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Andrea Mello Pontes 2 1 Este artigo foi apresentado como Trabalho de Conclusão da disciplina Relaciones de Parentesco, no doutorado em Antropologia Social da Universidad Complutense de Madrid - Espanha 2 Professora do curso de Serviço Social da Unama, doutoranda em antropologia social pela Universidad Complutense de Madrid. O TABU DO INCESTO E OS OLHARES DE FREUD E LEVI-STRAUSS 1 RESUMO Sempre que tentamos desvelar os nexos da formação societária do homem, e, por conseguinte tentamos compreendê-lo, faz-se necessário percebê- lo, enquanto ser social no contexto histórico-cultural, donde é possível também visualizar a construção do indivíduo e de sua identidade. Portanto, deve-se buscar uma análise que supere o mecanicismo, assim como também, uma visão estática que não dê conta de uma complexa articulação das dimensões singular (indivíduo); particular (a dimensão das mediações) e a Universal (grandes leis tendências da sociedade). Na articulação destas dimensões estão presentes as culturas, a fisiologia humana, a psique, articulando-se permanentemente entre si e expressando a totalidade de relações que envolvem o homem. Isto quer dizer que toda e qualquer análise das relações humanas deve obedecer à conjugação de uma complexidade de fatores, os quais, se esquecidos, prejudicam seriamente a análise, produzindo-se um enfoque restrito e parcial da realidade. Embora não seja possível abarcar todas essas dimensões que constituem o problema enfocado neste artigo, é possível partir desta perspectiva para adentrar-nos numa questão particular como a que nos propomos a estudar, que são as abordagens teóricas de Freud e Levi-Strauss sobre a proibição do incesto. INTRODUÇÃO Sabe-se a priori que ambos construíram suas análises a partir de referências teóricas distintas e que desen- volvem suas teses também de modo diferenciado, por- tanto, não cabe aqui tentar forçar uma comparação para conferir quem detém a verdade sobre o assunto. Con- tudo, é indispensável fundamentar novas análises sem- pre recorrendo a bases, cuja consistência e rigor cien- tífico nos são necessários. Acredita-se que a proibição do incesto contém em si elementos essenciais para entendermos o de- senvolvimento cultural do homem, inclusive fornece chaves para abrirmos algumas portas do significado das construções simbólicas do homem de todos os tempos e certamente do homem moderno. O homem diante do conhecimento primitivo não tem que provar o que há de verdadeiro ou falso nele. Ao contrário disso, deve desvelá-lo tendo em vista que o mesmo está rico de significados e simbolismos, procurando compreender, como que o homem ao lon- go de sua história lidou com os sentimentos, com o poder, como se relacionou entre si, construiu seu de- senvolvimento individual e contribuiu com o desen- volvimento da sociedade. O processo de desenvolvi- mento humano se dá pela busca da essência ou da verdade, como essência, e não como contrário de falsidade. O contributo de Levi-Strauss e Freud à análise da proibição do incesto é indiscutível, tendo em vista Trilhas, Belém, ano 4, nº 1, p. 7-14, jul. 2004 Artigo 7

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Andrea Mello Pontes2

1 Este artigo foi apresentado como Trabalho de Conclusão da disciplina Relaciones de Parentesco, no doutorado em Antropologia Social daUniversidad Complutense de Madrid - Espanha2 Professora do curso de Serviço Social da Unama, doutoranda em antropologia social pela Universidad Complutense de Madrid.

O TABU DO INCESTO E OS OLHARES DE FREUDE LEVI-STRAUSS1

RESUMO

Sempre que tentamos desvelar os nexos daformação societária do homem, e, por conseguintetentamos compreendê-lo, faz-se necessário percebê-lo, enquanto ser social no contexto histórico-cultural,donde é possível também visualizar a construção doindivíduo e de sua identidade. Portanto, deve-se buscaruma análise que supere o mecanicismo, assim comotambém, uma visão estática que não dê conta de umacomplexa articulação das dimensões singular(indivíduo); particular (a dimensão das mediações) ea Universal (grandes leis tendências da sociedade).Na articulação destas dimensões estão presentes asculturas, a fisiologia humana, a psique, articulando-sepermanentemente entre si e expressando a totalidadede relações que envolvem o homem. Isto quer dizerque toda e qualquer análise das relações humanas deveobedecer à conjugação de uma complexidade defatores, os quais, se esquecidos, prejudicam seriamentea análise, produzindo-se um enfoque restrito e parcialda realidade. Embora não seja possível abarcar todasessas dimensões que constituem o problema enfocadoneste artigo, é possível partir desta perspectiva paraadentrar-nos numa questão particular como a que nospropomos a estudar, que são as abordagens teóricasde Freud e Levi-Strauss sobre a proibição do incesto.

INTRODUÇÃO

Sabe-se a priori que ambos construíram suas análisesa partir de referências teóricas distintas e que desen-volvem suas teses também de modo diferenciado, por-tanto, não cabe aqui tentar forçar uma comparação paraconferir quem detém a verdade sobre o assunto. Con-tudo, é indispensável fundamentar novas análises sem-pre recorrendo a bases, cuja consistência e rigor cien-tífico nos são necessários.

Acredita-se que a proibição do incesto contémem si elementos essenciais para entendermos o de-senvolvimento cultural do homem, inclusive fornecechaves para abrirmos algumas portas do significadodas construções simbólicas do homem de todos ostempos e certamente do homem moderno.

O homem diante do conhecimento primitivo nãotem que provar o que há de verdadeiro ou falso nele.Ao contrário disso, deve desvelá-lo tendo em vistaque o mesmo está rico de significados e simbolismos,procurando compreender, como que o homem ao lon-go de sua história lidou com os sentimentos, com opoder, como se relacionou entre si, construiu seu de-senvolvimento individual e contribuiu com o desen-volvimento da sociedade. O processo de desenvolvi-mento humano se dá pela busca da essência ou daverdade, como essência, e não como contrário defalsidade.

O contributo de Levi-Strauss e Freud à análiseda proibição do incesto é indiscutível, tendo em vista

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Artigo

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que, ambos buscaram as raízes da formação socialdo homem para compreender o seu comportamento.

O conhecimento do Tabu sem a sua relação comos conteúdos culturais do homem não tem significadonem em si mesmo, nem tampouco, para oconhecimento científico, em particular aoantropológico. A importância deste conhecimento édada pela sua representação e pelo seu papel nasrelações humanas, indubitavelmente sobre a relaçãoentre as dimensões do homem entre ser social enatural.

O Tabu é para o homem a expressão de comoele cria um conjunto de meios, mecanismos e estratégiaspara lidar com a natureza desde um ponto de vistaamplo, ou seja, sua relação como o meio ambiente,até a sua dimensão mais individual, fisiológica, biológica,que tem como conseqüência a explicitação do sersocial que constrói uma ética, uma moral, regras, leise instituições, ou seja, toda uma estrutura paraobjetivar-se em suas relações.

Deste modo Levi-Strauss faz um significanteestudo sobre o problema do incesto mostrando comoo homem constrói, desde a sociedade primitiva,mecanismos para impedir relações que, de forma inatana consciência humana não são coerentes com suaprópria razão.

Este autor elege o incesto como foco de estudopelo seu caráter universal, o que significa dizer que éuma relação proibida por todos os povos em todasas épocas de modos distintos, mesmo considerandoa diversidade cultural e étnica.

“La proibición del incesto presenta, sin menorequívoco y reunidos de modo indisoluble los

dos caracteres en los que reconocimos los atri-butos contraditórios de dos ordenes excluyen-

tes: constitue una regla, pero la única reglasocial que posee a la vez un carater de

universalidad”(Levi-Strauss, 42).A proibição do incesto põe em questão todo o

processo de construção do modo como o homemrelaciona-se com o outro sexo, e como que“instintivamente” cria elementos de ética, de moral,de julgamento rigoroso para aquele que não cumpreestas regras.

De maneira semelhante, Freud também recorre àproibição do incesto por sua universalidade e buscaatravés de seus estudos analíticos compreender omecanismo do inconsciente humano, para gerir os seusdesejos.

Num primeiro momento do presente trabalhoanalisaremos a contribuição de Levi-Strauss, emseguida a contribuição de Freud e a título de conclusãorealizaremos uma reflexão comparativa entre seuspostulados referentes à proibição do incesto.

LEVI-STRAUSS E O PROBLEMA DO INCESTO

Para Levi - Strauss o homem é um serformado por duas dimensões distintas mas,constituíntes de uma estrutura intercambiante e demútua interferência, já que o homem é um ser biológicoe ao mesmo tempo um indivíduo social. As reaçõese respostas dadas pelo homem às exigências externase internas, algumas correspondem exclusivamente asua natureza e outras a sua situação. Contudo, fazeresta distinção implica uma complexidade tendo emvista que ambos os estímulos: biológicos e psico-sociais provocam reações do mesmo tipo, inclusive,muitas vezes não é possível distinguir suas causas namedida em que as respostas dadas pelo indivíduoapresentam uma integração das duas dimensões emseu comportamento. É nesta interação que se encontraa cultura, que para o autor no está ni simplementeyuxtapuesta ni simplemente superpuesta a la vida... en un sentido la sustituye; en otro la utiliza y latransforma para realizar una sintesis de un nuevoorden (36). O problema maior se constitui naconstrução da análise dos fenômenos, tendo em vistaque ao enfocá-los procuramos distinguir em cada atouma causa de ordem biológica ou social, ou ainda porum outro viés equivocado, tentamos buscarmecanismos através dos quais as atitudes de ordemcultural se inserem em comportamentos que são, emsi mesmos, de natureza biológica, e assim, tentarintegrá-los. Aí se encontra um problema central datese de Levi-Strauss, cujo esclarecimento permite

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encontrar o sentido da proibição do incesto e o queisso significa enquanto construção cultural do homem,para estabelecer limites e possibilidades em suasrelações.

O eixo dessa questão está em refletir sobre apouca importância dada à oposição que há entre asordens: biológica e social. Isso nos permitirá ver comclareza os fenômenos sociais. Contudo, de modoambivalente, quando as análises dão conta destadistinção correm o risco de manter nebuloso o campoinquietante de definição da passagem entre as duasordens. “¿Donde termina a naturaleza? ¿Dondecomieza la cultura? (Levi-Strauss, 36). Aconstrução cultural, de sociabilidade do homem, ouseja, suas relações sociais, estão permeadas pelas duasordens que estruturam o homem”.

Para Levi-Strauss a grande preocupação eraevitar que a ciência não caísse em análises restritivasque esquecem aquelas ordens, ou por outro lado, quenão as distinguem, turvando a identidade do homem ea definição de suas necessidades.

O eixo epistemológico de Levi-Strauss parte dacompreensão de que nenhuma análise real permitecaptar o exato momento em que se produz a passagemdas manifestações de caráter natural e as de carátercultural, nem o mecanismo de sua articulação.Contudo, há um critério analítico e ao mesmo tempoontológico que é válido para reconhecer as atitudessociais.

“En todas las partes donde se presente regla

sabemos con certeza que estamos en el

estadio de la cultura. Sinteticamente, es fácil

reconocer en lo universal el critério de la

naturaleza puesto que lo constante en todos

los hombres escapa, necessariamente al

dominio de las costrubres; de las técnicas y

de las instituiciones por las que sus grupos

se distinguen y oponem ... a falta de un

análises real, el doble critério de la norma y

de la universalidad proporcipona el

princípio de un análises ideal, que puede

permitir al menos en ciertos casos y dentro

de ciertos limites, aislar los elementos

naturales de los elementos culturales que

intervienen en las síntesis de orden más

complejo” (Levi-Strauss, 41).

Portanto, tudo que é universal no homemcorresponde à ordem de natureza e se caracteriza pelaespontaneidade, enquanto que, tudo que está sujeitoa uma norma pertence à cultura e apresenta osatributos de relatividade e particularidade, portantorecebe as interferências das diferenças conjunturais,étnicas, simbólicas de cada povo, contexto social ede outros fatores, como o econômico, o político e oideológico.

A proibição do incesto se constitui em situaçãoparadigmática por reunir, em si mesma, caracteresintrinsecamente ligados e ao mesmo tempopertencentes às ordens diferentes quais sejam: sociale biológica. Este é um fenômeno que apresenta aomesmo tempo um duplo caráter natural e cultural. Aproibição do incesto possui, por sua vez, auniversalidade típica das tendências da natureza e seusinstintos e também o caráter coercitivo das leis einstituições da cultura. Este problema segue desafiandoàs análises sociológicas tendo em vista que é umproblema cuja busca de tentar descobrir sua causa,sua gênese, Levi-Strauss julgou ser inócua. Há,portanto, uma ambigüidade constitutiva na proibiçãodo incesto, que acaba por atribuir-lhe um carátersagrado, inquestionável em si mesmo. Deste modo,sua análise não deve negligenciar a busca da estruturacontida na sua dinâmica.

Para Levi-Strauss a proibição do incesto,enquanto regra, é social, e, ao mesmo tempo é pré-social. Sua condição de pré-sociabilidade dá-se porsua universalidade, que impõe ao homem normas eatitudes, que inclusive estão determinadas por suaconsciência. Acrescido a isso se verifica que a vidasexual, que está intimamente ligada à questão doincesto, é algo que expressa o grau máximo de naturezaanimal do homem e atesta na cultura, nas relaçõeshumanas, a sobrevivência dos instintos. A proibiçãodo incesto é para o homem justamente a expressãoda transcendência concretamente objetivada numaregra que ao mesmo tempo deixa entrever a satisfação

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de desejos individuais, que muitas vezes segundo esteautor são os menos respeitados das convençõessociais assim como expressa também as respostasàs tendências específicas que se sobressaem aospróprios fins da sociedade.

Como regulamentação das relações sexuais,como construto ético-moral, a proibição do incesto éa expressão da relação entre natureza e sociabilidade,que para Levi-Strauss se constitui “no desborde dela cultura en el seno de la naturaleza, por su partela vida sexual es, en el seno de la naturaleza unindício de la vida social” (idem, 45). Tendo em vistaque a relação sexual compõe a interação com o outropor dar-se geneticamente estimulada pelo outro sexo.Contudo, este não é em si apanágio da ordem naturala cultural.

“El instinto sexual, por él mismo natural, no

constituye el paso de la naturaleza a la

cultura, ya que eso seria inconcebible, pero

explica una de las razones por las cuales en

el terreno de la vida sexual, com preferência

a qualquer otro, es donde puede e debe

operar-se forzosamente el transito entre los

dos ordenes” (idem, 45).

Esta é, portanto, uma regra social que en siexpressa características universais e naturais e,contraditoriamente, aparecem também os elementosproporcionadores de sua superação. Ao mesmotempo em que expressa o que é natural, impulsiona ohomem a superar este estado de natureza. “Laproibición del incesto se encuentra a la vez, en elumbral de la cultura, en la cultura y en certosentido como trataremos de mostralo es la culturamiesma” (idem, 45).

A imposição de uma análise transversal entrenatureza e cultura, ou regras sociais e instinto, entreuniversal e particular é a vacina para não cairmos emrespostas e análises que seguramente são limitadas,tal como, só atribuir a proibição do incesto ao estadode natureza. Se assim fosse, pergunta-se: para que ohomem construiria regras, normas, instituições, ética,moral, pois não teria o que evitar se assim a proibiçãoestivesse expressa em sua natureza animal. “La

sociedad no proibe o que ella miesma sucita” (Levi-Strauss, 52).

De outro modo, é verdade que por suauniversalidade, a proibição do incesto tem que vercom a natureza, com a Antropologia, com a Psicologia,mas não é menos certo dizer que, como regra social,constitui um fenômeno social que provém do universodas regras, vale dizer da cultura e, por conseguintediz respeito à Sociologia como objeto de estudo.

A proibição do incesto segue sendo um fenômenoque não tem origem puramente cultural, nem puramentenatural, e tampouco é um composto de elementostomados em parte da natureza e em parte da cultura.Constitui o movimento fundamental através do qualse faz a passagem da natureza a cultura.

O incesto é um fenômeno social que permite odesvelar do estudo das relações entre existênciabiológica e social do homem, e que conseqüentementecomprovou que a sua proibição não pertenceexclusivamente nem a um nem a outra enquanto queefetivamente esta regra se constitui na união de umaexistência com outra. En efecto, es menos uma uniónque una transformación o un pasaje; antes de ella,la cultura aún no existe, en el hombre como reinosoberano. La proibición del incesto es el procesopor el qual la naturaleza se supera a si mesma.

Este movimento estático se constitui, portanto, naemergência de uma nova ordem que supera adimensão natural como fatos únicos de determinaçãodas relações humanas e a integrar a dimensão socialdando origem a uma nova ordem.

SIGMUND FREUD E O HORROR AO INCESTO

Freud, ao realizar o estudo sobre a proibição aoincesto faz uma análise da Psicologia dos PovosPrimitivos. Este estudo está, de modo significativo,fazendo uma conexão entre Cultura e Psicanálise,inclusive rejeitando um possível distanciamento entreambas. A Antropologia Social necessita conhecer apsicanálise como uma técnica psicológica moderna eos psicanalistas necessitam debruçar-se sobre o

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material construído pelos antropólogos e dar-lhestratamento analítico.

Deste modo, como ponto de partida irrefutávelpara Freud a proibição do incesto está determinadapela cultura e pela vida psíquica. Esta relação direcionasuas investigações, imputando ao necessário estudoda vida psíquica dos povos selvagens e semi-selvagens, sendo esta uma fase anterior, mas que seconserva no processo de desenvolvimento humano.Assim sendo, estabelece uma comparação entre apsicologia dos povos primitivos tal como a Etnografianos mostra e a psicologia do neurótico, tal comosurge nas investigações psicanalíticas, descobrindoentre ambas numerosos nexos comuns.

Freud pesquisa os povos aborígines australianos,São povos que impõem a mais rigorosa interdição àsrelações sexuais incestuosas. Suas regras e normasse estabeleciam através do sistema totêmico, quedivide sua “sociedade” em clãs, e cada clã tem seutotem. Este totem pode ser um animal comestível, orainofensivo, ora perigoso, temido e, mais raramentepode vir a ser uma planta ou uma força natural comoa chuva ou a água que se acham em relação particularcom o grupo. O totem é em particular um antepassadodo grupo/clã, e em segundo lugar seu espírito protetor,o seu benfeitor.

Os grupos que estão submetidos ao mesmo totemdevem cumprir A SAGRADA OBRIGAÇÃO e o nãocumprimento dela deve submeter-lhes ao castigoautomático de respeitar sua ética, suas normas e seusconjunto de regras e leis. O caráter totêmico éimputado a todos os membros do clã, e este setransmite hereditariamente por linhagem paternal oumaternal.

O totem, portanto, é a base de todas as obriga-ções sociais, maior inclusive que a subordinação à tri-bo e ao parentesco de sangue. Para alguns estudiososo totem é uma fase necessária e universal ao desenvol-vimento humano.

Do ponto de vista psicanalítico, o totem é umaLei que estabelece que os membros de um único clã /totem não devem manter relação sexual entre si e,portanto não devem casar-se entre si. Está é a Lei da

exogamia inseparável do sistema totêmico.O grandefoco de análise de Freud ao sistema totêmico estávoltado para a observação analítica de como o homemconstrói suas proibições que se universalizam nospovos.

A proibição totêmica não é automática, ela é vigiadapela tribo toda, porque aquele que viola as leis é umperigo ameaçador a toda a tribo. Este perigo vem a ser oque modernamente conhecemos por imoral do ponto devista ético. O totem é um hereditário e não sofrealterações com o matrimônio, portanto, os filhos são domesmo totem que a mãe e das irmãs. O totem é a famíliaprimitiva e estabelece relações de parentesco de sanguee de parentesco hereditário. Donde o primeiro estásubmetido ao segundo, como já afirmamos antes.

As designações de parentesco não se referem arelações entre dois indivíduos, se não entre umindivíduo e seu grupo. A exogamia totêmica, portanto,é a proibição das relações sexuais entre membros domesmo clã e constitui-se num meio mais eficaz paraimpedir o incesto num grupo. A exogamia totêmica éuma instituição sagrada, um construto e é umalegislação consciente e institucional, a proibição doincesto, portanto, se constitui na reprodução do sistematotêmico.

Partindo desta análise, Freud defende a tese deque os “selvagens” são mais escrupulosos nestaquestão que nós. É possível para ele que isto sejadado pelo fato dos selvagens se acharem mais sujeitosàs tentações e precisem, portanto, de uma proteçãomais eficaz.

Para Freud os povos primitivos são crianças nodesenvolvimento humano e relativamente ao temordo incesto, este constitui-se um traço essencialmenteinfantil na vida psíquica dos neuróticos.

Para a Psicanálise, o primeiro objeto sobre o qualse faz a eleição sexual do jovem é de naturezaincestuosa condenável e está representado pela mãee pela irmã.

O caminho que o sujeito constrói na sua vidaavança na busca de subtrair a traição do incesto. E noneurótico há um infantilismo psíquico, ora por não terse livrado da culpa, ora por voltar a ela por

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regressão.A fixação incestuosa tem um papelimportante na vida psíquica inconsciente, constituindo-se, a atitude incestuosa, com respeito aos pais, ocomplexo nuclear das neuroses.

Para dar conta dessas proibições, o homem, noseu desenvolvimento histórico cultural cria tabus que,ao mesmo tempo expressam o que é sagrado econsagrado e o que é inquietante, perigoso, proibidoou impuro. A palavra tabu, portanto designa: o caráterimpuro de pessoas e objetos; natureza da proibição;a santidade/ purificação. Os tabus podem ser naturaisprovenientes de uma força misteriosa (MANA,inerente a uma pessoa ou coisa) ou transmitidosindiretamente, adquiridos, transferidos eintermediados.

Os tabus são criados pelo homem, inicialmentepara proteger personagens importantes, objetospreciosos, os débeis, proteger o homem do contatocom os cadáveres, precaver as perturbações quepodem sobrevir em determinados atos da vida, taiscomo: o nascimento, a iniciação dos adolescentes,matrimônios as funções sexuais. E ainda a cólera dosdeuses e dos demônios, proteger propriedades dossujeitos, ferramentas e campos. O primeiro sistema penalda humanidade surge enlaçado com o tabu.

A condenação cerimonial provinda do tabu, muitasvezes está eivado de tal brutalidade que se reveste deum caráter de selvageria e irracionalidade. Contudo, paraFreud, determinados tabus, nos parecem racionais, poistendem a impor abstenções e privações, e ainda, faz-senecessário compreender que os deuses e os demôniostemidos pelo homem são criações das forças psíquicasdo mesmo. Deste modo, a psicanálise estuda o conteúdodo inconsciente contido na construção cultural do tabu,traduzido para a análise do homem moderno e aconservação do tabu através das instituições pessoas erelações. O homem cria para si mesmo proibições-tabusindividuais e que as observa tão rigorosamente como oselvagem às restrições de sua tribo ou de sua organizaçãosocial.

A este processo autopunitivo e ambivalente, Freuddenomina de neurose obsessiva ou enfermidade dotabu. Esta enfermidade surge repentinamente um diae desde então se vê obrigado o sujeito a observá-la

sob uma coerção de uma irreprimível angústia. Destemodo resulta infrutífera a ameaça ou o castigo, a umaconsciência interior do sujeito da violação e a mesmapode trazer para si uma grande desgraça.

Tal como no tabu dos povos selvagens, aproibição está destinada a impedir o contato, por emcontato com algo e este contado se expressamentalmente, abstratamente ou objetivamente,constituindo-se no chamado “dèlirie du toucher”. “Todoaquello que orienta las ideas de sujeto, isto es, todolo que provoca un contato puramente mental oabstracto con ella. Queda tan proibido como elcontato material directo. En el tabu hemos halladotambien esta misma extención” (Freud).

Deste modo o sujeito que se encontra com “dèliriedu toucher”, desloca para pessoas e objetos aimpossibilidade do contacto por causa do perigo docontágio com o condenável e acaba por estabelecerpara sua vida privações e proibições que expressam oarrependimento, a expiação, a punição e a defesa dosatos/idéias condenáveis presentes em si.

As restrições-tabus apresentam um vínculo coma neurose tendo em vista que expressam o conflito:proibição/tendência. É a repressão à tendência quena neurose se processa no inconsciente. A proibiçãodo contato é clara, mas a tendência insatisfeitapermanece inconsciente, como desejo ocultoinsatisfeito. A cada novo avanço da libido reprimida,responde a proibição com uma nova exigência.

Os tabus são proibições antiqüíssimas impostasdesde o exterior a uma geração de homens que, quiçáinculcadas por gerações anteriores passadas, porculturas e herança psíquica. As proibições tabu, maisantigas e importantes aparecem nas leis fundamentaisdo totemismo. Freud tem uma hipótese de que estesdevem ser os desejos e os prazeres mais antigos dohomem. E o perigo surge quando sentimos os desejosinconscientes como impulsos conscientes.

A transmissibilidade do tabu fica refletida nasneuroses pela tendência do desejo inconsciente adeslocar-se de continuo sobre novos objetos utilizandoos caminhos da associação. Aí está contido umaambivalência, desejo/ contra - desejo.

Na ambivalência está presente um excesso de

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carinho junto a uma corrente contrária inconscientede hostilidade, isto é, sempre que nos achamos umcaso típico de ambivalência afetiva. A aparência davida se refere à vida psíquica consciente e a realidadeà vida psíquica inconsciente.

As prescrições-tabus apresentam-se comosintomas das neuroses. A consciência-tabu é a formamais antiga de consciência moral e as razões daspercepções que são desconhecidas são característicasangustiosas da consciência. As duas coisas contidasno inconsciente resultam numa luta que tem comoconseqüência a construção de uma moral. O tabu,em si, não é uma neurose é uma formação social.Deste modo Freud chancela que há uma relaçãoindiscutível entre a proibição do incesto, o totem e otabu e as neuroses, estabelecendo as devidasdistinções, contudo, reafirmando a inexorável relaçãoentre os mesmos no processo de desenvolvimentohumano.

ALGUMAS REFLEXÕES CONCLUSIVASSOBRE AS CONTRIBUIÇÕES DE FREUD ELEVI-STRAUSS À PROIBIÇÃO DO INCESTOCOMO PROBLEMA DE ESTUDO.

Cabe-nos ressaltar que este conjunto de análisesnão tem como finalidade provar quem detém a verdadesobre a proibição do incesto, mas ao contrário, reunirnuma única análise comparativa, ainda quepropedêutica, as contribuições de ambos procurandocompreender os respectivos eixos de referênciateórica, quais sejam: a Psicanálise e o Estruturalismo.Ambos, dentro de seus marcos teóricos são asreferências fundantes para análise da proibição doincesto.

Para Freud, assim como para Levi-Strauss, aproibição do incesto é um fenômeno sócio-culturalde caráter universal. Este fenômeno gera nas maisdiversas culturas, comportamentos, leis, instituições,regras, moral e uma ética de conformidade com aformação social de cada povo, reiterando algo que ésingular em todos: o rechaço ao incesto. Estauniversalidade inquietou tanto Levi-Strauss quantoFreud, embora o ponto de chegada e de partida do

constructo teórico de ambos sejam distintos.Levi-Strauss tinha inicialmente como preocupação

de seu estudo a passagem da ordem de natureza àordem cultural do homem, ou seja, consideravaindispensável que o pensamento científico identifica-se como e o que processo permitem o homem sair,ultrapassar os limites importantes intrínsecos da suaconstituição natural, e assim, pode construir suasrelações societárias tendo como eixo a “chegada” àcultura.

Para Levi-Strauss a proibição do incesto, a partirde todos os argumentos por nós já apresentadosanteriormente, permite, enquanto regra aultrapassagem do instinto, do natural e desborda-sena cultura. A proibição do incesto não é nem de umaordem nem da outra, senão da relação entre ambasàs instâncias estruturantes do homem.

Freud tem como preocupação central o estudoda constituição psíquica do homem, identificando oinconsciente como “locus” e ao mesmo tempo o motordefinidor do comportamento humano, a partir do qual,o homem cria sua cultura, regras, proibições,instituições. A partir do estudo da proibição do incestoos seres humanos criam estratégias para lidar com osdesejos, com sua sexualidade, que são essencialmentehumanos e que indubitavelmente estão para além dasnecessidades biológicas.

Segundo este estudo, estão contidos no incons-ciente desejos que o próprio homem rejeita, com oque ele chama de contra-desejo, e esta ambivalênciaquando inconscientemente é deslocada para outrosobjetos e pessoas se configuram nas neuroses, quesão um dos focos de preocupações de Freud em seuestudo “Totem e Tabu”.

Levi-Strauss tem como base de sua análise aarticulação entre natureza e cultura, enquanto que Freudestá preocupado com o conteúdo inconsciente contidona cultura, e para estudá-lo desenvolve um processoanalítico do comportamento psicológico dos povos.

Freud na obra estudada, para falar do horror aoincesto recorre a uma multiplicidade de discursos: aPsicanálise Clínica, Etnologia, Teoria da Evolução e aHistória das Religiões, e ainda, parte da contribuiçãode vários autores, tais como: Frazer, W. Robertson

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REFERÊNCIAS

Smith, C. Darwin, J.J. Atkinson, W. Wundt, M.Mauss e E. Durkheim.

Freud analisa um conjunto complexo de soluçõesao horror ao incesto criadas pelo homem, a origemdo totemismo e a exogamia. Para resolver a questãoele estuda os Povos Primitivos, já que eles designam

ao totem como seu antepassado e pai primordial econclui com uma afirmação: “Se el animal totemicoes el padre, los dos principales mandamientos deltotemismo... no matar al totem y no usarsexualmente a ninguna mujer que pertenesca a élcoincidem por su contenido con los dos crimes deÉdipo” (idem, 134)

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