A Questão Do Outro-Luce Irigaray

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  • labrys, estudos feministas

    nmero 1-2, julho/ dezembro 2002

    A questo do outro

    Luce Irigaray

    traduo: tania navarro swain

    Resumo:

    A questo do outro uma questo de poca. Mas esta questo muitas vezesmal colocada, permanecendo hierrquica e naturalista. Este o motivo peloqual, sem dvida, Simone de Beauvoir no compreendeu que o outro sexopodia significar um sexo diferente e no um segundo sexo, no sentido de sexoinferior. A meu ver, afirmando a diferena que a mulher pode libertar-se dadominao sobre ela de uma cultura no masculino. Para cultivar esta diferena,deve definir as mediaes prprias a seu gnero: em nvel da linguagem, dodireito, da religio, da genealogia, etc. Aps haver conquistado umasubjetividade livre e autnoma, a mulher deve aprender a entrar em relaocom o homem como outro, um outro diferente, mas no hierarquicamentesuperior ou inferior.

    Palavras-chave: diferena, outro, gnero, linguagem

    A filosofia ocidental, e talvez toda a filosofia, constituiu-se em torno deum sujeito nico. Durante sculos, no se imaginou que poderiam haversujeitos diferentes e que o homem e a mulher, em particular, poderiam sersujeitos diferentes.

    Desde o fim do sculo XIX, certamente, a ateno voltou-seprincipalmente sobre a questo do outro. O sujeito filosfico, sujeito agora maissociolgico, tornou-se um pouco menos imperialista. Admitiu que existiamidentidades diferentes da sua: crianas, loucos, os "selvagens", operrios, porexemplo.

    Havia, portanto, diferenas empricas a serem respeitadas: todo omundo no era igual e importava debruar-se um pouco mais sobre aos outrose suas s diversidades. Mas o modelo fundamental do ser humano permaneciaimutvel: uno, nico, solitrio, e historicamente masculino, o do homem

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  • ocidental adulto, racional, competente. As diversidades observadaseram assim pensadas e vividas de maneira hierrquica, o mltiplo sendosempre submetido ao nico. Os outros no eram seno cpias da idia dohomem, idia potencialmente perfeita, cujo modelo, todas as cpias, mais oumenos imperfeitas, deveriam esforar-se para igualar. Estas cpias imperfeitasno eram, alis, definidas a partir delas mesmas, logo, de uma subjetividadediferente, mas a partir da subjetividade ideal e em funo de suas carncias emrelao quela: idade, sexo, raa, cultura, etc. O modelo do sujeito permanecianico e os "outros" representavam exemplos inferiores, hierarquizados emrelao ao sujeito nico.

    Este modelo filosfico corresponde, alis, ao modelo poltico de umchefe considerado o melhor, como o nico capaz de governar cidados mais oumenos altura de sua identidade humana, mais ou menos burilada.

    Esta posio relativa noo do outro explica, sem dvida, a recusade Simone de Beauvoir de identificar a mulher ao outro. No querendo ser"segunda" em relao ao sujeito masculino, pretende alcanar um statussubjetivo igual ao do homem, o mesmo ou semelhante ao dele.

    No plano filosfico, isto supe um retorno ao sujeito nico,historicamente masculino, e uma anulao da possibilidade de uma outrasubjetividade que no fosse a do homem. Se o trabalho crtico de Simone deBeauvoir sobre a desvalorizao da mulher como "segunda" na cultura , decerta forma, exato, a recusa de considerar a questo da mulher como outrarepresenta filosoficamente, e mesmo politicamente, uma regresso importante.Com efeito, sua reflexo historicamente menos avanada que a de certosfilsofos que se interrogaram sobre a questo das relaes possveis entre doisou mais sujeitos: filsofos existencialistas, personalistas ou mais polticos; elase situa na retaguarda, tambm, em relao s lutas das mulheres peloreconhecimento de uma identidade prpria.

    As proposies positivas de Simone de Beauvoir representam, em meuentender, uma falha terica e prtica, pois implicam na negao de um(a) outro(a), cujo valor seria equivalente ao sujeito.

    O outro: a mulher

    O ponto de vista de meu trabalho sobre a subjetividade feminina, , decerta forma, o inverso do de Simone de Beauvoir, no que diz respeito questodo outro. Em vez de dizer: no quero ser o outro do sujeito masculino e, paratanto, pretendo ser igual a ele, eu digo: a questo do outro est mal colocada

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  • na tradio ocidental, o outro sempre o outro do mesmo, o outro doprprio sujeito e no um outro sujeito a ele irredutvel e de dignidadeequivalente. Isto significa que ainda no existiu realmente o outro para osujeito filosfico, e mais geralmente o sujeito cultural e poltico, nesta tradio.

    "O outro, De lautre femme, sub-ttulo de Speculum deve sercompreendido como um substantivo. Este supe designar, em francs, masigualmente em outras lnguas, tais como o italiano, o ingls, o homem e amulher. Neste sub-ttulo, eu quis indicar que o outro no , de fato, neutro,nem gramaticalmente, nem semanticamente, e que no mais possvel utilizarindiferentemente a mesma palavra para o masculino e o feminino. Ora, estaprtica corrente em filosofia, na religio, na poltica. Fala-se da existncia dooutro, do amor ao outro, da preocupao com o outro, etc., sem que sejaevocada a questo de quem ou o que representa o outro. Esta falta de definioda alteridade paralisou o pensamento, inclusive o mtodo dialtico, em umsonho idealista apropriado um sujeito nico (masculino), na iluso de umabsoluto igualmente nico, e isto deixou a religio e a poltica em umempirismo, no qual, fundamentalmente, a tica est ausente, quanto aorespeito entre as pessoas. Com efeito, se o outro no definido em suarealidade efetiva, no seno um outro eu, pode haver um mais ou menos eu,no um outro em sua prpria realidade. Assim, o Outro pode representar o/minha grandeza ou perfeio absoluta: Deus, Mestre, logos; pode nomear omenor ou mais desvalido: a criana, o doente, o pobre, o estrangeiro; podenomear aquele que creio ser meu igual. No h nisto verdadeiramente umoutro, mas o mesmo: menor, maior, igual a mim." (Jaime toi, Grasset,1992 : 103-104)

    Em lugar da recusa de ser um outro gnero, o outro sexo, o queproponho ser considerada como realmente uma outra irredutvel ao sujeitomasculino. Deste ponto de vista, o sub-ttulo do Speculum poderia parecerrevoltante a Simone de Beauvoir: De lautre femme. Enviei-lhe (o livro) poca, com a esperana de obter seu apoio, nas dificuldades que encontrava.Nunca recebi uma resposta sua e no entendi o porqu de seu silncio, senorecentemente. Devo t-la ofendido sem querer. Eu havia lido a "Introduo" doSegundo Sexo muito antes de escrever o Speculum e no me recordava daimportncia da problemtica do outro na obra de Simone de Beauvoir. Nodeve ter entendido, por sua vez, que para mim no era aceitvel que meu sexoou meu gnero seja "segundo", mas que os sexos ou os gneros sejam dois,sem primeiro ou segundo.

    Eu prosseguia, a meu modo e na ignorncia de seus trabalhos, uma

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  • problemtica prxima das promotoras americanas do neo-feminismo,do feminismo da diferena, mais prximo da revoluo cultural de Maio 68, quedo feminismo igualitrio de Simone de Beauvoir. Para lembrar a questo emalgumas palavras: a explorao da mulher tem lugar na diferena entre osgneros e ela deve assim se resolver nesta diferena, e no pela abolio desta.No Speculum, o que interpreto e critico como o sujeito filosfico,historicamente masculino, reduziu o outro em uma relao com ele complemento, projeo, inverso, instrumento, natureza... no interior de seumundo, de seu horizonte. Tanto em relao ao texto de Freud quanto a partirdos sistemas filosficos marcantes nossa tradio, mostro como o outro sempre o mesmo, e no um outro real.

    Assim, as crticas que fao a Freud esto contidas na mesmainterpretao: vocs no vm a sexualidade, e geralmente a identidade damenina, da adolescente, seno em funo da sexualidade e da identidade domenino, do adolescente, do homem. Por exemplo, segundo esta tradio, oauto-erotismo da menina existiria durante o tempo em que ela confunde seuclitris com um pequeno pnis, ou seja, ela tem o mesmo sexo que o menino.Quando, atravs de sua me, descobre que a mulher no tem o sexo dohomem, a menina renuncia ao valor de sua identidade feminina voltando-separa o pai, para o homem, para assim obter um pnis por procurao. Toda suaenergia seria concentrada nesta conquista do sexo masculino. Mesmo aconcepo e a gerao de uma criana teriam como objetivo a apropriao dopnis ou do falo, e , nesta perspectiva, a criana-menino seria prefervel criana-menina. Um casamento, alis, no poderia ter sucesso, a mulher no setornaria uma boa esposa, seno depois de dar a seu marido um beb do sexomasculino.

    Hoje, uma tal descrio provocar sorrisos em algumas ou alguns. Halguns anos, cerca de vinte, porm, foi ela que sublinhou o alucinantemachismo de nossa cultura, da qual se ria, excluindo-a do ensino universitrio.As coisas,alis, no so assim to claras quanto podem parecer. Certamenteum pouco de luz se fez, mas, se a teoria freudiana machista, ela o pelareproduo da ordem scio-cultural existente: Freud, neste sentido, noinventou o machismo, ele o constatou. No que ele se engana como Simone deBeauvoir sobre os meios de resolver a questo: como ela, Freud noreconhece o outro enquanto outro de um modo diferente, ambos prope ohomem como modelo subjetivo nico ao qual a mulher deve se igualar. Homeme mulher, por meio de estratgias um pouco diversas, segundo um ou outro,devem, portanto, tornar-se semelhantes. Este ideal est alinhado ao da filosofiatradicional, que prega um modelo nico de subjetividade, historicamente

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  • masculino.

    Na melhor das hipteses, este modelo nico se acomodaria em umjogo de balano entre o um e o mltiplo, mas o um permanece o modelo quecomanda, mais ou menos abertamente, a hierarquia dos mltiplos: o singular nico e/mas ideal, "o Homem". A singularidade concreta no seno umacpia, uma imagem. A viso platnica do mundo, seu conceito de verdade , deuma certa forma, invertida em relao realidade emprica quotidiana: vocsse vem como uma realidade singular, mas so apenas cpias, mais ou menosboas, de uma idia perfeita, situada exteriormente.

    A tambm, antes de rir cedo demais, preciso interrogar apertinncia ainda atual de uma tal concepo do mundo: somos fruto da carne,mas tambm da palavra; natureza, mas tambm cultura. Ora, ser frutos dacultura significa, igualmente, ser frutos da idia, encarnao mais ou menosconforme ao modelo ideal. Muitas vezes, para dele nos aproximarmos,imitamos, copiamos como crianas o que percebemos como ideal. Todo estesmodos de ser ou de fazer so platnicos, segundo uma idia masculina daverdade. Mesmo na inverso que representa o privilgio do mltiplo sobre oum, inverso atual principalmente em nome da democracia, mesmo noprivilgio do outro sobre o sujeito, do tu em relao ao eu (penso, porexemplo,em algumas obras de Buber ou emuma parte da obra de Lvinas, emque estes privilgios so mais morais e teolgicos, talvez, que filosficos),permanecemos no modelo velado do um e do mltiplo, do um e do mesmo,para o um sujeito nico determina um sentido em detrimento de outro. Damesma forma, privilegiar a singularidade concreta em relao singularidadeideal no suficiente para questionar o privilgio de um universal vlido paratodos e todas. Com efeito, cada singularidade concreta no pode prescrever umideal vlido para todas e para todos, pois, para assegurar a coabitao entre ossujeitos, notadamentena cidade, um mnimo de universalidade necessrio.

    Para sair do modelo todo-poderoso do um e do mltiplo, precisopassar ao dois, um dois que no seja duas vezes o mesmo, nem um grande eum pequeno, mas dois realmente diferentes. O paradigma deste dois seencontra na diferena sexual . Por que a? Porque a existem dois sujeitos queno deveriam se situar em uma relao hierrquica e porque ambos tem comotarefa preservar a espcie humana e desenvolver a cultura no respeito de suasdiferenas.

    Meu primeiro gesto terico foi, assim, de liberar o dois do um, o doisdo mltiplo, o outro do mesmo, e de faze-lo horizontalmente, colocando em

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  • suspenso a autoridade do Um: do homem, do pai, do chefe, do deusnico, da verdade nica, etc. Tratava-se de dar emergncia ao outro domesmo, de recusar a idia de ser reduzida a este outro do mesmo, a um outrodo um, a um ou uma outra do um , no para ele me tornar ou como ele, masme constituindo como sujeito autnomo diferente.

    Evidentemente, este gesto coloca em questo toda nossa tradioterica e prtica, em particular o platonismo, mas sem um tal gesto, nopodemos falar de liberao da mulher, nem de comportamento tico em relaoao outro, nem de democracia. Sem tal gesto, a filosofia, ela mesma, corre orisco de terminar, vencida, entre outras coisas, pelo uso da tcnica, que, naconstituio do logos, corri a subjetividade do homem; vitria ainda mais fcile rpida se a mulher no assegura mais o plo natureza, resistente technmasculina. A existncia de dois sujeitos provavelmente a nica coisa quepoderia trazer o sujeito masculino a seu ser e isto graas ao acesso da mulherao seu.

    Para isto, era, portanto, preciso libertar o sujeito feminino do mundodo homem e admitir este escndalo filosfico: o sujeito no mais um, nemnico .

    As mediaes necessrias ao sujeito feminino.

    A este sujeito feminino, ainda mal definido, sem contornos nembordas, sem normas nem mediaes, seria necessrio, em seguida e ao mesmotempo, dar-lhe alguns pontos de referncia para subsistir e assegurar seufuturo. Aps a fase crtica de meu trabalho, endereado a uma filosofia e umacultura monosubjetivas, monosexuadas, patriarcais e falocrticas tentei definiras particularidades do sujeito feminino, necessrias a sua afirmao como tal,sob pena de recair na indiferenciao, assujeitamento ao sujeito nico. Umadas dimenses importantes desta preocupao quanto ao futuro do sujeitofeminino e, portanto, do meu, era de sair de um poder genealgico nico, deafirmar: nasci de uma mulher e de um homem e a autoridade genealgicapertence ao homem e mulher. Era preciso, ento, tirar do esquecimento asgenealogias femininas, no para encobrir pura e simplesmente a existncia dopai, em uma espcie de inverso cara aos ltimos sistemas filosficos, maspara retornar realidade do dois. Mas bem verdade que preciso tempo parareencontrar e restabelecer este dois, e isto, no pode ser a obra de uma s.

    Alm dos reencontros e reconciliaes com a genealogia, asgenealogias femininas ainda longe de ser completadas , seria preciso dotar a

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  • mulher, as mulheres, de uma linguagem, de imagens, derepresentaes que lhes conviesse: em nvel cultural, em nvel mesmoreligioso, Deus permanecendo um grande parceiro do sujeito filosfico. Comeceia faz-lo, no Speculum e Ce sexe qui nen est pas un, e continuei,principalmente, em Sexes et parents, Les temps de la diffrence e Je, tu,nous. Neles, trato das particularidades do mundo feminino, mundo diferentedaquele do homem, em sua relao com a linguagem, o corpo (idade, sade,beleza e claro, a maternidade), em sua relao com trabalho, a natureza e omundo da cultura. Dois exemplos: tento mostrar que o desenrolar da vida diferente para a mulher e para o homem, pois constituda, para aquela, poretapas corporais, muito mais marcadas: puberdade, deflorao, maternidade,menopausa- e pedindo um futuro subjetivo mais complexo que o do homem.Quanto ao trabalho, mostrei que a justia econmico-social no consistesomente na aplicao da regra: trabalho igual/salrio igual, mas tambm norespeito e valorizao da mulher na escolha de suas prioridades e das maneirasde produzir, das qualificaes profissionais, das relaes no lugar de trabalho,no reconhecimento do trabalho, etc.

    Nesses trabalhos, comecei igualmente a falar da necessidade dedireitos especficos para as mulheres. A liberao das mulheres no podeprogredir sem passar por esta etapa, tanto em nvel de reconhecimento social,quanto o do crescimento individual e das relaes comunitrias, entre asprprias mulheres e entre mulheres e homens.

    Um grande interesse e uma certa desconfiana seguiram estaspropostas jurdicas: um interesse da parte das mulheres, no especialistas nemfeministas, que percebiam a importncia da questo, um interesse tambm daparte das feministas de certos pases que se preocupavam h muito com amediao necessria do direito para a liberao humana, em particular a dasmulheres.

    A resistncia veio de duas correntes de mulheres. As mulheresigualitaristas no compreendiam a necessidade de direitos positivos para asmulheres; estavam de acordo para a obteno de direitos iguais aos doshomens, estavam prontas a lutar contra as discriminaes, mas no estavamatentas ao fato que as mulheres so levadas a fazer escolhas especficas emrelao aos homens, e que estas escolhas no podem permanecer individuaisnem privadas, mas precisam ser garantidas pela lei: a escolha livre damaternidade, a escolha dos ritmos de trabalho, a escolha da sexualidade, aescolha de quem ter a guarda das crianas menores em caso de divrcio ou deseparao, j no quadro dos casamentos multiculturais, nos quais o direito

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  • positivo para as mulheres no lhes permite passar da naturalidade civilidade: a maioria dentre elas continuam a ser corpos-natureza, submetidosao Estado, Igreja, ao pai, ao marido, sem ter acesso ao status de pessoascivis responsveis por elas mesmas e pela comunidade.

    Esta necessidade de direitos civis, prprias mulheres, contestadaigualmente por mulheres mais sensveis uma cultura poltica da diferena,mas que temem a lei como uma servido ao Estado. Ora, direitos civis relativoss pessoas representam, ao contrrio, uma garantia para os cidados de poderse opor ao poder do Estado como tal; mantm uma tenso entre os indivduose o Estado, podendo mesmo assegurar a passagem de uma sociedade estatal auma sociedade civil, cujo carter seria sustentado pelos direitos individuais daspessoas.

    Eu no posso seno desejar que as mulheres compreendam epromovam esta questo do direito das pessoas, j que estes direitos lhes sonecessrios para proteger e afirmar sua identidade prpria, e porque elas estomais preparadas, enquanto sujeitos femininos, a se interessar pelos direitosrelativos das pessoas e s relaes entre elas, mais do que aos direitosrelativos aos bens: a posse, a propriedade, o possuir so direitos que compema maior parte dos cdigos civis masculinos. Tratar-se-ia de completar oscdigos civis e constituies existentes com direitos para as mulheres e direitosdefinidos segundo seu modo de ser, isto , alm de uma especificidadesexuada, para as/os cidad/os enquanto pessoas.

    O outro: o homem

    Esta singularidade do carter feminino leva-me tambm a voltar-mepara a questo do outro na ltima parte deste texto.

    Enquanto sujeito autnomo, a mulher se encontra, desde ento, porsua vez, conduzida a se situar em relao ao outro, e a especificidade de suaidentidade faz com que ela privilegie muito mais a dimenso da alteridade emum vir a ser subjetivo. A tradio diz da mulher que ela a guardi do amor,imps-lhe o dever de amar, e de amar apesar das infelicidades do amor, semexplicar porque deve assegurar uma tal tarefa. Certamente no serei cmplicedeste imperativo relativo ao amor, muito menos daquele relativo ao dio, queme parece seu complemento.

    Vou, em vez disto, comunicar aqui os resultados obtidos por ocasiode pesquisas sobre a maneira de falar das meninas, das adolescentes, dasmulheres, e propor uma interpretao a respeito das particularidades da

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  • linguagem no feminino (ver a este respeito, J`aime toi)

    A linguagem mais atenta ao outro a linguagem da menina. Ela sedirige ao outro em minha amostragem, sua me pedindo-lhe seu acordopara uma atividade a ser realizada em conjunto: "Mame, quer jogar comigo?","Mame, posso te pentear?" Em tais enunciados, a menina respeita sempre aexistncia de dois sujeitos, cada um dos dois tendo direito palavra. Almdisto, o que ela prope uma atividade implicando os dois sujeitos. A meninapoderia, neste ponto, servir de modelo a todos e a todas, mesmo me que sedirige filha nestes termos: "Arrume suas coisas, se quiser ver televiso","Traga o leite voltando da escola". A me ordena a sua filha sem respeitar odireito palavra para os dois sujeitos e no prope um fazer juntas, a duas.Curiosamente, a me fala de outra forma ao menino, respeita mais suaidentidade: "Voc quer que eu venha te dar um beijo na cama, antes dedormir?" O menino, ele, j se exprime como um pequeno chefe: "Eu querojogar bola", "Eu queria um carrinho". De uma certa maneira, a me d aomenino o tu que lhe d a menina.

    Porque este gosto do dilogo de parte da menina? Sem dvida, porquemulher, nascida mulher, com propriedades e qualidades de mulher, entre asquais a de gerar, a menina se encontra, desde seu nascimento, em umasituao de relao possvel dois sujeitos. Isto explicaria tambm seu gostopelas bonecas sobre as quais derrama sua nostalgia pelo dilogo, nem sempresatisfeito pela me.

    Mas esta primeira companheira, feminina, de dilogo, a menina vaiperd-la na aprendizagem de uma cultura na qual o sujeito ainda e sempremasculino: ele, Ele, eles, quer se trate do gnero lingstico no sentido estritoou de metforas diversas, supostamente representando a identidade humana eseu futuro.

    Nem a menina, nem a adolescente renunciam, entretanto, a suarelao com o outro, relao ao objeto. Assim, proposta de fazer uma frasecom a preposio com ou o advrbio junto, as adolescentes, as estudantes euma boa parte das mulheres adultas tendem para enunciados do tipo: "Eusairei esta noite com ele", "Ns viveremos sempre juntos"; os sujeitosmasculinos, diro, por sua vez: "Eu vim com minha moto", "Eu escrevi estafrase com meu lpis", "Eu e minha guitarra nos sentimos bem juntos" .

    Esta diferena entre os enunciados dos sujeitos do gnero feminino eos do gnero masculino se exprime, de uma maneira ou de outra, na maior

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  • parte das respostas obtidas a uma srie de questes, servindo paradefinir as particularidades sexuadas da linguagem (a pesquisa prosseguiu emdiferentes lnguas e culturas, em particular romanas e anglo-saxs).

    alternativa da escolha masculina da relao sujeito-objeto com aescolha feminina da relao sujeito-sujeito, se apem outras caractersticas: asmulheres privilegiam o presente ou o futuro, a contigidade, o meio-ambienteconcreto, as relaes na diferena, o ser com, o ser (a) dois; os homens, porsua vez, privilegiam o passado, o metafrico, a transposio abstrata, asrelaes entre semelhantes, mas atravs de uma relao com o objeto, asrelaes entre o um e o mltiplo.

    Configuraes subjetivas e mundos diversos correspondem, portanto, mulher e ao homem. E no se trata somente de determinaes scio-histricas, nem de alienao do feminino, que seria necessrio reduzir graas auma igualdade com o masculino. A linguagem das mulheres testemunhaalgumas alienaes ou inrcias, com certeza, mas manifesta tambm umariqueza prpria que no tem nada a invejar linguagem dos homens,principalmente pelo gosto da intersubjetividade, que seria uma pena abandonarem favor de uma relao sujeito-objeto, dificilmente transposta pelo homem.

    Como, ento, levar o sujeito feminino e antes de tudo, eu mesma a cultivar a partilha com o outro sem alienao? O gesto a ser feito correspondeao gesto efetuado na poca do Speculum: considerar o respeito ao outroenquanto outro. Certamente tenho, temos, enquanto mulheres, a nostalgia dodilogo e da relao, mas teramos chegado ao ponto de reconhecer o outrocomo outro e nos dirigirmos a ele ou a ela enquanto tal? Ainda no, no naverdade. Com efeito, as palavras das adolescentes e das mulheres sotestemunho de uma inclinao para a relao a outrem, mas igualmente dodesejo de uma relao eu-voc, que nem sempre leva em conta quem estevoc, e que desejo o seu (dela/dele).

    Assim o sujeito feminino privilegia a relao com o outro gnero, o queno faz o sujeito masculino. Esta prioridade do masculino, como companheirode dilogo, testemunha, por um lado, da alienao cultural, mas manifestaigualmente diversas particularidades do sujeito feminino. A mulher conhecemais o outro gnero que o homem: ela o engendra nela mesma, ela o beradesde seu nascimento, ela o nutre com seu corpo, ela o vivencia nela, no amor.Sua relao com a transcendncia do outro , desde ento, diferente da vividapelo homem, para quem ela est sempre fora, sempre marcada pelo mistrio ea ambivalncia quanto origem, materna ou paterna. A mulher tem uma

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  • relao com o homem mais ligada a uma partilha carnal, a umaexperincia sensvel, a um vivido imanente, inclusive o da gerao. A alteridadedo outro, ela a ressente, sem dvida, na estranheza de seu comportamento, naresistncia que ope a seus sonhos e a suas vontades, mas estatranscendncia, ela deve constru-la na horizontalidade, em uma partilha devida que respeita absolutamente o outro como outro, alm de todas asintuies, sensaes experincias, conhecimentos que pode ter. Seu gosto pelodilogo tem o risco de levar a uma reduo do outro como outro, se ela noconstri a transcendncia do outro como tal, em sua irredutibilidade a ela: porfuso, contigidade, empatia, mimetismo.

    Esta construo da transcendncia do outro tentei indicar em Jaime toi e Essere due (primeira edio em lngua italiana, Bollati Boringhieri,1994).Mostrei que a operao do negativo, que habitualmente se exerce parapassar a um grau superior do tornar-se si mesmo, em um movimento dialticoentre si e si, deveria se exercer entre dois sujeitos para impedir a reduo dodois em um, do outro ao mesmo. Com certeza, trata-se ainda de um negativoaplicado a mim mesma, em meu vir a ser subjetivo, mas para marcar airredutibilidade entre o outro e eu e no para re-absorver a exterioridade emmim. Neste gesto, o sujeito renuncia a ser um e nico. Respeita o outro, o dois,em uma relao intersubjetiva.

    Este gesto , antes de tudo, para ser feito na relao entre osgneros, pois a alteridade a real e ela permite rearticular natureza e cultura,em uma relao mais verdadeira e mais tica, sobrepujando assim a faltaessencial de nosso vir a ser espiritual, denunciada por Hegel, a respeito daexcluso e da morte de Antgona. (Hegel, cap.VI, Phnomnologie de lesprit).

    Esta passagem histrica do sujeito um e nico existncia de doissujeitos de valor e dignidade iguais parece-me uma tarefa apropriada smulheres, em nvel filosfico e poltico. As mulheres, como j assinalei, somais destinadas a uma relao a dois, e em particular relao ao outro. Dofato dessa propriedade de sua subjetividade, podem abrir o horizonte do um,do semelhante, e mesmo do mltiplo, para se afirmar como um sujeito outro, eimpor um dois que no seja um segundo.

    Realizar sua liberao implica, por outro lado, que reconheam o outrocomo outro, sob pena de retomar o crculo de um sujeito nico. Reconhecer ohomem como outro representa assim uma tarefa tica a sua medida,certamente, mas igualmente uma indispensvel etapa da afirmao de suaautonomia. Alm disto, o uso do negativo para realizar esta tarefa permite-lhes

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  • passar de identidade natural a identidade cultural e civil, sem negarsua/suas natureza/s graas ao pertencimento a um gnero. Este negativointervir, a partir disto, em todas as relaes com o outro: em palavras, como"Eu te amo - voc" mas da mesma forma, na percepo pelo olhar ou naescuta, e mesmo no toque. Em Essere Due, tento definir este novo modo deaproximao do outro, inclusive pela carcia.

    Realizar esta revoluo, da passagem da afirmao de si como outro ao reconhecimento do homem como outro, representa tambm o gesto capaz de sustentar o conhecimento de todas as outras formas de outros, sem hierarquia, privilgio nem autoridade sobre eles: que se trate de raas, idades, culturas, religies.

    Colocar o dois em lugar do um na diferena sexual significa, portanto,um gesto filosfico e poltico decisivo, aquele que renuncia a ser um no pluralpara passar a s-lo dois, como fundamento necessrio de uma nova ontologia,de uma nova tica, de uma nova poltica, na qual o outro reconhecido comooutro e no como um mesmo: maior, menor, no melhor dos casos, igual a mim.

    Nota:

    Esta traduo ainda no foi revista pela autora.

    Nota biogrfica

    Luce Irigaray diretora de pesquisa em filosofia no Centre National de laRecherche Scientifique, em Paris. Tem uma formao de lingista, psicloga epsicanalista. Trabalha , terica e politicamente, construo de uma culturacontendo dois sujeitos, um feminino, outro masculino, respeitosos de suasdiferenas e capazes de engendrar em conjunto, um mundo mais justo e maisfeliz. autora de vrios livros, entre os quais: Speculum de lautre femme, Cesexe qui nen est pas un, Parler nest jamais neutre.

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