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A PRÁTICA DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NOS DIAS DE HOJE Palestra do JUIZ K. G. BALAKRISHNAN, PRESIDENTE DA SUPREMA CORTE DA ÍNDIA Em 15 de agosto de 2008 No Supremo Tribunal Federal do Brasil

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A PRÁTICA DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NOS DIAS DE HOJE

Palestra do JUIZ K. G. BALAKRISHNAN, PRESIDENTE DA SUPREMA CORTE DA

ÍNDIA

Em

15 de agosto de 2008

No

Supremo Tribunal Federal do Brasil

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I. A Constituição da Índia: Um documento que formou uma nação.

‘Unidade’, ‘Democracia’ e ‘Revolução Social’

II. A lógica por trás da declaração de direitos constitucionais.

III. Visão geral da estrutura judicial da Índia

A competência da Corte Suprema

Independência do judiciário

IV. O alto judiciário como protetor da Constituição

‘Separação de poderes’ e ‘Controle de Constitucionalidade’

V. O caráter ‘ativista’ do judiciário indiano

Expansão da abrangência do Artigo 21

Litígio de Interesse Público

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I. A Constituição da Índia : Um documento que formou uma nação

A Índia é descrita como a maior democracia do mundo por conta de sua

população. O seu poder judiciário independente está no centro da

estrutura de ‘controle de constitucionalidade’ que não apenas garante um

sistema confiável de freios e contrapesos entre os diferentes poderes, mas

também funciona como instrumento de mudança e desenvolvimento

social. Desde a criação da república indiana independente, a Corte

Suprema da nação tem realizado controles abrangentes nos poderes

legislativo e executivo de forma enérgica. Em várias instâncias em que esses

ramos do governo não satisfizeram as expectativas do povo, ou deixaram

de salvaguardar garantias constitucionais, o alto judiciário afirmou sua

posição não só como protetor da Constituição, mas também interpretou

seus dispositivos de maneira dinâmica para atender às necessidades dos

tempos atuais.

Com relação ao valor de uma constituição escrita, seria apropriado

transcrever uma citação do Juiz Aaron Barak, antigo membro da Suprema

Corte de Israel:

“Para manter uma verdadeira democracia – e para garantir um

equilíbrio delicado entre seus componentes – é preferível uma constituição

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formal. A fim de funcionar com eficácia, uma constituição deve ter

supremacia normativa, não deve ser tão facilmente alterável quanto uma

lei ordinária e deve dar aos juízes o poder de examinar a

constitucionalidade da legislação. Sem uma constituição formal, não existe

limitação jurídica da supremacia legislativa e a supremacia dos direitos

humanos só pode existir como resultado do autocontrole da maioria. Uma

constituição, no entanto, impõe limitações jurídicas ao legislativo e garante

que os direitos humanos sejam protegidos não apenas pelo autocontrole da

maioria, mas também pelo controle constitucional sobre a maioria. Daí a

necessidade de uma constituição.”

Como falo hoje aqui como representante do sistema judicial indiano, seria

apropriado eu descrever os mecanismos de ‘controle de

constitucionalidade’ em nosso país da perspectiva do judiciário. No

entanto, antes de fazer isso, é necessário fornecer um breve histórico da

feitura da constituição indiana e também dos amplos objetivos que seus

legisladores tinham em mente. Apresentarei então uma visão geral da

estrutura judicial na Índia com ênfase especial sobre a jurisdição da Corte

Suprema e a preocupação de manter a independência do judiciário.

Passarei então a salientar o papel do alto judiciário na salvaguarda e na

promoção das características-chave de uma democracia constitucional,

como a ‘separação de poderes’ e o ‘controle de constitucionalidade’. Na

parte final, falarei brevemente sobre o caráter ‘ativista’ adotado pela Corte

Suprema da Índia nas últimas décadas.

A melhor maneira de apreender a história da feitura da Constituição

indiana é passando a vista nas transcrições dos Debates da Assembléia

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Constituinte (Constituent Assembly Debates).1 A Assembléia Constituinte

passou a existir próximo ao ocaso do domínio britânico no subcontinente

indiano e era composta por membros eleitos das várias províncias da Índia

Britânica além daqueles indicados pelos diversos principados. Começou a

deliberar em dezembro de 1946 e enfrentou imediatamente o tumulto da

política de divisão comunal que viria a resultar na subseqüente divisão do

subcontinente. O maior desafio enfrentado pela Assembléia Constituinte foi

desenvolver um documento que levasse em consideração a diversidade

existente na população e criasse uma república independente. Essa

diversidade dentro da população em nosso país baseia-se em diversos

parâmetros, tais como religião, casta, língua e classe, entre outros. No

entanto, havia também a necessidade de se fazer um claro afastamento

do domínio colonial e criar instituições públicas que garantissem um

governo transparente e satisfazer as necessidades e as aspirações do povo.

A necessidade de um novo começo pode ser comparada em vários

aspectos às razões por trás da promulgação da atual Constituição Brasileira

em 1988 que marcou um claro afastamento da experiência anterior, o

regime militar. Uma parte significativa do projeto de criação de um governo

democrático na Índia independente foi a tomada de posição contra os

padrões existentes de desigualdade e exploração social, como a

discriminação com base em casta e em gênero.

1 Além das transcrições dos Debates da Assembléia Constituinte,uma fonte útil para pesquisa sobre o mesmo é B. Shiva Rao, The Framing of the Indian constitution, em 5 volumes (New Delhi: Indian Institute of Public Administration, (1968)

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Nas palavras do célebre acadêmico Granville Austin,2 os redatores da

Constituição da Índia tinham em mente três objetivos amplos – ou seja,

garantir a ‘unidade’ e a ‘democracia’ e criar uma ‘revolução social’.

Embora a maior parte dos membros da Assembléia Constituinte fosse

originária da elite daquela época e de segmentos altamente instruídos,

havia um entendimento consciente da necessidade de se criar uma

Constituição que não apenas protegesse da máquina governamental os

direitos e as liberdades individuais, mas também promovesse os interesses

dos segmentos mais fracos e destituídos da sociedade. Depois de quase

três anos de discussões e debates substantivos no plenário da Assembléia

Constituinte, a Constituição da Índia entrou em vigor no dia 26 de janeiro de

1950, data em que hoje se comemora ‘O Dia da República’ na Índia.

Na busca do objetivo de unidade política, a Constituição da Índia

incorporou dispositivos para uma estrutura federal com uma divisão

elaborada de poderes entre a União e os estados. Ao contrário do Brasil, em

que cada estado tem a sua própria constituição,3 a delimitação de

competência legislativa entre a União e os estados na Índia segue o

esquema prescrito na sétima Emenda à Constituição. A sétima Emenda

consiste em três listas – lista da ‘União’, do ‘Estado’ e de ‘Concorrente’ que

enumeram os diversos assuntos sobre os quais o Parlamento (Assembléia

2 Ver Granville Austin, The Indian Constitution: Cornerstone of a nation (Oxford: Clarendon Press, 1966)

3 A Constituição da Índia regulamenta toda a União, que consiste em estados e territórios da União. A única exceção é o estado de Jammu e Kashmir que teve o direito de promulgar e pôr em execução sua própria constituição. O Artigo 31 da Constituição da Índia assegura o status concedido a Jammu e Kashmir.

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Legislativa Central) e as diversas Assembléias Estaduais podem legislar.

Enquanto a lista da ‘União’ inclui áreas importantes tais como defesa,

negócios estrangeiros e comunicações, a lista dos estados versa sobre

imposto territorial e sobre lei e ordem, entre outros assuntos. A lista de

‘Concorrente’ lista assuntos sobre os quais podem legislar tanto a União

quanto os estados. Em caso de legislações conflitantes, prevalece a lei da

União.4 O poder residual para legislar sobre assuntos não listados é dado

também à União. Essa preponderância em favor dos poderes legislativos da

União tem feito, freqüentemente, com que a estrutura governamental da

Índia seja descrita como tendo uma natureza quase federal. Tem-se

alegado que os redatores da constituição estipularam esse traço

centralizador à luz da experiência de divisão de acordo com religião que

estava viva em suas memórias. Mesmo num nível puramente teórico, o

estabelecimento de um centro forte pode ser considerado necessário em

razão da apreensão com tendências secessionistas numa população com

um perfil tão diverso.

Além de conter várias determinações dedicadas às relações entre o

poder central e os estados, a preocupação com a manutenção da

unidade e da integridade do país deram forma à evolução da

Constituição. Nos anos 50, houve movimentos sociais em várias partes do

país contra a permanência das fronteiras entre os estados criadas durante o

4 O parlamento Indiano é composto de duas câmaras – a baixa é a Lok Sabha (Casa do Povo) e a alta chama-se Rajya Sabhai (Conselho dos Estados). A maior parte das Assembléias Legislativas é unicameral e alguns estados maiores têm também uma câmara alta.

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domínio colonial. Isso levou à reorganização da maior parte dos estados de

acordo com divisões lingüísticas. Nos anos seguintes, o Parlamento

incorporou vários dispositivos para garantir um determinado grau de

autonomia às comunidades tribais na região Nordeste do país. Nos anos 90,

as questões da ‘descentralização’ e da ‘autonomia local’ receberam um

importante incentivo com a aprovação das emendas 73 e 74 à

Constituição que criaram organismos eleitos localmente no nível das vilas

(Panchayats), dos municípios e das cidades. Cada um desses

desenvolvimentos pode, por si só, ser objeto de comentários substantivos.

Uma consideração importante feita na época da feitura da Constituição foi

permitir que minorias religiosas continuassem a respeitar suas respectivas leis

pessoais em assuntos privados tais como o casamento, a adoção e a

transferência de propriedade, entre outros. Esta concessão criou um espaço

para o ‘pluralismo legal’, mas foi consistente com garantias tais como a

‘liberdade religiosa’. A questão tem sido, no entanto, extremamente

controversa com constantes exigências de um ‘Código Civil Unificado’ que

efetivamente acabaria com as leis pessoais das minorias religiosas.

O texto da Constituição também facilitou a transição da Índia de colônia

britânica para uma república democrática independente. O traço mais

importante de uma democracia constitucional é a realização de eleições

justas em que todos os cidadãos podem votar livremente a fim de

determinar a formação do governo. Durante os últimos estágios do domínio

colonial, tinham sido realizadas eleições periodicamente para a formação

das assembléias provinciais e de uma Câmara Legislativa Central, mas o

direito a voto baseava-se na formação educacional e na posse de terras, o

que o limitava a uma parcela minúscula da população. Mesmo na

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Assembléia Constituinte havia quem apoiasse a idéia de ‘sufrágio limitado’

com base na idéia de que as massas analfabetas não tinham maturidade

suficiente para a democracia moderna. A Constituição da Índia incorporou,

porém, o princípio do ‘sufrágio universal para adultos’ numa época em que

mesmo as democracias ocidentais só tinham permitido o voto de mulheres

recentemente. Desde então, eleições periódicas seguidas de transições

pacíficas de governos tornaram-se o fundamento para que a Índia possa

ser descrita como a maior democracia do mundo.5 A câmara baixa do

parlamento, a Lok Sabha (Casa do Povo) representa verdadeiramente a

diversidade indiana, enquanto a câmara alta, a Rajya Sabha (Conselho dos

Estados) propicia representação proporcional a todos os estados.

Os redatores de nossa Constituição salientaram conscientemente a

importância da justiça social na nação recém-independente. O Dr. B. R.

Ambedkar, um dos principais redatores da Constituição da Índia e nosso

primeiro Ministro da Justiça, afirmou o seguinte no plenário da Assembléia

Constituinte no dia 25 de novembro de 1949:

“No dia 26 de janeiro de 1950, vamos ingressar numa vida de contradições.

Teremos igualdade na política e desigualdade na vida econômica e social.

Na política, reconheceremos o princípio de um homem um voto e um voto

um valor. Em nossa vida social e econômica, em função de nossa estrutura

social e econômica, continuaremos a negar o princípio de um homem um

5 Para um relato interessante do desenvolvimento das instituições democráticas na Índia pós-independência, veja Ramachandra Guha, India After Gandhi: the history of the world´s largest democracy (New Delhi: Picador India, 2007)

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valor. Por quanto tempo ainda continuaremos a negar igualdade em nossa

vida social e econômica? Se continuarmos a negá-la por muito tempo, ao

fazê-lo estaremos pondo em risco a nossa democracia política. Precisamos

acabar com essa contradição o quanto antes ou aqueles que sofrem com

a desigualdade irão destruir a estrutura democrática que esta Constituição

construiu com tanto esforço.”

Pandit Jawaharlal Nehru, o primeiro Primeiro-Ministro da Índia, expressou a

essência desse objetivo nas seguintes palavras à Assembléia Constituinte:

“A primeira tarefa desta Assembléia é libertar a Índia por meio de uma nova

Constituição, é alimentar o povo faminto e vestir as multidões despidas e

dar a cada indiano todas as oportunidades para que possa desenvolver-se

de acordo com sua capacidade”.

Embora os objetivos dominantes de garantir ‘unidade’ e ‘democracia’,

tenham sido perseguidos com grande empenho ao longo da história da

Índia independente, as escolhas políticas relativas ao terceiro objetivo de

projetar uma ‘revolução social’ é que têm sido o tema de intenso debate,

envolvendo uma divergência de opinião entre o judiciário e os outros

poderes do governo. Uma dessas escolhas políticas foi a reforma agrária,

implementada tanto pela Assembléia Central como pelas estaduais que

dispunham sobre a aquisição de terras de grandes latifundiários e de sua

redistribuição entre pequenos agricultores. Tratarei deste tema em detalhe

mais adiante neste pronunciamento, no contexto do conceito de

‘separação dos poderes’. Outra escolha política relacionada com o ideal

de justiça social que tem dado lugar a freqüentes intervenções judiciais é a

da ‘ação afirmativa’. Os redatores da constituição incluíram a garantia de

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‘igual proteção perante a lei’ no Artigo 14 da Constituição, mas permitiram

também um ‘tratamento diferenciado’ a fim de promover os interesses dos

segmentos historicamente destituídos que passaram a ser conhecidos como

Scheduled Castes (SC)– castas específicas e Scheduled Tribes (ST) – tribos

específicas. As políticas de ‘ação afirmativa’ tomaram a forma de garantias

de lugares em assembléias legislativas, no funcionalismo público e em

instituições de ensino. Embora o judiciário tenha apoiado com firmeza o

princípio de ‘ação afirmativa’, tem havido litígios freqüentes com respeito à

aplicação da mesma questão em situações diferentes.6 Há poucos meses,

tive a ocasião de participar de uma sessão constitucional para decidir a

respeito de uma impugnação contra a expansão de cotas para candidatos

pertencentes ao grupo Other Backward Castes (OBC) – Outras Castas

Atrasadas –, em instituições de ensino superior selecionadas.7 Em nossos

votos, eu e meus colegas juízes apoiamos a política do governo, mas

tivemos de fazer algumas observações a fim de agilizar sua implementação.

Será justo observar que tem havido litígios substanciais sobre questões que

envolvem a fronteira entre os direitos fundamentais sancionados pela

Constituição e os objetivos amplos de garantir a justiça social. Em alguns

casos, tem havido conflito entre a interpretação dos direitos fundamentais,

por um lado, e os objetivos governamentais de garantir justiça social, por

outro. Durante este pronunciamento, referir-me-ei a alguns desses casos em

6 Veja Balaji v. State of Mysore, AIR 1963 SC 649; Indra Sawhney v. Union of India, AIR 1993 SC 447

7 Ashoka Kumar Thakur & Ors v. Union of India, 2008 (5) SCALE 1

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que o alto judiciário da Índia teve de enfrentar tais conflitos. No entanto,

antes disso, é importante entender a lógica por trás da inclusão expressa de

uma declaração de direitos em nossa Constituição.

II. A lógica por trás da declaração de direitos

Alguns críticos consideram a Constituição da Índia um documento

extremamente longo que entra em detalhes excessivos sobre a estrutura e o

funcionamento da máquina governamental. Reconhecidamente, o texto

da Constituição insere numerosas medidas das Constituições de vários

países estrangeiros além de leis da época colonial como a Government of

India Act (Lei do Governo da Índia), de 1935. No entanto, os redatores da

Constituição adotaram uma posição progressiva sob a forma da

declaração de direitos – que foi inserida como a Parte III da Constituição,

que trata dos direitos fundamentais dos cidadãos. A linguagem de muitos

desses direitos empregou os termos da Declaração Universal dos Direitos

Humanos de 1948 e tomou como exemplo também a dos Pactos

Internacionais que foram adotados pela ONU vários anos mais tarde. Já

havia sido pedida uma declaração de direitos também nos tempos do

domínio colonial, mas os pedidos foram rejeitados sob a alegação de que

direitos civis e políticos oriundos do direito comum eram suficientes para

proteger do governo as liberdades dos indivíduos. No entanto, no cenário

pós-independência, a declaração de direitos tornou-se um instrumento

inestimável para o aprofundamento da nossa democracia constitucional. A

maior parte dos direitos são aplicáveis contra o Estado por meio da sua

linguagem, enquanto outros se dirigem tanto contra o Estado como contra

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indivíduos. A característica mais importante, porém, é que os direitos

fundamentais proporcionam ao alto judiciário um conjunto bem-definido de

critérios para regular as relações entre os cidadãos e o governo (‘aplicação

vertical de direitos’) assim como entre os próprios cidadãos (‘aplicação

horizontal de direitos’). Ademais, os tribunais indianos interpretaram esses

direitos não apenas numa dimensão ‘negativa’ (em termos de proteção

contra violações), mas também numa dimensão ‘positiva’ (em termos de

direito a benefícios).

Enquanto o Artigo 14 da Constituição da Índia estabelece uma garantia de

‘igual proteção perante a lei’, o Artigo 15 proíbe a discriminação com base

em religião, raça, casta, classe e gênero – mas, ao mesmo tempo, permite

que o Estado propicie o avanço das mulheres e de outros segmentos da

sociedade ‘socialmente e educacionalmente’ atrasados. Por conseguinte,

o Artigo 15 forma a base das políticas de ‘ação afirmativa’. O Artigo 16 cria

para o Estado a obrigação de garantir imparcialidade em questões

relativas ao emprego público. Na tentativa de aliviar as desigualdades

sociais preponderantes, o Artigo 17 proíbe a prática da ‘intocabilidade’,

enquanto que o Artigo 18 aboliu todos os títulos (com exceção dos títulos

militares e acadêmicos). Os Artigos 17 e 18 podem ser exercidos contra

indivíduos. O Artigo 19 salvaguarda as liberdades dos indivíduos, tal como a

liberdade de expressão, de reunião, de associação, de movimento dentro

do país e a liberdade de buscar uma profissão. Essas liberdades estão, no

entanto, sujeitas a ‘restrições razoáveis’ pelo Estado com base numa lista de

motivos em sua maioria relacionados ao ‘interesse público’.

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Os Artigos 20, 21 e 22 juntos constituem os direitos do Devido Processo Legal

(Due Process), que garantem certas proteções aos indivíduos contra ações

arbitrárias por parte do Estado. O Artigo 20, por exemplo, incorpora a regra

contra a ‘dupla sanção’ (double-jeopardy) além da ‘proteção contra a

auto-incriminação’. O Artigo 21 determina que nenhuma pessoa será

privada de vida ou liberdade pessoal exceto de acordo com um ‘processo

estabelecido por lei’. A abrangência da proteção prevista no Artigo 21

tem sido gradualmente ampliada pela Corte Suprema da Índia e mais para

o fim deste pronunciamento darei alguns exemplos desse fato. O Artigo 22

protege os cidadãos contra detenção ilegal e estabelece salvaguardas em

casos de ‘prisão preventiva’ pelo Estado. Os Artigos 23 e 24 também são

direcionados para indivíduos. O Artigo 23 proíbe o tráfico de seres humanos

e outras formas de trabalho forçado enquanto o Artigo 24 proíbe o

emprego de crianças menores de 14 anos em fábricas, minas e outros tipos

de atividades perigosas. Os Artigos 25 a 30 constituem as ‘garantias

religiosas’. Liberdade de religião, liberdade de consciência e livre profissão,

prática e disseminação da religião, além da liberdade para que as

denominações religiosas administrem seus assuntos, foram garantidas pelos

Artigos 25, 26, 27 e 28 da Constituição. Também foi imposta ao Estado a

obrigação de não sustentar atividades religiosas financeiramente. O Artigo

29 trata dos direitos que têm as minorias religiosas e lingüísticas de preservar

sua cultura e sua língua, enquanto o Artigo 30 reconhece a liberdade das

minorias religiosas para estabelecer e administrar instituições de ensino, livres

da interferência estatal.

O poder que o alto judiciário tem para implementar esses direitos

fundamentais provém do Artigo 32 da Constituição da índia. Ele dá aos

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cidadãos o direito de procurarem a Corte Suprema para buscar um

remédio pela violação de direitos fundamentais. O próprio ‘direito a

reparação constitucional’ é um direito fundamental e pode ser

implementado sob forma de ações judiciais (writs) desenvolvidas no sistema

consuetudinário – tal como o habeas corpus (para determinar a libertação

de uma pessoa detida ilegalmente), mandamus (para obrigar uma

autoridade a cumprir sua função), quo warranto (para obrigar uma pessoa

a desocupar um cargo assumido de forma errada), prohibition (para

impedir que um tribunal de primeira instância continue um processo) e

certiorari (poder que tem a instância superior de retirar um processo de uma

corte de primeira instância e de trazê-lo para a própria corte). Além da

Corte Suprema, os tribunais superiores situados nos diversos estados também

são designados como tribunais constitucionais e o Artigo 226 permite que

cidadãos ajuízem ações mandamentais perante os tribunais superiores.

Evidentemente, o alto judiciário na Índia (composto pela Corte Suprema e

pelos diversos tribunais superiores) desempenha a tarefa-chave de proteger

e interpretar os direitos fundamentais sob a sua jurisdição. Enquanto os

direitos fundamentais dos cidadãos enumerados na Parte III da Constituição

podem ser implementados pelo alto judiciário, a Parte IV trata dos

‘Princípios Diretivos da Política do Estado’ que, em grande medida,

enumera os objetivos relacionados a direitos sócio-econômicos.8 Os

Princípios Diretivos visam à criação de uma sociedade igualitária cujos

cidadãos sejam livres de condições físicas abjetas que até então os tinham

8 Os relatores incluíram os ‘Princípios Diretivos da Política do Estado’ seguindo o exemplo da Constituição da Irlanda.

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impedido de explorar o seu potencial. Eles são a parte criativa da

Constituição e fundamentais para o comando do país. No entanto, o

elemento-chave é que os Princípios Diretivos não podem ser apreciados

pelo Alto Judiciário (non-justiciable), mas devem, apesar disso, servir de

base para as ações do Executivo e do Legislativo. É interessante registrar

que, na época da redação da Constituição, alguns dos Princípios Diretivos

faziam parte da declaração de direitos fundamentais adotada pelo Partido

do Congresso (Congress Party). K.M. Munshi (célebre advogado e membro

da Assembléia Constituinte) até tinha incluído em seu rascunho da lista de

direitos os ‘direitos dos trabalhadores’ e ‘direitos sociais’, que incluíam

dispositivos que protegiam as mulheres e as crianças e garantiam o direito a

trabalho, a um salário justo e a um padrão de vida decente.9

Subseqüentemente, o objetivo de garantir esses direitos foi incluído nos

Princípios Diretivos. A importância primordial desses princípios pode ser

entendida pelas seguintes palavras do Dr. B. R. Ambedkar, quando ele

insistiu no uso da palavra “lutar” na redação do Artigo 38 que menciona o

objetivo do governo de distribuição eqüitativa de recursos materiais:

“Nós a usamos porque é nossa intenção que, mesmo quando existam

circunstâncias que obstruam o governo, ou que impeçam que o governo

implemente esses princípios diretivos, ele sempre lutara´, mesmo em

circunstâncias difíceis e desfavoráveis, para cumprir essas diretivas...Caso

contrário, qualquer governo poderia afirmar que as circunstâncias são tão

9 Ao mesmo tempo, até alguns temas controversos e outros sensíveis para a comunidade, tal como o desejo de implementar um Código Civil Uniforme e a proibição do abate de vacas, chegaram a ser incluídos nos Princípios Diretivos.

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desfavoráveis, que as finanças são tão inadequadas, que nós não podemos

nem fazer um esforço na direção em que a Constituição nos diz para

seguir.” [Debates da Assembléia Constitucional, 19-11-1948]

Dessa forma, o cumprimento de medidas ligadas à igualdade social nunca

foi visto como dependente apenas da disponibilidade de recursos estatais.

Em alguns casos, os tribunais têm favorecido os direitos fundamentais em

detrimento dos princípios diretivos, enquanto em outros, eles traçaram com

criatividade uma relação harmoniosa entre os dois. Um exemplo disso é a

expansão do conceito de ‘liberdade pessoal’ de acordo com o Artigo 21

da Constituição, que discutirei mais adiante neste pronunciamento. Agora,

gostaria de descrever a estrutura do judiciário indiano.

III. Visão Geral da Estrutura Judicial na Índia

Ao contrário do Brasil, que tem um sistema judicial de tribunais federais e

estaduais, a Índia tem um sistema judicial integrado. No topo do sistema,

está a Corte Suprema da Índia que exerce sua competência de diferentes

formas, ou seja – competência mandamental, recursal ordinária, originária,

consultiva e aquelas conferidas por vários estatutos. No nível seguinte, estão

os Tribunais Superiores dos vários estados. Embora a maior parte dos estados

tenham um Tribunal Superior, alguns têm Tribunais Superiores comuns. Os

Tribunais Superiores também exercem competência mandamental,

competência recursal ordinária, além do poder de supervisão de todas as

demais cortes e tribunais em seus respectivos estados. O terceiro nível é o

do judiciário inferior (subordinate judiciary) no nível distrital que, por sua vez,

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é composto por vários níveis de juízes (tanto na área civil, quanto na

criminal) cuja competência se baseia em limites pecuniários e territoriais.

Além do judiciário inferior, existem juízos especializados nos níveis estadual e

distrital que ouvem e decidem questões relacionadas a impostos diretos e

indiretos, disputas trabalhistas, disputas sobre serviços em agências estatais,

disputas de família, demandas de acidentes de trânsito, além de

reclamações de direitos do consumidor, para citar apenas algumas.

Enquanto o Brasil tem tribunais especiais para questões trabalhistas,

eleitorais e militares, a Índia tem uma gama muito maior de tais órgãos de

resolução de litígios. Com a exceção dos tribunais militares, as decisões de

todas essas cortes e tribunais especiais podem ser questionadas junto ao

alto judiciário.

A Competência da Corte Suprema: Pode-se a firmar de maneira conclusiva

que a Corte Suprema da Índia é o árbitro final em todas as controvérsias

constitucionais. Sua competência mandamental derivada do Artigo 32

concede-lhe o status que lhe permite fazer cumprir os direitos fundamentais.

Em sua competência originária, a Corte Suprema é o único foro em que

litígios entre os estados e a União ou entre os próprios estados podem ser

ajuizados. O direito declarado pela Corte Suprema é vinculante em todos

os outros tribunais da Índia e é o direito do país. A Corte é um tribunal que

guarda registros permanentes de todos os seus processos e tem o direito de

punir por desacato contra ela própria. Como a Corte Suprema da Índia

exerce competência tanto constitucional como de apelação, ela é

nitidamente diferente das cortes de cúpula do Brasil onde o Supremo

Tribunal Federal (STF) funciona em grande medida como uma corte

constitucional enquanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) funciona como

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um tribunal de última instância com respeito aos recursos dos tribunais

federais. Os nossos Tribunais Superiores nos vários estados podem ser

comparados de um modo geral aos Tribunais Regionais Federais, mas eles

apreciam as apelações oriundas do judiciário inferior em seus respectivos

estados, e não de suas regiões. Nesse aspecto, os nossos Tribunais Superiores

são estruturalmente parecidos com os Tribunais de Justiça que atuam em

cada estado do Brasil. A principal diferença, é claro, é que os Tribunais

Superiores nos estados da Índia garantem os direitos constitucionais. 10

Pela competência recursal ordinária da Corte Suprema, qualquer

julgamento de um Tribunal Superior pode ser trazido diante da Corte

Suprema, caso o Tribunal Superior certifique que a questão em causa diz

respeito a uma questão substancial de interpretação da lei ou da

Constituição. No entanto, não existe o direito de apelar para a Corte

Suprema. Em casos em que os Tribunais Superiores não emitem um

certificado de apelação, e há uma importante questão legal, pode ser feito

um recurso solicitando autorização especial (Special Leave), de acordo

com a Constituição da Índia. Esse dispositivo (Artigo 136 da Constituição)

permite que a Corte Suprema conceda uma autorização especial para a

apelação de qualquer julgamento, decreto, determinação, sentença ou

ordem em qualquer caso ou assunto julgado por qualquer tribunal da Índia.

Esse poder é extremamente amplo e permite que a Corte Suprema exerça

controle do exercício impróprio da jurisdição por órgãos judiciais ou quase-

10 As informações a respeito do sistema legal brasileiro foram colhidas em: Herbert M. Kritzer (Ed.), Legal Systems of the World – A political, social and cultural encyclopedia, Vol. I: A-D California: ABC-CLIO) pp. 188-196

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judiciais, além de manter uniformidade na conduta legal. Em algumas

circunstâncias especiais, a Corte Suprema pode também transferir para si

própria qualquer caso de qualquer um dos Tribunais Superiores. Isso

geralmente ocorre quando estão pendentes junto à Corte Suprema e ao

Tribunal Superior, ou junto a dois ou mais Tribunais Superiores, casos que

envolvem questões de direito semelhantes. Se a Corte Suprema estiver

convencida, seja pela sua própria vontade (suo moto), ou por um pedido

feito pelo procurador-geral ou por qualquer parte envolvida em qualquer

um dos casos, de que tais questões são de interesse comum, a Corte

Suprema pode avocar os casos dos Tribunais Superiores e julgá-los ela

própria. Dessa maneira, a Corte Suprema tem a jurisdição final sobre todos

os tribunais e processos judiciais na Índia e tem um amplo poder recursal. De

acordo com o Artigo 143 da Constituição, a Corte Suprema exerce também

competência ‘consultiva’, pela qual o Presidente indiano pode encaminhar

à Corte qualquer questão de direito ou questão de interesse público para

seu parecer. A Corte tem também o poder de rever suas próprias decisões.

Atualmente, o poder conferido à Corte Suprema da Índia é o de 26 juízes,

que incluem o Presidente da Corte Suprema da Índia. A Corte em geral se

reúne em turmas compostas por dois ou três juízes. Quando tratam de

questões constitucionais, turmas maiores de cinco ou mais juízes também se

constituem. Os juízes da Corte Suprema exercem o cargo até os 65 anos e o

juiz mais antigo (quanto à duração de seu cargo na Corte Suprema) é o

Presidente da Suprema Corte da Índia. Nos Tribunais Superiores, a idade

para a aposentadoria foi estabelecida em 62 anos.

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Independência do judiciário: A fim de salvaguardar a independência do

judiciário, a nomeação dos juízes da Corte Suprema e também dos Tribunais

Superiores são feitas com base nas recomendações de um colegiado –

composto pelo presidente da Corte Suprema da Índia e pelos quatro juízes

seguintes em ordem de antiguidade na Corte Suprema. As nomeações

para a Corte Suprema são feitas dentre juízes com assento nos Tribunais

Superiores e, em casos excepcionais, também dentre advogados

experientes. Nomeações para os Tribunais Superiores são feitas tanto dentre

o judiciário inferior como dentre advogados. O judiciário inferior, por sua vez,

é constituído sob a supervisão dos Tribunais Superiores, mas os governos dos

respectivos estados também desempenham uma função na medida em

que eles realizam exames competitivos para as nomeações de juízes nos

níveis mais baixos.

Pode parecer irregular que o próprio alto judiciário decida a sua

composição, mas isso foi considerado necessário por causa de

interferências indevidas por parte do executivo em nomeações de juízes no

passado. Tal interferência foi bastante acentuada nos anos que

antecederam a imposição de medidas de emergência entre junho de 1975

e março de 1977. Por exemplo, em 1973, três juízes da Corte Suprema foram

suplantados na questão da nomeação à posição de Presidente da Corte

Suprema da Índia. Esse acontecimento estimulou debate sobre se o

executivo estava limitado pelas recomendações do judiciário na questão

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da nomeação de juízes. No caso de S. P. Gupta11, a própria Corte Suprema

determinou que embora os redatores da constituição tenham estipulado

que o executivo consultasse o judiciário nessas questões, sua concordância

não era necessária. Essa decisão deu ao executivo bastante espaço para

ação na questão de nomeações para o alto judiciário, e percebeu-se

nitidamente que as ligações políticas desempenhavam um papel

importante nas decisões. A seguir, essa decisão foi reformada num

julgamento de 1993,12 em que se decidiu que as recomendações feitas pelo

Presidente da Corte Suprema da Índia em conjunto com os dois juízes mais

antigos da Corte Suprema eram vinculantes para o executivo com respeito

à nomeação de juízes para os Tribunais Superiores e para a Corte Suprema

e também com respeito à transferência de juízes entre os Tribunais

Superiores. No Terceiro Caso dos Juízes (Third Judges Case)13, essa posição

foi modificada para dar o poder de nomeações e transferências ao

Presidente da Corte Suprema, atuando em conjunto com os quatro juízes

mais antigos da Corte Suprema. Assim, hoje em dia, é esse colegiado de

juízes que decide as nomeações e as transferências no alto judiciário.

Tendo em mente a enorme preocupação de preservar a independência

do judiciário, a própria Constituição estabeleceu um difícil processo para a

retirada de juízes da Corte Suprema e dos Tribunais superiores. Em caso de

11 S. P. Gupta v. União da Índia, AIR 1982 SC 149

12 Supreme Court Advocates – On-Record Association (SCAORA) V. Union of India, (1993) 4 SCC 441

13 Um grupo de nove juízes da Corte Suprema da Índia emitiu sua opinião numa consulta presidencial no Third Judges Case, (1998) 7 SCC 739

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‘má conduta’, ‘mau comportamento comprovado’ ou ‘incapacidade’, os

juízes desse nível podem ser impedidos (impeached) se o Parlamento da

União aprovar uma resolução para esse efeito por maioria de dois terços

dos membros presentes e votantes. Isso significa que um membro do alto

judiciário só poderá ser retirado se houver uma sólida vontade política para

isso. Ademais, os juízes têm a segurança da estabilidade no cargo além de

condições de serviço e os processos disciplinares são supervisionados pelo

próprio alto judiciário. Até mesmo a administração do judiciário inferior em

nível distrital é supervisionado pelos Tribunais Superiores em vários estados.

IV. O alto judiciário como protetor da Constituição

O alto judiciário indiano tem um histórico admirável na garantia de controle

constitucional de todos os órgãos do governo tais como o legislativo e o

executivo. Dessa forma, a confiança do povo no sistema judicial e na

Constituição é constantemente reforçada. Transmite também a mensagem

de que os mecanismos voltados para o estado de direito são melhores

alternativas do que a violência e o extremismo. Tais métodos progressivos de

controle constitucional são necessários para que se alcancem dois

objetivos: que cada cidadão acredite no valor e na eqüidade da

Constituição e que, em segundo lugar, os cidadãos tenham a garantia de

que os tribunais, como guardiões de todas as liberdades constitucionais, irão

fiscalizar com imparcialidade e efetividade o cumprimento dessas

liberdades.

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A preocupação com a manutenção da independência do judiciário está

ligada também a duas características fundamentais da democracia

constitucional – a ‘separação de poderes’ entre os três poderes do governo

e o exercício vigoroso do ‘controle de constitucionalidade’ das ações do

legislativo e do executivo. Os direitos fundamentais listados na Constituição

fornecem, por conseguinte, aos tribunais constitucionais critérios tangíveis

para que possam realizar esse ‘controle de constitucionalidade’ da ação

do governo e manter a ‘separação de poderes’. A doutrina da ‘separação

de poderes’ estabelece que deve haver uma distribuição do poder do

governo entre os três poderes do Estado – o executivo, o legislativo e o

judiciário, para que todo o governo não seja controlado por uma única

autoridade. Nenhum dos três poderes tem absoluta autonomia ou

ascendência sobre os outros; é dada a cada poder, no entanto, a

possibilidade de fiscalizar o exercício de poder dos demais.

Há um dispositivo expresso para o ‘controle de constitucionalidade’ no

Artigo 13 da Constituição da Índia. A Cláusula (1) afirma que todas as leis

em vigor no território indiano imediatamente antes da adoção da

Constituição, na medida em que são inconsistentes com os dispositivos que

contêm os direitos fundamentais, não deverão, na medida de sua

inconsistência, ter validade legal. A Cláusula (2) desse mesmo Artigo

acrescenta que os estados não deverão criar nenhuma lei que retire ou

reduza nenhum dos direitos fundamentais, e que qualquer lei criada em

transgressão do que foi afirmado anteriormente deverá, na medida da

transgressão, ser considerada sem validade legal. Os tribunais decidirão se

um legislativo ou um executivo agiu com excesso de poder ou em

contradição com alguma das restrições constitucionais a seu poder.

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Segundo o Dr. B. R. Ambedkar, esse dispositivo forma o coração e a alma

da Constituição.14

Sem dúvida, esse poder que o alto judiciário tem de fiscalizar a ação

governamental a fim de proteger os direitos dos cidadãos existe também

em vários outros países. No entanto, o conceito de ‘controle de

constitucionalidade’ desenvolveu alguns contornos únicos por meio das

decisões da Corte Suprema da Índia. A principal impugnação ao alcance

do ‘controle de constitucionalidade’ veio a seguir de contestações a

respeito do devido lugar do ‘direito à propriedade’ na Constituição da

Índia. Deve-se ter em mente que havia imensa desigualdade nos padrões

de posse de terras na Índia pré-independência, e muitos correspondiam às

divisões de castas. Na zona rural, quase todas as terras agrícolas pertenciam

e eram controladas pelas castas altas, que recebiam o patrocínio do

governo colonial em troca da garantia de recolhimento imediato dos

impostos territoriais. Elaboradas instituições de intermediários (como o

sistema Zamindari) tinham-se arraigado enquanto agricultores das castas

mais baixas ou possuíam áreas muito pequenas de terra, ou eram obrigados

a trabalhar como trabalhadores forçados (N.T.: bonded labour é uma forma

de pagar dívidas por meio do trabalho em vez de dinheiro ou bens), sob o

controle desses Zamindars. De diversas maneiras, esse sistema injusto era

semelhante à desigualdade na titularidade de terras entre os latifúndios e os

minifúndios (N.T.: traduzidos pelo autor como grandes e pequenos

proprietários de terra), que historicamente também tem sido um problema

14 Ver Constitutional Assembly Debates, C.A.D., Vol. 7, p. 953.

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no Brasil. Na Índia independente, o Parlamento e as assembléias legislativas

estaduais deram início a uma política de reforma agrária com um grau de

urgência considerável que, muitas vezes, negligenciava questões como o

pagamento de indenizações adequadas aos proprietários de terras cuja

propriedade fora adquirida para fins públicos e também para a

redistribuição entre pequenos agricultores. Tais excessos por parte do

governo fizeram com que os proprietários de terras se dirigissem repetidas

vezes aos tribunais para protegerem seu ‘direito de adquirir, manter e

desfazer-se de suas propriedades’ que havia sido incluído no Artigo 19(1)(f)

da Constituição. Enquanto o alto judiciário repetidamente defendia os

direitos dos proprietários rurais contra a aquisição pelo Estado, o Parlamento

respondia com mudanças legislativas e emendas constitucionais para tratar

da mesma questão. Na realidade, as legislações relativas à reforma agrária

foram incluídas na Nona Emenda à Constituição,15 uma parte que foi

imunizada do escrutínio dos tribunais, formando, assim, uma exceção ao

poder de ‘controle de constitucionalidade’ concedido pelo Artigo 13. No

entanto, a Corte Suprema muitas vezes confirmou impugnações contra

estas leis, que questionavam a lisura dos processos de aquisição de terras.

Como o Parlamento da União foi dominado pelo Partido do Congresso, no

poder até meados dos anos 60, havia uma verdadeira luta entre o

executivo e o judiciário. A questão chegou a um ponto crítico no caso

15 A Nona Emenda (Ninth Schedule) foi inserida na Constituição em 1951, originalmente para proteger as leis da reforma agrária do escrutínio judicial. Esse esquema, no entanto, que continha originalmente treze leis em 1951, tinha crescido rapidamente até incluir 284 leis em 2006, muitas sem relação com a reforma agrária ou o fim do feudalismo. Foi, conseqüentemente, tema de freqüentes críticas já que restringe o poder do ‘controle de constitucionalidade’.

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Golaknath,16em que a Corte Suprema decidiu por estreita maioria (6-5) que

o poder do Parlamento para emendar a Constituição era limitado, e que os

tribunais tinham o poder de examinar essas emendas. O Parlamento reagiu

com uma emenda constitucional que ampliava o seu poder de emendar

qualquer parte da Constituição por meio de um processo estabelecido pelo

Artigo 368. Essa emenda, por sua vez, foi questionada no célebre caso

Keshavananda Bharati,17em que a Corte Suprema estabeleceu a doutrina

da inviolabilidade da ‘estrutura básica’ da Constituição, que limitava o

poder do Parlamento para emendar a Constituição. Em opiniões separadas,

mas convergentes, uma estreita maioria dos juízes (7-6) decidiu que alguns

aspectos da Constituição eram parte integrante de sua natureza e não

podiam ser alterados por meio de emendas pelo Parlamento. Defenderam

também o poder do judiciário de examinar ações legislativas a fim de

salvaguardar essa ‘estrutura básica’. No entanto, houve alguma

inconsistência na identificação de todos os dispositivos que constituíam a

‘estrutura básica’. Embora decisões posteriores18 tenham identificado

características básicas como democracia, secularismo, federalismo e

alguns dos direitos fundamentais, vários analistas comentaram a natureza

‘aberta’ dessa doutrina. No entanto, a decisão Kashavanada Bharati

conserva uma grande importância por ter reafirmado o papel do judiciário

como protetor da Constituição. É pertinente registrar que, por meio da 44ª

16 Golaknath v. Estado de Punjab, AIR 1967 SC 1643

17 Keshavananda Bharati v. Estado de Kerala, (1073) 4 SCC 225

18 Minerva Mills v. União da India, AIR 1980 SC 1789

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Emenda, em 1978, o ‘direito à propriedade’ foi retirado da Parte III da

Constituição (que trata dos direitos fundamentais) e passou a ter o status de

um direito legal nos termos do Artigo 300A.

Nos últimos anos, dois casos envolvendo o poder que têm os tribunais de

examinar as funções legislativas e não-legislativas do Parlamento – os casos

Coelho19 e Raja Ram Pal20 – demonstraram que a Corte Suprema da Índia

está ingressando numa nova era de controle de constitucionalidade. O

caso Coelho decidiu se a Corte Suprema podia examinar leis do

Parlamento inseridas na Nona Emenda, e o caso Raja Ram Pal avaliou se os

procedimentos internos do Parlamento (nesse caso a expulsão de Membros

do Parlamento por corrupção) eram sujeitos a controle judicial.

Na decisão Coelho, a Corte Suprema decidiu que ela tinha o direito de

declarar nula qualquer dispositivo inserido na Nona Emenda caso fosse

contrário às disposições da Constituição. Afirmava: a jurisprudência e o

desenvolvimento em torno de direitos fundamentais tornou claro que eles

não são direitos limitados, e sim fornecem um amplo controle contra

violações ou excessos por parte das autoridades estatais. Os direitos

fundamentais mostraram ser de fato o principal instrumento para a

realização do controle constitucional do governo, em particular do poder

legislativo.

19 I. R. (Falecido) Pelos advogados. v. Estado de Tamil nadu & Outros, (2007) 3SCC 1 [doravante Coelho]

20 Raja Ram Pal v. Presidente da Cãmara, Lok Sabha (câmara baixa) & outros, (2007) 3 S CC 184 [doravante Raja Ram Pal]

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Afirmava também que: “Não se pode dizer que a mesma Constituição que

permite um controle do poder legislativo vai decidir se tal controle é ou não

necessário. Seria uma negação da Constituição.”

No caso Raja Ram Pal, a Corte Suprema rejeitou os argumentos a respeito

da inconstitucionalidade da expulsão do Membros do Parlamento

enquanto, ao mesmo tempo, reafirmou os princípios do controle de

constitucionalidade. A Corte começou por afirmar que a Constituição era a

“lei suprema neste país” e passou a afirmar que:

“O Parlamento é um órgão da mesma categoria e suas opiniões merecem

deferência mesmo que os seus atos estejam sujeitos ao escrutínio

judicial...mero status constitucional da mesma categoria...não tira desta

Corte o direito de exercer sua jurisdição de controle de

constitucionalidade”.

A Corte reconheceu também que, embora não possa questionar a

verdade ou a correção do material... [nem] substituir sua opinião pela do

Congresso, procedimentos do Parlamento que podem estar

comprometidos em decorrência de ilegalidade ou inconstitucionalidade

real ou flagrante poderiam ainda assim ser examinadas pelo judiciário. Essas

duas decisões reafirmam o esquema constitucional de equilíbrio de poder

entre os poderes legislativo e judiciário e garantem também que os políticos

não mais poderão escapar do escrutínio de um judiciário atento.

V. O caráter ‘ativista’ do judiciário indiano

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Enquanto o judiciário na Índia goza de um status elevado em razão de seu

poder de ‘controle de constitucionalidade’ das ações do governo, desde o

final dos anos 70, ele expandiu ainda mais o âmbito de suas funções.

Começando com os trabalhos de juízes ‘ativistas’ como o Juiz P. N.

Bhagwati, o Juiz V.R. KrishnaIyer e o Juiz Chinnapa Reddy, a Corte Suprema

elaborou duas estratégias amplas que fizeram com que passasse de um

órgão de resolução de litígios positivista a um catalisador de mudanças

sociais. Uma dessas estratégias tem sido a constante expansão do alcance

da proteção dada à ‘vida’ e à ‘liberdade pessoal’ no Artigo 21 da

Constituição. A outra estratégia que tem chamado atenção considerável

no estrangeiro é a da evolução do Litígio de Interesse Público (Public

Interest Litigation – PIL).21Poderá ser útil tecer aqui breves comentários sobre

as duas estratégias.

Expansão do alcance do Artigo 21: o Artigo 21 da Constituição da Índia diz

o seguinte: “Nenhuma pessoa será privada de sua vida ou liberdade

pessoal exceto de acordo com processo estabelecido por lei.” A

interpretação do Artigo 21 nos primórdios da Corte Suprema era de que a

‘liberdade pessoal’ poderia ser restringida contanto que houvesse um

dispositivo legal nesse sentido. No caso de A. K. Gopalan,22 a Corte Suprema

havia decidido que a ‘prisão preventiva’ era admissível contanto que fosse

prevista por uma medida governamental (lei ou portaria, por exemplo) e a

21 Ver: S. P. Sathe, ‘Judicial Activism: The Indian experience’, 6 Washington University Journal of Law and Policy 29, 2001

22 A. K. Gopalan v. Estado de Madras, AIR 1950 SC 27

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Corte não podia questionar a correção de tal medida. Foi decidido que as

palavras ‘processo estabelecido por lei’ distinguiam-se da garantia do

‘devido processo’ substantivo concedida pela 14ª Emenda à Constituição

Americana (14th Amendment). Considerou-se também que os redatores da

Constituição indiana teriam incluído expressamente o requisito do ‘devido

processo substantivo’ caso tivessem a mesma intenção. Esta posição

prevaleceu durante vários anos até ser mudada no caso de Maneka

Gandhi.23 Nesse caso, foi decidido que restrições à ‘liberdade pessoal’

previstas no Artigo 21 deveriam também ser verificadas com base nas

garantias de não-arbitrariedade, justiça e eqüidade que foram incluídas nos

Artigos 14, 19 e 21 da Constituição. A Corte desenvolveu uma teoria de

‘inter-relacionamento de direitos’ para determinar que ações

governamentais que restringissem qualquer um desses direitos deveriam

satisfazer os limites estabelecidos para restrições a todos eles. Dessa forma,

as cortes incorporaram a garantia de ‘devido processo substantivo’ à

linguagem do Artigo 21. A isso seguiu-se uma série de decisões em que os

conceitos de ‘vida’ e de ‘liberdade pessoal’ foram liberalmente

interpretados de modo a incluir direitos que não haviam sido mencionados

na Parte III. Segundo o Juiz Bhadwati:24

“achamos que o direito à vida inclui o direito de viver com dignidade

humana e com tudo que isso implica, especialmente as necessidades

23 Maneka Gandhi v. União da Índia, AIR 1978 SC 597

24 Observações em Francis Coralie v. Union Territory of Delhi, (1981) 1 SCC 688

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básicas para a vida, tais como nutrição adequada, roupa e um teto sobre a

cabeça e meios para ler, escrever e se expressar de diversas formas.”

Ademais, por meio de estratégias inovadoras e criativas, as Cortes

ampliaram o alcance dos Direitos Fundamentais, a fim de conceder justiça

às mulheres, crianças, ‘bonded labourers’ (aqueles que pagam suas dívidas

com o seu trabalho) e outros segmentos oprimidos da sociedade. De forma

especial, ao longo das décadas, a Corte Suprema tem afirmado que tanto

os Direitos Fundamentais quanto os Princípios Diretivos devem ser

interpretados de forma harmônica. Observou-se no caso Kesavananda

Bharati25que os princípios diretivos e os direitos fundamentais se

complementam e almejam a mesma meta de uma revolução social e do

estabelecimento de um Estado de bem-estar social (welfare State),

mencionados também no Preâmbulo. Ademais, no caso Unni Krishnan, J.P.

v. o estado de Andhra Pradesh,26 o Juiz Jeevan Reddy declarou:

“Os dispositivos das Partes III e IV são suplementares e complementares

entre si e não se excluem uns aos outros e os direitos fundamentais não são

mais do que um meio para se alcançar a meta indicada na Parte IV”.

Essa política de harmonizar os direitos fundamentais e os princípios diretivos

foi bem-sucedida em grande parte. Por exemplo, a Corte Suprema recorre

aos objetivos dos direitos sócio-econômicos a fim de interpretar o direito à ‘

vida e à liberdade pessoal’ como um direito que contempla o ‘direito à

25 (1973) 4 SCC 225

26 (1993) 1 SCC 645

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subsistência e à moradia’,27 o ‘direito à saúde’,28 e o ‘direito a um meio-

ambiente limpo’, entre outros. As Cortes também têm recorrido aos

princípios diretivos para interpretar as proibições de trabalhos forçados e

trabalho infantil.

Litígio de Interesse Público: A segunda faceta do caráter ‘ativista’ do alto

judiciário tem sido o dispositivo de Litígio de Interesse Público (Public Interest

Litigation – PIL). O Litígio de Interesse Público é uma conquista marcante da

interpretação constitucional indiana e é o principal instrumento por meio do

qual é dado aos pobres acesso aos tribunais. Ao desenvolver esse

instrumento, o judiciário indiano improvisou de maneira significante as

características dos litígios de direito público. As Cortes Constitucionais

ampliaram sua competência para poderem apreciar questões trazidas por

partes que, de outro modo, não teriam o conhecimento sobre os seus

direitos legais ou os recursos materiais para ter acesso a elas. Do mesmo

modo, as Cortes podem também conhecer de questões por conta própria,

sem as exigências das formalidades processuais. Nos primeiros casos, os

juizes individualmente conheceram de questões por meio de cartas das

partes lesadas. No entanto, esse instrumento de Litígio de Interesse Público

(PIL) passou a ser um recurso valioso.

27 Olga Tellis v. Corporação Municipal de Bombaim, AIR 1985 SC 180 (uma jornalista havia dado entrada numa petição em nome de centenas de moradores de rua que estavam sendo relocados por causa de uma obra de construção da corporação acusada. A Corte reconheceu o ‘direito à subsistência e à moradia’ dos moradores de rua e concedeu um mandado de segurança para suspender seu despejo.)

28 Parmanand Katara v. União da Índia, AIR 1989 SC 2039 (A Corte determinou que nenhuma autoridade sanitária podia se recusar a prestar assistência médica a um paciente em necessidade.)

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Um dos primeiros casos de litígio de interesse público julgados pela Suprema

Corte da Índia foi o caso Hussainara Khatoon (I) v. o estado de Bihar.29 Esse

caso tratava de uma série de artigos publicados num jornal conhecido (o

Indian Express) que expunham a situação difícil dos prisioneiros aguardando

julgamento nas prisões do estado de Bihar. Uma petição mandamental foi

apresentada por um defensor da Corte Suprema, chamando a atenção da

Corte para a situação deplorável desses prisioneiros. Muitos deles já haviam

cumprido penas superiores à pena máxima que a lei permite a um tribunal

condenar. A Corte Suprema aceitou a legitimidade ativa do defensor para

sustentar a petição mandamental. Após, seguiram-se vários casos por meio

dos quais a Corte deu uma série de decisões segundo as quais o direito a

um julgamento rápido era considerado parte integrante e essencial do

‘direito à vida e à liberdade’ contido do Artigo 21 da Constituição. No caso

Conselho Municipal , Ratlam v. Vardichand30, a Corte reconheceu a

legitimidade ativa de um grupo de cidadãos que buscavam uma decisão

contra o Conselho Municipal do local para a retirada de esgotos abertos

que causavam mau cheiro além de doenças. A Corte, reconhecendo o

direito do grupo, afirmou que se o:

“...centro de gravidade da justiça vai ser, como de fato determina o

Preâmbulo da Constituição, transferido do individualismo tradicional da

legitimidade ativa para a orientação comunitária de litígio de interesse

29 (1980) 1 SCC 81

30 (1980) 4 SCC 162

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público, a corte deve considerar as questões visto que é necessário

concentrar-se nos homens comuns.”

No entanto, é importante salientar que o Litígio de Interesse Público (PIL)

envolve três importantes divergências da noção tradicional de adjudicação

de direito público.

– Em primeiro lugar, há um enfraquecimento da exigência de

legitimidade ativa existente no direito consuetudinário, ou seja, apenas a

parte adversamente afetada por um determinado ato é que pode abrir um

processo legal a esse respeito. No Litígio de Interesse Público (PIL), um

processo legal (na forma de uma ação mandamental nos termos do Artigo

32) pode ser ajuizado por qualquer pessoa em nome de um grupo de

pessoas lesadas e os juízes também têm a liberdade de conhecer, por

conta própria, de qualquer questão que envolva o interesse público. Isto é

diferente do conceito de um ‘representative suit’ (ação por representação)

do processo civil comum e de um ‘class action suit (ação de classe) nos

Estados Unidos, já que também é possível que uma pessoa que não tenha

sido pessoalmente lesada recorra ao judiciário. Críticos têm chamado

atenção para o uso indevido desse instrumento, que concorre para

aumentar o número de casos nos tribunais. Esse aspecto é importante pois

muitas organizações voluntárias do setor têm-se dirigido à Corte Suprema

indiana para defender os interesses dos segmentos destituídos e oprimidos

da sociedade, para atrair a atenção da Corte para os males sociais e a

apatia governamental, e para requerer reparação de danos ao meio-

ambiente.

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– Em segundo lugar, nos casos de Litígio de Interesse Público (PIL) a

natureza dos procedimentos não é estritamente ‘adversarial’ como as

normas do direito consuetudinário. No sistema ‘adversarial’, as respectivas

partes envolvem-se em argumentações, apresentação de provas e

interrogatórios, enquanto que os juízes adotam uma posição passiva na

decisão de disputas. A tendência dos PILs tem sido, no entanto, os juízes

assumirem uma função mais ativa, buscando mais informação sobre o

assunto e dando instruções às autoridades públicas a esse respeito. De

várias maneiras, os PILs têm-se tornado o meio de dar continuidade à

fiscalização judicial das funções governamentais.

– Em terceiro lugar, as Cortes ampliaram os tradicionais remédios

disponíveis para os PILs sob a competência mandamental (como habeas

corpus, mandamus, quo warranto, interdição e certiorari) e deram também

nova interpretação ao Artigo 32 para permitir que as Cortes concedam

medidas discricionárias (discretionary remedies). Como conseqüência, os

remédios do direito privado tais como ‘injunctions’ (ordens de fazer), ou

‘orders of stay (ordens de suspensão) têm sido inseridas com freqüência em

casos caracterizados como Litígios de Interesse Público. Conjuntamente

com o poder que tem a Corte de dar instruções tanto às autoridades

públicas como a indivíduos, o exercício dos poderes judiciais tem sido

freqüentemente descrito como ‘legislação judicial’. Por exemplo, no caso

Vishaka v. Estado de Rajasthan,31 a Corte Suprema emitiu diretrizes para a

criação de mecanismos de reparação contra assédio sexual a mulheres no

31 (1997) 6 SCC 247

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local de trabalho, já que não havia nenhuma legislação que tratasse do

assunto. Atualmente, há um debate contínuo sobre os parâmetros

desejáveis em Litígios de Interesse Público (PIL). Houve preocupação com o

fato de o ‘ativismo judicial’ poder ser com freqüência chamado de

‘excesso judicial’ (judicial overreach) pela tendência dos juízes de se

intrometerem no domínio do executivo e do legislativo.32 Alguns

comentaristas usaram expressões como ‘populismo judicial’ para se

referirem à idéia de que os juízes tendem a intervir em algumas questões

com o intuito de obter visibilidade pública para eles próprios. Há, no

entanto, um apoio considerável à filosofia por trás deste instrumento de

litígios de direito público. Em muitos casos, a Corte Suprema tem-se

mostrado à altura das necessidades da sociedade em constante mudança

e tem tomado medidas proativas para lidar com essas necessidades,

especialmente quando a ação tanto do legislativo quanto do executivo

ficaram para trás. 33 Este modelo único tem permitido ao alto judiciário

julgar questões como proteção ao consumidor, justiça de gênero e a

prevenção de poluição ambiental e de destruição ecológica. Visa também

encontrar espaço social e político para os destituídos e outros grupos

32 Para uma crítica do ‘ativismo judicial’ por meio de Litígios de Interesse Público (PIL), veja: T. R. Andhyarujina, Judicial Activism and Constitutional Democracy in India (Bombay: N. M. Tripathi, 1992)

33 Caso Shiram Food & Fertilizer, (1986) 2 SCC 176 [sobre gases químicos letais que punham em risco a vida e a saúde dos trabalhadores]; M. C. Mehta v. União da Índia (1988) 1 SCC 471 [caso de Poluição Ganga]; e Ação Legal do conselho de Ação Legal v. União da Índia (1996) 5 SCC 281 [Litígio de Interesse Público apresentado por organização voluntária registrada a respeito da degradação ambiental na área costeira].

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vulneráveis da sociedade e igualá-los aos outros, infundindo assim na

sociedade o espírito de igualdade adotado pela Constituição da Índia.

Com esses comentários, gostaria de concluir este pronunciamento. Muito

obrigado.