A nova medicina hipocrática

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  • Este artigo foi escrito tendo por base o artigo originalmente por mim intitulado A

    profisso sob risco e que foi publicado em: Agosto, FM; Peixoto, R & Bordin, R.

    Riscos da prtica mdica. Porto Alegre: Dacasa, 1998, p. 79-92. Modifiquei

    substancialmente algumas passagens, e, em especial, os pargrafos de concluso so

    inditos. Minha convico de que o artigo ainda atual aliada necessidade de tornar

    pblicas algumas modificaes importantes, levaram-me a refaz-lo e republic-lo.

    Como se trata de um artigo modificado achei por bem dar-lhe um novo ttulo

  • Marco Antnio Oliveira de Azevedo Mdico, Doutor em Filosofia pela

    UFRGS, Professor do PPG em Filosofia da Unisinos (So Leopoldo,

    Brasil).

    Este artigo tem por finalidade provocar uma reflexo

    sobre o conceito de profisso mdica, sobre sua natureza moral e

    principalmente sobre as mudanas que de modo quase insensvel

    vm ocorrendo mundialmente pelo menos nos ltimos 30 anos.

    Trata-se de uma reflexo sobre o risco, assinalado por alguns

    mdicos, filsofos e bioeticistas, de que talvez o que estejamos

    presenciando seja, enfim, um processo de descaracterizao da

    medicina hipocrtica e uma dissoluo de sua tradio milenar,

    dando lugar a uma nova medicina, cujos preceitos e normas

    servem apenas como dissimulao de interesses alheios aos que

    celebremente ergueram a medicina ao posto de uma das mais

    nobres das profisses1. Uma nova medicina, destituda de seus

    vnculos morais clssicos, e assimilada a relaes de mercado

    que situam o trabalho mdico como um artigo de consumo igual

    a qualquer outro, transformando as relaes entre mdicos e

    pacientes em relaes comerciais reguladas pelas normas dos

    cdigos especiais de defesa do consumidor. Uma nova medicina

    assimilada condio de mero ofcio, sem padres morais internos ou clssicos, orientada apenas por valores tcnicos,

    constrangida unicamente pelos princpios e normas externas do

    Estado de Direito e moralmente subordinada apenas aos interesses demandados por seus clientes ou contratantes. Do apelo chamada medicina defensiva, segue-se um natural mal-estar e o questionamento fundamental sobre se h ou no

    1 Cameron, Nigel M. de S. The New Medicine: Life and Death after Hippocrates,

    Wheaton, Crossway, EUA. 1992

  • alternativas a essas tendncias. Trata-se, enfim, de saber se o

    modelo profissional hipocrtico ainda atual, e se mudanas na

    tradio so necessrias e bem-vindas, ou, ao contrrio, se essas

    mudanas representam indcios do fim inexorvel da prpria

    tradio.

    I

    A medicina vem mudando nos ltimos tempos no s no

    domnio tcnico, sofrendo mudanas tambm e, principalmente,

    em sua essncia e natureza moral. A primeira evidncia geral

    desta mudana encontra-se no avano imenso da cincia. O

    desenvolvimento tecnolgico trouxe consigo a multi-

    especializao e a substituio da clnica por procedimentos

    tcnicos cada vez mais sofisticados. A medicina tornou-se cara e

    de difcil acesso, trazendo consigo no s inmeros problemas

    de ordem econmica e social, mas tambm de ordem moral.

    Novas tcnicas, antes impensveis e incompatveis com os

    preceitos morais clssicos do hipocratismo, tornaram-se agora

    acessveis ao mercado consumidor. Segundo o reverendo Nigel

    M. de S. Cameron, as reflexes em torno de novos princpios

    para a tica mdica servem principalmente ao propsito de dar

    cobertura moral a toda nova tcnica. Em toda sua variedade, diz ele, a discusso contempornea sobre a tica mdica tem o efeito de oferecer a qualquer um uma justificao tica prima

    facie para qualquer pesquisa ou regime de tratamento que o

    mdico possa oferecer2. Cameron tem em vista principalmente

    as novas possibilidades abertas com a gentica mdica, a

    manipulao de embries e mesmo questes to antigas como o

    aborto e a eutansia3. Nesse aspecto, sua preocupao , todavia,

    2 Cameron, Nigel M. de S. The Seamless Dress of Hippocratic Medicine. Em: Ethics

    & Medicine, 1991, 7.3, p.43. 3 O Dr.Cameron foi editor da revista Ethics & Medicine e Associate Dean para

    programas de doutoramento da Trinity Evangelical Divinity School, Deerfield,

  • nitidamente conservadora. Mas ela parte de uma constatao

    insofismvel: h uma presso de mercado em favor da

    incorporao crescente de novas tecnologias gerando uma

    presso tambm sobre a prpria moralidade da medicina.

    Aqui entra uma segunda evidncia de mudana

    paradigmtica: o surgimento da biotica. somente aps algo

    em torno do ano de 1970 que surge nos Estados Unidos esta

    nova disciplina. A biotica, diz o Dr. Cameron, uma criatura

    acadmica de nosso tempo4. A tica envolvida com questes

    relativas s cincias da vida no pode mais ser restrita aos

    profissionais mdicos, nem restringir-se apenas s orientaes

    normativas, de cunho deontolgico, dos cdigos profissionais5.

    Com a biotica, surgem tambm os novos Comits Hospitalares

    de tica, formados no s por mdicos, mas por filsofos,

    telogos e representantes da sociedade civil, e os Comits

    estatais para o estudo de problemas ticos, dentre os quais o

    famoso Comit Warnock do Reino Unido, presidido ento pela

    professora e filsofa Mary Warnock, cujo relatrio sobre

    pesquisa com embries humanos atraiu muito a ateno nos

    meados da dcada de 806. Atualmente, a biotica consolidou-se

    Illinois, sendo considerada uma eminente voz da comunidade evanglica acadmica

    dos EUA. 4 Cameron, Nigel M. de S. Bioethics and the Challenge of the Post-Consensus

    Society. Em: Ethics & Medicine, 1995, 11.1. 5 A Encyclopedia of Bioethics d a seguinte definio de biotica: Estudo sistemtico da conduta humana no campo das cincias biolgicas e de ateno

    sade, nas medidas em que esta conduta se examina a luz de valores e princpios

    morais (...) A biotica abarca a tica mdica, porm no se limita a ela (OPAS, Biotica, Temas y Perspectivas, publ. n 527, 1990). 6 Toulmin, Stephen; filsofo mundialmente renomado, tambm foi consultor do

    Comit para o estudo de princpios ticos relativos pesquisa mdica, a National

    Commission for the Protection of Human Subjects, de 1980, que elaborou o famoso

    relatrio Belmont.

  • como nova disciplina acadmica, incluindo e por vezes

    subordinando a prpria tica mdica.

    Uma terceira evidncia alia-se a essas duas: a medicina,

    na medida em que se desenvolve e se sofistica como tcnica,

    abre-se cada vez mais aos apelos do mercado consumista. A

    ateno mdica move-se em direo satisfao dos interesses

    dos consumidores. A medicina torna-se um negcio, alvo do

    interesse de empreendedores alheios atividade mdica7.

    Segundo Cameron, trata-se de um duplo modelo: medicina

    como tcnica e medicina como satisfao dos consumidores8.

    Este duplo modelo com sua concepo do mdico como tcnico

    possuidor de habilidades a serem oferecidas a um mercado

    consumidor , para Cameron, a conseqncia inevitvel do

    abandono do consenso tico antes representado pelo modelo

    hipocrtico. O que para alguns no seria propriamente um

    problema, no fosse a questo levantada de se com isso a

    medicina sobreviver9.

    7 Cameron considera que a retrica em favor da autonomia em oposio ao chamado

    paternalismo, caracterstico da tradio hipocrtica, vem servindo, no contexto de uma cultura mdica fragmentada, para encobrir formas reais de exerccio de poder:

    se a idia de autonomia do paciente oferece uma abordagem inadequada das relaes que envolvem o componente tico das decises clnicas, ento o poder sobre

    o paciente est sendo exercido por um outro (Cameron, Bioethics and the Challenge of the Post-Consensus Society, Op.Cit., p.5). O paternalismo tido como uma das

    caractersticas da medicina hipocrtica, posto em reviso no perodo contemporneo,

    especialmente pelas ticas baseadas em princpios (principle-based ethics) e pelas

    ticas que orientam as relaes mdicas pelo respeito aos direitos individuais (right-

    based ethics). A propsito dos diferentes modelos ou tipos de teorias ticas, veja-se o

    excelente captulo 2 da 4a edio do livro de Tom L. Beauchamp & James F. Chilress,

    Principles of Biomedical Ethics (Oxford Press, 1994, 4a. Edio) ou o captulo 8 da 5a

    edio (Oxford Press, 2001). 8 Cameron, Nigel M. de S, Op.Cit., p.43. 9 Ibidem, p.44.

  • II

    Esta posio compartilhada por outros autores, dentre

    os quais Leon Kass, da Universidade de Chicago10

    . Preocupado

    em salientar os aspectos vocacionais da profisso mdica, Kass

    afirma que h atualmente uma confuso com respeito aos fins e

    propsitos da medicina. A misso tradicional do mdico de

    buscar a sade e proteger a vida vem sendo desvalorizada,

    dando lugar a princpios antes subalternos, como o alvio do

    sofrimento. Para Kass, aliviar o sofrimento de um doente parte

    de uma ao mdica cuja finalidade principal a sade, o que s

    pode ser estimado numa relao ntima entre o mdico e seu

    paciente11

    . Tanto Kass como o reverendo Cameron ressaltam os

    aspectos tradicionais da medicina hipocrtica, em oposio tanto

    s novas abordagens da tica baseada em princpios como s

    ticas utilitaristas. Edmund Pellegrino, do Centro para o Estudo

    Avanado da tica da Universidade de Georgetown, tambm

    concorda que a antiga tica hipocrtica encontra-se sob risco.

    Segundo ele, nas ltimas trs dcadas, o princpio de autonomia

    deslocou o princpio de beneficncia como o primeiro princpio

    da tica mdica, sendo esta a reorientao mais radical j

    ocorrida na longa histria da tradio hipocrtica12

    .

    10 Leon Kass ocupou o cargo de presidente do The Presidents Council on Bioethics dos Estados Unidos (criado pelo presidente George W. Bush, em 2001). Atualmente,

    a presidncia ocupada por Edmund Pellegrino (detalhes podem ser obtidos na

    pgina do Conselho Presidencial: www.bioethics.gov). 11 Kass, L. Ethical Dilemmas in the Care of the Ill. JAMA, Oct. 24/31, 1980 - Vol.

    244, n. 17, p.1949. 12 Pellegrino, Edmund. La relacin entre la autonoma y la integridad en la tica

    mdica. En: Biotica: Temas y Perspectivas, OPAS, Publicao n 527, 1990, p.8.

  • Se isso desagrada a alguns, parece, todavia, agradar

    maioria dos bioeticistas contemporneos13

    . Apesar de recente, a

    Biotica desenvolveu-se rapidamente nos meios mdicos e

    acadmicos do mundo inteiro. Tom Beauchamp e James

    Childress iniciam o primeiro captulo da quarta edio de seu

    consagrado livro Principles of Biomedical Ethics (hoje na quinta

    edio) com a seguinte constatao:

    A tica mdica desfrutou um considervel grau de

    continuidade dos dias de Hipcrates at que suas longas e

    estabelecidas tradies comeassem a ser suplantadas, ou ao

    menos suplementadas, em torno da metade do sculo vinte. Os

    desenvolvimentos cientficos, tecnolgicos e sociais durante esta

    poca produziram rpidas mudanas nas cincias biolgicas e

    nos cuidados em sade. Estes desenvolvimentos mudaram

    muitas das concepes at ento prevalentes das obrigaes

    morais dos profissionais de sade e da sociedade com respeito

    s necessidades de doentes e acidentados14

    .

    Em todo o seu livro, Beauchamp e Childress parecem

    desconsiderar a questo de se h algum risco fundamental seja

    no fim, seja na suplementao dos princpios tradicionais do hipocratismo. Para eles, as sociedades e a medicina

    contempornea simplesmente no se sustentam mais dentro dos

    estreitos limites da escola hipocrtica. Robert Veatch outro

    reconhecido autor a assinalar os limites das relaes

    profissionais fundadas na tica e deontologia tradicional. Parte

    deve-se s rpidas mudanas nas relaes de poder entre

    profissionais e leigos. A nfase dominante atualmente dada ao

    13 A propsito, veja-se o artigo de Fletcher, David B. (Response to Nigel M. de S.

    Camerons Bioethics and the Challenge of the Post-Consensus Society, Ethics & Medicine. 1995, 11.1, p.7-12). 14 Beauchamp, TL & Childress, JF. Principles of Biomedical Ethics, 4a. Edio,

    Oxford. 1994, p.3.

  • princpio de autonomia aos pacientes. Outra parte deve-se ao

    fato de hoje a atividade profissional ser regulada externamente.

    Para Veatch, a construo de uma tica profissional no mundo

    de hoje deve voltar-se s normas bsicas do contrato social. Este

    giro em direo ao contrato social teria levado ao fim a tica

    hipocrtica15

    .

    III

    Em que medida pode-se dizer que a profisso mdica

    encontra-se no s frente a iminncia de perder seus laos

    principais de identificao com o hipocratismo, mas sob o risco

    de com isso descaracterizar-se como profisso? Para

    compreender isso, vale a pena retomar alguns aspectos cultura

    mdica vinculada figura de Hipcrates.

    A histria da medicina antiga confunde-se com a histria

    do pensamento grego. Tanto a filosofia como a medicina grega

    foram influenciadas pelos antigos pensadores gregos que desde

    Tales de Mileto procuravam explicaes naturais para

    fenmenos antes apenas explicados de modo mstico. Segundo a

    tradio acadmica, foi em Mileto, no sul da Jnia, que a

    filosofia grega teve incio. O ano de 585 AC, dado como marco

    do incio do pensamento grego, coincide com o ano em que

    Tales previu o eclipse do sol16

    . Tais eram as caractersticas dos

    antigos pensadores gregos: a procura por uma hiptese

    unificadora para os vrios fenmenos naturais e busca de uma

    explicao natural, opondo-se s explicaes msticas e

    sobrenaturais dominantes do mundo antigo17

    . H evidncias de

    15 Veatch, RM. The Patient-Physician Relation: The Patient as Partner, Part 2,

    Bloomington; Indiana University Press. 1991. 16 Barnes, J. Filsofos Pr-Socrticos, Livraria Martins Fontes, So Paulo, 1997, p. 11

    (traduo de Early Greek Philosophy, Penquin Books, Londres, 1987). 17 Longrigg, J. Greek Rational Medicine: Philosophy and Medicine from Alcmaeon to

    the Alexandrians, Routhledge, London and New York, 1993, p.15.

  • que os seguidores da escola de Hipcrates compartilhavam a

    mesma perspectiva naturalista dos filsofos milsios. Mas h

    uma diferena fundamental entre eles. Os seguidores de

    Hipcrates eram prticos, sua atividade no era filosfica.

    Segundo Edelstein, tais mdicos eram tcnicos (craftsmen)18

    , o

    que no significa, todavia, que no seguissem certos princpios e

    ensinamentos tericos. A maioria desses ensinamentos

    encontram-se reunidos no chamado Corpus Hippocraticum, um

    conjunto de tratados escritos entre os sculos quinto e quarto

    antes de Cristo, que supostamente seriam da autoria de

    Hipcrates, o mdico, nascido na ilha de Cs, figura quase

    lendria, cuja vida particular infelizmente pouco sabemos19

    . No

    tratado conhecido como De vetere medicina, o autor manifesta

    sua rejeio ao emprego dos princpios filosficos milsios para

    a explicao da composio do corpo humano e seus

    mecanismos fisiolgicos20

    . Segundo Hipcrates, no h como

    explicar o funcionamento do corpo e a natureza das doenas

    18 Edelstein, L. The Hippocratic Physician. Em: Ancient Medicine, John Hopkins UP,

    Baltimore and London. 1987, p.87. A palavra inglesa craftsman, empregada por

    Edelstein para indicar que a atividade mdica na antigidade no se diferenciava de

    ofcios comuns, representados na antiga Grcia por uma variedade de artesos,

    possuidores de alguma tcnica que os diferenciava dos demais, no tem bons

    equivalentes em lngua portuguesa. Crafts so ofcios vulgares, em diferena s

    profisses tradicionais de origem universitria. 19 Em vrios de seus artigos, Ludwig Edelstein contrasta a opinio de diferentes

    eruditos sobre a autenticidade ou no dos escritos atribudos a Hipcrates (Edelstein,

    Ludwig, Op. Cit., p. 133-44). Se o personagem nascido na ilha de Cs, que parece ter

    estudado com Herdico e Grgias, que fundou uma escola mdica e praticou seus

    ensinamentos principalmente em Larissa, foi de fato o mesmo autor que escreveu os

    tratados de medicina includos no Corpus algo interessante do ponto de vista

    histrico, mas no modifica em nada a afirmao relevante investigao moral sobre

    os vnculos culturais entre a medicina moderna e a medicina grega, em particular a

    hipocrtica. 20 Tales de Mileto, o maior dos physikoi (estudantes da natureza ou filsofos naturais do mundo antigo), afirmou que a gua a natureza primeira de todas as coisas (Aristteles, Metafsica, 983b6-11, 17-27); Barnes, Jonathan Op. Cit., p. 74.

  • partindo-se de seja um ou mais princpios hipotticos. Os

    mdicos, envolvidos diretamente com a prtica, partem da

    ignorncia para observaes e descobertas que se somam umas

    s outras por longos perodos. Isso faz do conhecimento mdico

    um conhecimento incompleto e no absoluto por excelncia;

    todavia, os mdicos devem orgulhar-se, segundo Hipcrates, de

    que seu conhecimento e sua arte devem-se a pesquisas boas e

    corretas, no sendo, pois, meros frutos do acaso21

    .

    Deve-se a esta tradio que seguiu os ensinamentos de

    Hipcrates, portanto, a posio de autonomia da medicina em

    relao tanto religio quanto ao pensamento filosfico. Outra

    distino importante reside no seu carter profissional. Os

    mdicos hipocrticos eram unidos por um cdigo de condutas

    comum, e tudo indica que o respeito a esse cdigo era exigido

    sem reservas. Segundo Cameron, a medicina hipocrtica

    representou para o mundo antigo a emergncia da arte mdica

    como uma atividade profissional. Tal caracterstica , segundo

    ele, essencial medicina e um dos aspectos postos em risco

    com a emergncia de novos paradigmas. Em seu apoio,

    Cameron apela ao trabalho de Eliot Freidson, que toma o

    exemplo da medicina como modelar para o entendimento de o

    que uma profisso moderna22

    .

    Freidson fala em seu livro do que caracteriza como

    caractersticas formais de uma profisso. Uma distino fundamental entre uma profisso e outras ocupaes, diz

    21 Longrigg, Op. Cit., Cap. 4, p. 82-3. Ver tambm: Edelstein, Op. Cit., p. 108 (O conhecimento mdico no pode ser conhecido rapidamente, pois no pode haver

    dogmas fixos). Hippcrates parece ter sido o primeiro a assinalar a diferena entre o mtodo filosfico e o mtodo das cincias naturais, ou entre raciocnios dedutivos e

    indutivos. Ver, a propsito: Gotchall, CAM. Do mito ao pensamento cientfico.

    Atheneu, Porto Alegre. 2004. 22 Freidson, E. Profession of Medicine: a Study in the Sociology of Applied

    Knowledge, Harper and Row, New York. 1970.

  • Freidson, reside em sua autonomia organizada e legitimada

    socialmente: os membros da profisso obtiveram a permisso

    exclusiva, o privilgio, ou se quisermos, o direito de controlar seu prprio trabalho. Diferentemente de outras ocupaes,

    profisses so deliberadamente garantidas em sua autonomia,

    incluindo o exclusivo direito de determinar quem pode e quem

    no pode legitimamente realizar seu trabalho e como este

    trabalho deve ser executado23

    . Somente a profisso tem o direito

    reconhecido de declarar avaliaes externas como ilegtimas e intolerveis. Isso no significa dizer que a sociedade no

    interfere de modo algum sobre a autoridade da profisso, mas

    sim que uma profisso somente consegue manter-se enquanto tal

    se conseguir manter sua autonomia. Uma profisso, segundo

    Freidson, alcana e mantm sua posio em virtude da proteo

    de algum grupo hegemnico da sociedade, que se acha

    persuadido de que h algum valor especial em seu trabalho.24

    Seguindo Freidson, Cameron sustenta que a medicina no

    apenas uma profisso, mas o principal exemplo e modelo de

    profisso. Nas palavras de Freidson, a medicina no meramente uma das maiores profisses do nosso tempo (...). De

    fato, de um modo ou de outro, a profisso da medicina, e no

    outra como a advocacia ou o sacerdcio (entre outras mais), veio

    a tornar-se o prottipo a partir do qual as ocupaes, que hoje

    buscam algum status privilegiado, modelam suas aspiraes25.

    Como isso, porm, se deu durante a histria da tradio

    hipocrtica? Edelstein afirma com boa fonte de evidncias que

    os seguidores de Hipcrates eram, na verdade, uma minoria na

    antiga Grcia e, ao contrrio do que se poderia supor, no

    possuam um nvel social ou prestgio mais elevado que o das

    23 Cameron, Op. Cit. p.46. 24 Ibidem. 25 Ibidem.

  • outras ocupaes e ofcios de sua poca. A imagem que

    Edelstein nos d do mdico hipocrtico a de um artfice que

    negocia livremente sua arte, que oferece seus prstimos em sua

    casa ou procura de casa em casa quem os queira. Segundo

    Edelstein, o mdico grego no era o doutor, o homem culto e educado cujo conhecimento reverenciado e a cujo ofcio se

    reconhece autoridade em razo desse conhecimento; ao

    contrrio, o mdico grego era um tcnico (craftsman) que ainda

    precisava provar que conhecia muito bem seu ofcio. O mdico

    ansiava, igualmente, no s por oferecer seu trabalho como

    tambm por merecer seu pagamento. A autoridade essencial a

    cada tratamento precisava ser conquistada, e isso significa que

    o comportamento do mdico era ditado por consideraes no-mdicas numa medida muito maior do que so hoje as aes dos

    mdicos em relao a seus pacientes26.

    Edelstein tem em vista as comparaes que

    freqentemente so feitas entre a prtica mdica de hoje e a

    medicina grega antiga. Para ele, o mdico hipocrtico no

    possua o prestgio que usualmente julgamos que possua. Se a

    medicina antiga constituiu-se numa profisso graas ao

    hipocratismo, isso se deveu a uma mudana histrica

    circunstancial, que fez de um grupo minoritrio de tcnicos ou

    artfices identificados com o pensamento de Hipcrates e unidos

    por laos morais peculiares os iniciadores de um movimento de

    alcance poltico, que ultrapassou no tempo e no espao os

    limites do mundo grego. Para Edelstein, toda mensagem do

    Juramento Hipocrtico, texto que simboliza o contedo moral do hipocratismo, deve ser avaliada como uma mensagem

    inserida em uma poca histrica. Para ele, o Juramento deve ser compreendido fundamentalmente como um manifesto

    26 Edelstein, Op.Cit., p.88.

  • contrrio s prticas mdicas dominantes poca, influenciado

    pelo pitagorismo. Este documento, que antes unificava apenas

    um pequeno segmento de mdicos gregos seguidores, ao que

    parece, da doutrina e da religio de Pitgoras27

    , inimigos das

    prticas mgicas e supersticiosas, que igualmente conviveram

    por sculos como uma minoria entre mdicos que praticavam o

    aborto, que prescreviam veneno aos que pretendiam o suicdio e

    que praticavam indiscriminadamente a cirurgia28

    , j no final da

    Antigidade comeou a tornar-se popular, tornando-se parte do

    curriculum do ensino de jovens mdicos. Tal tendncia

    consolidou-se com a supremacia do cristianismo, cujos preceitos

    relativos prtica mdica assemelham-se em seus aspectos

    principais aos do pitagorismo e do hipocratismo. Assim,

    Edelstein considera que, por motivos casuais e histricos, um

    manifesto pitagrico circunstancial sua poca, acabou por se tornar modelo e expresso absoluta da tica mdica no perodo

    medieval e moderno29

    .

    27 Pitgoras de Samos, nascido por volta do ano de 570 AC, alm de ter sido filsofo e

    matemtico, foi o fundador de uma espcie de religio laica, cujos seguidores

    organizavam-se em torno de sociedades secretas e praticavam algum tipo de vida

    comunitria. Edelstein sustenta que os princpios advogados por Hipcrates e seus

    seguidores mantinham muitas semelhana com os princpios morais e de conduta dos

    pitagricos. 28 O Juramento de Hipcrates explcito em condenar o uso da faca, mesmo para retirar pedras, dado que esta prtica s deveria ser permitida queles versados e treinados nessa tcnica. A interpretao da passagem do Juramento onde se faz tal

    separao entre a clnica e a cirurgia, identificando apenas a primeira como parte da

    medicina, ainda objeto de controvrsias. 29 Edelstein insiste em que as circunstncias so acidentais e histricas, isto , de que

    no h conexo essencial entre hipocratismo e medicina (ao menos, a medicina

    grega). Porm, podemos entender o fenmeno da consolidao do hipocratismo como

    um fenmeno social evolutivo. Circunstncias histricas, aliadas a caractersticas

    prprias de uma prtica diferenciada nascente, levaram com o tempo fixao da

    prtica hipocrtica como modelo ou padro de medicina por excelncia. Sendo assim,

    h evidentemente um nexo causal entre hipocratismo e medicina, pois tudo os que o

    evolucionismo em teoria social pretende sustentar que a seleo social de uma certa

  • Se a profisso mdica tem as caractersticas citadas por

    Cameron e por Freidson, isso no se deve, porm, poca de

    Hipcrates. Nesta poca, a atividade mdica ainda era

    predominantemente apenas um ofcio, uma techn. Contudo, um

    autor do sculo primeiro DC, Scribonius Largus, j passa a

    considerar a medicina no mais meramente como uma arte ou cincia, mas como uma profisso (professio). Esta palavra, na linguagem de seu tempo, era empregada com a finalidade de

    enfatizar as conotaes morais do trabalho, a idia de obrigao

    ou dever daqueles engajados numa arte ou ofcio. H uma

    semelhana com o conceito de vocao, com a particularidade

    de que o dever de um membro de uma profisso antiga resultava

    da compreenso da natureza de sua profisso, e no de injunes

    ordenadas por alguma divindade30

    . Cameron assinala que

    Scribonius teve a oportunidade de refletir sobre o carter da

    medicina numa poca em que o cristianismo apenas principiava,

    perodo, porm, em que a influncia de Hipcrates j havia se

    difundido largamente no mundo antigo31

    . Edelstein, porm,

    considera algumas diferenas fundamentais entre o hipocratismo

    anterior e a moral preconizada por Scribonius, pois, em

    contraste com o deontologismo dos seguidores de Hipcrates,

    Scribonius considerava que os sentimentos de compaixo32

    prtica no um fenmeno que acontece simplesmente ao acaso, e sim por um tipo

    peculiar de determinao ou causalidade histrica (sobre o conceito de evoluo aplicada sociedade e no biologia, sugiro a leitura especialmente de Hayek,

    Friedrich. Law, legislation and liberty. Volumen 1, Rules and order. University of

    Chicago Press. 1973). 30 Edelstein, Op.Cit., p. 339. 31 Cameron, Op.Cit., p.45. 32 O termo usado por Edelstein para traduzir misericordiae sympathy. A perspectiva de fundamentar a moral nos sentimentos morais, em oposio ao

    principialismo, tem como seu maior expoente moderna o filsofo escocs David

    Hume (a propsito, ver: Baier, AC. A Progress of Sentiments, Harvard UP. Londres.

    1994).

  • (misericordiae) e humanidade (humanitatis) eram essenciais

    medicina. Se um mdico no consegue ajudar um doente com

    todos os meios de que dispe, ento ele deixa de oferecer ao

    homem a compaixo prometida e vinculada sua prtica. Tais

    conceitos de uma moral fundada em disposies afetivas em

    contraste com a orientao normativa so, segundo Edelstein,

    estranhos, ainda que no incompatveis, com o esprito da tica

    preconizada pelos hipocrticos antigos. Para Edelstein, tais

    cdigos de conduta assemelham-se fortemente aos preceitos da

    doutrina humanistas dos esticos, pregada especialmente por

    Pancio no sculo II AC e difundida aps por Ccero. nesse

    contexto que o programa de uma tica profissional estabelece-se

    de modo firme. Trata-se de uma mudana relevante que

    acrescenta tradio aspectos morais que antes no eram tidos

    como substanciais.

    H algo mais a ser mencionado sobre a influncia do

    estoicismo como elo entre o antigo discurso dos seguidores de

    Hipcrates e o discurso moral que veio a se consolidar aps a

    Antigidade, especialmente no mundo ocidental, com a

    cristianizao da tradio hipocrtica. O filsofo Alasdair MacIntyre, em After Virtue, aponta uma distino fundamental

    entre dois conceitos de virtude. Se antes as virtudes humanas,

    tanto em Plato como em Aristteles, guardavam uma

    ordenao teleolgica, de modo que a virtude de cada um s

    podia ser compreendida no contexto circunstancial e histrico da

    insero deste indivduo em uma comunidade determinada, com

    o estoicismo, toda virtude passa a ser entendida como

    conformidade das disposies e atos de cada indivduo isolado

    com a natureza, compreendida como uma lei csmica e universal. O homem bom um cidado deste universo e suas

    relaes com outras coletividades, como a cidade, reinos ou

  • imprios, secundria e acidental33. Segundo MacIntyre, o

    estoicismo no certamente apenas um episdio na cultura

    grega e romana; ele estabeleceu um padro para todas as

    moralidades europias posteriores, que invocam a noo de lei

    como central de um modo a deslocar as concepes que apelam

    a virtudes34. Assim, podemos inferir igualmente que, dentre os diferentes enfoques da tradio hipocrtica, prevaleceu o

    enfoque deontolgico primeiramente a partir da provvel

    influncia estica, consolidado logo aps pelo cristianismo.

    Tambm a autoridade e autonomia profissional que

    Freidson e Cameron consideram cruciais medicina somente

    veio a germinar, se acompanharmos Edelstein, aps o fim da

    Antigidade, mediante a influncia do estoicismo e de sua

    incorporao pelo cristianismo35

    . A tradio hipocrtica,

    portanto, no pode ser vista como um modelo invarivel, logo,

    como uma tradio inconstil. Sua imagem moderna descende da incorporao do mito hipocrtico pelos crculos mdicos que

    vieram a representar essa tradio, principalmente aps o final

    do perodo helenstico. Judeus, cristos, rabes, mdicos

    medievais, homens da Renascena, pensadores e cientistas

    iluministas e acadmicos do sculo dezenove abraaram os

    ideais do hipocratismo36

    . Contudo, o papel histrico do

    movimento hipocrtico no desenvolvimento da medicina antiga,

    esvaiu-se com o tempo. Os ideais hipocrticos, inicialmente

    33 MacIntyre, A. After Virtue, Duckworth, London. 1981, p.168-9. 34 Ibidem, p.169. 35 Freidson, verdade, considera que a autoridade professional mdica um

    fenmeno ainda mais recente. Uma das caractersticas da medicina sua condio de

    preeminncia. Porm, a medicina somente obteve esse status de preeminncia dentre

    as demais ocupaes que lidam com a sade humana (incluindo aqui as mais diversas

    modalidades de medicina tradicional) em meados do sculo XX (ver: Freidson, E. Op. Cit., p. 5). 36 Edelstein, The Hippocratic Oath, em Op.Cit. p.63.

  • minoritrios, foram gradualmente sendo absorvidos e

    incorporados por outras tradies, at tornarem-se os ideais de

    um modelo dominante.

    IV

    Em janeiro de 1973, a Suprema Corte dos Estados

    Unidos, no famoso caso Roe versus Wade, decidiu que toda

    deciso sobre aborto, assim como sua realizao, no estgio que

    antecede aproximadamente o fim do primeiro trimestre da

    gestao, deve ser deixada para o juzo profissional do mdico

    que assiste mulher gestante. Apenas aps o primeiro trimestre

    que o Estado, no interesse de promover seus interesses com

    respeito sade da me, pode, se assim decidir, regular a prtica

    do aborto de modo a que se faa compatvel com a preservao

    da sade materna37

    . A deciso tocou em um dos pontos mais

    sagrados da medicina hipocrtica. O Juramento de Hipcrates

    explcito na condenao do aborto, e os cdigos de tica mdica,

    at pelo menos metade deste sculo, eram unnimes em

    proscrever o aborto como imoral e contrrio boa medicina.

    A acusao apelou a este argumento, referindo-se

    natureza da medicina e sua identidade essencial com a

    proscrio do aborto. Na sua argio, o juiz Blackmun, relator

    que sustentou a deciso da Corte, fez aluso s consideraes de

    Ludwig Edelstein, citando sua observao de que o Juramento

    de Hipcrates era apenas um manifesto pitagrico, e no a

    expresso de um padro absoluto de conduta mdica. Os escritos

    mdicos de Galeno (130-220 AC), por exemplo, do inmeras

    evidncias de violaes a vrias das injunes hipocrticas.

    37 Caso Roe versus Wade, 410 U.S. 113, Jan., 22, 1973, District Attorney of Dallas

    County. Uma bela abordagem do tema, com intensas referncias a este caso famoso,

    encontra-se no livro de Dworkin, Ronald Lifes Dominion, Alfred Knopf Inc., 1993, especialmente os captulos 4, 5 e 6.

  • Muitos pensadores gregos, dentre os quais Plato e Aristteles,

    recomendaram o aborto em certas circunstncias38

    . Para os

    pitagricos, entretanto, isso era matria de dogma, pois para eles

    o embrio era animado desde o momento da concepo e o

    aborto significava a destruio de um ser vivo39

    .

    Se os vrios preceitos contidos no Juramento Hipocrtico

    so, em verdade, resqucios descontextualizados de um

    movimento cultural protagonizado por um grupo minoritrio de

    mdicos pitagricos, incorporados, aps a Antigidade, pela

    tradio crist, entre outras, parece claro que, se h alguma

    unidade na tradio, ento: primeiro, esta deve ter sido forjada

    aps a Antigidade; segundo, parece coerente que tal unidade

    posterior tambm possa ser relativizada e contextualizada

    historicamente. Talvez Cameron esteja certo quando afirma que

    nos situamos atualmente num contexto semelhante ao que deu

    origem ao hipocratismo. Na poca de Hipcrates, seus

    seguidores representavam uma minoria. Hoje, os preceitos

    hipocrticos so advogados por apenas uma parte, qui

    minoritria, dos mdicos. Cameron v na multiplicidade de

    vises e vertentes ticas existentes nos dias de hoje o resultado

    da perda do consenso tico antes representado pelo

    hipocratismo. Este consenso era representado por uma mesma

    idia de profisso e pela coeso e unidade da estrutura moral e

    religiosa da medicina hipocrtica. Trs princpios

    caracterizariam esta estrutura: o pacto triplo entre o mdico e

    seus mestres, seus pacientes e seu Deus; um princpio duplo,

    caracterizado pela obrigao de filantropia e pelo respeito

    38 Veja-se, a propsito: Plato, A Repblica, V, 461 e Aristteles, Poltica, VII,

    1335b25. 39 A Deciso por maioria da Corte, de 22 de janeiro de 1973, relatada pelo Juiz J.

    Blackmun encontra-se disponvel em http://members.aol.com/abtrbng/410us113.htm

    (acessada em 20/05/2005).

  • incondicional santidade da vida; e, ao contrrio das ticas

    fundadas no alvio ao sofrimento vigentes no tempo de Hipcrates, o papel singular e central de ser uma profisso

    orientada para a cura40

    . Cameron v nesta estrutura uma

    tessitura coesa, inconstil, isto , sem remendos ou adereos. A

    nova medicina, ao contrrio, seria caracterizada pela ausncia de

    coeso moral, o que a torna suscetvel de descaracterizao e

    submisso a interesses e valores morais externos antes

    incompatveis entre si. Uma espcie de retorno, enfim, ao

    modelo da mera techn, anterior e rival prtica dos seguidores

    de Hipcrates.

    Esta verso, tanto crtica como conservadora do

    Reverendo Cameron, tem como seu contraposto a verso liberal

    representada pelos defensores em biotica de vertentes ticas

    baseadas em direitos (right-based ethics). Dentre estes, vale a

    pena ressaltar Tristam Engelhardt Jr e Robert Veatch, da

    Georgetown University; dentre os filsofos, Robert Nozick,

    Alan Gewirth, Ronald Dworkin e Judith Jarvis Thomson esto

    entre os mais importantes41

    . Uma das suposies bsicas dessas

    teorias consiste em que, se a funo da moralidade proteger interesses individuais (em preferncia aos interesses comuns), e

    se direitos (em preferncia s obrigaes) so nossos primeiros

    instrumentos para este fim, ento todas as diretrizes para a ao

    moral so baseadas em direitos42. A tica mdica, como

    40 Cameron, Op. Cit., p. 48-50. 41 Engelhardt foi um dos primeiros a sustentar que o princpio de autonomia, derivado

    do liberalismo, deve ser considerado no contexto atual como o primeiro princpio da

    tica mdica (ver: Engelhardt Jr, T. The Foundations of Bioethics, Oxford UP, New

    York. 1986). 42 Beauchamp & Childress, Principles of Biomedical Ethics, Op. Cit., p.75. Para

    Beauchamp e Childress, uma teoria moral baseada em direitos, caso sustente que

    todas as diretrizes para a ao moral sejam baseadas em (ou subordinadas ao respeito

    a) direitos. Porm, quase todas as teorias morais baseadas em direitos sustentam que a

  • qualquer outra tica profissional, teria seu valor definido apenas

    e to somente no contexto mais geral de uma tica poltica

    baseada em direitos. A deciso da suprema corte americana no

    caso Roe versus Wade seguiria essa doutrina. Tendo refutado a

    universalidade e a validade incondicional dos preceitos

    hipocrticos, a Corte decidiu tendo em vista uma apreciao dos

    direitos postos em questo. S havendo direito por referncia a

    uma norma, a Corte americana tomou uma deciso afirmando

    um direito negativo, a saber, o direito de no interferncia do

    Estado em assuntos que dizem respeito privacidade e que s

    competem, segundo a interpretao, relao mdico-paciente.

    Assim, temos de um lado a posio conservadora dos

    que temem as mudanas indicadas pelo discurso dos bioeticistas

    contemporneos e vem no liberalismo um discurso

    dissimulador, e de outro, uma posio liberal extremada, que

    negligencia a importncia dos vnculos a uma tradio, vendo-os

    como uma ameaa liberdade individual, negando legitimidade

    a qualquer moralidade individual ou comunitria, incluindo a

    moralidade profissional. Tais extremismos dogmticos implicam

    discursos incompatveis. Optar por um lado resulta recusar o

    outro.

    Adaptando uma expresso da filosofia das cincias,

    MacIntyre fala de uma incomensurabilidade conceitual nos

    debates morais contemporneos. No h em nossa sociedade,

    segundo ele, nenhum meio estabelecido e consensual de como

    decidir entre tais concepes rivais. Assim, os debates morais

    tornam-se indecidveis43

    . De fato, como consideraes

    particulares sobre o que bom somente podem ser decididas no

    moralidade no se restringe unicamente ao respeito a direitos individuais. Nozick, por

    exemplo, considerou a vida examinada como um ideal moral que vai alm do mero respeito aos direitos. 43 MacIntyre, A. Op. Cit., p. 9-11.

  • seio de uma tradio, se as tradies no tm mais legitimidade

    moral para avaliar suas prprias prticas, como teriam para

    avaliar prticas e concepes rivais? Deveria haver alguma

    forma de avaliao independente das tradies, algo que

    MacIntyre considera ininteligvel.

    No obstante isso, MacIntyre define tradio como uma argumentao, desenvolvida ao longo do tempo, na qual certos

    acordos fundamentais so definidos e redefinidos em termos de

    dois tipos de conflitos: os conflitos com crticos e inimigos

    externos tradio que rejeitam todos ou pelo menos partes

    essenciais dos acordos fundamentais, e os debates internos,

    interpretativos, atravs dos quais o significado e a razo dos

    acordos fundamentais so expressos e atravs de cujo progresso

    uma tradio constituda44. Admitindo, com MacIntyre, esse conceito dinmico de tradio, conclui-se que a tradio

    hipocrtica tem ainda um longo caminho a percorrer. Aos riscos

    assinalados pelos principais oponentes deste debate, somam-se

    os riscos de manter a tradio enrijecida por um dogmatismo h

    muito descontextualizado. Parece-me, assim, ao contrrio de

    Cameron, plenamente possvel sustentar que h compatibilidade

    entre a tradio hipocrtica e o modelo de uma sociedade em

    que se respeitam direitos individuais. Basta no confundir as

    regras que orientam a vida dos indivduos em sociedade com as

    regras e conceitos morais que orientam e conferem sentido a

    uma prtica social, ou a uma tradio45

    .

    44 MacIntyre, A. Justia de Quem? Qual Racionalidade? Ed. Loyola, So Paulo.

    1991, p. 23. 45 Quando escrevi o artigo A profisso sob risco, confesso que mantinha alguns preconceitos contra as teorias morais baseadas em direitos, vendo-as, de forma

    equivocada, como ameaas possibilidade de uma tica mdica consistente e no

    comprometida com a reduo da medicina a um mero servio ou negcio. Hoje, penso

    que compreendi melhor a profundidade dos argumentos em favor dos direitos

    individuais. Assim, considero-me atualmente um defensor de uma teoria moral

  • V

    Poderia parecer que a sociedade democrtica

    contempornea incompatvel com a existncia de comunidades

    sustentadas por alguma tradio particular, dentre as quais a

    comunidade mdica. Robert Veatch, como vimos, sustenta a

    posio de que a tica mdica necessita uma reorientao,

    salientando a nfase dominante no princpio da autonomia do

    paciente e a um retorno s perspectivas do direito e do contrato

    social. Edmund Pellegrino, porm, considera que o retorno

    contemporneo ao contrato social apenas uma parte do cenrio, discordando de um dos pontos centrais do argumento de

    Veatch, a saber, de que a comunidade mdica no tem o direito

    de desenvolver seus prprios padres profissionais, e que a pea

    central do remapeamento de um novo contrato social que

    parcialmente baseada em direitos. Penso que abordagens baseadas em direitos nos

    permitem compreender de forma muito mais clara quais so nossos deveres estritos

    para com os demais. o que defendi em Uma teoria moral baseada em direitos. Em:

    Schler, Fernando L; Barcellos, Marlia de Arajo (Org.). Fronteiras: arte e

    pensamento na poca do multiculturalismo. Sulina, Porto Alegre. 2006, p. 91-118.

    Com efeito, penso que possvel compatibilizar a viso geral de uma tica poltica

    baseada em direitos com uma concepo particular sobre a medicina enquanto prtica

    profissional teleologicamente orientada pelos valores perfeccionistas da tradio

    hipocrtica. Minha viso atual justamente que h uma diferena de fundo entre a

    tica poltica e a tica profissional. Trata-se de duas dimenses polticas distintas e relativamente independentes. Entendo as ticas profissionais como sistemas

    particulares de moralidade. Assim, embora consideraes de tica pblica ou poltica

    sejam relevantes em tica profissional, penso que os valores internos s ticas

    profissionais no so reflexo direto e histrico desses valores polticos externos.

    Direitos devem ocupar o centro da moralidade pblica em uma right-based morality.

    Sua funo, todavia, limitar externamente (Nozick caracterizava direitos como side constraints) a conduta dos indivduos frente aos demais e, conseqentemente, tambm a prtica de grupos, incluindo aqui as profisses tradicionais. Nada disso

    implica a impossibilidade de prticas e tradies moralmente orientadas (foi o que

    defendi, alis, no artigo Liberalismo, razes particulares e a globalizao dos direitos

    humanos Em: Abro, Paulo; Torelly, Marcelo. (Org.). Sistema jurdico e demandas

    populares. EDIPUCRS, Porto Alegre. 2005, p. 181-206).

  • somente a sociedade teria esse direito46

    . Para Pellegrino, a

    integridade da tica mdica possui uma validade que interna

    profisso. A medicina teria a obrigao de redimensionar o

    balano entre sua tica profissional e os imperativos da

    sociedade de direito, sem necessariamente redefinir os aspectos

    fundamentais que definem sua integridade e virtudes

    principais47

    .

    Pellegrino segue nitidamente o programa neo-

    aristotlico, principalmente de MacIntyre48

    . Para MacIntyre,

    toda prtica envolve padres de excelncia, obedincia a regras

    e alcance de certos bens:

    Entrar em uma prtica aceitar a autoridade desses

    padres e a inadequao de meu prprio desempenho assim

    julgado por eles. sujeitar minhas prprias atitudes, escolhas,

    preferncias e gostos aos padres que correntemente e

    parcialmente definem a prtica49

    .

    46 Penso que h aqui uma confuso que se deriva da m compresso do significado da

    palavra direito. Se o que Veatch pretendia dizer que a profisso mdica no tem a permisso de desenvolver seus prprios padres profissionais, ento sua afirmao

    flagrantemente falsa. O estudo de Freidson mostra-nos que uma realidade comum

    aos mais diferentes pases contemporneos o privilgio concedido profisso mdica

    (em maior ou menos extenso) para que ela prpria desenvolva seus padres internos

    de competncia e virtude. Assim, o direito da sociedade no incompatvel com o direito da comunidade mdica, pois continua sendo a sociedade quem concede o privilgio aos membros da profisso de gozarem de ampla ou relativa autonomia

    profissional. 47 Pellegrino, Op.Cit. p. 48. As principais virtudes do mdico para Pellegrino so:

    fidelidade verdade, compaixo, prudncia, justia, determinao, moderao,

    integridade e altrusmo. 48 No meio filosfico, tais autores so tambm chamados comunitaristas, em oposio

    aos universalistas e principialistas, que tm em Kant sua principal referncia, e aos

    utilitaristas, que tm em Jeremy Bentham e John Stuart Mill suas referncias

    clssicas. 49 MacIntyre, A. Op. Cit. p. 190.

  • Prticas, diz ele, tm uma histria peculiar e seus padres

    no so obviamente imunes a crticas; todavia, no parece ser

    possvel iniciar uma prtica sem aceitar a autoridades dos

    melhores padres realizados at ento. Entrar em uma prtica

    entrar em um relacionamento no somente com seus

    participantes contemporneos, mas tambm com aqueles que os

    precederam. Tambm preciso no confundir uma prtica com

    suas instituies. A medicina uma prtica; universidades,

    hospitais e entidades de classe so instituies. H bens que

    caracterizam internamente cada prtica, e a capacidade de cada

    um de poder alcan-los depende de virtudes pessoais, ou

    qualidades que podem ser alcanadas por cada um de seus

    membros. O alcance destes bens comuns ou prprios a uma

    atividade social ou prtica (common goods) depende de um

    esforo cooperativo que sempre vulnervel competitividade

    da instituio, cujos bens so externos e estruturados em termos

    de poder e status. Segundo MacIntyre, sem virtudes, as prticas

    no resistem ao poder corruptor das instituies.

    H um contraste entre esta concepo e a representada

    pelo extremismo liberal que no admite legitimidade a valores

    especiais vinculados proteo de certas prticas ou

    comunidades.50

    Uma comunidade para esses liberais

    50 Tal vez esta forma de liberalismo extremado possa ser atribuda corretamente a John Rawls e seus seguidores. Penso, por outro lado, que o liberalismo uma doutrina

    plenamente compatvel com a proteo poltica da integridade de comunidades morais

    e de seus bens especficos. Em outras palavras, possvel compatibilizar doutrinas

    liberais com doutrinas aristotlicas, isto , com a viso de que h bens intrnsecos que valem a pena ser protegidos em garantia s mais diversas possibilidades de

    realizao humana vinculadas s mais diversas comunidades. A exigncia liberal

    fundamental nesse aspecto a proteo dos direitos humanos individuais (nesse

    aspecto, sinto-me mais prximo de Robert Veatch do que do aristotelismo

    extremado de MacIntyre). Para uma viso semelhante, veja-se: Williams, B. Human rights and relativism. Em: Wiliams, B. In the beginning was the deed. Princeton

    University Press. 2005, p. 62-74.

  • extremados simplesmente uma arena na qual cada indivduo possui sua prpria concepo de o que bom para si e as

    instituies servem apenas para prover algum grau mnimo de

    ordem que torne a atividade de autodeterminao possvel.51

    Se

    o que MacIntyre e Pellegrino afirmam correto, ento Cameron

    tem razo em temer a perda de todo e qualquer lao do exerccio

    da medicina como prtica no contexto de uma tradio, pois

    nenhuma autonomia ou liberdade, seja do mdico, seja do

    paciente, pode ser exercida sob a independncia de toda e

    qualquer tradio. Fora do contexto das tradies, h apenas

    jogos de interesses e relaes de poder externos. De fato, essa

    seria uma das temerrias tendncias do mundo contemporneo52

    .

    No que diz respeito medicina, um fato que a profisso vem

    sendo alvo de interferncias externas, em todos os domnios,

    seja o legal, econmico ou interpessoal. Valores externos, caso

    se tornem preeminentes, acabam por corroer a integridade da

    51 Ver MacIntyre, Op. Cit., p.195. Alguns chamam a esta tese de minimalismo moral (Ver: Rasmussen, D.B. e Den Uyl, D.J. Norms of liberty, The Pensilvania State University Press. 2005, p. 27-8). 52 Este cenrio nietzscheano seria, segundo MacIntyre, a conseqncia da dissoluo moderna das tradies em um mundo de indivduos isolados que buscam

    apenas sua prpria satisfao. Penso, todavia (ver nota anterior), que possvel

    compatibilizar um cenrio parcialmente nietzscheano (onde a vontade individual de auto-superao e de auto-realizao valorizada independentemente dos vnculos

    morais ou culturais de algum a qualquer grupo) com um cenrio aristotlico, onde cada indivduo busca realizar-se no interior de alguma comunidade especial, a qual

    pode servir-lhe de espao adequado para a construo de sua identidade pessoal (a

    qual, isoladamente, sem qualquer modelo ou padro de referncia, seno impossvel,

    largamente improvvel de se constituir). Defendi essa viso (em linhas gerais, foi o

    que defendi no artigo Liberalismo, razes particulares e a globalizao dos direitos

    humanos Em: Abro P & Torelly M. Sistema jurdico e demandas populares. EDIPUCRS, Edio em CD-ROM, Porto Alegre. 2005, p. 181-206). Neste artigo,

    exploro igualmente a tese de que possvel compatibilizar uma teoria sobre o bem (e

    sobre virtudes morais) baseada principalmente em Aristteles e uma teoria poltica

    sobre direitos, sem cair na viso ctica de MacIntyre sobre as insuficincias e

    fracassos do liberalismo poltico (tese semelhante, alis, defendida por Rasmussen,

    Douglas B. e Douglas J. Den Uyl. Norms of liberty. Op. Cit., 2005).

  • profisso. Fragilizar as profisses torna-se, assim, um meio

    eficaz no somente para o incentivo e fortalecimento de bens

    externos em detrimento dos bens internos: um meio eficaz

    para a subordinao dos interesses dos indivduos e grupos aos

    interesses dos que detm o poder de Estado.

    Ora, ao contrrio do que pensa, a propsito, MacIntyre,

    penso que essa concluso favorece justamente no tanto a sua

    crtica ao liberalismo, e sim tese de que a sobrevivncia das

    profisses de forma autnima (fundamental para a garantia de

    sua integridade) depende justamente de sua integrao a

    sociedades politicamente orientadas por valores liberais.

    MacIntyre sugere, ao contrrio, que somente o isolamento

    monstico capaz de impedir a corrupo moral das tradies

    num mundo orientado por princpios weberianos; porm, esta soluo desesperadora simplesmente menospreza a possvel

    compatibilidade entre os ideais liberais de autonomia (individual

    e de grupos) com o ideal clssico que reivindica espao s

    comunidades morais e profisses, entendidas como lugares

    adequados para o desenvolvimento e estmulo de virtudes.

    Porm, no vejo como seria possvel fortalecer comunidades

    morais e a prtica de virtudes no mundo atual instigando

    estratgias polticas beneditinas. Comunidades morais no

    isoladas necessariamente entram em contato com as outras, e, a

    depender da emulao de uma atitude aberta e no dogmtica a

    respeito de suas prprias crenas, envolvem-se, seno contnua,

    ao menos eventualmente, em um processo de crtica e

    autocrtica, incentivando assim uma perspectiva interna de

    progresso moral. Ora, MacIntyre, paradoxalmente, tambm

    sustenta que o progresso de uma tradio depende justamente de

    seu envolvimento crtico e autocrtico com tradies rivais.

    Contudo, no vejo como esse envolvimento crtico possa tornar-

  • se possvel seno no mbito, e justamente sob a proteo

    jurdica, do que Popper chamou de sociedade aberta 53.

    Por outro lado, a verso conservadora da tradio,

    representada, entre outros, por Cameron, apegando-se

    rigidamente a normas e negligenciando o enfoque baseado em

    virtudes, concebendo a medicina como sustentada por princpios

    substantivos cuja validade moral depende de uma identificao

    com os preceitos religiosos incorporados especialmente pelo

    cristianismo, deixa de conceber os valores hipocrticos como se

    assentando em contedos mutveis. O debate proposto desloca-

    se a um plano dogmtico. Todavia, nesse aspecto, o mundo

    contemporneo incapaz de consenso. A oposio dogmtica

    entre o princpio do alvio ao sofrimento e o princpio da santidade da vida , portanto, uma oposio artificial e descontextualizada: debates dessa natureza so, com efeito,

    indecidveis54

    . Uma das explicaes que tais princpios

    expressam valores intrnsecos igualmente dignos prima facie: o

    valor negativo do sofrimento (ou o valor positivo de seu alvio)

    e o valor intrnseco da vida humana. Decidir entre dois valores

    impossvel em termos puramente abstratos55

    . De fato, decidir

    53 Popper, KR. A sociedade aberta e seus inimigos (dois volumes). Edusp, 1974. 54 Beauchamp e Childress notaram isso e sugeriram que princpios

    descontextualizados so obrigatrios apenas prima facie, isto , todo princpio moral

    vlido, considerado abstratamente, isto , independentemente das circustncias reais

    de sua atualizao. A tese de que a moralidade comum guia-se por princpios prima

    facie vlidos , contudo, notavelmente controversa. A propsito, veja-se o primeiro

    captulo de meu livro, Biotica fundamental (Tomo Editorial, Porto Alegre, 2002).

    Um princpio que apenas prima facie imperativo ou mandatrio no , de fato,

    atualmente ou realmente imperativo ou mandatrio. 55 Isaiah Berlin tomou fatos como esses fatos como razes para sustentar o que

    chamou de pluralismo de valores, isto , que valores so qualidades objetivas, porm, mltiplas e, freqentemente, incomensurveis. A propsito, veja-se Berlin, I.

    Estudos sobre a humanidade, uma antologia de ensaios. Companhia das Letras, 2002.

    Para uma discusso das teses de Berlin, veja-se: Lilla, M., Dworkin, R. & Silvers, R.,

    The legacy of Isaiah Berlin. New York Review Books. 2001.

  • entre eles s possvel tendo-se em vista circunstncias

    concretas, gerais ou particulares. De um ponto de vista geral,

    trata-se de saber qual ou quais desses valores ocupam uma

    posio central no pensamento mdico. bem possvel, porm,

    que ambos sejam valores importantes, mas que nenhum deles

    seja o valor que de fato centraliza a ateno do mdico. Parece-

    me que mais sensato afirmar que o valor que orienta a

    preocupao mdica seja a sade humana56

    . Se assim, ento

    aliviar o sofrimento e salvar vidas so misses importantes, porm, subordinadas meta principal: proteger, promover e

    recuperar a sade das pessoas. Desse modo, entender o que

    significa sade de um ponto-de-vista mdico vital para a prpria tica mdica. O que faz da filosofia da medicina uma

    pea chave para a recomposio da integridade conceitual da

    prpria tradio hipocrtica.

    56 Note-se que essa era a viso que Plato tinha da medicina (por exemplo, na

    Repblica), quando a empregava como exemplo de thecn. Em termos teleolgicos,

    para Plato os mdicos dominam uma tcnica quer visa a um bem especfico: a sade

    humana. uma afirmao simples, porm, sbia at os dias de hoje. O erro seria

    pensar que a medicina vise internamente a outros bens que no a sade humana,

    como, por exemplo, a satisfao e o prazer pessoal, a qualidade de vida, a justia

    poltica, ou mesmo a felicidade. Um pouco de modstia nos faria bem.

    AZEVEDO