A PRODUÇÃO DA IDENTIDADE E DIFERENÇA DA CRIANÇA...
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UNISAL – CAMPUS MARIA AUXILIADORA DEFICIÊNCIA NO AMBIENTE EDUCACIONAL QUE SE DENOMINA INCLUSIVO Americana 2016 DEFICIÊNCIA NO AMBIENTE EDUCACIONAL QUE SE DENOMINA INCLUSIVO do grau de Mestre em Educação no Programa de Mestrado em Educação, área de concentração: Educação Sociocomunitária, sob orientação da Profa. Dra. Valéria Oliveira de Vasconcelos. Coorientação: Profa. Dra. Norma Silvia Trindade de Lima. Americana 2016 Moreira, Elenir Santana. M837p A produção da identidade e diferença da criança com deficiência no ambiente educacional que se denomina inclusivo / Elenir Santana Moreira. – Americana: Centro Universitário Salesiano de São Paulo, 2016. 127 f. Orientadora: Valéria Oliveira de Vasconcelos. Inclui bibliografia. 1. Educação infantil. 2. Identidade. 3. Educação inclusiva. 4. Narrativa. 5. Crianças deficientes – Brasil. I. Moreira, Elenir Santana. II. Centro Universitário Salesiano de São Paulo. III. Título. CDD 371.9 Bibliotecária UNISAL – Americana ELENIR SANTANA MOREIRA DEFICIÊNCIA NO AMBIENTE EDUCACIONAL QUE SE DENOMINA INCLUSIVO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação Stricto Sensu do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação – área de concentração: Educação Sociocomunitária. Linha de pesquisa: Vasconcelos. Trindade de Lima. __________________________________________ Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP __________________________________________ _________________________________________ Dedico este trabalho a todas as crianças que me possibilitaram viver sentidos e significados do mundo de maneira tão bela e própria da infância. AGRADECIMENTOS A Deus, a quem meus pais me ensinaram a amar, desde muito pequena, e em quem aprendi que posso confiar em todos os momentos, principalmente quando me faltam palavras. À minha avó, que me contou as primeiras histórias e me mostrou que sonhar era preciso. Aos meus amados pais, que sempre foram zelosos com minha educação e me ensinaram uma multiplicidade de coisas, algumas das quais só fui entender que sabia quando já não os tinha comigo. Aos meus queridos cinco irmãos e quatro irmãs, que me carregaram no colo, tomaram- me pelas mãos, permitindo-me ser criança por mais tempo. Ao Lincoln, companheiro, amigo, pelo constante bom humor, que me ensina a levar a vida com mais leveza, sendo capaz de ouvir, ponderar e, sobretudo, de me acalmar. À Laura, que me ensinou a ver belezas desconhecidas e talvez nem ainda sonhadas, mas que torna possível reviver a ternura do abraço constante. Aos meus sobrinhos, de ontem e de hoje, especialmente aos dois primeiros (Silvane e Sílvio), com quem aprendi a amar as crianças. Às companheiras e professoras, coautoras da minha trajetória profissional. Entre tantas, àquelas que na caminhada tornaram-se amigas e puderam compreender minha ausência nesse momento da jornada, Miriam, Celinha, Vânia, Bete, Denise, Margareth, Milene, Márcia, Déia, Nathália, Elizeteia. Às amigas, Celly e Regina, juntas iniciamos este sonho de querer conhecer um pouco mais, além de também dialogarmos sobre sentimentos ternos. Aos novos amigos que se fizeram ao logo do mestrado, Paulo e Emílio. À professora doutora Norma Trindade de Lima, quem me conduziu durante o processo de pesquisa e estudo. Gratidão pelo encontro e reencontro, pela sabedoria nas ponderações e o acolhimento de sempre. Obrigada pela compreensão diante daquilo que para mim parecia incompreensível, o que me possibilitou ir além do imaginado. À professora doutora Valéria Oliveira de Vasconcelos, que ao final do caminho constitui-se minha orientadora e soube com conhecimento e delicadeza conduzir o processo. Ao querido professor Severino Antônio, que com sua sabedoria imensurável me ensinou a “rever” belezas guardadas em nossas crianças, que em suas aulas a todos sensibiliza e encanta com grandioso respeito e acolhimento. À professora Rubia, que com sua competência e docilidade nos toma pela mão e nos faz querer ir adiante. À professora doutora Renata Sieiro Fernandes, que tive o prazer de conhecer na apresentação de meu trabalho para os Grupos de Pesquisas do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), quando me fez apontamentos pertinentes, de maneira encorajadora e respeitosa, o que me instigou a querer saber mais. À professora doutora Maria Teresa Eglér Mantoan, profissional que provocou em mim deslocamentos, para que eu pudesse assim compreender, lutar e querer uma educação possível para todas as pessoas. A todas as crianças, em especial a Kamau, Amir e Abayomi, que me ensinaram a “ver e ouvir” outras possibilidades de escuta, e para as quais tive um olhar mais atento no momento de construção de dados durante a realização desta pesquisa. A Imagem 1 mostra como as crianças brincam, com contentamento, sem se importar com as diferenças. Imagem 1 – Entre sonhos e areia Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2015. Fotografia: Elenir Santana Moreira. RESUMO Pelo olhar do outro, as narrativas e as identidades vão sendo construídas e marcadas pela diferença nos espaços educacionais. A identidade é feita de representações criadas e compartilhadas socialmente; as imagens de si e do outro e os sentidos atribuídos a ela não são constantes nem estáticos. Nessa perspectiva, a presente pesquisa tem como objetivo investigar a produção da identidade e a diferença da criança com deficiência dentro do Centro de Educação Infantil (CEI) que se denomina inclusivo. A finalidade do referido estudo é saber como as narrativas ou as práticas, tanto discursivas quanto não discursivas, de professoras e crianças sem deficiências (de 3 a 6 anos) vão criando efeitos, sentidos e significados compartilhados, tornando-se modos de dizer sobre o outro e colaborando, ou não, para a produção da identidade e da diferença da criança com deficiência. Alinhando-se, assim, a uma visão educacional sociocomunitária, que busca a emancipação dos sujeitos, respeitando e significando sua história, bem como a práxis educativa. Buscou-se, ainda, refletir sobre algumas questões, tais como: Quais são as vozes que atravessam as narrativas das crianças e das professoras? A criança com deficiência “escapa” do sentido produzido e compartilhado de identidade e diferença que lhe é atribuído? Se sim, como isso ocorre? Quais as possíveis linhas de fuga? Trata-se de uma pesquisa qualitativa e participante em que as narrativas/histórias apresentadas fundem-se com as vozes dos pesquisados e da pesquisadora, a fim de que outras histórias possam ser contadas e recontadas. A seleção das narrativas é feita com base em questionários, diário de campo, observação participante, desenhos e fotografias. O trabalho realizou-se em dois CEIs de uma rede municipal de educação infantil, no interior de São Paulo, tendo como participantes 4 professoras e 16 crianças de 3 a 6 anos, entre as quais 2 com deficiências. A luz do referencial teórico, pautado em autores pós- estruturalistas que conjecturam sobre a educação e a produção de subjetividade na contemporaneidade, contribui para que as narrativas aqui apresentadas marquem o lugar singular que cada sujeito ocupa dentro do CEI. Destacam-se, neste estudo, Tomaz Tadeu da Silva, Stuart Hall e Kathryn Woodward, contribuindo com a reflexão sobre a produção da identidade e da diferença. Conclui-se que o encontro com as crianças e suas criações tecem em nós sutilezas capazes de possibilitar outro olhar, para e sobre as identidades e diferenças. Palavras-chave: Educação infantil. Identidade. Diferença. Inclusão. Narrativa. Criança com deficiência. ABSTRACT By the other’s perspective, the narratives and the identities are being constructed and marked by the difference in the educational spaces. The identity is made of representations created and socially shared; the images of yourself and the other and the senses conferred to them are not constants or statics. In this perspective, the following research aims at investigating the production of the identity and the difference of the children with disability inside the children’s educational center (CEI), which is denominated inclusive. The purpose of said study is to know how the narratives or the practices both discursive and not discursive of the teachers and children without disability (from three to six years old) create effects, senses and shared significances, becoming ways to talk about the other and collaborating, or not, to the production of the identity and difference of the disable child. Aligning, this way, to a social communitary educational vision, that seeks the emancipation of the subjects, respecting and signifying their story, as well as the educative praxis. We sought, yet, to reflect about some questions such as: which are the voices that cross the children and teacher’s narratives? Does the disabled child “escape” the produced and shared sense of identity and difference that is attributed to her? If so, how does it occur? What are the possible leakage lines? It is a qualitative and participant research, in which the narratives/stories presented combine with the researched and researcher voices, in order to make possible to other stories be told and retold. The narratives selection is made based on surveys, field diary, participant observation, drawings and photography. The work was conducted in two CEI of a municipal system of Children’s Education, in the countryside of São Paulo, having as participants four teachers and sixteen children from ages three to six, among whom two were disabled. The light of the theoretical referential, lined in post-structuralist authors who conjecture about the education and production of subjectivity in contemporaneity, contributes for the narratives here presented to mark the singular place that each subject occupies inside the CEI. Stand out, in this study, Tomaz Tadeu da Silva, Stuart Hall and Kathryn Woodward, contributing with the reflection about the production of identity and difference. We conclude that the encounter with the children and their creations spin on us subtleties capable of enable other perspective for and about the identities and differences. Keywords: Childeren’s Education. Identity. Difference. Inclusion. Narrative disabled child. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS • AG – Agrupamento • BDTD – Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações • CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior • CEMEI – Centro Municipal de Educação Infantil • CEI – Centro de Educação Infantil • CF – Constituição Federal • DO – Diário Oficial • EJA – Educação de Jovens e Adultos • EMEF – Escola Municipal de Ensino Fundamental • EMEI – Escola Municipal de Educação Infantil • LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional • LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais • NEE – Necessidades Educacionais Especiais • ONG – Organização Não Governamental • UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba LISTA DE IMAGENS Imagem 3 – Lobo mau, que olhinho é esse? ...........................................................................18 Imagem 4 – Caminhando juntos 1 ...........................................................................................26 Imagem 5 – Caminhando juntos 2 ...........................................................................................27 Imagem 6 – Caminhando juntos 3 ...........................................................................................28 Imagem 7 – Relações mais que possíveis.................................................................................33 Imagem 8 – O que é a infância? ...............................................................................................41 Imagem 9 – Veja que eu também quero ver.............................................................................53 Imagem 10 – Infâncias .............................................................................................................55 Imagem 13 – Olhar atento 1......................................................................................................60 Imagem 14 – Olhar atento 2......................................................................................................60 Imagem 17 – Azul.....................................................................................................................76 Imagem 19 – Azul para o olho dela..........................................................................................81 Imagem 20 – Orelhinha e batom ..............................................................................................81 Imagem 21 – Nala. Desenho 1..................................................................................................82 Imagem 23 – Vermelho de terra...............................................................................................83 Imagem 27 – Flor, cachorro e casinha .....................................................................................85 Imagem 28 – Nala. Desenho 2.2 ..............................................................................................85 Imagem 29 – Quem quer brincar coloca a mão aqui................................................................86 Imagem 30 – Urbi. Desenho 1 .................................................................................................87 Imagem 31 – Urbi. Desenho 2 .................................................................................................88 Imagem 32 – Tomando pela mão 1...........................................................................................90 Imagem 33 – Tomando pela mão 2...........................................................................................90 Imagem 34 – Tomando pela mão 3...........................................................................................91 Imagem 35 – Tomando pela mão 4...........................................................................................91 Imagem 36 – Tomando pela mão 5...........................................................................................92 Imagem 37 – Tomando pela mão 6...........................................................................................93 Imagem 38 – Tomando pela mão 7.......................................................................................... 93 Imagem 41 – Ressignificando experiências 1...........................................................................96 Imagem 42 – Ressignificando experiências 2...........................................................................96 Imagem 43 – Ele é bonitinho, eu gosto dele e ele brinca comigo............................................ 99 Imagem 44 – Gosto dele e ele brinca comigo.........................................................................101 Imagem 45 – Eu gosto dele.....................................................................................................101 Imagem 48 – Ele e eu..............................................................................................................103 Imagem 49 – Ele é meu amigo, ele brinca comigo e eu gostei do aniversário dele...............104 Imagem 50 – Eu gosto dele.....................................................................................................104 Imagem 52 – Ele é meu amigo e adora brincar comigo..........................................................106 Imagem 53 – Feliz aniversário para ele .................................................................................106 Imagem 54 – Ele é meu amigo................................................................................................107 Imagem 55 – Ele é legal..........................................................................................................107 Imagem 2 – Bolha de sabão Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2015. Fotografia: Elenir Santana Moreira. À GUISA DE INTRODUÇÃO MEMORIAL: ENCONTROS POSSÍVEIS, SONHADOS E IMAGINADOS Eu me pego olhando para as diversas crianças brincando no pátio do Centro de Educação Infantil (CEI), com bolhas de sabão soltas ao vento, cheias de ar, refletindo as cores do ambiente. Elas correm alegremente atrás das bolhas, enquanto busco ponderar como são produzidas ou narradas a identidade e a diferença da criança com deficiência dentro desse CEI, espaço que se denomina inclusivo, querendo compreender quais sentidos e significados são atribuídos à identidade e à diferença dessa criança. Constato que diversas são as marcas constituídas pela linguagem, as quais, ao longo do tempo, me instigam, pois se referem às terminologias utilizadas para nomear as crianças com deficiência dentro da referida escola. Como professora de Educação Especial da rede municipal de Campinas há mais de vinte anos, na prática diária de trabalho verifico os diferentes lugares ocupados pela criança com deficiência e a professora 1 de Educação Especial no interior desse CEI que se denomina inclusivo. Lugar este que hoje ouso chamar de NÃO lugar por não ser considerado legítimo dentro do referido CEI e por sempre necessitar da autorização do outro (da professora da classe) para ser realizado. Esse NÃO lugar me levou, e ainda me leva, a re(pensar) como me constituí professora, e então me lanço às lembranças de quando eu ainda era criança, bem como de minhas experiências no universo escolar, que foram iniciadas em uma cidade do interior do Paraná, a pequena Maria Helena. Dona Maria José, minha avó, não possuía livros de histórias nem brinquedos coloridos para mostrar a mim e a meus cinco irmãos e quatro irmãs, mas era possuidora de uma imaginação apreciável e contadora de suas próprias histórias, pelas quais nos fazia transitar com toda paixão e encantamento. Em noites com ou sem luar, e até mesmo em dias frios, ela punha-nos deitados em lençóis, debaixo da imensidão do céu, e então tudo passava diante de nossa imaginação. Sua voz, às vezes doce, outras misteriosa, levava-nos a mundos inimagináveis. Monstros ferozes, guerreiros valentes, ursinhos meigos, estrelas voadoras e de cores diversas e vibrantes tomavam conta do nosso imaginário. 1 Será usada a terminologia “professora”, por ser do gênero feminino a maioria dos profissionais que exercem essa função dentro das escolas municipais de Campinas. Às vezes, um começava a contar uma história e o outro terminava; assim, noites que poderiam ter sido apenas a hora de ir dormir, passavam a ser momentos de histórias, que até hoje não sabemos se eram reais ou inventadas, mas que trazemos na memória e no coração. O gesto era simples, mas as marcas impressas em minha lembrança são majestosas. O que poderia parecer triste, se contado hoje para algumas crianças da cidade grande, para mim e meus nove irmãos era pura fantasia. Minha avó forrava no chão de terra batido um lençol, e sobre ele nós nos deitávamos apertadinhos, afinal eram muitas crianças querendo desvendar aquele vasto céu. Isso foi e é tão significante para mim que sempre revivo essa memória convidando amigos queridos a apreciarem o céu com os olhos da infância, deitados sobre um lençol no quintal da minha casa. Recordo-me de uma brincadeira da roça, que naquela época fazíamos sem nos sentir culpados, afinal, na região em que morávamos, as árvores só eram cortadas para a construção de casas, como aquelas em que nós e os vizinhos vivíamos. Casas grandes de varanda, com quartos imensos, onde era possível ir de uma cama para a outra sem bater a “canela”. Em nossa sala havia um piano que para ser acionado precisava de uma pedaleira, e minha mãe o tocava, principalmente em noites de chuva. As lembranças são tantas que me vão levando a encontros possíveis, sonhados e imaginados, mas, voltando à brincadeira que quero contar, ela se chamava “pica, pica, machadinha”. Funcionava da seguinte maneira: uma criança ficava na frente da turma, o líder, e estabelecia uma regra para começar a chamar os amigos. Quem era escolhido ia para a frente da turma, o líder da brincadeira segurava o braço da criança com uma das mãos e batia com a outra, como se ela fosse um machado, desde o pulso até chegar ao ombro, e perguntava: “Pica, pica, machadinha, que pau é esse?” Assim, cada um falava todas as espécies de árvore que conhecia. Se falasse o nome certo, ou seja, aquele estabelecido pelo líder, passaria então a ser o próximo líder, mas, se a machadinha chegasse até o ombro e ele não acertasse o nome da árvore, perderia a brincadeira, pois no faz de conta ficaria sem o braço e não poderia mais brincar. Trata-se de fantasias de outrora, mas que hoje são relevantes para me dar a leveza necessária diante da rigidez imposta pelo cotidiano, principalmente o escolar. Como tudo aquilo era encantador, não havia a vaidade do certo ou do errado, a imaginação navegava por rios desconhecidos, a imensidão do céu era sentida simplesmente pela possibilidade do deitar- se sobre um lençol e de uma mente disposta a partilhar histórias e saberes. Sei que muito do meu desejo se ser professora sobreveio das histórias contadas por Dona Maria José. Quando criança, o trajeto que eu e meus irmãos fazíamos diariamente para chegar até a escola, a pé, era de aproximadamente quatro quilômetros, e, apesar disso, nós não faltávamos às aulas, mesmo morando muito longe. Filha de professora e de pai agricultor, aprendi que a instituição escolar era um lugar de desejos e saberes. Meus pais me passavam o conceito de que a escola era um espaço onde eu poderia aprender muitas coisas, o meio que me propiciaria um futuro diferente daquele que eles tinham tido. Mas eu nem sempre encontrava na escola o desejo de resposta que tinha dentro de mim, assim como não me sentia satisfeita com os saberes que eram destinados aos alunos. Não me recordo de ter estudado com alguém com deficiência. Aparentemente todas as crianças eram iguais. No entanto, havia uma divisão na sala entre aquelas crianças que aprendiam rapidamente e as que eram lentas. Sim, eram chamadas de lentas as crianças que não aprendiam no tempo determinado pela professora ou pela escola. Havia situações em que as tarefas a serem realizadas pelos alunos eram diferenciadas, além disso a exposição de minhas dificuldades para as professoras não era algo natural para mim. Eu ficava inquieta diante de algum problema, mas também não me sentia encorajada a dialogar sobre ele. Lembro-me de que, quando eu tinha 7 anos, conheci uma garotinha da mesma idade que eu. Ela morava em uma rua pela qual eu passava diariamente para ir à escola. Meus pais conheciam os pais dela, mas não me lembro de ela frequentar a mesma escola que eu, apesar de aquela ser a única instituição de ensino na cidade em que morávamos. A menina era linda, usava sempre vestidinhos coloridos, sapatos pretos de verniz e meia branca. Era magrinha, tinha os olhos bem azuis, cabelos loiros encaracolados e possuía uma forma muito peculiar de se comunicar. Na comunidade, falavam que Martinha, esse era o nome dela, era surda e muda, por isso não adiantava falar com ela, pois a menina não entenderia. Sem compreender direito a conversa dos adultos, sempre que meus pais paravam para falar com os pais de Martinha em sua casa, eu fugia para o fundo do quintal para encontrá-la. De fato, ela não falava como eu, mas emitia alguns sons com sentidos bem significantes para mim, e nós nos compreendíamos e fazíamos todas as brincadeiras que queríamos, e assim nos divertíamos. Hoje sei que ela era surda e não falava, mas não sei se era muda ou se não havia aprendido a falar. Naquela época, ninguém me explicou que Martinha poderia falar de outra forma, então fui construindo a minha fantasia em relação…