A origem da espécie humana

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    A ORIGEMDA ESPCIE HUMANA

    Richard Leakey

    Traduo de

    ALEXANDRE TORT

    Rio de Janeiro

    1997

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    Ttulo originalTHE ORIGIN OF HUMANKIND

    Copyright 1994 by Richard Leakeye Orion Publishing Group Ltd.

    O nome e a marca The Science Masters foram publicados com a autorizaode seu proprietrio John Brockman Associates, Inc.

    Direitos mundiais para a lngua portuguesareservados com exclusividade

    EDITORA ROCCO LTDA.Rua Rodrigo Silva, 265 andar20011-040Rio de Janeiro, RJTel.: 507-2000Fax: 507-2244

    Printed in Brasil- Impresso no Brasil

    Reviso tcnicaRUI CERQUEIRA

    (Instituto de Biologia da UFRJ)

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Leakey, Richard E.LA69O A origem da espcie humana / Richard Leakey; traduo

    de Alexandre Tort; coordenao editorial: Leny CordeiroRio de Janeiro: Rocco, 1995.

    (Cincia Atual)

    Traduo de: The origin of humankind1. Evoluo humana. 2. Homem - Origem. 3. Pr-histria.I. Ttulo, n. Srie

    CDD575.0195-0095 CDU576.1

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    Sumrio

    Prefcio ................................................................................... 71 - Os primeiros humanos ..................................................... 162 - Uma famlia numerosa .................................................... 353 - Um tipo diferente de humano .......................................... 554 - Homem, o nobre caador? ............................................... 725 - A origem dos humanos modernos ................................... 926 - A linguagem da arte ....................................................... 113

    7 - A arte da linguagem ....................................................... 1318 - A origem da mente ........................................................ 151Bibliografia e leituras adicionais ........................................ 171

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    Prefcio

    o sonho de todo antroplogo desenterrar um esqueletocompleto de um ancestral humano primitivo. Para a maioriade ns, contudo, este sonho permanece irrealizado; oscaprichos da morte, o enterro e a fossilizao conspiram paradeixar um registro insuficiente, fragmentado da pr-histriahumana Dentes e ossos isolados, fragmentos de crnios,

    geralmente so estas as pistas a partir das quais a histria dapr-histria humana deve ser reconstruda No nego aimportncia destas pistas, embora sejam frustrantementeincompletas; sem elas haveria pouco a ser dito sobre ahistria da pr-histria humana Tambm no descarto aexcitao pura de sentir a presena fsica destas relquiasmodestas; elas so parte de nossa ascendncia, ligadas a nspor geraes incontveis feitas de carne e osso. Mas adescoberta de um esqueleto completo permanece como oprmio maior.

    Em 1969, fui agraciado com uma sorte extraordinria.Tinha decidido explorar os depsitos de arenito que formam avasta margem leste do lago Turkana, ao norte do Qunia minha primeira incurso independente na regio dos fsseis.Eu estava motivado por uma forte convico de que grandesdescobertas de fsseis seriam feitas l, porque haviasobrevoado a regio um ano antes; percebi que os depsitosem camadas eram repositrios em potencial da vida primitivaembora muitos duvidassem de meu julgamento. O terrenoera spero e o clima implacavelmente quente e seco; maisainda, o cenrio tem o tipo de beleza feroz que me atrai.

    Com o apoio da National Geographie Society, reuni uma

    pequena equipe incluindo Meave Epps, que mais tardetornou-se minha esposa para explorar a regio. Umamanh, vrios dias aps a nossa chegada, Meave e euestvamos retornando ao nosso acampamento de umaexcurso curta de explorao por um atalho ao longo de umleito de rio seco, ambos sedentos e ansiosos em evitar o calorescorchante do meio-dia. De repente, vi diretamente nossa

    frente um crnio fossilizado, intacto, pousado sobre a areia

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    alaranjada, as rbitas dos olhos fitando-nos inexpres-sivamente. Era inconfundivelmente humano na forma.

    Embora os anos decorridos tenham apagado de minhamemria o que falei exatamente para Meave naquele instante,sei que expressei uma mistura de alegria e descrena sobre oque havamos encontrado.

    O crnio, que imediatamente reconheci como o de umAustralopithecus boisei, uma espcie humana h muitoextinta, emergira recentemente dos sedimentos pelos quais o

    rio sazonal corria. Exposto luz do Sol pela primeira vezdesde que os elementos o haviam enterrado h quase 1,75milho de anos, o espcime era um dos poucos crnioshumanos antigos intactos que at ento fora encontrado.Semanas aps a sua descoberta, as fortes chuvas encheriam oleito seco com uma corrente caudalosa; se Meave e eu no otivssemos encontrado, a frgil relquia certamente teria sidodestruda pela enchente. As chances de nos encontrarmos alino momento certo de recuperar para a cincia o fssil hmuito enterrado eram mnimas.

    Por uma coincidncia curiosa, minha descoberta ocorreuuma dcada, quase no dia, aps minha me, Mary Leakey, terencontrado um crnio similar na garganta Olduvai, naTanznia. (Este crnio, entretanto, tornou-se um pavorosoquebra-cabea paleoltico; teve que ser reconstrudo a partirde centenas de fragmentos.) Aparentemente eu herdara alegendria sorte dos Leakey, desfrutada de modo notvelpor Mary e meu pai, Louis. De fato, minha boa sortecontinuou, na medida em que as expedies seguintes queconduzi ao lago Turkana descobriram muitos fsseishumanos mais, inclusive o crnio intacto do gnero Homomais antigo de que se tem notcia, o ramo da famlia humana

    que finalmente deu origem aos humanos modernos, o ramoHomo sapiens.

    Embora quando jovem eu tivesse jurado no meenvolver com a caa aos fsseis desejando evitar viver sombra de meus mundialmente famosos pais , a magiapura do empreendimento atraiu-me para ele. Os antigos eridos depsitos da frica Oriental que sepultam os restos de

    nossos ancestrais tm uma inegvel beleza especial; ainda

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    assim, so tambm implacveis e perigosos. A procura defsseis e de artefatos de pedra antigos muitas vezes

    apresentada como uma experincia romntica, e certamentepossui seus aspectos romnticos, mas uma cincia na qualos dados devem ser recuperados a centenas ou milhares dequilmetros do conforto do laboratrio. um empreendimen-to fisicamente desafiador e exigente uma operaologstica da qual a segurana das vidas das pessoas dependealgumas vezes. Descobri que tinha talento para organizar,

    para fazer com que as coisas fossem feitas em face decircunstncias pessoais e fsicas difceis. As muitasdescobertas importantes na margem leste do lago Turkanano apenas atraram-me para uma profisso que um diarejeitei com veemncia como tambm estabeleceram minhareputao nela. No obstante, o sonho maiorum esqueletocompletocontinuou a escapar-me.

    No final do vero de 1984, com nossas respiraessuspensas e nossa esperana sempre crescente temperada peladura realidade da experincia, meus colegas e eu vimos estesonho comear a tomar forma. Naquele ano tnhamosdecidido explorar pela primeira vez a margem oeste do lago.Em 23 de agosto, Kamoya Kimeu, meu amigo mais velho ecolega, localizou um pequeno fragmento de um crnio antigoque jazia entre os seixos de uma encosta perto de uma ravinaestreita que havia sido esculpida pela corrente sazonal.Cuidadosamente comeamos uma busca por mais fragmentose em breve encontramos mais do que ousvamos esperar.Durante as cinco temporadas que se seguiram a este achado,significando mais de sete meses de trabalho de campo, nossaequipe removeu mais de 1.500 toneladas de sedimentos nabusca intensa. Encontramos o que finalmente revelou ser

    virtualmente o esqueleto completo de um indivduo quemorrera na margem deste lago antigo h mais de 1,5 milhode anos. Batizado por ns como o garoto de Turkana, malcompletara nove anos quando morreu; a causa de sua mortepermanece um mistrio.

    Foi uma experincia verdadeiramente extraordinriadesenterrar osso aps osso fossilizado: braos, pernas,

    vertebras, costelas, plvis, maxilar, dentes e mais fragmentos

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    de crnio. O esqueleto do menino comeou a ganhar forma,reconstrudo como indivduo uma vez mais, depois de jazer

    em fragmentos por mais de 1,6 milho de anos. Nada tocompleto como este esqueleto pde ser encontrado nosregistros de fsseis humanos at a poca do Neanderthal, huns meros 100 mil anos. Independentemente da excitaoemocional de tal descoberta, estvamos cientes de que elaprometia um grande entendimento de uma fase crtica da pr-histria humana.

    Uma palavra, antes de prosseguir com a histria, sobre ojargo na antropologia. Algumas vezes a torrente de termosarcanos pode ser to intensa que desafia a compreenso detodos, exceto a dos profissionais mais dedicados. Evitareieste jargo tanto quanto possvel. Cada uma das vriasespcies de famlias humanas pr-histricas tem um rtulocientficoisto , o nome de sua espcie e no podemosevitar a utilizao destes. A famlia humana de espcies temseu prprio rtulo tambm: homindea.

    Alguns de meus colegas preferem utilizar o termohomindeo para todas as espcies humanas ancestrais. A

    palavra humano, argumentam eles, deveria ser utilizada

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    para nos referirmos apenas a pessoas como ns. Em outraspalavras, os nicos homindeos que podem ser designados

    como humanos so aqueles que exibem nosso prprio graude inteligncia, senso moral, e profundidade de conscinciaintrospectiva.

    Tenho um ponto de vista diferente. Parece-me que aevoluo da locomoo ereta, que distinguiu os homindeosantigos de outros macacos de seu tempo, foi fundamentalpara a histria humana subseqente. Uma vez que nosso

    ancestral distante tornou-se um macaco bpede, muitas outrasinovaes evolutivas tornaram-se possveis, com oaparecimento definitivo doHomo. Por esta razo, acredito serjustificado chamar todas as espcies de homindeos dehumanos. Com isto no quero dizer que todas as espcieshumanas antigas vivenciaram os mundos mentais queconhecemos hoje. Em seu nvel mais bsico, a designaohumano refere-se simplesmente aos macacos quecaminhavam de modo eretomacacos bipdes. Nas pginasseguintes adotarei este uso, e indicarei quando o estareiutilizando para descrever aspectos que caracterizem apenas ohomem moderno.

    O garoto de Turkana era um membro da espcie Homoerectus uma espcie de suma importncia na histria daevoluo humana. A partir de linhas de indcios diferentes alguns genticos, alguns fsseis , sabemos que a primeiraespcie humana evoluiu h cerca de 7 milhes de anos. Napoca em que o Homo erectus surgiu em cena, h quase 2milhes de anos, a pr-histria humana j estava em marcha.No sabemos ainda como muitas espcies humanas viveram emorreram antes do aparecimento do Homo erectus; houvepelo menos seis, e talvez o dobro deste nmero. Entretanto,

    sabemos de fato que todas as espcies humanas que viveramantes doHomo erectus eram, embora bipdes, marcadamentesimiescas em muitos aspectos. Elas tinham crebrosrelativamente pequenos, suas maxilas eram prognatas (isto ,projetavam-se para a frente), e a forma de seus corpos eramais simiesca do que humana em aspectos particulares, taiscomo o peito em forma afunilada, pescoo pequeno e

    nenhuma cintura. No Homo erectus, o tamanho do crebro

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    aumentou, a face tornou-se mais achatada, e o corpo adquiriuuma constituio mais atltica. A evoluo do Homo erectus

    trouxe com ela muitas das caractersticas fsicas quereconhecemos em ns mesmos: a pr-histria humanaevidentemente sofreu uma grande reviravolta h 2 milhes deanos.

    OHomo erectus foi a primeira espcie humana a utilizaro fogo; a primeira a incluir a caa como uma partesignificativa de sua subsistncia; a primeira capaz de correr

    como os humanos modernos o fazem; a primeira a fabricarinstrumentos de pedra de acordo com um padro definido; aprimeira a estender seus domnios para alm da frica. Nosabemos de forma definitiva se o Homo erectus possuaalgum tipo de linguagem falada, mas diversas linhas deindcios sugerem isto. E no sabemos, e provavelmente nosaberemos nunca, se estas espcies tinham algum grau deautopercepo, uma conscincia humanide, mas minhasuposio de que a tinham. Desnecessrio dizer, linguageme conscincia, que esto entre os aspectos mais valorizadosdo Homo sapiens, no deixam traos nos registros pr-histricos.

    O objetivo do antroplogo compreender os eventosevolutivos que transformaram uma criatura semelhante aomacaco em gente como ns. Estes eventos tm sido descritos,romanticamente, como um grande drama, com a humanidadeemergindo como a grande herona da histria. A verdade provavelmente bastante prosaica, com modificaesclimticas e ecolgicas em vez de aventuras picasconduzindo as transformaes. As transformaes noprendem menos nossa ateno por causa disto. Como espcie,somos agraciados com uma curiosidade sobre o mundo da

    natureza e nosso lugar nele. Queremos saberprecisamossabercomo nos tornamos o que somos, e qual o nossofuturo. Os fsseis que descobrimos ligam-nos fisicamente aonosso passado e desafiam-nos a interpretar as pistas que elesencerram como uma maneira de compreender a natureza e ocurso de nossa histria evolutiva.

    At que muitas relquias mais tenham sido desenterradas

    e analisadas, nenhum antroplogo pode ficar de p e declarar:

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    Isto foi assim, com todos os detalhes. H, contudo, umaboa dose de concordncia entre os pesquisadores sobre a

    forma geral da pr-histria humana. Nela, quatro etapas-chave podem ser identificadas com toda a confiana.A primeira foi a origem da famlia humana propriamente

    dita, h cerca de 7 milhes de anos, quando espciessemelhantes aos macacos com um modo de locomoobpede, ou ereta, evoluram. A segunda etapa foi a daproliferao das espcies bpedes, um processo que os

    bilogos chamam irradiao adaptativa. Entre 7 e 2 milhesde anos atrs, muitas espcies diferentes de macacos bipdesevoluram, cada uma adaptada a circunstncias ecolgicasligeiramente diferentes. Em meio a esta proliferao deespcies humanas houve uma, entre 3 e 2 milhes de anosatrs, que desenvolveu um crebro significativamente maior.A expanso em tamanho do crebro marca a terceira etapa esinaliza a origem do gneroHomo, o ramo da rvore humanaque levou aoHomo erectus e finalmente aoHomo sapiens. Aquarta etapa foi a origem dos humanos modernos aevoluo de gente como ns, completamente equipada comlinguagem, conscincia, imaginao artstica, e inovaestecnolgicas jamais vistas antes em qualquer parte danatureza.

    Estes quatro eventos-chave fornecem a estrutura danarrativa cientfica das pginas que vm a seguir. Comoficar evidente, no nosso estudo da pr-histria humanaestamos comeando a perguntar-nos no apenas o queaconteceu, e quando, mas tambm por que as coisasaconteceram. Ns e nossos ancestrais estamos sendoestudados no contexto de um cenrio evolutivo emdesdobramento, do mesmo modo que estudamos a evoluo

    dos elefantes ou dos cavalos. Isto no negar que o Homosapiens seja de muitos modos especial: muita coisa nossepara mesmo do nosso parente evolutivo mais prximo, ochimpanz, mas comeamos a entender nossa relao com anatureza no sentido biolgico.

    As trs dcadas passadas testemunharam tremendosavanos na nossa cincia, resultado de descobertas sem

    precedentes de fsseis e de modos inovadores de

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    interpretao e integrao das pistas que vemos neles. Comotodas as cincias, a antropologia sujeita a diferenas de

    opinio honestas, e algumas vezes vigorosas, entre os seuspraticantes. Estas algumas vezes originam-se de dadosinsuficientes, na forma de fsseis e artefatos de pedra, ealgumas vezes das inadequaes dos mtodos de interpre-tao. Portanto, h muitas questes importantes sobre ahistria humana para as quais no h respostas definitivas,tais como: qual a forma precisa da rvore da famlia humana?

    Quando a linguagem falada sofisticada comeou a evoluir? Oque provocou o aumento dramtico no tamanho do crebro napr-histria humana? Nos captulos seguintes, indicarei onde,e por que, as diferenas de opinio existem, e algumas vezesesboarei minhas prprias preferncias.

    Tive a boa sorte de colaborar com muitos colegasexcelentes por mais de duas dcadas de trabalhoantropolgico, pelo que sou grato. A dois deles KamoyaKimeu e Alan Walker gostaria de agradecer de modoespecial. Minha esposa, Meave, tem sido uma colega e amigadas mais extraordinrias, particularmente nas pocas maisdifceis.

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    1 - Os primeiros humanos

    Os antroplogos h muito tm se mostrado fascinadoscom as qualidades especiais do Homo sapiens, tais como alinguagem, as altas habilidades tecnolgicas e a capacidadede fazer julgamentos ticos. Mas uma das mudanas maissignificativas dos anos recentes tem sido o reconhecimentode que, a despeito destas qualidades, nossa ligao com os

    macacos africanos realmente muito ntima. Como estaimportante mudana intelectual surgiu? Neste captulodiscutirei como as idias de Charles Darwin a respeito danatureza especial das espcies humanas primordiais in-fluenciaram os antroplogos por mais de um sculo ecomo novas pesquisas revelaram nossa intimidade evolutivacom os macacos africanos e exigem nossa aceitao de umaviso muito diferente do nosso lugar na natureza.

    Em 1859, no seu livro A origem das espcies* Darwincuidadosamente evitou extrapolar as implicaes da evoluopara os humanos. Uma frase cautelosa foi adicionada nasedies posteriores: A origem do homem e sua histria seroesclarecidas. Em um livro subseqente, A descendncia dohomem, publicado em 1871, Darwin detalhou o contedodesta frase curta. Voltando-se para um assunto que ainda eramuito delicado, ele efetivamente erigiu dois pilares naestrutura terica da antropologia, O primeiro tem a ver com olugar onde os humanos primeiramente evoluram(inicialmente poucos lhe deram crdito, mas ele estava certo),e o segundo diz respeito maneira ou forma dessa evoluo.A verso de Darwin da maneira pela qual a nossa evoluoaconteceu dominou a cincia da antropologia at poucos anos

    atrs, e revelou-se erradaO bero da humanidade, disse Darwin, a frica. Seu

    raciocnio era simples:Em cada grande regio do mundo, os mamferos vivos

    esto intimamente relacionados com as espcies que

    * Publicado no Brasil em co-edio pela Editora Universidade de Braslia

    e Editora Melhoramentos. (N. do T.)

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    evoluram desta mesma regio. Portanto, provvel que africa tenha sido habitada anteriormente por macacos

    extintos intimamente relacionados com o gorila e ochimpanz: e como estas duas espcies so agora as que serelacionam mais de perto com o homem, de algum modo mais provvel que nossos progenitores primordiais tivessemvivido no continente africano do que em outro lugar.

    Devemos lembrar que, quando Darwin escreveu estaspalavras, nenhum fssil humano primordial tinha sido

    encontrado em qualquer lugar; sua concluso era inteiramentebaseada em teorias. Na poca de Darwin, os nicos fsseishumanos conhecidos eram do homem de Neanderthal, naEuropa, e estes representam um estgio relativamente tardioda evoluo humana

    Os antroplogos no gostaram nada da sugesto deDarwin, porque a frica tropical era olhada com desdmcolonialista: o Continente Negro no era visto como um lugarapropriado para a origem de uma criatura to nobre como oHomo sapiens. Quando mais fsseis humanos comearam aser descobertos na Europa e na sia na virada do sculo,mais zombarias foram lanadas sobre a idia de uma origemafricana, Esta atitude prevaleceu por dcadas. Em 1931,quando meu pai disse aos seus mentores na Universidade deCambridge que planejava procurar as origens humanas noleste da frica, recebeu uma presso enorme para em vezdisto concentrar sua ateno sobre a sia. A convico deLouis Leakey era parcialmente baseada no argumento deDarwin e parcialmente, sem dvida alguma, no fato de queele havia nascido e sido criado no Qunia. Ele ignorou oconselho dos estudiosos de Cambridge e conseguiuestabelecer a frica Oriental como uma regio vital na

    histria da nossa evoluo primordial. A veemncia dosentimento anti-frica dos antroplogos parece agoraestranha para ns, dado o vasto nmero de fsseis humanosprimordiais que tem sido recuperado neste continente nosanos recentes. O episdio tambm um lembrete de que oscientistas so muitas vezes levados tanto pela emoo quantopela razo.

    A segunda grande concluso de Darwin em A

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    descendncia do homem foi que as importantes caractersticasque distinguem os humanos bipedismo, tecnologia e

    crebro grandeevoluram em conjunto. Darwin escreveu:Se uma vantagem para o homem ter suas mos ebraos livres e ficar firmemente ereto sobre seus ps, (...)ento no vejo razo por que no teria sido mais vantajosopara os progenitores do homem terem se tornado mais e maiseretos ou bipdes. As mos e os braos no poderiam ter setornado suficientemente perfeitos para manufaturar armas, ou

    atirar pedras e lanas com pontaria precisa, enquanto fossemhabitualmente utilizados para suportar o peso total do corpo...ou enquanto fossem especialmente adaptados para subir nasrvores.

    Aqui, Darwin estava argumentando que a evoluo denosso modo fora do comum de locomoo era diretamenteligado manufatura de armas de pedra. Ele foi mais longe erelacionou estas transformaes evolutivas com a origem dosdentes caninos nos humanos, que eram insolitamentepequenos se comparados com os caninos pontiagudos dosmacacos. Os ancestrais primevos do homem eram (...)provavelmente providos de grandes dentes caninos, escreveuele em vi descendncia do homem; mas, medida quegradualmente adquiriram o hbito de usar pedras, bastes ououtras armas para combater seus inimigos ou rivais, elespoderiam utilizar suas mandbulas e dentes cada vez menos.Neste caso, as mandbulas, junto com os dentes, tomar-se-iamreduzidas em tamanho.

    Estas criaturas bipdes que manejavam armasdesenvolveram uma interao social mais intensa, que exigiamais intelecto, argumentou Darwin. E quanto maisinteligentes nossos ancestrais se tornavam, maior era a sua

    sofisticao tecnolgica e social, o que por sua vez exigia umintelecto ainda maior. E assim por diante, medida que aevoluo de cada aspecto realimentava-se dos outros. Estahiptese de evoluo correlacionada era um cenrio muitoclaro para as origens humanas, e tornou-se fundamental parao desenvolvimento da cincia da antropologia.

    De acordo com este cenrio, a espcie humana era mais

    do que simplesmente um macaco bpede; ela j possua

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    algumas caractersticas que valorizamos noHomo sapiens. Aimagem era to poderosa e plausvel que os antroplogos

    foram capazes de tecer hipteses persuasivas em torno delapor muito tempo. Mas o cenrio projetou-se para alm dacincia: se a diferenciao evolutiva dos humanos em relaoaos macacos foi ao mesmo tempo abrupta e antiga, umadistncia considervel foi posta entre ns e o restante danatureza. Para aqueles que tm a convico de que o Homosapiens um tipo fundamentalmente diferente de criatura,

    este ponto de vista oferece consolo.Esta convico era muito comum entre os cientistas dotempo de Darwin, e deste sculo tambm. Por exemplo, onaturalista ingls do sculo XIX Alfred Russel Wallace que tambm inventou a teoria da seleo natural,independente de Darwin recusou-se a aplicar a teoriaqueles aspectos da humanidade que mais valorizamos. Eleconsiderava os humanos demasiado inteligentes, refinados,sofisticados, para terem sido o produto de simples seleonatural. Caadores e coletores primitivos no teriam tidonecessidade biolgica destas qualidades, raciocinava ele, edeste modo no poderiam ter surgido pela seleo natural. Ainterveno sobrenatural, achava ele, deve ter concorrido parafazer os humanos to especiais. A falta de convico deWallace no poder da seleo natural deixou Darwin muitoabalado.

    O paleontlogo escocs Robert Broom, cujo trabalhopioneiro na frica do Sul nos anos 30 e 40 ajudou aestabelecer a frica como o bero da humanidade, tambmexpressou pontos de vista fortes em relao distinohumana. Ele acreditava que o Homo sapiens era o produtofinal da evoluo e que o resto da natureza havia sido

    moldada para seu conforto. Como Wallace, Broom buscavaforas sobrenaturais na origem da nossa espcie.

    Cientistas como Wallace e Broom debatiam-se entreforas conflitantes, uma intelectual, outra emocional. Elesaceitavam o fato de que o Homo sapiens originava-se emltima instncia da natureza pelo processo de evoluo, massua crena na espiritualidade essencial, ou essncia

    transcendente, da humanidade levou-os a construir para a

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    evoluo explicaes que mantinham a distino humana. Opacote evolutivo corporificado na descrio de Darwin de

    1871 das origens humanas oferecia esta racionalizao.Embora Darwin no invocasse uma interveno sobrenatural,j no comeo seu cenrio evolutivo tornou os humanosdiferentes dos simples macacos.

    O argumento de Darwin exerceu sua influncia atpouco mais de uma dcada atrs, e foi efetivamenteresponsvel por uma grande discusso sobre quando os

    humanos apareceram pela primeira vez. Descreverei oincidente brevemente, porque ele ilustra a seduo dahiptese de Darwin de evoluo correlacionada. Ele tambmmarca o fim de sua influncia sobre o pensamentoantropolgico.

    Em 1961, Elwyn Simons, ento na Universidade Yale,publicou um trabalho que tornou-se um marco cientfico e noqual ele anunciou que uma pequena criatura semelhante aomacaco, chamada Ramapithecus, foi a primeira espcie dehomindeo. Os nicos restos fsseis do Ramapithecusconhecidos na poca eram partes de um maxilar superior quetinham sido descobertas por um jovem pesquisador de Yale,G. Edward Lewis, na ndia em 1932. Simons viu que osdentes laterais (os molares e pr-molares) eram de algumaforma humanoides. E viu que os caninos eram mais curtos erombudos do que os dos macacos. Simon tambm afirmouque a reconstituio de um maxilar superior incompletomostraria que ele era humanide na formaisto , um arco,alargando-se suavemente para trs e no uma forma em U,como nos macacos modernos.

    Nesta poca, David Pilbeam, um antroplogo britnicoda Universidade de Cambridge, uniu-se a Simon em Yale, e

    juntos eles descreveram estas caractersticas anatmicassupostamente humanoides do maxilar do Ramapithecus. Elesforam mais longe do que a anatomia, contudo, e sugeriram,com base apenas nos fragmentos de maxilar, que oRamapithecus caminhava ereto sobre os dois ps, caava evivia em um meio ambiente social complexo. Seu raciocnioera semelhante ao de Darwin: a presena de uma suposta

    caracterstica humana (a forma dos dentes) implicava a

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    existncia das restantes. Assim, o que se pensava ser a pri-meirssima espcie de homindeo comeou a ser vista como

    um animal culturalisto , como uma verso primitiva doshumanos modernos em vez de um macaco aculturado.Os sedimentos a partir dos quais os fsseis do

    Ramapithecus original foram recuperados eram antigos,como aqueles que forneceram descobertas similaressubseqentes na sia e na frica. Simons e Pilbeamconcluram portanto que os primeiros humanos apareceram

    h pelo menos 15 milhes de anos, e possivelmente h 30milhes de anos, e este ponto de vista foi aceito pela grandemaioria dos antroplogos. Mais ainda, a crena em umaorigem to antiga colocou uma distncia confortvel entre oshumanos e o resto da natureza, que muitos acharam bem-vinda.

    No final dos anos 60, dois bioqumicos da Universidadeda Califrnia, em Berkeley, Allan Wilson e Vincent Sarich,chegaram a uma concluso muito diferente sobre quando aprimeira espcie humana evoluiu. Em vez de trabalhar comfsseis, eles compararam a estrutura de certas protenassangneas de seres humanos vivos e dos macacos africanos.Seu objetivo era determinar o grau de diferena estruturalentre as protenas humanas e as dos macacos umadiferena que deveria aumentar, em conseqncia dasmutaes, com uma taxa calculvel em relao ao tempo.Quanto mais tempo os humanos e os macacos tivessem seapresentado como espcies diferentes, maior o nmero demutaes que teriam sido acumuladas. Wilson e Sarichcalcularam a taxa de mutaes e foram portanto capazes deutilizar seus dados sobre as protenas do sangue como umrelgio molecular.

    De acordo com o relgio, a primeira espcie humanaevoluiu h apenas uns 5 milhes de anos, uma descoberta queestava em discordncia dramtica com os 15 a 30 milhes deanos da teoria antropolgica dominante. Os dados de Wilsone Sarich tambm indicaram que as protenas do sangue emhumanos, chimpanzs e gorilas so igualmente diferentesumas das outras. Em outras palavras, algum tipo de evento

    evolutivo h 5 milhes de anos provocou a ramificao de

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    um ancestral comum em trs direes simultaneamente uma ramificao que conduziu evoluo no somente dos

    humanos modernos mas tambm dos chimpanzs e gorilasmodernos. Isto tambm era contraditrio com o que a maioriados antroplogos acreditava. De acordo com o conhecimentoconvencional, chimpanzs e gorilas so os parentes maisprximos uns dos outros, com os humanos afastados a umagrande distncia Se a interpretao dos dados moleculares eravlida, ento os antroplogos teriam que aceitar uma relao

    biolgica muito mais prxima entre humanos e macacos doque a maioria acreditava.Uma disputa feroz eclodiu, com os antroplogos e os

    bioqumicos criticando as tcnicas profissionais uns dosoutros com o uso dos termos mais duros. A concluso deWilson e Sarich foi criticada com base, entre outras coisas,no fato de que seu relgio molecular era errtico e portantono poderia ser confivel para fornecer um tempo precisopara os eventos evolutivos passados. Por sua vez, Wilson eSarich argumentaram que os antroplogos davamimportncia interpretativa em demasia a caractersticasanatmicas pequenas e fragmentadas, e eram assim condu-zidos a concluses invlidas. Na poca fiquei ao lado dacomunidade dos antroplogos, acreditando que Wilson eSarich estavam errados.

    O debate durou por mais de uma dcada, durante a qualmais e mais indcios moleculares foram apresentados porWilson e Sarich e tambm de modo independente por outrospesquisadores. A grande maioria destes novos dados apoiavaa alegao original de Wilson e Sarich. O peso deste indciocomeou a mudar a opinio dos antroplogos, mas amudana era lenta. Finalmente, no comeo dos anos 80,

    descobertas de espcimens muito mais completos de fsseissemelhantes ao Ramapithecus, por Pilbeam e sua equipe noPaquisto e por Peter Andrews, do Museu de Histria Naturalde Londres, e seus colegas na Turquia, resolveram a disputa(ver figura 1.1).

    Os fsseis de Ramapithecus originais so na verdadehumanides em alguns aspectos, mas a espcie no era

    humana. A tarefa de inferir um elo evolutivo com base em

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    indcio extremamente fragmentado muito mais difcil doque a maioria das pessoas percebe, e h muitas armadilhas

    para os incautos. Simons e Pilbeam haviam cado em umadessas armadilhas: a similaridade anatmica no implica demodo unvoco uma relao evolutiva. Os espcimens maiscompletos encontrados no Paquisto e na Turquia revelaramque as supostas caractersticas humanides eram superficiais.A mandbula doRamapithecus tinha a forma de um V e no ade um arco; esta e outras caractersticas indicavam que ele

    era uma espcie de macaco primitivo (a mandbula domacaco moderno tem a forma de um U). O Ramapithecusvivera nas rvores, como seu parente posterior, oorangotango, e no era um macaco bpede, muito menos umcaador-coletor primitivo. Mesmo os antroplogos maisaferrados sua viso do Ramapithecus como homindeoficaram convencidos pelos novos indcios de que estavamerrados e que Wilson e Sarich estavam certos: a primeiraespcie de macaco bpede, o membro fundador da famliahumana, evolura em pocas relativamente recentes e no emum passado muito distante.

    Embora em sua publicao original Wilson e Sarichtenham proposto uma data h 5 milhes de anos para esteevento, hoje indcios moleculares consensuais fizeram-naretroceder para quase 7 milhes de anos. Entretanto, no temhavido recuos com relao intimidade biolgica propostaentre os humanos e os macacos africanos. Ao contrrio, estarelao pode ser muito mais ntima do que tem sido suposta.Embora alguns geneticistas acreditem que os dadosmoleculares ainda impliquem uma ramificao igual e trpliceentre humanos, chimpanzs e gorilas, outros vem isto demodo diferente. Do seu ponto de vista, humanos e

    chimpanzs so os parentes mais prximos uns dos outros,com os gorilas situados a uma distncia evolutiva maior.

    O caso do Ramapithecus mudou a antropologia de duasmaneiras. Primeiro, demonstrou os perigos da inferncia deuma relao evolutiva em comum a partir de caractersticasanatmicas em comum. Segundo, exps a loucura de umaaderncia cega ao pacote darwiniano. Simons e Pilbeam

    imputaram um estilo de vida completo aoRamapithecus, com

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    base na forma dos dentes caninos: se havia uma caractersticahomindea, supunha-se que todas estas caractersticas

    estavam presentes. Como conseqncia da eroso do statusde homindeo do Ramapithecus, os antroplogos comearama ficar inseguros em relao ao pacote darwiniano.

    Antes de seguir o curso desta revoluo antropolgica,deveramos examinar brevemente algumas das hipteses que

    no decorrer dos anos tm sido propostas para explicar como aprimeira espcie de homindeos poderia ter surgido. interessante notar que cada hiptese nova que ganhavapopularidade refletia muitas vezes alguma coisa do climasocial da poca. Por exemplo, Darwin via a elaborao dearmas de pedra como importante para abrir o pacoteevolutivo da tecnologia, bipedismo e tamanho do crebro

    grande. A hiptese certamente refletia a noo predominantede que a vida era uma batalha e avanos eram obtidos cominiciativa e esforo. Este esprito vitoriano permeava acincia, e determinou o modo pelo qual o processo deevoluo, incluindo a evoluo humana, era visto.

    Nas primeiras dcadas deste sculo, os dias de glria dootimismo eduardiano, afirmava-se que o crebro e seusprocessos mentais superiores haviam nos transformado no

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    que somos. Dentro da antropologia, esta viso socialabrangente era expressa na noo de que a evoluo humana

    tinha sido propelida inicialmente no pelo bipedismo mas porum crebro em expanso. Nos anos 40, o mundo estavaenfeitiado com a magia e o poder da tecnologia, e a hiptesedo Homem, o Fabricante de Artefatos tornou-se popular.Proposta por Kenneth Oakley, do Museu de Histria Naturalde Londres, esta hiptese sustentava que a fabricao e autilizao de artefatos de pedra no armas dava o

    impulso nossa evoluo. E quando o mundo estava nassombras da Segunda Guerra Mundial, uma diferenciaomais sombria entre os humanos e os macacos foi enfatizada a da violncia contra seus semelhantes. A noo deHomem, o Macaco Assassino, primeiramente proposta peloanatomista australiano Raymond Dart, ganhou amplo apoio,possivelmente porque parecia explicar (ou mesmo desculpar)os horrveis eventos da guerra.

    Mais tarde, nos anos 60, os antroplogos voltaram-separa o modo de vida do caador-coletor como chave para asorigens humanas. Diversas equipes de pesquisadores vinhamestudando as populaes modernas de povostecnologicamente primitivos, particularmente na frica, amais notvel das quais eram os !Kung San (incorretamentechamados de bosqumanos). Disto emergiu uma imagem deum povo em harmonia com a natureza, explorando-a dediversas maneiras ao mesmo tempo em que a respeitava. Estaviso da humanidade coincidia com o ambientalismo da po-ca, mas, de qualquer modo, os antroplogos estavamimpressionados pela complexidade e segurana econmica daeconomia mista de caa e coleta. A caa, porm, era o que foienfatizado. Em 1966, uma importante conferncia

    antropolgica qual se deu o nome de Homem, o Caadorfoi realizada na Universidade de Chicago. A idia dominanteno encontro era simples: a caa fez dos humanos humanos.

    Na maioria das sociedades tecnologicamente primitivas,a caa geralmente uma responsabilidade masculina No surpresa, portanto, que a crescente percepo das questesfemininas nos anos 70 colocasse em dvida esta explicao

    das origens humanas centralizada no homem. Uma hiptese

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    alternativa, conhecida como Mulher, a Coletora, sustentavaque em todas as espcies de primatas o ncleo da sociedade

    era o elo entre a fmea e a prole. E foi a iniciativa das fmeashumanas em inventar tecnologias e coletar alimentos(principalmente vegetais) que podiam ser compartilhados portodos que conduziu formao de uma sociedade humanacomplexa. Pelo menos assim se dizia.

    Embora estas hipteses diferissem no que eraconsiderado o agente principal da evoluo humana, todas

    tm em comum a noo de que o pacote darwiniano contendocertas caractersticas humanas valorizadas era aceito bem nocomeo: ainda pensava-se na primeira espcie de homindeoscomo tendo algum grau de bipedismo, tecnologia e tamanhodo crebro aumentado. Os homindeos eram portanto cria-turas culturais e assim diferentes do restante da naturezadesde o incio. Nos anos recentes, reconhecemos que esteno o caso.

    De fato, indcio concreto da inadequao da hiptesedarwiniana foi encontrado nos registros arqueolgicos. Se opacote darwiniano estivesse correto, ento poderamosesperar ver a apario simultnea nos registros arqueolgicose fsseis de indcios de bipedismo, tecnologia e tamanho docrebro aumentado. Isto no acontece. Apenas um aspectodos registros pr-histricos suficiente para mostrar que ahiptese est errada: o registro dos artefatos de pedra

    Ao contrrio dos ossos, que muito raramente tornam-sefossilizados, os artefatos de pedra so virtualmenteindestrutveis. Muitos dos registros pr-histricos soportanto constitudos por eles, e so indcios sobre os quais oprogresso da tecnologia inferido.

    Os exemplos mais antigos de tais artefatos lminas

    grosseiras, raspadeiras e talhadeiras feitas de seixos dos quaisalgumas lascas foram tiradas aparecem nos registros decerca de 2,5 milhes de anos atrs. Se o indcio molecularestiver correto e a primeira espcie humana apareceu h uns 7milhes de anos, ento quase 5 milhes de anos se passaramentre a poca em que nossos ancestrais se tornaram bipdes ea poca em que comearam a fazer artefatos de pedra.

    Qualquer que seja a fora evolutiva que produziu um macaco

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    bpede, esta no era relacionada com a habilidade de fazer eutilizar ferramentas. Entretanto, muitos antroplogos

    acreditam que o advento da tecnologia h 2,5 milhes de anosrealmente coincidiu com o comeo da expanso do crebro.

    A compreenso de que a expanso do crebro e a tecno-logia so separadas no tempo das origens humanas forou osantroplogos a repensar sua abordagem. Como conseqncia,as ltimas hipteses tm sido formuladas em termos biol-

    gicos em vez de culturais. Considero isto um desenvolvi-mento saudvel para a profisso porque pelo menospermite que as idias sejam testadas comparando-as com oque sabemos da ecologia e do comportamento de outrosanimais. Ao fazer isto, no temos que negar que o Homosapiens possui muitos atributos especiais. Ao contrrio,procuramos pelo surgimento destes atributos a partir de umcontexto estritamente biolgico.

    Com esta compreenso, a tarefa do antroplogo deexplicar as origens humanas foi redirecionada para a origemdo bipedismo. Mesmo reduzida a este nico evento, atransformao evolutiva no foi trivial, como observou OwenLovejoy, anatomista da Kent State University. A passagempara o bipedismo uma das mudanas mais impressionantesque podemos ver na biologia evolutiva, escreveu ele em umartigo popular em 1988. H mudanas importantes nosossos, na disposio dos msculos que os movimentam, e nomovimento dos membros. Uma olhada na plvis doshumanos e dos chimpanzs suficiente para confirmar estaobservao: nos humanos, a plvis achatada e em forma decaixa, enquanto que nos chimpanzs ela alongada; e htambm diferenas importantes nos membros e no tronco (ver

    figura 1.2).O advento do bipedismo no somente uma importante

    transformao biolgica mas tambm uma importantetransformao adaptativa. Como argumentei no prefcio, aorigem da locomoo bipde uma adaptao tosignificativa que justificvel chamarmos todas as espciesde macacos bipdes humanos. Isto no significa dizer que

    as primeiras espcies bipdes possuam algum grau de

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    tecnologia, intelecto desenvolvido, ou qualquer dos atributosculturais da humanidade. Isto no aconteceu. Meu ponto de

    vista que a adoo do bipedismo era to carregada depotencial evolutivopermitindo aos membros superiores aliberdade de se tornarem um dia implementos manipulativosque sua importncia deveria ser reconhecida na nossa no-menclatura. Estes humanos no eram como ns, mas sem aadaptao ao bipedismo no poderiam ter-se tornado comons.

    Quais foram os fatores evolutivos que promoveram estaforma nova de locomoo no macaco africano? A imagempopular das origens humanas muitas vezes inclui a noo deuma criatura simiesca abandonando as florestas e dirigindo-separa as savanas abertas. Uma imagem dramtica sem dvida,mas completamente errnea, como foi recentementedemonstrado por pesquisadores das universidades de Harvarde Yale que analisaram a qumica do solo em muitas partes doleste da frica. As savanas africanas, com suas grandeshordas migratrias, so relativamente recentes no ambiente,tendo se desenvolvido h menos de 3 milhes de anos, muitodepois de a primeira espcie humana ter evoludo.

    Se levarmos nossa imaginao de volta para uma fricade 15 milhes de anos atrs, encontraremos um tapete deflorestas estendendo-se do oeste para o leste, abrigo de umagrande diversidade de primatas, inclusive muitas espcies depequenos e grandes macacos. Em contraste com a situao dehoje, as espcies de grandes macacos superavam as espciesdos pequenos. Entretanto, foras geolgicas que alterariamdramaticamente o terreno e seus ocupantes nos prximosmilhes de anos estavam prontas para entrar em ao.

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    Por baixo da parte leste do continente, a crosta da Terraestava se separando em duas partes, em uma linha que ia doMar Vermelho, atravs da Etipia, Qunia, Tanznia, atMoambique. Como conseqncia, o terreno elevou-se em

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    erupes como na Etipia e no Qunia, formando grandesmontanhas de mais de 3.000 metros de altitude. Estes grandes

    domos transformaram no apenas a topografia do continentemas tambm o seu clima. Perturbando as correntes areas nosentido oeste-leste que eram uniformes, os domos colocaramas terras a leste sob condies de pouca chuva, impedindo amanuteno das florestas midas. A cobertura contnua dervores comeou a fragmentar-se, deixando um ambientedividido em um mosaico de florestas, bosques e arbustos.

    Campos limpos, porm, eram ainda raros.H cerca de 12 milhes de anos, a ao contnua dasforas tectnicas mudou mais ainda o ambiente, com aformao de um vale longo e sinuoso, que se estende do nortepara o sul, conhecido como o Vale da Grande Fenda. Aexistncia do Vale da Grande Fenda teve dois efeitosbiolgicos: ele coloca uma formidvel barreira na direoleste-oeste s populaes animais; e promove mais ainda odesenvolvimento de um rico mosaico de condiesecolgicas.

    O antroplogo francs Yves Coppens acredita que abarreira leste-oeste foi crucial para a evoluo separada doshumanos e dos outros grandes macacos. Por fora dascircunstncias, a populao dos ancestrais comuns doshumanos e grandes macacos (...) encontrou-se dividida,escreveu ele recentemente. Os descendentes ocidentaisdestes ancestrais comuns prosseguiram sua adaptao vidaem um meio arborfero e mido; estes so os grandesmacacos. Os descendentes orientais destes mesmos ancestraiscomuns, ao contrrio, inventaram um repertrio com-pletamente novo para adaptar-se sua nova vida em umambiente aberto: estes so os humanos. Coppens chama este

    cenrio de East Side Story.*O vale tem regies montanhosas dramticas com plats

    florestais de temperatura amena, encostas ngremes de milmetros que terminam em baixadas quentes e ridas. Osbilogos perceberam que ambientes variados desse tipo, que

    * Referncia ao filme musical americano West Side Story, da dcada de

    1960, ambientado no lado pobre de Nova York. (N. do T.)

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    apresentam muitos tipos diferentes de habitats, conduzem inovao evolutiva. Populaes de uma espcie que antes

    eram amplamente disseminadas e contnuas podem tornar-seisoladas e expostas a novas foras de seleo natural. Esta areceita da transformao evolutiva. Algumas vezes estatransformao leva ao esquecimento, se o ambiente favorveldesaparece. Este, certamente, foi o destino da maioria dosmacacos africanos: apenas trs espcies existem hoje ogorila, o chimpanz comum e o chimpanz pigmeu. Mas,

    enquanto a maioria dos macacos sofreu com a mudanaambiental, um deles foi agraciado com uma nova adaptaoque lhe permitiu sobreviver e prosperar. Este foi o primeiromacaco bpede. Ser bpede conferiu-lhe claramente vantagensimportantes na luta pela sobrevivncia em condiesvariveis. O trabalho dos antroplogos descobrir quais eramestas vantagens.

    Os antroplogos tendem a ver a importncia dobipedismo na evoluo humana de duas maneiras: uma escolaenfatiza a liberao dos membros dianteiros que possibilita otransporte de coisas; a outra enfatiza o fato de que obipedismo um modo de locomoo mais eficiente do pontode vista energtico, e v a habilidade de transportar coisassimplesmente como um derivado fortuito da postura ereta.

    A primeira destas duas hipteses foi proposta por OwenLovejoy e publicada em um artigo importante na Science em1981. O bipedismo, argumentou ele, uma maneiraineficiente de locomoo, portanto ele deve ter evoludo parapermitir o transporte de coisas. De que modo a habilidade detransportar coisas poderia ter dado aos macacos bipdes umavantagem competitiva sobre os outros macacos?

    Em ltima instncia, o sucesso evolutivo depende da

    produo de uma prole que sobreviva, e a resposta, sugeriuLovejoy, est na oportunidade que esta nova habilidadeconfere aos macacos machos de aumentar a taxa reprodutivadas fmeas, ao coletar alimentos para ela. Os macacos,observou ele, reproduzem-se lentamente, tendo um rebento acada quatro anos. Se as fmeas humanas tivessem acesso amais energiaisto , comida, elas poderiam produzir de

    maneira mais bem-sucedida uma prole maior. Se um macho

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    ajudasse a providenciar mais energia para uma fmeacoletando alimentos para ela e sua prole, ela seria capaz de

    aumentar sua produo reprodutiva.Haveria uma conseqncia biolgica adicional daatividade do macho, desta vez no domnio social. Como omacho no teria benefcios no sentido darwiniano emalimentar a fmea a menos que estivesse seguro de que elaestava produzindo a sua prole, Lovejoy sugeriu que aprimeira espcie humana era monogmica, com a famlia

    nuclear emergindo como uma maneira de aumentar o sucessoreprodutivo, e assim vencer a competio contra os outrosmacacos. Ele sustentou sua argumentao com uma analogiabiolgica adicional. Na maioria das espcies de primatas, porexemplo, os machos competem entre si pelo controle sexualdo maior nmero possvel de fmeas. Durante este processo,muitas vezes eles lutam um contra o outro, e so dotados dedentes caninos grandes, que utilizam como arma. Os gibesso uma exceo porque formam casais de macho e fmea, epresumivelmente porque no tm razo de lutar um contrao outro os machos tm dentes caninos pequenos. Oscaninos pequenos nos humanos primitivos podem ser umaindicao de que, como os gibes, eles formavam casais demacho e fmea, argumentou Lovejoy. Os vnculos sociais eeconmicos do arranjo em torno da alimentao teriam porsua vez conduzido a um aumento no tamanho do crebro.

    A hiptese de Lovejoy, que desfrutou apoio e atenoconsiderveis, poderosa porque apela para pontosbiolgicos fundamentais, e no culturais. Entretanto, ela tempontos fracos; por exemplo, a monogamia no um arranjosocial comum entre povos tecnologicamente primitivos.(Apenas 20 por cento de tais sociedades so monogmicas.)

    Portanto esta hiptese foi criticada por parecer apoiar-sesobre uma caracterstica da sociedade ocidental, e no sobreuma caracterstica das sociedades de caadores-coletores. Asegunda crtica, talvez mais sria, que os machos dasespcies humanas primitivas conhecidas eram cerca de duasvezes maiores do que as fmeas. Em todas as espcies de pri-matas que tm sido estudadas, esta grande diferena no

    tamanho do corpo, conhecida como dimorfismo,

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    correlaciona-se com apoliginia, ou competio entre osmachos pelo acesso s fmeas; o dimorfismo no observado

    nas espcies monogmicas. Para mim, este fato por si s suficiente para afundar uma abordagem terica promissora, euma explicao para os caninos pequenos que no seja amonogamia deve ser procurada. Uma possibilidade que omecanismo de mastigao dos alimentos exigisse um mo-vimento de triturao e no de estraalhamento; caninosgrandes prejudicariam tal movimento. A hiptese de Lovejoy

    tem agora um apoio menor do que h uma dcada.A segunda teoria importante do bipedismo muito maisconvincente, em parte por sua simplicidade. Proposta pelosantroplogos Peter Rodman e Henry McHenry, daUniversidade da Califrnia, em Davis, a hiptese afirma queo bipedismo foi vantajoso em condies ambientais emmutao porque oferecia um meio mais eficiente delocomoo. medida que as florestas encolhiam, os recursosalimentares dos habitats florestais, tais como rvoresfrutferas, teriam se tornado muito dispersos para seremexplorados de forma eficiente pelos macacos convencionais.De acordo com esta hiptese, os primeiros macacos bipdeseram humanos apenas quanto ao seu modo de locomoo.Suas mos, mandbulas e dentes teriam permanecidosimilares aos dos macacos, porque sua dieta no mudara,apenas sua maneira de obt-la.

    Para muitos bilogos, esta proposta inicialmente pareciaimprovvel: pesquisadores da Universidade de Harvardhaviam mostrado alguns anos antes que caminhar sobre duaspernas menos eficiente do que caminhar sobre quatro. (Istono deveria ser uma surpresa para qualquer um que tenha umgato ou um cachorro; ambos correm, embaraosamente,

    muito mais rpido do que seus donos.) Os pesquisadores deHarvard tinham, entretanto, comparado a eficinciaenergtica do bipedismo nos humanos com o quadrupedismonos cavalos e cachorros. Rodman e McHenry chamaram aateno para o fato de que a comparao apropriada deveriaser entre humanos e chimpanzs. Quando estas comparaesso feitas, conclui-se que o bipedismo nos humanos mais

    eficiente do que o quadrupedismo nos chimpanzs. Um

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    argumento de eficincia energtica como uma fora daseleo natural em favor do bipedismo, concluram eles,

    portanto plausvel.Tem havido muitas outras sugestes sobre os fatores queconduziram a evoluo do bipedismo, tais como anecessidade de olhar por cima da grama alta para controlar ospredadores e a necessidade de adotar uma postura maiseficiente para refrescar-se durante a procura por alimentosdurante o dia. De todas elas, acho a de Rodman e McHenry a

    mais persuasiva, porque tem bases firmes na biologia eadapta-se s mudanas ecolgicas que estavam acontecendoquando as primeiras espcies humanas estavam evoluindo. Sea hiptese estiver correta, isto significar que, quandoencontrarmos fsseis das primeiras espcies humanas,podemos deixar de reconhec-los como tais, dependendo dosossos que obtivermos. Se os ossos forem os da plvis ou dosmembros inferiores, ento o modo bpede de locomoo serevidente, e seremos capazes de dizer humanos. Mas seencontrarmos certas partes do crnio, da mandbula, oualguns dentes, eles podem parecer com os dos macacos.Como saberamos que eles pertencem a um macaco bipde oua um macaco convencional? um desafio excitante.

    Se pudssemos visitar a frica de 7 milhes de anosatrs para observar o comportamento dos primeiros humanos,veramos um padro mais familiar aos primatlogos, queestudam o comportamento dos macacos e dos pequenosmacacos arborcolas, do que aos antroplogos, que estudam ocomportamento dos humanos. Em vez de viver em agregadosde famlias nos bandos nmades, como os caadores-coletores modernos o fazem, os primeiros humanosprovavelmente viviam como os babunos das savanas.

    Grupos de mais ou menos trinta indivduos buscariamalimentos atravs de um grande territrio de modocoordenado, retornando noite para dormir em lugaresescolhidos, como encostas de rochedos ou grupos de rvores.As fmeas maduras e suas proles constituiriam a maior partedo grupo, com apenas uns poucos machos adultos presentes.Os machos estariam continuamente procura de

    oportunidades de acasalamento, com os indivduos

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    dominantes obtendo sucesso maior. Machos imaturos ou debaixo prestgio estariam na periferia do grupo, muitas vezes

    procurando alimentos por si mesmos. Os indivduos no grupoteriam o aspecto humano do caminhar ereto mas secomportariam como os primatas das savanas. frente delesesto 7 milhes de anos de evoluo um padro deevoluo que seria complexo, como veremos, e de nenhummodo absolutamente certo. Pois a seleo natural opera deacordo com as circunstncias imediatas e no tendo em vista

    um objetivo de longo prazo. O Homo sapiens finalmenteevoluiu como um descendente dos primeiros humanos, masno havia nada de inevitvel a respeito disto.

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    2 - Uma famlia numerosa

    Pela minha contagem, espcimens de fsseis com vriosgraus de incompletude, representando pelo menos um milharde indivduos das vrias espcies humanas, tm sidorecuperados na frica Oriental e do Sul da parte mais antigados registros arqueolgicos, isto , de cerca de 4 milhes atquase 1 milho de anos atrs (muitos mais neste ltimo

    registro). Os fsseis humanos mais antigos encontrados naEursia podem ter cerca de 2 milhes de anos de idade. (ONovo Mundo e a Austrlia foram povoados muito maisrecentemente, h uns 20 mil e 55 mil anos respectivamente.)Portanto, justo dizer que a maior parte da ao na pr-histria humana aconteceu na frica. As questes a que osantroplogos devem responder sobre esta ao so duas:primeiro, que espcies constituram a rvore de famliahumana entre 7 e 2 milhes de anos atrs, e como elasviveram? Segundo, como eram as espcies relacionadas umascom as outras sob o ponto de vista evolutivo? Em outraspalavras, qual era a forma da rvore de famlia?

    Meus colegas antroplogos deparam com dois desafiosprticos quando tratam com estes problemas. O primeiro oque Darwin chamava a extrema imperfeio do registrogeolgico. Na sua A origem das espcies, Darwin devotouum captulo inteiro as lacunas frustrantes encontradas nosregistros, as quais so conseqncia das foras caprichosas dafossilizao e mais tarde da exposio dos ossos. Ascondies que favorecem o enterro rpido e a possvelfossilizao dos ossos so raras. E sedimentos antigos podemtornar-se expostos pela eroso quando, por exemplo, uma

    corrente passa atravs deles, mas quais as pginas da pr-histria que so reabertas desta maneira puramente umaquesto de acaso, e muitas pginas permanecem escondidasde nossas vistas. Por exemplo, na frica Oriental, orepositrio mais promissor de fsseis humanos primordiais,h muito poucos sedimentos com fsseis pertencentes aoperodo compreendido entre 4 e 8 milhes de anos atrs. Este

    um perodo crucial na pr-histria do homem, j que ele

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    inclui a origem da famlia humana. Mesmo para o perodoque vem aps os 4 milhes de anos temos muito menos

    fsseis do que gostaramos.O segundo desafio surge do fato de que a maioria dosespcimens de fsseis descobertos so pequenos fragmentosum pedao de crnio, um osso da face, parte de um ossodo brao, e muitos dentes. A identificao de espcies a partirde indcios escassos desta natureza no tarefa fcil ealgumas vezes impossvel. A incerteza resultante permite

    que surjam muitas diferenas cientficas de opinio, naidentificao da espcie e no discernimento das suas inter-relaes. Esta rea da antropologia, conhecida comotaxonomia e sistemtica, uma das mais controvertidas.Evitarei os detalhes dos muitos debates e, em vez disto, con-centrarei a ateno na descrio da forma geral da rvore.

    O conhecimento dos registros de fsseis humanos nafrica desenvolveu-se lentamente, comeando em 1924quando Raymond Dart anunciou a descoberta da famosacriana Taung. Compreendendo o crnio incompleto de umacriana parte do crnio, face, maxilar inferior e caixacraniana , o espcimen foi assim chamado porque foirecuperado da pedreira de calcrio de Taung, na frica doSul. Embora nenhuma datao precisa dos sedimentos dapedreira fosse possvel, estimativas cientficas sugeriram quea criana viveu h cerca de 2 milhes de anos.

    Embora a cabea da criana Taung tivesse muitascaractersticas semelhantes s do macaco, tais como umcrebro pequeno e um maxiliar protuberante, Dart tambmreconheceu nele caractersticas humanas: o maxilar eraprotuberante mas menos do que nos macacos, os dentes

    molares eram achatados e os caninos pequenos. Um indciofundamental foi a posio do formen magno a aberturana base do crnio atravs da qual os nervos espinhais passampara a coluna espinhal. Nos macacos, a abertura estrelativamente mais para trs na base do crnio, enquanto quenos humanos ela est muito mais prxima do centro da base;a diferena um reflexo da postura bpede dos humanos, na

    qual a cabea equilibra-se em cima da espinha, em contraste

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    com a postura dos macacos, na qual a cabea pende para afrente. O formen magno da criana Taung era no centro,

    indicando que a criana era um macaco bpede.Embora Dart estivesse convencido do status dehomindeo da criana Taung, passou-se quase um quarto desculo antes que os antroplogos profissionais aceitassemeste fssil individual como um ancestral humano e noapenas como um macaco antigo.

    O preconceito contra a frica como stio da evoluo

    humana e um repdio generalizado idia de que algo tosemelhante ao macaco pudesse ser uma parte daancestralidade humana combinaram-se para lanar Dart e suadescoberta no esquecimento antropolgico por um longotempo. Na poca em que os antroplogos reconheceram o seuerro no final dos anos 40 , o escocs Robert Broomjuntara-se a Dart, e os dois homens haviam descobertovintenas de fsseis humanos primordiais em quatro lugaresonde se encontram cavernas na frica do Sul: Sterkfontein,Swartkrans, Kromdraai e Makapansgat. Seguindo o costumeantropolgico da poca, Dart e Broom deram o nome de umaespcie nova para praticamente todos os fsseis quedescobriram; deste modo, em breve parecia que umverdadeiro zoolgico de espcies humanas vivera na fricado Sul entre 3 milhes e 1 milho de anos atrs.

    Nos anos 50, os antroplogos decidiram racionalizar agrande quantidade de espcies de homindeos propostas ereconheceram apenas duas. Ambas eram de macacos bipdes, claro, e ambas eram semelhantes aos macacos do mesmomodo pelo qual a criana Taung o era. A principal diferenaentre as duas espcies estava nos seus maxilares e dentes: emambas, estes eram grandes, mas uma das criaturas era uma

    verso mais corpulenta da outra. A espcie mais graciosarecebeu o nome de Australopithecus africanus, que era onome que Dart dera criana Taung em 1924; o termosignifica macaco do sul da frica. A espcie mais robustafoi apropriadamente chamadaAustralopithecus robustus (verfigura 2.1).

    A partir da estrutura de seus dentes, era bvio que

    ambos, o africanus e o robustus, alimentavam-se

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    principalmente de vegetais. Seus molares no eram como osdos macacosque tm cspides aguadas, aptas a uma dieta

    de frutas de casca relativamente macia e a outros vegetaismas eram achatados formando superfcies aptas para otrituramento. Se, como suspeito, as primeiras espcieshumanas viveram de uma dieta semelhante dos macacos,elas teriam dentes semelhantes a estes. Claramente, h cercade 2 ou 3 milhes de anos a dieta humana mudou para umadieta de alimentos mais duros, tais como frutas de casca

    rgida e nozes. Quase certamente isto indica que osaustralopitecneos viveram em um ambiente mais seco que odos macacos. O grande tamanho dos molares da espcierobusta sugere que os alimentos que ela comia eram especial-mente duros e necessitavam de triturao extensiva; no poracaso que so chamados molares tipo marco de estrada.

    O primeiro fssil de humanos primitivos foi encontradona frica Oriental por Mary Leakey, em agosto de 1959.Depois de quase trs dcadas de procura nos sedimentos dagarganta Olduvai, ela foi recompensada com a descoberta demolares do tipo marco de estrada, como aqueles da espcieaustralopitecnea robusta da frica do Sul. Louis Leakey,que, com Mary, tomara parte da longa busca, chamou-oZinjanthropus boisei: o nome que refere-se ao gnerosignifica homem da frica Oriental e boisei refere-se aCharles Boise, que apoiou meu pai e minha me em seutrabalho na garganta Olduvai e alhures. Na primeira aplicaodos mtodos modernos de datao geolgica, foi determinadoque Zinj, como o indivduo tornou-se conhecido, vivera h1,75 milho de anos. O nome Zinj foi finalmente trocado paraAustralopithecus boisei, no pressuposto de que ele era umaverso africana oriental, ou variante geogrfica, do

    Australopithecus robustus.Os nomes no so particularmente importantes por si

    prprios. O que importante que estamos vendo diversasespcies humanas com a mesma adaptao fundamental, obipedismo, um crebro pequeno e dentes molaresrelativamente grandes. Isto foi o que vi no crnio queencontrei sobre um leito de rio seco na minha primeira

    expedio margem oriental do lago Turkana, em 1969.

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    Sabemos a partir do tamanho variado dos ossos doesqueleto que os machos da espcie australopitecnea erammuito maiores do que as fmeas. Eles tinham 1,5 metro dealtura enquanto suas companheiras mal atingiam 1 metro. Os

    machos devem ter pesado o dobro das fmeas, uma diferena

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    do tipo que vemos hoje em algumas espcies de babunos dassavanas. , portanto, razovel supor que a organizao social

    dos australopitecneos era similar dos babunos, com osmachos dominantes competindo pelo acesso s fmeasmaduras, como foi observado no captulo anterior.

    A histria da pr-histria humana tornou-se um poucomais complicada um ano aps a descoberta do Zinj, quandomeu irmo mais velho, Jonathan, descobriu um pedao decrnio de um outro tipo de homindeo, novamente na

    garganta Olduvai. A pouca espessura relativa do crnioindicava que este indivduo tinha uma constituioligeiramente mais leve do que qualquer uma das espciesconhecidas de australopitecneos. Ele tinha dentes molaresmenores e, o mais significativo de tudo, seu crebro era quase50 por cento maior. Meu pai concluiu que, embora osaustralopitecneos fizessem parte da ancestralidade humana,este novo espcimen representava a linhagem que finalmentedeu origem aos humanos modernos. Em meio a um alarido deobjees por parte de seus colegas de profisso, ele decidiubatiz-lo Homo habilis, tornando-o o primeiro membroprimitivo do gnero a ser identificado. (O nome Homohabilis, que significa homem habilidoso, lhe foi sugeridopor Raymond Dart, e refere-se suposio de que a espcieera de fabricantes de artefatos.)

    De muitas maneiras, o alarido tinha base emconsideraes esotricas; ele surgiu em parte porque, paraatribuir a designao Homo ao novo fssil, Louis teve quemodificar as definies aceitas de gnero. At aquela poca, adefinio padro, proposta pelo antroplogo britnico SirArthur Keith, afirmava que a capacidade cerebral do gneroHomo deveria ser igual ou exceder os 750 centmetros

    cbicos, um valor intermedirio entre o dos humanos mo-dernos e o dos macacos; isto tomou-se conhecido como oRubico cerebral. A despeito do fato de que o fssilrecentemente descoberto na garganta Olduvai tivesse umacapacidade cerebral de apenas 650 centmetros cbicos,Louis julgou-o ser Homo por causa de seu crnio maishumanide (isto , menos robusto). Ele portanto props

    alterar o Rubico cerebral para 600 centmetros cbicos,

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    admitindo com isto o novo homindeo olduvaiano ao gneroHomo. Esta ttica certamente elevou o nvel emocional do

    vigoroso debate que se seguiu. Ao final, porm, a novadefinio foi aceita. (Mais tarde, chegou-se concluso deque 650 centmetros cbicos muito pouco como mdia detamanho do crebro adulto noHomo habilis: 850 centmetroscbicos um valor mais prximo.)

    Nomes cientficos parte, o ponto importante aqui queo padro de evoluo que comea a emergir destas

    descobertas era o de dois tipos bsicos de humanosprimitivos. Um tipo tinha um crebro pequeno e dentesmolares grandes (as vrias espcies de australopitecneos); osegundo tipo tinha um crebro maior e dentes molarespequenos (Homo) (ver figura 2.2). Ambos os tipos eram demacacos bipdes, mas claramente algo de extraordinriotinha acontecido na evoluo do Homo. Exploraremos estealgo de maneira mais completa no prximo captulo. Dequalquer modo, a compreenso dos antroplogos da forma darvore de famlia neste ponto da histria humana isto ,por volta de 2 milhes de anos atrs era bastante simples.A rvore tinha dois ramos principais: as espciesaustralopitecneas, que se tornaram todas extintas h cerca de1 milho de anos, e a Homo, que finalmente levou a gentecomo ns.

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    Os bilogos que estudaram os registros de fsseis sabemque, quando uma nova espcie desenvolve uma adaptao

    nova, muitas vezes h um florescimento de espciesdescendentes durante os milhes de anos seguintes queexpressam variaes temticas daquela adaptao inicialoflorescimento conhecido como irradiao adaptativa. Oantroplogo da Universidade de Cambridge, Robert Foley,calculou que, se a histria evolutiva dos macacos bpedesacompanhou o padro usual de irradiao adaptativa, exis-

    tiram pelo menos 16 espcies entre a origem do grupo h 7milhes de anos e os dias de hoje. A forma da rvore defamlia comea com um nico tronco (a espcie fundadora),cresce medida que novos ramos desenvolvem-se com otempo, e ento reduz suas ramificaes quando as espciestornam-se extintas, deixando apenas um ramo sobreviventeoHomo sapiens. De que modo tudo isto se encaixa com oque sabemos dos registros de fsseis?

    Durante muitos anos aps a aceitao do Homo habilis,pensou-se que h 2 milhes de anos havia trs espcies deaustralopitecneos e uma de Homo. Neste ponto da histria,esperaramos que a rvore familiar fosse bem populosa, assimquatro espcies coexistentes no parecem ser muito. E, defato, recentemente tornou-se aparente por meio de novasdescobertas e novas reflexes que pelo menos quatroaustralopitecneos viveram neste perodo, lado a lado comduas ou mesmo trs espcies de Homo. Este quadro no estem absoluto acabado, mas, se as espcies humanas eramcomo as espcies de outros grandes mamferos (e neste pontoda nossa histria no h razo para pensar que elas no ofossem), ento isto o que os bilogos esperariam. A questo: o que aconteceu antes dos 2 milhes de anos atrs?

    Quantos ramos haviam na rvore de famlia e como erameles?

    Como j observado, os registros fsseis tornam-serapidamente esparsos alm dos 2 milhes de anos atrs eficam mais raros ainda para mais de 4 milhes de anos. Osfsseis humanos mais antigos conhecidos so todos da fricaOriental. Na margem leste do lago Turkana, encontramos um

    osso de brao, um osso do pulso, fragmentos de mandbulas e

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    dentes de cerca de 4 milhes de anos atrs; o antroplogoamericano Donald Johanson e seus colegas recuperaram um

    osso de perna de idade similar na regio conhecida comoAwash, na Etipia. Na verdade, estes so indcios escassospara se recriar um quadro da pr-histria humana mais antiga.H, contudo, uma exceo neste perodo de raros indcios, eesta exceo uma rica coleo de fsseis da regio Hadar,na Etipia, que pertencem ao perodo entre 3 e 3,9 milhes deanos atrs.

    Nos meados da dcada de 1970, uma equipe franco-americana, liderada por Maurice Taieb e Johanson, recuperoucentenas de ossos fossilizados fascinantes, inclusive umesqueleto parcialmente completo de um indivduo pequeno,que tornou-se conhecido como Lucy (ver figura 2.3). Lucy,que era uma adulta madura quando morreu, mal atingia 1metro de altura e era de constituio muito semelhante deum macaco, com braos longos e pernas curtas. Outrosfsseis de indivduos provindos desta rea indicavam que noapenas havia muitos deles maiores do que Lucy, atingindomais de 1,5 metro de altura, mas tambm que estes eram maissemelhantes aos macacos em certos aspectosno tamanho eforma dos dentes, na projeo das mandbulas do que oshomindeos que viveram mais tarde na frica Oriental e doSul h mais ou menos 1 milho de anos. Isto o que espera-ramos encontrar medida que nos aproximamos cada vezmais da poca da origem da humanidade.

    Quando vi pela primeira vez os fsseis de Hadar,pareceu-me que eles representavam duas espcies, talvezmais. Considerei provvel que a diversidade de espcies quevemos surgir h 2 milhes de anos derivava de umadiversidade similar que surgira 1 milho de anos antes,

    inclusive espcies de Australopithecus e Homo. Na suainterpretao inicial dos fsseis, Taieb e Johanson apoiarameste padro de evoluo. Entretanto, Johanson e Tim White,da Universidade da Califrnia em Berkeley, fizeram maisanlises. Em um artigo publicado na revista Science emjaneiro de 1979, eles sugeriram que os fsseis de Hadar norepresentavam diversas espcies de humanos primitivos mas

    ao contrrio eram ossos de apenas uma nica espcie, que

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    Johanson chamou Australopithecus afarensis. A grandevariedade de tamanho corporal, que anteriormente tinha sido

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    considerada como indicao da presena de diversasespcies, era agora explicada simplesmente como dimorfismo

    sexual. Todas as espcies de homindeos que surgiram maistarde eram descendentes desta nica espcie, disseram eles.Muitos de meus colegas ficaram surpresos com estaafirmao audaciosa, e ela provocou um vigoroso debate quedurou muitos anos (ver figura 2.4).

    Embora desde ento muitos antroplogos tenhamdecidido que o esquema de Johanson e White provavelmente

    est correto, eu acredito que o esquema est errado, por duasrazes. Primeiro, as diferenas de tamanho e a variedadeanatmica dos fsseis de Hadar so simplesmente muitograndes para representar uma nica espcie. Muito maisrazovel a noo de que os fsseis so de duas espcies, outalvez mais. Yvens Coppens, que era membro da equipe quecoletou os fsseis de Hadar, tambm da mesma opinio.Segundo, o esquema no faz sentido do ponto de vistabiolgico. Se os humanos originaram-se h 7 milhes deanos, ou mesmo h 5 milhes de anos, seria muito incomumque uma nica espcie tivesse sido a ancestral de todas asespcies que vieram mais tarde. Esta no seria a forma tpicade uma irradiao adaptativa, e a menos que haja uma boarazo para suspeitar o contrrio devemos supor que a histriahumana seguiu o padro normal.

    A nica maneira pela qual esta questo sersatisfatoriamente resolvida para todos por meio dadescoberta e anlise de mais fsseis de mais de 3 milhes deanos de idade, o que parecia ser possvel no comeo de 1994.Desde 1990, depois de uma dcada e meia deimpossibilidade, por razes polticas, de retornar aos lugaresricos em fsseis na regio de Hadar, Johanson e seus colegas

    fizeram trs expedies. Seus esforos tiveram grande suces-so, sendo recompensados com a coleta de 53 espcimens defsseis, inclusive o primeiro crnio completo. O padro desteperodo de tempo observado anteriormente o de umagrande variedade de tamanho corporal confirmado emesmo ampliado pelas novas descobertas. Como devemosinterpretar este fato? Estar a questo de uma ou mais

    espcies s vsperas da soluo? Infelizmente este no o

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    caso. Aqueles que achavam que a variedade de tamanho dosfsseis previamente descobertos indicava uma diferena de

    estatura entre machos e fmeas consideraram os novosfsseis como indcios que apoiavam esta posio. Aqueles dens que suspeitavam que uma variedade de tamanho toampla deve indicar uma diferena entre espcies, e no umadiferena dentro de uma mesma espcie, interpretaram osnovos fsseis como indicaes que reforavam este ponto devista. A forma da rvore de famlia anterior aos 2 milhes de

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    anos atrs deve portanto ser considerada uma questo no re-solvida.

    A descoberta do esqueleto parcialmente completo deLucy em 1974 parecia dar um primeiro vislumbre do grau deadaptao anatmica locomoo bpede dos homindeosmais antigos. Por definio, a primeira espcie de homindeoa desenvolver-se teria sido um tipo de macaco bpede. Masat que o esqueleto de Lucy tivesse aparecido, osantroplogos no tinham indcios tangveis de bipedismo em

    uma espcie humana anterior aos 2 milhes de anos atrs. Osossos da plvis, pernas e ps do esqueleto de Lucy forampistas vitais para esta questo.

    A partir da forma da plvis e do ngulo entre o fmur e ojoelho, fica claro que Lucy e seus companheiros adaptavam-se a alguma forma de caminhar ereta. Estas caractersticaseram muito mais semelhantes s dos humanos do que s dosmacacos. De fato, Owen Lovejoy, que realizou os estudosanatmicos iniciais destes ossos, concluiu que a locomoobpede da espcie teria sido indistinguvel da maneira pelaqual eu e voc caminhamos. Entretanto, nem todosconcordam. Por exemplo, em 1983, em um importantetrabalho cientfico, Jack Stern e Randall Susman, doisanatomistas da State University of New York, em StonyBrook, apresentaram uma interpretao diferente da anatomiade Lucy: Ela possui uma combinao de caractersticasinteiramente adequada a um animal que tivesse viajadobastante na estrada que leva ao bipedismo de tempo total,mas que retm aspectos estruturais que lhe permitiamutilizar-se das rvores de maneira eficiente para alimentar-se,dormir ou fugir.

    Um dos indcios cruciais que Stern e Susman

    apresentaram em favor de suas concluses era a estrutura dosps de Lucy: os ossos eram algo encurvados, como seobserva nos macacos mas no nos humanos um arranjoque facilitaria a subida nas rvores. Lovejoy descarta esteponto de vista e sugere que os ossos encurvados do p sosimplesmente um vestgio evolutivo do passado simiesco deLucy. Estes dois campos opostos mantiveram

    entusiasticamente suas diferenas de opinio por mais de uma

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    dcada. Ento, no comeo de 1994, novos indcios, inclusivealguns vindos de uma fonte das mais inesperadas,

    aparentemente fizeram pender a balana para um lado.Primeiro, Johanson e seus colegas relataram a descobertade ossos de um brao de 3 milhes de anos de idade, umcbito e um mero, que eles atriburam ao Australopithecusafarensis. O indivduo obviamente tinha sido muito forte, eseus ossos do brao tinham algumas caractersticas similaresaquelas observadas nos chimpanzs, enquanto outras eram

    diferentes. Comentando esta descoberta, Leslie Aiello, umantroplogo do University College, de Londres, escreveu narevista Nature: A morfologia variada do cbito do A.afarensis, junto com seu mero robusto e bastante musculoso,estaria idealmente adaptada a uma criatura que no s subisseem rvores mas que tambm caminhasse sobre duas pernasno solo. Esta descrio, com a qual concordo, claramentefavorece mais o lado de Susman do que o de Lovejoy.

    Um apoio ainda mais forte a este ponto de vista vem dautilizao inovadora da tomografia axial computadorizada (avarredura CAT) para discernir os detalhes da anatomia doouvido interno destes humanos primitivos. Parte da anatomiado ouvido interno constituda por trs tubos em forma de C,os canais semicirculares. Dispostos de uma maneira que osdeixa mutuamente perpendiculares, com dois dos canaisorientados verticalmente, a estrutura desempenha um papelchave na manuteno do equilbrio do corpo. Em umencontro de antroplogos em abril de 1994, Fred Spoor, daUniversidade de Liverpool, descreveu os canaissemicirculares nos humanos e nos macacos. Os dois canaisverticais so significativamente maiores nos humanos quandoos comparamos com os dos macacos. Uma diferena que

    Spoor interpreta como uma adaptao s exignciasadicionais do equilbrio ereto nas espcies bipdes. E o quedizer das espcies humanas primitivas?

    As observaes de Spoor so verdadeiramenteespantosas. Em todas as espcies do gneroHomo, a estruturado ouvido interno indistinguvel da dos humanos modernos.Da mesma forma, em todas as espcies de Australopithecus,

    os canais semicirculares parecem-se com os dos macacos.

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    Significar isto que os australopitecneos movimentavam-secomo os macacos o fazem isto , que seu modo de

    locomoo era quadrpede? A estrutura da plvis e dosmembros inferiores falam contra esta concluso. Do mesmomodo o faz a notvel descoberta que minha me fez em 1976:um rastro de pegadas muito humanides conservadas em umestrato de cinzas vulcnicas h uns 3,75 milhes de anos. Noobstante, se a estrutura do ouvido interno indicadora dapostura habitual e do modo de locomoo, ela sugere que os

    australopitecneos no eram simplesmente como eu e voc,como sugeriu e continua a sugerir Lovejoy.Ao promover sua interpretao, Lovejoy parece querer

    tornar os homindeos totalmente humanos desde o incio, umatendncia entre os antroplogos que discuti anteriormenteneste captulo. Mas no vejo qualquer problema em imaginarque um ancestral nosso exibisse um comportamentosemelhante aos dos macacos e que as rvores fossemimportantes em suas vidas. Somos macacos bipdes e nodeveria ser surpresa ver este fato refletido no modo pelo qualnossos ancestrais viviam.

    Neste ponto, mudarei de ossos para pedras, o indciomais tangvel do comportamento de nossos ancestrais.Chimpanzs so usurios eficientes de utenslios, e utilizampauzinhos para coletar cupins, folhas como esponjas e pedraspara quebrar castanhas. Mas, de qualquer modo, at agora,nenhum chimpanz selvagem foi visto manufaturando umutenslio de pedra. Os humanos comearam a produzirferramentas de corte h uns 2,5 milhes de anos fazendo duaspedras baterem uma contra a outra, dando incio assim a umatrilha de atividade tecnolgica que reala a pr-histria

    humana.Os utenslios mais antigos so pequenas lascas, obtidas

    batendo uma pedrausualmente um seixo de lavacontrauma outra. As lascas mediam cerca de 2,2 centmetros decomprimento e eram surpreendentemente aguadas. Emborasimples na aparncia, elas eram utilizadas em uma grandevariedade de tarefas. Sabemos isto porque Lawrence Keeley,

    da Universidade de Illinois, e Nicholas Toth da Universidade

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    de Indiana, analisaram uma dzia destas lascas provindas deum stio arqueolgico de 1,5 milho de anos de idade situado

    ao leste do lago Turkana, procurando por sinais de uso. Elesdescobriram diferentes tipos de desgaste nas lascasmarcasindicando que algumas haviam sido utilizadas para cortarcarne, algumas para cortar madeira, e outras para cortarmateriais macios originrios de vegetais, como a grama.Quando encontramos lascas de pedra dispersas em um stioarqueolgico deste tipo, temos que ser inventivos para

    imaginar a complexidade da vida levada ali, porque asrelquias so raras: a carne, a madeira e a grama se foram.Podemos imaginar um lugar de acampamento simples situadona margem do rio, onde um grupo familiar humano cortava acarne no abrigo de uma estrutura feita a partir de rvoresnovas e coberta por juncos, mesmo que tudo o que possamosver hoje sejam lascas de pedra.

    Os primeiros conjuntos de artefatos de pedraencontrados tm 2,5 milhes de anos de idade; eles incluem,alm de lascas, implementos maiores tais como cutelos,raspadores e vrias pedras polidricas. Na maioria dos casos,estes itens eram tambm produzidos pela remoo dediversas lascas de um seixo de lava. Mary Leakey passoumuitos anos na garganta Olduvai estudando esta tecnologiaprimitivaque conhecida como indstria olduvaiana, porcausa da garganta Olduvai e ao faz-lo estabeleceu ocomeo da arqueologia africana.

    Em conseqncia de seus experimentos com a fabricaode artefatos de pedra, Nicholas Toth suspeita que osprimeiros fabricantes no tinham formas especficas deartefatos individuais em mente um molde mental, sepreferirmos quando os estavam fabricando. Muito

    provavelmente, as vrias formas eram determinadas pelaforma original da matria-prima A indstria olduvaiana que era a nica forma de tecnologia empregada at cerca de1,4 milho de anos atrs era de natureza essencialmenteoportunstica.

    Uma questo interessante surge com relao shabilidades cognitivas implcitas na produo destes

    artefatos. Estariam estes fabricantes primitivos de artefatos

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    empregando habilidades mentais comparveis s dosmacacos, mas de um modo diferente? Ou isto exigia que

    tivessem uma inteligncia maior? O crebro dos fabricantesde artefatos era mais ou menos 50 por cento maior do que odos macacos, assim a ltima concluso parece ser intuitiva-mente bvia. No obstante, Thomas Wynn, arquelogo daUniversidade do Colorado, e William McGrew, primatlogoda Universidade de Stirling, na Esccia, no concordam comisto. Eles analisaram certas habilidades manipulativas

    exibidas pelos macacos, e num trabalho publicado em 1989,intitulado An Ape's View of the Olduvan, concluram:Todos os conceitos espaciais aplicados aos artefatosolduvaianos podem ser encontrados nas mentes dos macacos.De fato, a competncia espacial descrita acima provavelmente verdadeira para todos os grandes macacos eno faz dos fabricantes de artefatos olduvaianos especiais.

    Acho esta afirmao surpreendente, isto porque tenhovisto as pessoas tentarem reproduzir artefatos da idade dapedra fazendo duas pedras baterem uma contra a outra, compouco sucesso. No era assim que era feito. Nicholas Tothpassou muitos anos aperfeioando tcnicas de fabricao deartefatos de pedra e tem um bom conhecimento da mecnicadas lascas de pedra. Para trabalhar eficientemente, o britadordeve escolher uma pedra que tenha a forma apropriada, quetenha o canto correto para bater; e o movimento de baterexige grande prtica para obter-se a intensidade apropriada defora no lugar certo. Parece claro que os primeiros proto-humanos fabricantes de artefatos tinham um bom sensointuitivo dos fundamentos do trabalho com pedras, escreveuToth em um artigo de 1985. No h dvida de que osprimeiros ferramenteiros possuam uma capacidade mental

    superior dos macacos, disse-me ele recentemente. Afabricao de artefatos exige uma coordenao significativade habilidades cognitivas e motoras.

    Uma experincia em curso no Language ResearchCenter, em Atlanta, Georgia, est verificando esta questo.Por mais de uma dcada, Sue Savage-Rumbaugh, umapsicloga, vem trabalhando com chimpanzs pigmeus no

    desenvolvimento das habilidades de comunicao.

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    Recentemente, Toth comeou a colaborar com ela, tentandoensinar a um chimpanz de nome Kanzi como produzir lascas

    de pedras. Kanzi indubitavelmente mostrou um raciocnioinovador na produo de lascas aguadas, mas at agora noreproduziu a tcnica sistemtica de produo de lascasutilizadas pelos fabricantes primitivos. Suspeito que istosignifica que Wynn e McGrew esto errados e que osfabricantes mais primitivos utilizavam habilidades cognitivassuperiores quelas presentes nos macacos.

    Dito isto, permanece verdadeiro que os primeirosartefatos, os da indstria olduvaiana, eram simples eoportunsticos. H cerca de 1,4 milho de anos na frica,apareceu um novo tipo de coleo, que os arquelogoschamam indstria acheulense, em razo do stio arqueolgicode Saint Acheul, no norte da Frana, onde estes artefatos, emverses posteriores, foram descobertos pela primeira vez.Pela primeira vez na pr-histria humana, h indcios de queos fabricantes de artefatos tinham um modelo mental do quedesejavam produzir que eles estavam impondo inten-cionalmente uma forma matria-prima que utilizavam. Oimplemento que sugere isto o assim chamado machadomanual, um utenslio em forma de gota de lgrima que exigiauma habilidade notvel e pacincia para ser feito (ver figura2.5). Toth e outros experimentalistas precisaram de vriosmeses para adquirir a habilidade de produzir machadosmanuais de qualidade igual aos encontrados nos registrosarqueolgicos desta poca.

    O aparecimento do machado manual nos registrosarqueolgicos acompanha a emergncia do Homo erectus, osuposto descendente do Homo habilis e ancestral do Homosapiens. Como veremos no captulo seguinte, razovel

    deduzir que os fabricantes do machado manual eramindivduos da espcie Homo erectus, dotados de um crebrosignificativamente maior que o doHomohabilis.

    Quando nossos ancestrais descobriram o truque deproduzir consistentemente lascas de pedra afiadas, istoconstituiu um grande avano na pr-histria humana.Subitamente, os humanos tiveram acesso a alimentos que lhes

    eram previamente negados. A modesta lasca, como Toth

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    muitas vezes demonstrou, um implemento altamenteeficiente para cortar tudo, exceto as peles mais duras at

    expor a carne vermelha contida dentro. Se eram caadores oucarniceiros, os humanos que fizeram e utilizaram estassimples lascas de pedra com isto tiveram acesso a uma novafonte de energiaa protena animal. Assim eles teriam sidocapazes no apenas de estender o alcance de suas incursesmas tambm de aumentar as chances de uma produo bem-sucedida de uma prole. O processo reprodutivo um

    processo dispendioso, e a expanso da dieta com a inclusode carne o teria tornado mais seguro.Uma pergunta antiga para os antroplogos tem sido,

    claro: quem fez os artefatos? Quando os artefatos apareceramnos registros arqueolgicos, existiam diversas espcies deaustralopitecneos, e provavelmente diversas espcies deHomo tambm. Como podemos decidir quem era o fabricantede artefatos? Isto extremamente difcil. Se encontramosartefatos somente em associao com fsseis do Homo e

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    e nunca com fsseis de australopitecneos, isto poderiaimplicar que o Homo era o nico fabricante. Entretanto, o

    registro pr-histrico no to lmpido assim. RandallSusman argumentou, a partir da anatomia do que ele acreditaser ossos da mo de um A. robustus oriundos de um stio nafrica do Sul, que esta espcie tinha habilidadesmanipulativas suficientes para fazer ferramentas. Mas no hmaneira de nos certificarmos se ela realmente o fazia ou no.

    Minha posio a de que devemos procurar pela

    explicao mais simples. Sabemos a partir dos registros pr-histricos que depois de 1 milho de anos atrs somente aespcie Homo existia, e sabemos tambm que eles faziamferramentas de pedras. At que haja uma boa razo parasupor o contrrio, parece ser prudente concluir que apenas oHomo fabricava ferramentas no comeo da sua pr-histria.As espcies australopitecneas e Homo tiveram claramenteadaptaes especficas diferentes, e provvel que o ato decomer carne pelo Homo era uma parte importante destadi