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A palavra texto tem a sua origem no latim, TEXTUM , que significa tecido. Assim como nas roupas e nos tapetes, em que os fios do tecido não estão soltos, dispostos a esmo pelo espaço, há, portanto pontos que os ligam, formando um conjunto de fios entrelaçados que por sua vez formam a blusa ou o cachecol – o mesmo ocorre na produção de texto. Há nele elementos que se ligam e se conectam, dando forma ao produto [texto] conferindo-lhe corpo, estrutura, ou seja, um sentido. Seja um texto oral ou escrito, a noção de sentido só poderá ser determinada pelo processo constante de interação entre a tríade autor-texto-leitor. Portanto um texto pressupõe um leitor/ouvinte, caso contrário o objetivo primordial do texto – a transmissão de conhecimento e/ou estabelecer uma comunicação – não pode ser efetivada. TEXTO E NÃO-TEXTO Antes de mais nada, cumpre rever a noção de texto, para empregar o termo com propriedade ao tratarmos da produção textual escolar. A questão é controvertida. Chega-se, às vezes, ao paradoxo de definir “não-texto” como um texto incoerente. Um texto incoerente não deixa de ser um texto. Michel Charoles sustenta que não há propriamente texto incoerente, alegando que o receptor do texto age como se este fosse sempre coerente e faz tudo para calcular seu sentido; e, nessa tarefa, é sempre possível encontrar um contexto, uma situação em que a seqüência de frases dada como incoerente se torne coerente, vindo a constituir um texto (Charoles, 1978). Kock & Travaglia contestam Charolles, dizendo que em textos longos não se permitem ao receptor procedimentos sugeridos por ele. Estes autores ilustram seu argumento com um exemplo de texto incoerente, que transcrevemos abaixo (1989, p.32). (01) "João Carlos vivia em uma pequena casa construída no alto de uma colina árida, cuja frente dava para o leste. Desde o pé da colina se espalhava em todas as direções, até o horizonte, uma planície coberta de areia. Na noite em que completava 30 anos, João, sentado nos degraus da escada colocada à frente de sua casa, olhava o sol poente e observava como a sua sombra ia diminuindo no caminho coberto de grama. De repente, viu um cavalo que descia para sua casa. As árvores e as folhagens não lhe permitiam ver distintamente; entretanto, observou

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A palavra texto tem a sua origem no latim, TEXTUM, que significa tecido. Assim como nas roupas e nos tapetes, em que os fios do tecido não estão soltos, dispostos a esmo pelo espaço, há, portanto pontos que os ligam, formando um conjunto de fios entrelaçados que por sua vez formam a blusa ou o cachecol – o mesmo ocorre na produção de texto. Há nele elementos que se ligam e se conectam, dando forma ao produto [texto] conferindo-lhe corpo, estrutura, ou seja, um sentido. Seja um texto oral ou escrito, a noção de sentido só poderá ser determinada pelo processo constante de interação entre a tríade autor-texto-leitor. Portanto um texto pressupõe um leitor/ouvinte, caso contrário o objetivo primordial do texto – a transmissão de conhecimento e/ou estabelecer uma comunicação – não pode ser efetivada.

TEXTO E NÃO-TEXTO

Antes de mais nada, cumpre rever a noção de texto, para empregar o termo com propriedade ao tratarmos da produção textual escolar.

A questão é controvertida. Chega-se, às vezes, ao paradoxo de definir “não-texto” como um texto incoerente. Um texto incoerente não deixa de ser um texto.

Michel Charoles sustenta que não há propriamente texto incoerente, alegando que o receptor do texto age como se este fosse sempre coerente e faz tudo para calcular seu sentido; e, nessa tarefa, é sempre possível encontrar um contexto, uma situação em que a seqüência de frases dada como incoerente se torne coerente, vindo a constituir um texto (Charoles, 1978).

Kock & Travaglia contestam Charolles, dizendo que em textos longos não se permitem ao receptor procedimentos sugeridos por ele. Estes autores ilustram seu argumento com um exemplo de texto incoerente, que transcrevemos abaixo (1989, p.32).

(01) "João Carlos vivia em uma pequena casa construída no alto de uma colina árida, cuja frente dava para o leste. Desde o pé da colina se espalhava em todas as direções, até o horizonte, uma planície coberta de areia. Na noite em que completava 30 anos, João, sentado nos degraus da escada colocada à frente de sua casa, olhava o sol poente e observava como a sua sombra ia diminuindo no caminho coberto de grama. De repente, viu um cavalo que descia para sua casa. As árvores e as folhagens não lhe permitiam ver distintamente; entretanto, observou que o cavalo era manco. Ao olhar de mais perto, verificou que o visitante era seu filho Guilherme, que há 20 anos tinha partido para alistar-se no Exército; e, em todo esse tempo, não havia dado sinal de vida. Guilherme, ao ver o pai, desmontou imediatamente, correu até ele, lançando-se nos seus braços e começando a chorar".

(Texto cedido pela Prof Mary A. Kato)

O que torna o texto irremediavelmente incoerente, sem possibilidade de criação de sentido, não é apenas a extensão dele, mas sua inaceitabilidade. Ele contém profundas contradições. Não obstante todas essas contradições, o texto poderia, numa leitura desatenta, passar por um texto coerente.

Fizemos a leitura desse texto numa turma de sétima série e em três turmas de segundo ano do 2º Grau. Antes da leitura para a sétima série, apenas dissemos aos alunos que se tratava de um texto bonito e tocante e que eles deveriam fazer uma redação sobre ele.

Após a leitura, muitos alunos não se lembravam suficientemente dos detalhes para fazerem

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uma redação completa da história. Alguns nos procuraram para apontar uma ou outra contradição. Houve quem produzisse textos, em que as distorções não apareciam, recuperando assim a coerência. Em suma, para a maioria, o texto tinha um sentido.

    Transcrevemos abaixo um desses textos:

(02)" Um homem vivia no alto de uma colina, no meio do mato. Na frente da sua casa tinha um gramado bem verde. No dia do seu aniversário, ele recebeu a visita de seu filho que não via há muito tempo. Seu filho tinha se alistado no exército e ficou muitos anos sem ver o seu pai. Até que um dia resolveu pegar um cavalo e ir ver seu pai. O encontro dos dois foi emocionante. O filho chorou quando abraçou o pai".

No 2º Grau, pedimos aos alunos que prestassem muita atenção à leitura do texto, a fim de ficarem aptos a responder algumas questões de interpretação. Em vez de aplicar o teste de interpretação após a leitura, pedimos-lhes que redigissem um texto dizendo o que tinham achado da história.

Eis alguns dos textos:

(03) "Trata-se de uma história muito comovente de um homem que morava numa bela colina e que não via o filho há muito tempo".

(04) "Na minha opinião, a história é estranha. Não sei explicar por que. Não me lembro bem da história toda. Parece que o homem morava no meio de um areal, num morro, e recebeu a visita dum filho que servia o exército".

(05) "A história parece esquisita. O homem mora num local cheio de areia. De repente o lugar tem um gramado e árvores. Ele tem a idade de 30 anos e seu filho está servindo no Exército há 20 anos. É mais velho que o pai. E se ele morava no alto de uma colina, como o cavalo podia

descer em direção a sua casa ? Como ele podia ver o sol e estava de noite?"

Não foram notados por nenhum aluno os detalhes sobre a planície e o sol poente observado da casa. Mais que as outras incoerências, estas exigiam um conhecimento cultural, não-lingüístico, para serem detectadas. Os alunos desconheciam ou não se lembravam da noção de planície e de ponto cardeal. Não perceberam que a idéia de uma planície se estendendo em todas as direções colide com a idéia da existência ali de uma colina. Também não notaram que, se a casa do homem dava para o leste (oriente), ele não podia ver o sol nascente. O aluno adaptou o universo lingüístico do texto ao seu universo cultural, recuperando assim a coerência textual, para ele.

Acreditamos que a incoerência de um texto é relativa e que não há incoerência absoluta. Quando alguém produz um texto, dá-lhe sentido no ato da produção, ainda que o leitor o não apreenda. Mesmo o texto nº 01, produzido com a intenção de exemplificar a incoerência, tem um sentido: a própria incoerência. É isso que o texto quer transmitir ao interlocutor. O texto foi produzido com uma intenção de comunicação, através da metalinguagem: usou da incoerência para explicar a incoerência.

*  *  *http://www.geocities.ws/jonascimento/textualidade/texto.html