifundiário. In: V Jornadas Interdisciplinarias de Estudios Agrarios y Agroindustriales, 2007, Buenos Aires. Anais das V Jornadas Interdisciplinarias .... Buenos Aires/AR : FCE-UBA, 2007. v. 1. p. 1-16. A NOVA GEOGRAFIA AGRÁRIA DA CAMPANHA GAÚCHA/RS/BR: a (re)criação da produção familiar em domínio do espaço latifundiário Marcelo Cervo Chelotti Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia/MG/BR. Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais/FAPEMIG. Laboratório de Geografia Agrária/LAGEA/IG/UFU [email protected] Vera Lúcia Salazar Pessôa Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia/MG/BR. Laboratório de Geografia Agrária/LAGEA/IG/UFU [email protected] 1. INTRODUÇÃO A década de 1990 foi marcada por inúmeros conflitos fundiários na região da Campanha Gaúcha/RS/BR (Mapa 1), reduto da presença do espaço latifundiário gaúcho entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Federação dos Agricultores do Estado do Rio Grande do Sul (FARSUL), onde o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) viu-se obrigado a intervir enquanto mediador, objetivando realizar vistoriais nas propriedades rurais para encontrar possíveis áreas para assentar os sem-terra. A instalação de um número significativo de assentamentos, além de provocar uma reordenação territorial, implicou em mudanças no âmbito regional. A presença do assentado reforçou a representatividade da produção familiar que, em muitas vezes, era sufocada pela representatividade patronal. Portanto, a re-territorialização de milhares de trabalhadores sem- terra na Campanha Gaúcha provenientes, em sua maioria, de outras regiões do Rio Grande do Sul, configurou-se como uma constante no espaço regional.Com a inserção dos assentamentos

A NOVA GEOGRAFIA AGRÁRIA DA CAMPANHA … · 1 CHELOTTI, M. C.; PESSÔA, V. L. S. . A nova geografia agrária da Campanha Gaúcha/RS-BR:a (re)criação da produção familiar em domínio

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CHELOTTI, M. C.; PESSÔA, V. L. S. . A nova geografia agrária da Campanha Gaúcha/RS-BR:a (re)criação da produção familiar em domínio do espaço latifundiário. In: V Jornadas Interdisciplinarias de Estudios Agrarios y Agroindustriales, 2007, Buenos Aires. Anais das V Jornadas Interdisciplinarias .... Buenos Aires/AR : FCE-UBA, 2007. v. 1. p. 1-16.

A NOVA GEOGRAFIA AGRÁRIA DA CAMPANHA GAÚCHA/RS/BR: a (re)criação da produção familiar em domínio do espaço latifundiário

Marcelo Cervo Chelotti

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia/MG/BR. Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais/FAPEMIG.

Laboratório de Geografia Agrária/LAGEA/IG/UFU [email protected]

Vera Lúcia Salazar Pessôa

Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia/MG/BR. Laboratório de Geografia Agrária/LAGEA/IG/UFU

[email protected] 1. INTRODUÇÃO

A década de 1990 foi marcada por inúmeros conflitos fundiários na região da

Campanha Gaúcha/RS/BR (Mapa 1), reduto da presença do espaço latifundiário gaúcho entre

o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Federação dos Agricultores do

Estado do Rio Grande do Sul (FARSUL), onde o Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária (INCRA) viu-se obrigado a intervir enquanto mediador, objetivando realizar vistoriais

nas propriedades rurais para encontrar possíveis áreas para assentar os sem-terra.

A instalação de um número significativo de assentamentos, além de provocar uma

reordenação territorial, implicou em mudanças no âmbito regional. A presença do assentado

reforçou a representatividade da produção familiar que, em muitas vezes, era sufocada pela

representatividade patronal. Portanto, a re-territorialização de milhares de trabalhadores sem-

terra na Campanha Gaúcha provenientes, em sua maioria, de outras regiões do Rio Grande do

Sul, configurou-se como uma constante no espaço regional.Com a inserção dos assentamentos

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em áreas típicas de pecuária extensiva, a agricultura familiar passou a exercer uma nova

perspectiva em escala regional.

Mapa 1 - Localização da Mesorregião Geográfica do Sudoeste Rio-Grandense (Campanha Gaúcha) RS/BR Fonte: Chelotti (2006)

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Portanto, os assentados foram os novos agentes inseridos no espaço regional. Por

serem sujeitos provenientes de outras regiões, onde a comunidade rural possui um certo nível

de organização e articulação, típico das áreas de imigração, ao serem re-territorializados

passaram a reproduzir seus espaços socioculturais, rompendo com o isolamento geográfico do

espaço agrário regional, marcado até então, pela baixa densidade demográfica e um número

muito pequeno de comunidades rurais. É por isso que consideramos os sem-terra como os

novos sujeitos inseridos no espaço agrário da Campanha Gaúcha no pós 1990.

2. A NOVA GEOGRAFIA DA CAMPANHA GAÚCHA: a luta pela terra redefinindo o

espaço agrário regional

O acirramento da luta pela terra no Rio Grande do Sul no decorrer da década de 1990,

entre o MST e a Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (FARSUL), fez com que no

plano das políticas públicas, principalmente por parte do Governo Estadual (1999-2002),

ocorresse a oficialização da Campanha Gaúcha enquanto região prioritária para a realização de

reforma agrária no estado.

Na concepção do Governo Estadual (1999-2002), além das atividades específicas para

uma região, o enfoque regional deveria estar presente, principalmente nos programas gerais de

governo, de todos os órgãos e secretarias. Assim, foram embutidas intencionalidades nestes

programas e ações com vistas à mudança do paradigma de desenvolvimento da região.

Exemplos de implementação desta concepção foram os Programas de Reforma Agrária e o

Novo FUNDOPEM (Fundo de desenvolvimento dos municípios).

Nesse sentido, a política de reforma agrária estadual (1999 - 2002) priorizou algumas

áreas nas proximidades de municípios como Bagé, Sant’Ana do Livramento, Candiota, Hulha

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Negra., onde essas áreas tornaram-se prioritárias para a realização da reforma agrária, em

função dos conflitos fundiários entre o MST e a FARSUL.

A escolha desses municípios encontra-se associada a fatores como a existência de

concentração fundiária, qualidade dos solos que possam permitir o desenvolvimento de uma

agricultura familiar, além da existência de assentamentos rurais, possibilitando, dessa maneira

a consolidação de núcleos de assentamentos rurais nessas áreas.

A política de reforma agrária proposta pelo Governo Estadual potencializou a

agricultura familiar em áreas típicas de pecuária de corte extensiva, transformando aos poucos

essa região através das chamadas áreas reformadas, ou seja, áreas nas quais os assentamentos

estão sendo estabelecidos próximos uns aos outros, possibilitando que os investimentos

públicos no sistema viário, de comunicação e de educação, bem como rede de serviços,

comércio, dentre outros, a um custo reduzido para o estado.

No ano de 2005, existiam mais de 290 assentamentos rurais no Rio Grande do Sul,

resultado das reivindicações do MST que na década de 1990, efetivou sua territorialização na

Campanha Gaúcha, e do papel exercido pelo governo estadual na gestão de Olívio Dutra

(1999-2002), que institucionalizou essa região enquanto área prioritária para reforma agrária

no estado.

A implantação de assentamentos rurais no estado esteve atrelada à diferentes

conjunturas, sendo de um lado, a presença mais atuante do governo federal e o mecanismo de

desapropriação de terras (previsto na Constituição de 1988) e, por outro, a ação do governo

estadual, o qual privilegiou a compra propriedades, por não se valer do mesmo preceito

constitucional.

Ao analisar a evolução da constituição dos assentamentos no estado, detecta-se

momentos de densidade da ação social, com a concentração da atuação do MST em

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determinadas regiões. No entanto, na década de 1990, ampliando suas formas de pressão,

passou a atuar em regiões - foco, nas quais obteve resultados satisfatórios na conquista de

assentamentos, principalmente na Metade Sul, ostentando a segurança e crescimento

organizativo do MST no Rio Grande do Sul (NAVARRO; MORAES; MENEZES, 1999).

Nesses quinze anos foram instalados mais de sessenta assentamentos rurais nessa

região em áreas anteriormente ocupadas pela pecuária de corte. Assim, municípios como

Hulha Negra e Santana do Livramento tiveram mais de 17 000 hectares destinados a reforma

agrária. No entanto, esse processo não é uniforme em todo o sudoeste gaúcho como mostra o

mapa 2.

Mapa 2 - Área total de hectares em assentamentos rurais no Sudoeste Gaúcho em 2005 Fonte: GRAC, 2005.

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Portanto, em áreas anteriormente pouco povoadas do meio rural, foram assentadas

milhares de famílias provenientes dos mais diversos municípios do Rio Grande do Sul, num

processo de repovoamento dessas áreas.

Consequentemente, os municípios que possuem maior área territorial destinada a

assentamentos rurais, são aqueles que também possuem o maior numero de famílias

assentadas. Nesse caso, destacam-se os municípios de Hulha Negra, Santana do Livramento e

Manoel Viana, como se pode verificar no mapa 3.

Mapa 3 - Número total de assentamentos rurais e respectivo número de famílias assentadas no Sudoeste Gaúcho em 2005 Fonte: GRAC, 2005.

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A atual distribuição dos assentamentos rurais no estado encontra-se concentrada em

algumas Microrregiões Geográficas, isso em decorrência de determinados fatores, como a

disponibilidades de propriedades a serem adquiridas e desapropriadas pelo governo estadual

ou pelo INCRA, a intensidade do processo de luta pela terra, dentre outros.

A territorialização da luta pela terra redefiniu o papel da agricultura familiar em

algumas regiões através da inserção de assentamentos rurais, potencializando essa categoria de

produtores. Este é o contexto atual de uma significativa parcela de agricultores

reterritorializados em alguns municípios localizados nas Microrregiões Geográficas da

Campanha Central, Campanha Meridional.

O processo de re-territorialização desses agricultores, principalmente em áreas típicas

de pecuária de corte extensiva, tem potencializado, embora timidamente, a diversificação da

matriz produtiva regional, historicamente alicerçada na pecuária extensiva e no cultivo da

lavoura orizícola.

3. A (RE)CRIAÇÃO DA PRODUÇÃO FAMILIAR EM DOMÍNIO DO ESPAÇO

LATIFUNDIÁRIO

A partir da instalação dos assentamentos rurais ocorreu a divisão de parcelas do espaço

latifúndio pastoril, em pequenas unidades de produção familiar, sendo alocados, para os

assentados, lotes que variaram de 15 a 30 ha, ou seja, minifúndios.

Na medida em que os assentamentos estão sendo instalados, as primeiras

transformações são percebidas na paisagem regional. Assim, ocorre uma ruptura na paisagem

homogênea, característica da região, dominada até então, pelos grandes propriedades,

pastagens e criação extensiva de gado de corte.

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As principais transformações na paisagem podem ser vistas principalmente na estrada

que liga o município de Rosário do Sul/Sant’Ana do Livramento/Dom Pedrito. Ao longo dessa

estrada, no decorrer da década de 1990, foram instalados inúmeros assentamentos rurais,

visivelmente perceptíveis nas novas formas de ocupação e produção da área. Onde, até então,

somente existiam grandes propriedades e criação extensiva de gado, surgem várias pequenas

propriedades rurais desenvolvendo uma agricultura familiar, destoando totalmente da

tradicional paisagem regional.

Mas, cabe destacar que a grande parte desses assentamentos criados são espacialmente

dispersos, dada a grande dimensão territorial da Campanha Gaúcha, onde, muitas vezes,

apresentam uma infra-estrutura viária deficiente dificultando ou mesmo inviabilizando

mercados para os produtos oriundos dos assentamentos. A instalação de assentamentos rurais

tem fortalecido a produção familiar em âmbito regional, possibilitando um novo modo de

exploração da terra.

A inserção dos trabalhadores sem-terra enquanto novos agentes no espaço agrário da

Campanha alterou as relações sociais até então vigentes na região. Com esse novo processo,

algumas relações sociais tornaram-se mais complexas, tendo em vista a pluralidade de sujeitos

que ali passaram a interagir.

Assim, tornou-se evidente que a luta pela terra na década de 1990 ampliou e tornou

mais complexa as relações sociais no rural da Campanha, principalmente entre os proprietários

de terra, e os Sem Terra que ali chegaram. Essa alteração deu-se deu basicamente em função

da contestação da posse da terra. Os demais sujeitos historicamente nunca contestaram essa

posse.

Uma questão importante a ser destacada é o fato de que esses sem-terra são

provenientes de outras regiões do Rio Grande do Sul, e numa menor escala da própria

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Campanha. Isso em termos socioculturais é um fator muito importante, tendo em vista que a

identidade cultural do camponês da Campanha não é a mesma daqueles provenientes das áreas

coloniais.

Na medida em que ocorre o processo de re-territorialização, outros desafios entram em

cena, principalmente aqueles associados às estratégias de reprodução da unidade familiar. Ao

chegarem à área definitiva, tudo está para fazer, desde as instalações para moradia até aquelas

associadas aos primeiros cultivos. Por serem áreas de campo nativo, ou seja, não apresentam

condições adequadas para instalar suas residências, torna-se necessário o plantio de árvores

para proteger a residência e os pequenos animais das intempéries do tempo, sejam elas

associadas ao calor ou ao frio (Foto 1).

Foto 1 - Assentamento São Leopoldo/ Sant’Ana do Livramento/RS: vista geral da moradia Fonte: Chelotti (Janeiro de 2006)

Conforme a foto 1 podemos verificar a residência cercada de árvores, que geralmente

são eucaliptos ou acácias, pois por possuem um ciclo vegetativo rápido. Além da proteção,

essas árvores também são utilizadas posteriormente para construção de cercados e como lenha

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para o fogão. Nas proximidades da residência também são desenvolvidos os pequenos cultivos

e a criação de pequenos animais.

Em algumas conversas informais constatamos entre os assentados um enorme

estranhamento ao chegarem ao assentamento. Inicialmente destacaram a paisagem como

sendo muito diferente da região de onde provinham que, de certa maneira, representava uma

sensação de liberdade, tendo em vista que os campos são tão abertos que se perde de vista,

onde residiam anteriormente, o relevo era mais ondulado e íngreme.

É evidente que as primeiras percepções se deram a partir da relação estabelecida com o

meio. Muito se falou das características do clima, muito frio no inverno e calor intenso verão,

seguido de um período de poucas chuvas. Evidenciamos que essa foi a primeira adaptação que

teve que ocorrer. Assim, mudou-se a relação homem x meio, já que seus saberes ligados ao

clima tiveram que ser reavaliados, como período de plantio que é diferente, o rigor do frio no

inverno por ser campo aberto, e o déficit hídrico no verão que restringe o cultivo de certas

lavouras.

Outro elemento importante que gerou enorme estranhamento foi o relativo isolamento

geográfico do assentamento em relação à vida em comunidades, uma vez que o rural da

Campanha é marcado pela baixa densidade demográfica e um número muito pequeno de

comunidades rurais com uma vida social (igrejas, clubes, armazéns, campo de futebol, etc.).

Esses sujeitos são provenientes de regiões onde a comunidade rural possui um certo nível de

organização e articulação, típico das áreas de imigração no Rio Grande do Sul.

Nessa tarefa de desvendar os assentamentos rurais, constatamos também que nem tudo

é feito de adaptação. Existem elementos culturais que são mantidos pelos sem-terra, como

maneira de construir suas casas e organizar seus lotes. Assim, a arquitetura das casas mantém

um padrão associado a seus antigos lugares de residência.

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Nos primeiros anos do assentamento geralmente são desenvolvidos os cultivos que os

camponeses estavam acostumados em sua região de origem. No entanto, com o passar do

tempo, percebem que nem tudo pode permanecer associado as suas tradições, pois as

condições de solo e clima na região são bem específicas, exigindo uma adaptação.

Portanto, se nos primeiros anos ocorre uma predominância no cultivo de lavouras,

principalmente a do milho, com o passar do tempo, percebem que tal cultivo não é viável

enquanto atividade principal para gerar renda, somente para subsistência. Isso ocorre porque

os verões na região são muito secos, o que não garante uma colheita satisfatória, cobrindo os

custos de produção.

Algumas alternativas encontradas para a geração de renda nos assentamentos rurais,

têm sido o cultivo de sementes de hortaliças agroecológicas, como aquelas que são

encontradas em assentamentos localizados no município de Hulha Negra, a produção de leite

como ocorre em Sant’Ana do Livramento, ou a produção de frutas, como o melão, a pêra, o

pêssego, o figo, dentre outras.

Para Medeiros e Sosa Junior (2006) a produção agroecológica tornou-se uma

importante estratégia de re-territorialização dos assentados na campanha Gaúcha,

especialmente no município de Hulha Negra. A partir de 1997 a COOPRAL priorizou a

produção de sementes agroecológicas, denominadas de BIONATUR, carregando consigo uma

nova racionalidade, sendo uma experiência única na América Latina.

Dentre as estratégias de reprodução dos assentados do município de Sant’Ana do

Livramento, está a produção de leite. Dos 29 assentamentos existentes no município, pelo

menos 18 produzem leite com objetivo de gerar renda. A produção diária chega a 22 mil litros

que são destinados para a Cooperativa Regional dos Assentados da Fronteira Oeste Ltda.

(Cooperforte) que comercializa toda a produção mensal de 800 mil litros de leite. A

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organização em torno de uma proposta cooperativista propiciou a aquisição de caminhões

próprios para o transporte do leite, bem como de tanques de expansão com capacidades de

6.000 , 8.000 e 9.000 litros respectivamente.

Portanto, estamos diante de uma mudança na racionalidade da pequena propriedade

encontrada na região que, historicamente, desenvolve a pecuária de corte (bovinos e ovinos) e

não uma produção leiteira. Parece uma contradição, pois a vegetação de campos nativos

permite o desenvolvimento da pecuária leiteira, mas o que está em jogo é uma questão cultural

dos tradicionais pequenos proprietários da região. Percebendo essa potencialidade, ou seja, os

campos nativos, os assentados passaram a investir na pecuária leiteira enquanto estratégia de

reprodução (Foto 2).

Foto 2 - Assentamento Capivara/ Sant’Ana do Livramento/RS: vacas leiteiras da raça holandesa no pasta após a ordenha Fonte: Chelotti (Maio de 2006)

Apesar de reclamarem do baixo preço recebido pelo litro de leite, os assentados

argumentam que a atividade é responsável pela geração de uma renda mensal, capaz de pagar

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as despesas fixas, como energia elétrica e aquisição de produtos não obtidos no lote, como

açúcar, café, etc.

Em função do apoio governamental em incentivar o desenvolvimento da fruticultura

nos municípios da região, como o programa do Governo Estadual Pró-Fruta, essa atividade

também tem ganhado espaços nos assentamentos rurais, tornando-se mais uma atividade

geradora de renda, como é o caso da produção de melão (Foto 3).

Foto 3: Assentamento Upacaraí/Dom pedrito/RS: assentados na colheita do melão Fonte: Chelotti (Janeiro de 2006)

Como vimos muitas são as estratégias de reprodução experimentadas pelos assentados,

embora, em muitas vezes a falta de uma política eficaz para a emancipação dos projetos de

assentamentos rurais seja o maior obstáculo para a definitiva re-territorialização desses

indivíduos na região.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A presença acentuada de assentamentos rurais na Campanha Gaúcha requer mais do

que nunca análises referentes à sua dinâmica social, econômica, política e ambiental, pois

exigem a aplicação de medidas que visem a manutenção da produção familiar em áreas de

pecuária de corte extensiva.

Nesse sentido, representam uma transformação socioespacial em relação a situação

anterior, dominada até então, pelo espaço latifúndio e seu domínio, baseado numa pecuária de

corte e no cultivo da lavoura capitalista do arroz irrigado. Assim, além de representarem

transformações econômicas, sociais e políticas, os assentados promovem redefinições

territoriais muito significativas, tanto a nível local como regional.

O processo de reorientação geográfica dos assentamentos rurais em direção a

Campanha Gaúcha provocou transformações nas áreas em que estes se encontram instalados,

não só na economia, mas também na sociedade e na política possibilitando assim, a (re)

organização espacial dessa região.

A precariedade dos projetos, como qualidade do solo, acessibilidade, políticas de infra-

estrutura e assistência técnica, historicamente são deficientes. Assim, ao chegarem aos

assentamentos rurais, conquistas que às vezes levam anos, os assentados se deparam com a

realidade de sobreviver num lote que, em muitos casos, como na Campanha Gaúcha, é inferior

a um módulo rural (28 hectares), ou seja, minifúndios em áreas tradicionalmente comandadas

pela pecuária de corte e lavoura moderna do arroz.

Assim, deve-se estimular nos assentamentos, o desenvolvimento de uma agricultura

que produza rendimentos necessários para a continuação do seu processo produtivo e que

viabilize a fixação do homem no meio rural e a reprodução das unidades de produção familiar.

No entanto, os assentamentos rurais territorializados na Campanha Gaúcha vêm

demonstrando que, por sua própria natureza política, se constituem em espaços por excelência

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de novas experiências produtivas, nesse caso possibilitando a reorganização do espaço agrário

regional.

Portanto, somente mergulhando no universo interno dos assentamentos podemos

compreender as complexas relações estabelecidas num espaço que ainda está em construção, e

que em muitos casos contempla indivíduos dotados de concepções díspares. Mas, essa é uma

trajetória que se constrói no dia-a-dia de suas vivências, com acertos e erros, inerentes a

qualquer grupo social.

5. REFERÊNCIAIS

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