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Gaston Luce Léon Denis, o Apóstolo do Espiritismo sua Vida, sua Obra Leon Denis Conteúdo resumido Esta é uma extensa e minuciosa biografia de Léon Denis, o grande continuador da obra de Allan Kardec, escrita por Gaston Luce, seu amigo pessoal e companheiro de difusão doutrinária. No desenrolar da biografia, o autor demonstra que a vida de Denis, essa personalidade íntegra e resoluta, foi totalmente dedicada à divulgação e defesa da Doutrina Espírita.

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  • Gaston Luce

    Lon Denis, o Apstolo do Espiritismo

    sua Vida, sua Obra

    Leon Denis

    Contedo resumido

    Esta uma extensa e minuciosa biografia de Lon Denis, o grande continuador da obra de Allan Kardec, escrita por Gaston Luce, seu amigo pessoal e companheiro de difuso doutrinria.

    No desenrolar da biografia, o autor demonstra que a vida de Denis, essa personalidade ntegra e resoluta, foi totalmente dedicada divulgao e defesa da Doutrina Esprita.

  • A obra ainda acrescida de vocabulrio onomstico, relao dos lugares por onde Lon Denis passou, seu ltimo artigo escrito na Revista Esprita e uma comunicao medinica rece-bida trs meses aps sua desencarnao.

  • Sumrio

    Prefcio da primeira edio .................................................... 5 I Prlogo .............................................................................. 7 II Infncia e juventude

    Atribulaes ................................................................... 11 Em Tours ........................................................................ 16 A guerra .......................................................................... 24 O Grupo da Rua du Cygne ............................................. 27

    III Os incios Treinamento oratrio ...................................................... 35 A bela viagem ................................................................ 38 Outra viagem .................................................................. 52 O conferencista da Liga do Ensino ................................ 55

    IV O apostolado Na lia ............................................................................ 64 Primeiro contato ............................................................. 66 Primeiras obras literrias ................................................ 71 O Congresso Espiritualista Internacional de 1889 ......... 81 Depois da Morte ............................................................. 83 As grandes conferncias ................................................. 91 O Grupo da Rua du Rempart ........................................ 105 Cristianismo e Espiritismo ........................................... 110 O Congresso de 1900 ................................................... 116 No Invisvel .................................................................. 123 O Congresso de Lige .................................................. 128 O Problema do Ser e do Destino .................................. 130 O caso Miller ................................................................ 135 A verdade sobre Joana dArc ....................................... 140 O Congresso de Bruxelas ............................................. 150 Polmica Paul Nord ...................................................... 153 O Grande Enigma ........................................................ 157

  • As brochuras de defesa ................................................. 162 O Alm e a Sobrevivncia do Ser ................................. 168 O Congresso de Genebra .............................................. 168 Provas e decepes ....................................................... 174

    V A velhice O Mundo Invisvel e a Guerra ..................................... 179 A Religio do futuro .................................................... 190 Lon Denis e Conan Doyle .......................................... 196 O Congresso de 1925 ................................................... 197 O Gnio Cltico e o Mundo Invisvel ........................... 207 Os derradeiros momentos ............................................. 218

    VI O homem ...................................................................... 223 VII A obra, o orador, o escritor

    A obra ........................................................................... 230 O orador ....................................................................... 238 O escritor ...................................................................... 243

    Apndices 1 Testamento moral ................................................... 252 2 Com um druida de Lorraine ................................... 254 3 O fim de um sbio .................................................. 259 4 Balano da atividade oral ....................................... 261

    Apndices a esta edio 1 Roteiro doutrinrio de Lon Denis ......................... 264 2 Lon Denis nos Congressos Espritas .................... 265 3 Expresses latinas nas obras de Lon Denis .......... 266 4 Renovao .............................................................. 267 5 Trecho de uma comunicao de Lon Denis,

    obtida em Tours, em 8 de julho de 1927, por incorporao ............................................................. 273

    Glossrio dos principais nomes prprios ................................. 275

  • Prefcio da primeira edio

    O CELD tem a satisfao de trazer a pblico o livro Lon Denis, o Apstolo do Espiritismo sua Vida, sua Obra, de Gaston Luce, o companheiro de difuso doutrinria e amigo pessoal de Lon Denis.

    Com seus exemplos de comportamento ante a vida e princi-palmente diante do movimento esprita vigente na ocasio, Lon Denis no pode ficar longe do conhecimento dos seus atuais leitores, daqueles que amam suas preciosas quo positivas obras doutrinrias.

    Lon Denis, trabalhador com vrias facetas, foi, principalmente, um grande divulgador, que utilizava a oratria e tambm o livro na sua tarefa de divulgao. Convocou inmeras pessoas para o estudo e prticas doutrinrias; consolidou o conhecimento de muitos que iam ouvir, por simples prazer, uma voz consagrada ao bem, conforme os ditames da Doutrina Esprita. Ensinou a muitos, mesmo a homens rudes, como os mineiros vales, que desejavam crer, mas no o conseguiam, justamente porque lhes faltava algum que lhes dissesse com clareza e segurana, e ao mesmo tempo com simplicidade, as verdades espritas que, se por um lado consolam, por outro nos do a certeza de uma outra vida, no mais alm, vida que nos espera a todos. No fora ele considerado um Professor de Confiana?

    Seu trabalho junto aos que, como ele, se consagraram ao Es-piritismo foi de uma beleza sem par. Lon Denis lutou, fez despertar zelos e confiana. Deu tudo de si pela causa esprita.

    O livro, em sua edio original, tem um apndice. Nesta edi-o, fizemos inserir um outro apndice com um ndice onomsti-co; um ndice dos lugares por onde Denis passou; seu ltimo

    Lon Denis aos 50 anos de idade

  • artigo escrito na Revue Spirite e uma comunicao medinica recebida em Tours, em julho de 1927, trs meses depois de sua desencarnao.

    A todos os que, com alegria, contriburam para a edificao deste livro, nossos agradecimentos.

    Altivo Carissimi Pamphiro

  • I

    Prlogo

    A morte de Lon Denis, ainda to recente, deixou um grande vazio nas fileiras espritas do Ocidente e por todas as partes do mundo onde sua obra penetrou.

    Esse vazio no ser preenchido to cedo, no que o talento seja raro em nosso meio, mas porque o prestgio literrio se reveste aqui de mritos verdadeiramente excepcionais.

    Embora o eco da potente voz do apstolo, prosseguindo em sua misso na outra vida, ainda no nos tenha chegado, temos, desde agora, o dever de nos dedicarmos sua obra, na qual sua doutrinao aparece em toda a sua plenitude e seu poder, dela retirando os mais substanciosos ensinamentos.1

    Tarefa mais urgente no existe e nada h de mais reconfortan-te.

    Enquanto numerosos ensaios filosficos se esforam, numa preocupao louvvel, em nos arrancar de um niilismo 2 absurdo e degradante, sem que consigam alcan-lo, os livros de Lon Denis so os libertadores. A f que extramos deles contagian-te, geradora de esperana e de coragem varonil.

    Eis por que tantos leitores de todas as classes sociais e de to-das as regies encontraram nelas virtudes particularmente efica-zes.

    Sem dvida alguma, devemos dar crdito Cincia, desejar o maior xito nas atuais pesquisas da Metapsquica, evitando, porm, repisar os mesmos temas.

    Entretanto, preciso considerar, com o autor de O Grande Enigma, que tudo quanto constitui tema de nossas investigaes j foi registrado, apresentado de maneira perfeita pelos instruto-res da mais remota Antiguidade, e que ns perdemos, em defini-tivo, um precioso tempo, recomeando sempre a mesma tarefa, enquanto que a humanidade vai deriva e mergulha mais pro-fundamente no erro.

  • suficiente reler os livros do mestre Denis para compreen-dermos o sentido de suas repetidas advertncias, entendermos a razo de suas apreenses pelas catstrofes motivadas pelos nossos erros e a nossa insensata cegueira.

    Homens de pouca f, repete ele, juntamente com o Justo, quando, ento, ireis abrir os olhos para a luz, quando, ento, reconhecereis a palavra da verdade?

    A nova revelao que o Espiritismo nos apresenta, alicerada em bases experimentais, , acima de tudo, de ordem moral: eis o que no se pode esquecer.

    O Espiritismo ser cientfico ou no subsistir. Certamente, esta afirmativa excelente, com a condio de

    que no o subordinem a uma cincia vacilante e tmida, com a condio de que ele no se afaste do verdadeiro caminho da alma.

    Lon Denis est entre aqueles que se recusam a subordinar a filosofia, a velha sabedoria humana, somente s regras da expe-rimentao, porque em semelhante domnio no se trata mais de matria tangvel. A concepo exclusivamente mecnica do mundo insuficiente e apenas o testemunho dos sentidos torna-se de flagrante indigncia.

    Assim, no se querendo limitar unicamente aos fatos, volta-se para a mais evidente realidade, a do esprito (razo, conscincia, sentimento), a nica que pode conduzir Causa Primria e liga verdadeiramente o homem ao Universo.

    Concepo religiosa? Se assim o quisermos. Porm, a carac-terstica do homem no a de ser um animal religioso?

    Consciente de sua pequenez, no seio da criao, Lon Denis mantm uma invencvel f na imanente justia, na perfeio das leis eternas, na bondade de Deus. Da sua permanente serenida-de.

    O que caracteriza sua filosofia so os altos voos, o amor ao aperfeioamento. Sua ltima palavra de ordem : Santifica-te! Eleva-te! a vida uma ascenso sempre para mais alto!

  • Uma tal existncia, consagrada exclusivamente busca da verdade, ao estudo e meditao, no deixaria transparecer os aborrecimentos e as inquietaes to comuns.

    Aparentemente tranquila, apenas deixando entrever o drama interior, tal vida lembra mais um rio que flui do que um lago tumultuoso.

    que a fase das tempestades e dos erros est dominada e am-plamente superada pelo apstolo. Ele j se adiantou e marcha resolutamente, adiante de ns, para nos mostrar o caminho.

    Ao descrever sua vida consagrada ao servio de um ideal, de uma causa nobre, voluntariamente negligenciamos tudo quanto no era documento oficial ou testemunho insuspeito.

    O mtodo pode parecer insuficiente, porm, com toda certeza, o menos suscetvel de sofrer deformaes.

    Ao demais, este trabalho deseja apenas fornecer elementos bsicos, ele no pretende esgotar o assunto de uma s vez.

    Conduzindo nossa pesquisa s prprias fontes, entre os papis que o mestre nos deixou, em suas anotaes de viagem e tambm em suas obras, onde ele depositou muito raramente por aqui, por ali, valiosos fragmentos autobiogrficos, conseguimos en-contrar o encadeamento dos mais marcantes fatos dessa longa e bela existncia de beneditino leigo.

    Limitamo-nos, voluntariamente, aos fatos importantes, aos acontecimentos essenciais de sua mocidade, de suas estreias, de seu proveitoso apostolado, de sua laboriosa velhice.

    Reproduzimos, todas as vezes que foi necessrio, as opinies dos seus contemporneos; extramos de sua correspondncia as passagens interessantes, respeitando a maior discrio. Enfim, deixamos a palavra ao orador e ao escritor, em todas as circuns-tncias em que ele desempenhou um papel capital, a fim de que nossa narrativa fosse suficientemente segura e bem viva. Tam-bm ali acrescentamos o nosso testemunho pessoal.

    Que possamos, em nosso desejo de reverenciar to querida memria, ter posto convenientemente em destaque a figura do bom mestre de Tours, o apstolo do Espiritismo, como era denominado o destemido mensageiro da Boa Nova, cujo nome

  • desperta por toda parte no mundo, entre todos aqueles que leram seus livros, um sentimento profundo de reconhecimento e de piedosa venerao, servindo, ao mesmo tempo, a uma causa bela entre todas.

  • II

    Infncia e juventude

    Atribulaes

    Lon Denis nasceu em 1 de janeiro de 1846, em Foug, pe-quena localidade de Toul, atravessada pela grande ferrovia ParisStrasbourg.

    Observa-se que seu nome est includo no do grande iniciador Allan Kardec, que se chamava, na realidade, Hippolyte-Lon-Denizard Rivail. Simples coincidncia, diro uns; analogia pelo menos singular, pensaro outros.

    Seu pai, Joseph Denis, era oficial de pedreiro, como seu ir-mo Louis, seis anos mais velho; e, como o av Franois, este nascido em 1776.

    Arteso pelo lado paterno, a famlia de Lon Denis, pelo lado materno, era de origem camponesa.

    Seu av, Franois Liouville, nasceu em Mnil-la-Horgne, re-gio de Gondreville, onde o av tinha uma propriedade.

    Azares da sorte obrigaram a famlia Liouville a estabelecer-se em Foug, onde Franois passou a exercer a profisso de carpin-teiro, fazendo tetos. Suas duas filhas, educadas na cidade, havi-am recebido uma educao prendada.

    Joseph Denis, de bela aparncia, era ambicioso e seguro de si, apaixonou-se pela filha mais nova de Franois, Anne-Lucie, e pediu-a em casamento. Foi aceito e o enlace se realizou em Foug, a 3 de abril de 1845.

    No ano seguinte, uma criana veio ao mundo. A bem da ver-dade, o jovem oficial de pedreiro comeava a famlia num pero-do bem difcil.

    A construo no andava bem; no se construa mais e a crise deveria prolongar-se por vrios anos.

  • Todavia, Joseph Denis no era homem de desanimar por to pouco: fez-se empreiteiro, procurou estender sua clientela alm de Foug.

    Bastante instvel no trabalho e no tendo, suficientemente, esprito de perseverana, ele sabia mostrar-se resoluto nas ocasi-es excepcionais nas quais no lhe faltavam nem a deciso nem a coragem.

    Suboficial da Companhia de Bombeiros da comunidade, por vrias vezes mostrara provas de coragem, em situaes perigo-sas.

    Foi com esse homem, no destitudo de qualidades, mas um pouco rude nos hbitos, que se unira a meiga Anne-Lucie, de natureza delicada e carter sensato e discreto.

    Para o filho, que lhe viera to cedo, ela se tornou a mais terna e mais vigilante das mes.

    Havia, diante da humilde casa paterna, um regato, onde um aude lanava suas guas.

    O pequeno Lon olhava, invejoso, os patos que ali nadavam em fila. Por mais de uma vez, burlando a vigilncia materna, foi v-los nas guas do riacho.

    Quando suas pernas conseguiram suportar caminhadas mais longas, com 7 ou 8 anos, seu av Franois, antigo soldado de Napoleo, o levava algumas vezes aos bosques vizinhos, no inverno, para caar com armadilhas. Os dois caadores podiam ser vistos conversando debaixo das rvores...

    O garoto tinha seus 9 anos quando Joseph Denis foi obrigado a deixar suas empreitadas para buscar seu ganha-po noutras plagas.

    A Igreja de Bayonville foi a ltima obra onde ele trabalhou. Fixou-se com sua famlia em Strasbourg e foi l que abandonou sua profisso, definitivamente, para entrar como empregado na Casa da Moeda.

    A vida da famlia se tornou bem difcil, porm era uma situa-o provisria. Uma pessoa influente f-lo ver que poderia eventualmente conseguir um emprego na Estrada de Ferro, pois

  • faltava pessoal no Sul. Era s tentar e aguardar a ocasio prop-cia.

    Foi ento, em Strasbourg, na escola particular do Sr. Haas, que o pequeno Lon iniciou seus primeiros estudos. Sua me j lhe havia ensinado os rudimentos do alfabeto e tambm a contar.

    Os alunos do velho professor eram bastante turbulentos e ha-via mesmo, na escola, uma animosidade surda entre dois grupos rivais.

    A agressividade secular que no para de opor em um duelo implacvel os alemes aos gauleses comeava a se fazer presente entre os moleques confiados ao professor Haas.

    Logo que as aulas terminavam, e estando longe da temvel palmatria, os grupos adversrios se formavam.

    Welches, welches sujos!, gritavam de um lado com a ex-presso do mais completo desprezo, no que eram respondidos pela outra horda: Swaabs, swaabs!. E as pedradas choviam...3

    O pequeno loreno poucas lies aproveitou com o bravo pro-fessor.

    Abrindo-se uma vaga na Casa da Moeda de Bordeaux, seu pai conseguiu transferncia para essa cidade.

    Nova mudana e novas despesas. O salrio do chefe de famlia era insuficiente para manter a

    casa. Lon teve que interromper seus estudos para acompanhar seu pai e ajud-lo em seu trabalho de polimento das moedas.

    O pobrezinho esforava-se ao mximo nesse ingrato trabalho: seus delicados dedos se tingiam de sangue para descolar as lminas de cobre. Entretanto, as poucas moedas que conseguia ajudavam a melhorar o magro ordenado paterno.

    Em maro de 1857, a Casa da Moeda terminou a refundio das moedas de cobre e Joseph Denis empregou-se na Companhia das Estradas de Ferro do Sul. Aps curto estgio como carteiro da estao de Bordeaux, conseguiu o emprego desejado: estava nomeado chefe da estao de Morcenx, em Landes.

    A famlia ia achar um abrigo menos precrio. No era uma tima situao, certamente, porm bastava para assegurar as

  • necessidades da casa. Alm disso, abrir a perspectiva de uma vida mais estvel, o que era do agrado da Sra. Denis. Finalmente, seu pequeno Lon poderia recomear seus estudos interrompi-dos. Essa era a sua grande preocupao.

    O movimento da estrada de Bayonne se restringia apenas a alguns trens por dia.

    Locomotivas barulhentas e resfolegantes puxavam vages, lanando uma negra fumaa cheia de fascas que, muitas vezes, incendiavam o pinheiral.

    Nessa buclica solido, onde apenas a passagem dos trens fa-zia alguma animao, o menino se entregou corajosamente ao estudo, recebendo as lies do professor da localidade.

    Suas repetidas mudanas atrasaram seus estudos, porm rapi-damente se recuperava.

    Sua inteligncia brotava precocemente, revelando uma extra-ordinria vivacidade.

    Os conhecimentos que seu novo professor lhe transmitia lhe abriam inesperados horizontes.

    A floresta de Landes, impressionando sua nascente sensibili-dade, complementava os ensinos dos livros.

    O professor de Morcenx, discpulo de Jean-Jacques Rousse-au, inaugurando um excelente mtodo, levava frequentemente os alunos a passeios.

    Denis deveria guardar por toda a sua vida uma lembrana emocionante dessas lies, em plena natureza, desse contato com as coisas, desse proveitoso trabalho ao lado de professor dedica-do e conhecedor seguro de sua tarefa.

    Infelizmente, a fase das peregrinaes ainda no terminara para a famlia Denis.

    O chefe da estao de Morcenx trocou cedo seu posto pelo da estao de Moux, na estrada do Sul.

    Era uma promoo. Como recus-la? Moux a estao antes de Lzignan, na direo de Narbonne. Nova adaptao ao meio e nova parada nos estudos.

  • Depois da solido de Landes, no meio dos pinheirais aromti-cos, agora o corredor poeirento do Languedoc, a animao barulhenta da grande estrada de ferro do sul, onde os trens se sucediam em curtos intervalos. A vigilncia do chefe da estao no devia facilitar um s instante.

    Apesar de ser, no fundo, uma boa pessoa, o chefe da estao de Moux no correspondia s exigncias de sua funo, regula-ridade de um trabalho para o qual no estava preparado, no tinha a pontualidade ou a vigilncia necessria.

    Sua esposa mal dissimulava sua preocupao. Felizmente, o pequeno Lon supria as falhas do pai. Deixando mais uma vez seus queridos livros, iniciou-se logo no manejo do brguet 4 e era ele quem tomava conta dos telegramas e da contabilidade.

    Apesar de toda a sua dedicao, a estao de Moux foi teatro de alertas perigosos.

    Certa passagem de um trem expresso, ocorrida acidentalmen-te com um atraso que no era comum, lhe dava calafrios na velhice, ao se lembrar do fato.

    Contou-nos, entre muitos outros, um caso engraado de sua vida de ferrovirio infantil, quando sua presena de esprito evitou para seu pai uma punio que lhe teria produzido graves consequncias.

    Certo dia, o expresso da manh, que normalmente no parava na estao de Moux, parou para desembarcar um inspetor da estrada. Este perguntou logo pelo chefe. Nada do chefe.

    Por felicidade, Lon estava presente, mas no sabia onde se encontrava o pai. Que fazer? Seria uma punio em perspectiva e talvez a demisso.

    Avistando ento um carregador no meio de um grupo de tra-balhadores descarregando mercadorias, o rapaz disse:

    Meu pai? e estendendo a mo na direo do grupo ele dirige o carregamento daquele vago.

    O inspetor, achando em ordem os papis, voltou para o seu trem, que partiu. Ainda uma vez, na estao de Moux, passou-se por um susto.

  • Definitivamente, Joseph Denis no tinha vocao para o pos-to e em 14 de outubro de 1862 se demitiu.

    Na poca, se construa a linha frrea de Montluon a Limo-ges. Ele pediu e obteve um lugar de chefe de obras, tendo depois obtido a superviso de outros trabalhos ferrovirios, alm de mais alguns menores, na linha de Tours a Vierzon.

    Em Tours

    Dessa vez, a famlia Denis veio se fixar em Tours, definiti-vamente. Transferida, empurrada para c e para l, desde a sada de Foug, ela iria encontrar, finalmente, nessa cidade uma estabi-lidade ardentemente desejada pela me e pelo filho. No entanto, os meios de subsistncia continuavam precrios.

    O adolescente que, na estao de Moux, mantinha os registros com sua bela letra e manejava o telgrafo, teve, como em Borde-

    FAMLIA LIOUVILLE

    LIOUVILLE, Franois Nascido em Mnil-la-Horgne, em 1792, esposo de Rosalie Serrier

    FAMLIA DENIS

    DENIS, Franois Nascido em Foug, em 1776, esposo de Barbe Vaudeville

    LIOUVILLE, Emlie, 1817,

    esposa de Crancier, Claude

    LIOUVILLE, Anne-Lucie, 1820, esposa de

    Denis, Joseph

    DENIS, Joseph, 1814, esposo de Liouville, Anne-Lucie

    DENIS, Louis, 1808, esposo

    de Mercier

    DENIS, Eugne Nascido

    em Foug, em 1850

    CRANCIER, Henri-Sbastien

    Nascido em Foug, em 1840

    DENIS, Lon Nascido em Foug, em 1846.

    Falecido em Tours, em 12 de abril de 1927

    rvore genealgica de Lon Denis

  • aux, de se dedicar a trabalhos braais, para os quais no tinha condies fsicas.

    Aos 16 anos escreveu ele , numa faencerie 5 de Tours, eu carregava s costas os cestos com os produtos quando eram retirados do forno.

    Como isso satisfaria seus projetos, ele que, ardendo de vonta-de de se instruir, apaixonado pela leitura, pelo estudo, j havia demonstrado disposies excepcionais em cada domnio do saber que pudera abordar? Na impossibilidade de fazer melhor, fre-quentava as aulas noturnas de uma escola da vila.

    Um desenho da poca, achado entre seus papis feito com uma rara perfeio traz sua assinatura, com uma referncia; aluno do curso de adultos do Sr. Grujon.

    Exercitava-se, ao mesmo tempo, em trabalhos de cartografia, que fazem supor que ele desejava fazer algum concurso para entrar na administrao da estrada de ferro.

    Esses trabalhos, excelentes sob todos os pontos, atestam uma segurana de trao, fino e leve, e um acabamento difcil de ser superado.

    Vemos a, parece, o indcio incontestvel de disposies ina-tas e de secretas preferncias. Tudo o atraa para os estudos geogrficos. Sem dvida, j sonhava com viagens e longas excurses.

    No deveria manter essa preferncia por toda a vida e procu-rar nos mapas do estado-maior os segredos que no estavam nos livros?

    Foi nessa poca que nosso estudante solitrio alimentou um desejo que h muito tempo estava em seu corao: adquirir, com seus prprios recursos, a Geografia Universal de Malte-Brun, que era publicada em fascculos, ilustrados por Gustave Dor.

    Para tanto, sem revelar a ningum porque poderia ser cen-surado por sonhar em fazer uma tal despesa com um livro passou a economizar as gratificaes que recebia a mais, de seu pequeno salrio, a fim de obter a importncia necessria para a compra.

  • Suas economias cresciam lentamente, lentamente, at que, um dia, sua me descobriu o esconderijo e, sempre em dificuldades, lhes deu um destino mais imediato.

    A boa mulher jamais percebeu o real desgosto e a desiluso que aquele sumrio confisco havia causado a seu filho.

    Entretanto, nenhuma decepo, nem mesmo a tarefa diria e os trabalhos cansativos, que sobrecarregam os msculos e esva-ziam o crebro, chegavam a desanimar o jovem em sua vontade de se instruir.

    Sem dvida, seus pais o encorajavam, porm a nsia do saber estava nele, bem como essa fora soberana que dirige os mpetos da personalidade o mesmo impulso que do gro faz surgir o broto, depois a rvore poderosa que se cobre de verdor e de flores.

    Assim, desde que o jovem operrio tinha um momento livre, dedicava-se a seus caros estudos, apaixonada e alegremente, completando por seus prprios esforos uma instruo fragmen-tria, cujas lacunas bem conhecia.

    Da faencerie de Saint-Pierre-des-Corps, passou a trabalhar numa outra casa comercial, mais perto de sua residncia e onde o trabalho era mais bem remunerado. Trabalhava no escritrio, o que no o poupava dos rudes misteres manuais.

    Carregava as peles, nas horas de aperto confiou-nos ele , ou manejava a marguerite, grossa pea de madeira para amaciar o couro. 6

    Seu pai acabara de obter da Administrao das estradas de ferro uma aposentadoria mnima e s se ocupava com suas fiscalizaes de trabalho muito irregularmente.

    Nessa poca, recaiu, em parte, sobre seus ombros a obrigao de atender s necessidades de seus pais, que j estavam velhos, e para isso se entregava a trabalhos constantes, com uma energia sem esmorecimento.

    Obrigado a ganhar, durante o dia, meu po e o de meus velhos pais disse ele , consagrei muitas noites ao estudo,

  • a fim de completar meus conhecimentos e da data o enfra-quecimento prematuro de minha vista. 7

    Na Casa Pillet uma das empresas de couro mais importantes da regio central logo observaram a viva inteligncia e os excepcionais mritos do jovem empregado. Agora ele se ocupava com a correspondncia e a contabilidade. Fazia os registros nos livros com sua impecvel caligrafia. Iniciava-se nas questes do comrcio de couros.

    Desempenhando suas tarefas de dia, alm de seus estudos, o adolescente abordava a Geografia, a Histria e as Cincias Naturais, negligenciando o campo das Matemticas onde poderia brilhar.

    Ocupava-se tambm com outras reas do pensamento, inter-rogando os filsofos e a si mesmo, com uma certa inquietude. Desde ento, o enigma da vida se apresentava ao seu esprito com uma fora imperiosa e ele no era homem de se curvar diante do dogma do que no pode ser conhecido.

    No temos necessidade de qualquer esforo para compreen-der a razo dessas preocupaes, to excepcionais num jovem daquela idade. Lon Denis, por natureza e por necessidade, preocupava-se com problemas que, normalmente, o homem s aborda muito mais tarde. Porm, em comparao com os hbitos correntes, ele j no estava margem de seus concidados?

    Nos anos mais ingnuos, em que os jovens, comumente, fi-cam perto da mulher amada, do puro amor, ou buscam os praze-res fceis, nosso estudante s possua tempo para a mais austera das amantes, a que se consegue sob a luz da lmpada, atravs das pginas dos livros: a sabedoria.

    S ele sabia custa de quantos esforos, de quantas dificul-dades, de quantas vacilaes inevitveis e, tambm, de quantas duras contrariedades, conseguia construir, pedra por pedra, o edifcio de seu vasto a profundo saber.

    No entanto, fcil imaginar a perseverana de seu labor du-rante essa rude etapa da sua vida.

  • Uma tal aquisio, contida por um esforo exclusivamente pessoal, ganha, felizmente, em fora e em profundidade o que possa perder em brilho e em burilamento.

    No teve outros mestres, alm dos conselheiros invisveis que, sem dvida, tinham seus olhos sobre ele.

    Se, como o quer Plato, aprender recordar, Lon Denis re-cordava com um encantamento constantemente renovado.

    Contemplativo e amante da Astronomia, desenhava mapas do cu. Nesse campo virgem de uma inteligncia excepcionalmente receptiva, a semente frutifica com uma facilidade surpreendente; nessa memria fresca, mas j experiente, as menores noes se imprimem com admirvel destaque.

    Entretanto, notamos que existe nele uma inquietude que o es-tudo no consegue acalmar.

    O problema que, geralmente, o homem s enfrenta nas horas de agonia ou de doena grave, e que logo se esfora para esque-cer, assim que o destino lhe sorri de novo ou que a sade lhe volta, Lon, de imediato, alcana a sua importncia capital.

    O homem se lana ao prazer, embriaga-se de sensualidade, para fugir ideia da morte, sem jamais conseguir esquivar-se dessa lembrana, pois, no fundo, ele se d conta de que essa uma questo essencial.

    Que a sabedoria? aprender a morrer, diz Plato. Que a vida? uma meditao da morte, afirma Sneca. Assim, o jovem estudante ataca de frente o enigma sobre o qual tantas e to altas especulaes se chocam, sem lograr decifr-lo.

    Eu j havia passado pelas alternativas da crena catlica e do cepticismo materialista, mas no encontrara em ne-nhuma parte a soluo do mistrio da vida. 8

    Uma de suas grandes alegrias infantis, quando ainda aluno, era contemplar nas vitrines das livrarias as belas encadernaes dos livros premiados e as imagens de pinal cujas legendas percorria da primeira ltima linha.9

  • Conservara esse hbito e parava de bom grado mais frequen-temente diante de vitrines cheias de livros do que diante das confeitarias.

    Certo dia tinha ento 18 anos o acaso, que por vezes tra-balha bem, chamou sua ateno para um livro de ttulo inusitado e perturbador. Era O livro dos Espritos de Allan Kardec. Provi-dencial encontro.

    Adquiri logo o livro disse ele e lhe assimilei o con-tedo. Encontrei nele uma soluo clara, completa, lgica do problema universal. Minha convico se firmou. A teo-ria esprita dissipou minha indiferena e minhas dvi-das. 10

    O instrutor acabava de encontrar seu discpulo. Cabe aqui um episdio engraado que vale relatar, porque revelador da perfeita sintonia de pensamentos que havia entre a Sra. Denis e seu filho. Damos a ele a palavra:

    Li o livro com avidez, escondido de minha me, que controlava, desconfiada, minhas leituras. Ela havia desco-berto meu esconderijo e, por sua vez, lia essa obra na mi-nha ausncia.

    E acrescenta: Ela se convenceu, como eu, da beleza e da grandeza

    dessa revelao. 11 A moda, ento, eram as mesas falantes.

    (...) o entusiasmo era geral e, nenhuma festa, nenhuma reunio ntima terminava sem algumas experincias desse gnero. 12

    Emile de Girardin iniciava, em Guernesey, a famlia de Vic-tor Hugo; Vacquerie recolhia as observaes que devia publicar, em Les Miettes de lHistoire; Eugne Nus, em sua casa, na Rua de Beaune, recebia, na companhia de homens de letras e de artistas clebres, atravs de sua famosa mesinha (guridon), comunicaes de um significado filosfico profundo, a maior parte publicada em Grandes Mistrios e em Coisas do Outro

  • Mundo; Victorien Sardou e Thophile Gautier escreviam peas e novelas espritas.

    Mdiuns clebres eram convidados para dar sesses nas Tu-lherias. Em Tours, como em Paris, e em numerosas outras cida-des, crculos de estudo eram constitudos, abordando sem uma preparao adequada os fenmenos perturbadores do psiquismo.

    A cidade de Tours foi uma das primeiras, na Frana, a conhe-cer o Espiritismo. Desde 1862, ela possua um grupo presidido pelo Dr. Chauvet, autor de um livro intitulado Esprit, Force, Matire, refutao cerrada contra Bchner. Desse grupo faziam parte, entre outros, o advogado Normand e o procurador Noir-mant.

    O jovem empregado, por causa de sua pouca idade e falta de tempo, no podia frequent-lo. Isso no o impedia de seguir, como os outros, essa corrente com apaixonante curiosidade. Ele mesmo fez experincias, juntamente com alguns amigos interes-sados nessas questes.

    Como tantos outros disse-nos ele , eu procurei pro-vas, fatos precisos que confirmassem minha f, porm es-ses fatos demoraram em vir.

    De incio, insignificantes, contraditrios, misturados com embustes e mistificaes, estiveram longe de me satisfazer e eu teria renunciado, de uma vez por todas, a qualquer in-vestigao, se no estivesse sustentado por uma teoria sli-da e princpios elevados.

    E acrescenta estas palavras, que os verdadeiros espritas apre-ciaro:

    Parece, com efeito, que o Invisvel quer nos provar, medir nosso grau de perseverana, exigir uma certa maturi-dade de esprito, antes de nos revelar seus segredos. 13

    Lon Denis se encontrava nessa fase de seus trabalhos e pes-quisas, quando um acontecimento importante se produziu em sua vida. Allan Kardec tinha vindo passar alguns dias em casa de amigos e todos os espritas de Touraine tinham sido convidados para cumpriment-lo.

  • Tnhamos alugado disse ele para receb-lo e ouvi-lo, uma sala, na Rua Paul Louis Courrier e havamos solici-tado Prefeitura a autorizao para a reunio, pois, no Im-prio, uma lei severa proibia qualquer concentrao com mais de 20 pessoas.

    Entretanto, no momento aprazado pela assembleia, uma recusa formal nos foi comunicada.

    Fui encarregado de ficar porta do local, para prevenir os convidados, a fim de se dirigirem para a Spirito-Villa, na casa do Sr. Rebondin, na Rua du Sentier, onde a reunio se faria no jardim.

    ramos bem uns 300 ouvintes, em p e apertados uns aos outros, apinhados sob as rvores, pisando nos canteiros de nosso hospedeiro.

    Sob a claridade das estrelas, a voz suave e grave de Allan Kardec se elevava, e sua fisionomia meditativa, iluminada por uma pequena lmpada colocada sobre uma mesa, no centro do jardim, produzia um aspecto fantstico.

    Ele nos falava sobre a obsesso, que era um assunto em voga. Foram-lhe feitas perguntas s quais respondia com fisionomia sorridente.

    Os canteiros do Sr. Rebondin ficaram bem pisoteados, mas cada um levou dessa noite uma inesquecvel lembran-a.

    No dia seguinte, retornei Spirito-Villa para fazer uma visita ao mestre; encontrei-o sobre um pequeno banco, jun-to a uma grande cerejeira, colhendo frutos que atirava para a Sra. Allan Kardec cena buclica que contrastava ale-gremente com esses graves acontecimentos. 14

    Decorria o ano de 1867. Ele devia rever Kardec mais duas vezes, em sua casa, na Rua Sainte-Anne, em Paris, depois em Bonneval, onde o grande instrutor tinha usado a palavra para os espritas de Eure-et-Loir e de Loir-et-Cher.

    Foi aps a passagem do mestre que se fundou, em Tours, o grupo da Rua du Cygne, do qual Denis se tornou secretrio. O

  • Dr. Aguzoly, os senhores Rebondin e Page, e os irmos Huault eram seus principais membros.

    L, os fenmenos ainda foram bastante medocres. As mensagens obtidas pela escrita, as manifestaes de or-

    dem fsica pareciam mais animismo do que interveno dos espritos. Pessoas, pertencentes a outros grupos, sofriam obses-ses bastante graves.

    Compreendi a acrescenta ele como perigoso en-tregar-se experimentao esprita sem preparao, sem proteo eficaz, e esses exemplos me tornaram reservado em tais matrias.

    A guerra

    Foi ento que a guerra de 1870 veio pr um fim a essas preo-cupaes. Lon Denis j estava com 24 anos.

    Apesar de dispensado do servio militar, por causa de sua vis-ta j abalada, mas estando a ptria em perigo, prontificou-se a atender ao apelo das armas.

    Logo aps as desastrosas batalhas do comeo da guerra, o governo recorreu ao recrutamento de soldados nos departamen-tos que ainda no estavam ameaados pela invaso alem.

    Lon Denis juntou-se, em La Rochelle, aos jovens solteiros do 26 Corpo do Exrcito em formao.

    Foi logo promovido a sargento, no 1 Batalho da 1 Legio da Guarda, mobilizada em Indre-et-Loire, depois subiu rapida-mente de posto, como se tivesse j exercido essa profisso.

    Em 15 dias, aprendi o manejo das armas e as instrues do peloto, de modo a servir de instrutor para os quadros de meu batalho. Dentro de 6 meses passei a sargento, tor-nei-me, sucessivamente, suboficial, subtenente e continua-ria sendo promovido, se a paz no tivesse sobrevindo.

    Em ltimo lugar, desempenhava com autoridade a funo ab-sorvente de major-ajudante, como recordam seus velhos camara-

  • das de armas. Com sua jaqueta azul-marinho, rosto quase imber-be, o tenente Denis nos aparece, numa foto da poca, tal como gostamos de o relembrar: queixo altivo, ar grave e resoluto, homem responsvel, antes de tudo. Porm, nada de dureza debaixo dessa austeridade.

    Sabemos, pelo testemunho dos antigos, que sua pontualidade no servio e o escrupuloso cuidado em executar as ordens no alteravam de forma alguma a simplicidade de suas maneiras, sua urbanidade sorridente, seu humor inaltervel, apimentado com uma ponta de malcia gaulesa de cunho muito pessoal.

    Acrescentemos que, alm de suas funes ativas, era respon-svel pelo registro das despesas da cantina dos oficiais de seu batalho. Como furriel,15 eles no podiam ter feito uma escolha melhor. No faltava trabalho para o tenente Denis, no campo de Dompierre.

    Alojado em Chagnolet, aps o trmino do servio, poderia procurar distraes em La Rochelle, onde numerosos camaradas levavam vida muito alegre. Entretanto, tais divertimentos no eram capazes de satisfaz-lo; para ele o trabalho, para os outros o prazer. De resto, j no tinha o secreto pressentimento da tarefa que o aguardava?

    O acaso quis que, mesmo em Chagnolet, a questo esprita fosse novamente objeto de suas preocupaes imediatas. Durante alguns dias, esteve alojado em uma enorme e antiga casa, situada nas proximidades do campo militar. Ora, essa casa era mal-assombrada, sendo impossvel dormir nela.

    Um sargento da minha companhia era mdium escre-ve ele ; conduzi-o para essa casa, numa noite de inverno, e nos colocamos ambos em torno de uma mesa, buscando descobrir o segredo dessas manifestaes. A mesa foi logo agitada, depois foi virada por uma fora irresistvel.

    Quebraram-se os lpis e rasgou-se o papel. Pancadas re-percutiam nas paredes; rudos surdos se faziam ouvir. De repente, a luz se apagou. Um balano mais forte que os precedentes fez tremer a casa, depois se perdeu ao longe, no silncio da noite. Antes de deixarmos essa casa mal-

  • assombrada, soubemos que ela havia sido palco de san-grentos acontecimentos. 16

    Denis procurou um local mais sossegado. Tendo-o encontra-do, convidou o sargento-mdium e alguns colegas e comearam a fazer experincias. Era fevereiro de 1871. Perguntava-se, com ansiedade, o que iria acontecer, no findar da guerra, com o pas dominado, merc dos alemes.

    Aps os combates de Monnaie, o inimigo estava s portas de Tours e os convocados de Indre-et-Loire tinham pedido, em vo, ao general comandante do campo de Compierre para colabora-rem na defesa de sua cidade. A partida, porm, estava perdida. A queda do imprio era iminente.

    Em Chagnolet, no quarto do tenente Denis, torcia-se com en-tusiasmo por uma Repblica liberal, que se pressentia estar prxima.

    A liberdade, a fraternidade, a volta s tradies dos grandes princpios revolucionrios iam, sem dvida, fazer retornar a concrdia nacional e abrir para a Europa inteira uma fecunda era de paz.

    No dia 24 o grupo recebeu a seguinte comunicao: A Alemanha e a Frana aguardam com ansiedade o re-

    sultado das negociaes; esperam a hora da to desejada paz, quando todas as famlias iro saber quais os que faltam ao chamado do corao de uma me ou de um irmo, os quais amaldioaro, em ambas as naes, os tiranos que lhes roubaram seus arrimos e suas nicas esperanas.

    Ento precisareis aproveitar a ocasio para esclarecer vossos irmos. Fazei-os ver a grandeza de Deus. Orai, con-solai o sofrimento. Numa palavra, fazei o bem.

    No dia 28 houve uma mensagem sobre os mundos celestes, terminando com a frase proftica, que levou meio sculo para se concretizar:

    Meus amigos, um acontecimento solene se realiza ago-ra, segundo o desejo dos homens. a paz, que acaba de ser assinada, e dentro de poucos dias vossas famlias vos abra-

  • aro. Dentro de poucos anos a Prssia, por seu turno, ser derrotada e humilhada. Orai, orai.

    Estava assinada: Lamennais.

    O Grupo da Rua du Cygne

    As reparaes de guerra impostas pela Alemanha no haviam abalado a vida do pas. Apesar da derrota, os negcios reconquis-taram, pouco a pouco, seu curso normal.

    Lon Denis retornou Casa Pillet para retomar suas funes interrompidas pela guerra. Seu pai havia deixado por completo de trabalhar. Era o filho quem devia agora assumir a responsabi-lidade de sustentar seus velhos pais.

    Entretanto, a Frana humilhada, diminuda aos olhos do mundo, embora com a honra salva, atravessava uma crise interna dolorosa.

    A tormenta assolou o imprio, mas o pas, desamparado, pre-ocupado com seu destino, estribava-se na ordem moral. As ideias republicanas esforavam-se para abrir um caminho. Filho do povo, generoso por natureza e apaixonado pela justia, o ex-tenente resolveu contribuir com todos os seus recursos.

    Servido por um dom natural de comunicao, ele se dedica oratria. Orador aplaudido na Loja Manica dos Demfilos, assume papel importante.

    Muito responsvel em seus trabalhos materiais, tendo a confi-ana de seu patro, que aprecia seus mritos e o tem em grande estima, ele se dedica ao estudo com uma energia redobrada.

    O grupo da Rua du Cygne estava reforado com um novo re-cruta notvel: o capito Harmant antigo comandante do setor da Porta de Saverne, em Strasbourg, agora arquivista do 9 Corpo e as sesses recomeam com uma nova animao, na casa do Dr. Aguzoly, que tinha uma curiosa faculdade de vidn-cia.

  • Sabe-se que todo mdium possui dons especiais que no se assemelham exatamente aos de nenhum outro. No estado de transe, o Dr. Aguzoly revivia, com notvel clareza, cenas do passado e descrevia suas vises com traos caractersticos, que lhes davam um extraordinrio relevo.

    Sob sua influncia, Lon Denis, que j era mdium escreven-te, torna-se tambm mdium vidente. Reconstitui, no estado de viglia, cenas impressionantes da Histria medieval e da Histria antiga.

    Um certo nmero desses quadros so, segundo indicaes de seu guia, relativos a vidas anteriores.

    Ento, chefe guerreiro de uma tribo franca, exorta seus guer-reiros para uma matana de gauleses; depois, revive episdios de sangrentos combates, como filho de um clebre viking.

    Fato extremamente curioso, ele descreve, com o Dr. Aguzoly, os mesmos quadros, as mesmas cenas, e essas cenas e quadros se sucedem no decorrer de uma s reunio, como um filme cinema-togrfico.

    E essas narrativas de selvagem crueldade se alternam com comunicaes de espritos familiares, com mensagens de serena filosofia, com exortaes afetuosas de Sorella, a Egria, isto , a conselheira do grupo.

    Ela tranquiliza, reconforta seus amigos inquietos, ansiosos pelo rumo que tomam os acontecimentos do aps-guerra e da revolta.

    Aps dar a seus amigos judiciosos conselhos a propsito da conduta a manter durante as revolues sociais que se anuncia-vam, Sorella os anima ao labor:

    Aps a noite vir o amanhecer. Ento soar para vs a hora solene quando devereis elevar vossa voz inspirada e espalhar em vosso derredor as preciosas doutrinas que vos foram confiadas como um sagrado depsito.

    Sabei conservar esse valioso depsito, fazei-o frutificar em vs, porque prestareis dele conta rigorosa. Mas vs no perdereis o fruto de vossos estudos e de vossos trabalhos e

  • sabereis devolver aos outros o que vos tiver sido empresta-do.

    Agora preparai-vos para as tempestades; enfrentai-as se-renamente; elas passaro, porque nada faro contra vs.

    Cabe a vs vencer a tempestade; somente a fora de vos-sa alma vos proteger. Se souberdes vos conduzir nas tre-vas, no vos faltar o apoio dos espritos para venc-las completamente. Esperana e coragem. 17

    Sorella o gnio bom, sempre disposto a assisti-los em seus estudos e suas pesquisas. uma irm e uma diretora de consci-ncia. Suas instrues e revelaes, porm, devem ter um fim til.

    Eu vos fiz conhecer estas coisas a fim de que compre-endais quanto vos deveis sentir fortes em face das provas terrenas; prevenidos, devidamente, para o combate, pode-reis lutar contra os maiores perigos; sendo mais favoreci-dos, mais se vos exigir. Trabalhai, pois, por vs e vossos irmos; sede bons, benevolentes para com todos.

    Consolai os que sofrem; socorrei os que tm fome. Nes-sas condies, podereis entrar no Reino de Deus. 18

    Certo dia, uma notcia lhes foi dada pelos amigos invisveis. Durand, o esprito guia, avisou-os de que uma surpresa lhes estava reservada e que no deviam se assustar, mas aguardar em silncio e ficar atentos.

    O doutor adormeceu e a campainha soou violentamente; pan-cadas bateram na parede.

    Lon Denis e o capito notam, distintamente, uma forma hu-mana cujos contornos podiam observar, quando passava diante da janela iluminada; a sombra se dirige lentamente para a porta do salo, onde estaciona um pouco, depois desaparece pela parede.

    Relatando o fato, Lon Denis acrescenta: Coisa singular. No havia nenhuma mediunidade em

    jogo; se houve influncia fludica, no sentimos. Os espri-tos guias nos disseram a seguir que se serviram de um esp-

  • rito bem inferior, que eles haviam ajudado com todo o seu poder, extraindo os elementos de materializao dos flui-dos ambientais, a fim de fortalecer nossa convico na rea-lidade do Espiritismo. 19

    As proveitosas sesses da Rua du Cygne deviam realizar-se semanalmente at 1877.

    Na noite de 31 de dezembro de 1872 para 1 de janeiro de 1873 houve um outro importante acontecimento. Uma numerosa assembleia de espritos encheu, de repente, a sala cujas paredes e o teto se cobriram de centelhas fludicas.

    O Dr. Aguzoly os reconhece e os designa por seus nomes e caractersticas, depois o fiel Durand (o esprito guia) fica s, para revelar ao mdium a histria de Philippine, seu anjo guardio, que lhe aparece pela primeira vez. Sorella o acompanha, Sorella, a conselheira e amiga ainda misteriosa de Lon Denis.

    Depois retornam os quadros histricos, alternando-se com as instrues e diretrizes. Apenas como exemplo, eis uma das cenas descritas, que escolhemos por ser curta:

    Cena de guerra, no Cucaso. Encontramo-nos suspen-sos, o doutor e eu, num caminho talhado na rocha, depois a vereda termina, de repente. S podemos escalar a monta-nha com grande dificuldade, pisando com muito cuidado nas salincias das pedras. Chegamos; uma pedra que nossa fora fez balanar e que rolou sobre si mesma nos mostra a entrada de uma escada talhada na rocha; ns a subimos e penetramos numa gruta imensa, cheia de estalactites.

    No meio, em cima de uma pequena mesa, estava um grosso livro. Um esprito, sob a aparncia de um velho, ne-la se apoiava; calvo, grande barba branca, olhos profundos.

    Aproximai-vos, meus filhos disse-nos ele , eu vos esperava.

    Fala-nos de uma revista, que logo deixar de circular; e de uma publicao mais forte e mais sria que a substituir.

  • Aqui disse ele chegam, por um sistema eltrico que ainda no conheceis, notcias de todas as publicaes espi-ritualistas da Terra; sou como que seu relator.

    Ele nos anima a trabalhar, anuncia que mais tarde uma nova cincia ser revelada aos homens e que poderemos ajudar na sua divulgao.

    Recusa-se a dizer quem ; um dia ns o saberemos. curioso achar aqui, como em outras pginas do caderno de

    anotaes ntimas, uma ilustrao da tese teosfica, afirmando a existncia dos grandes instrutores espirituais do Budismo.

    Em outros quadros de um relevo extraordinariamente preciso se reconstituem, diante dele, aos pedaos, os episdios mais marcantes de existncias anteriores. Assim se esboa, toma forma e se anima, em breves aparies, um quadro muito suges-tivo, bem palpitante de movimento e de vida.

    Por vezes, na companhia do doutor, visitam o Vesvio, voam sobre a plancie romana, assistem a uma exibio no Scala, de Milo, participam de uma festa veneziana, sobre as guas, na poca dos Doges.

    Reunidos em determinado momento, em companhia de seus guias, em certas encruzilhadas do tempo, por um destino comum, eles se separam, sem jamais se abandonarem, para mais tarde se reencontrarem numa outra fase de uma nova existncia.

    Porm, que tristeza! Do sonho realidade, que contraste do-loroso! Do cenculo dos grandes espritos, dos passeios deslum-brantes aos mundos maravilhosos, preciso voltar rotina da vida quotidiana, s exigncias imperiosas de um labor cansativo e sem repouso.

    Em torno de Denis, por toda parte, mesmo em sua famlia,20 o ambiente de incompreenso, hostilidade e sarcasmo, relativa-mente s ideias que lhe so caras. Ele j padece de deficincia visual, e uma ocluso intestinal mal curada, ao voltar de La Rochelle, deixou-lhe perturbaes digestivas.

  • O trabalho que deveria enfrentar no teve interrupo. Feliz-mente, o anjo consolador vela por ele, atento e fiel, dando-lhe o blsamo de que tanto necessita, reconfortando-o e animando-o.

    Venho ao teu chamado. Por que duvidas de mim? Bem sabes que estou sempre pronto a te dar assistncia e a te sustentar com meus modestos conselhos.

    Caro amigo, imerso na tristeza, quantas vezes afliges meu corao! Queria ver-te mais confiante e mais resigna-do. Para atravessar os sombrios dias da vida preciso cora-gem e perseverana; preciso segurar sua alma com ambas as mos, se assim me posso expressar, e marchar resoluta-mente pelo caminho traado.

    Nada temas, porm. Os motivos que te fazem duvidar do futuro so quimricos; deixa de lado essas apreenses; a vida te ser suportvel, do ponto de vista material. A luta ser de ordem moral.

    Coragem, pois, e prepara-te, porque o momento vir, tal-vez bem cedo. Tem confiana em mim. Sabes que s sus-tentado, que guias e numerosos amigos te assistiro e te a-conselharo nas horas de luta.

    Ele indaga se os sonhos incrveis que tem tido so mais do que imaginao.

    Sim, amigo, uma lembrana dos tempos passados, dos tempos em que vivamos juntos e quando comeamos a en-trever a serena verdade. Esses tempos j esto longe de ns.

    No o passado que preciso contemplar; o futuro, o futuro que desdobrar seus ntimos recnditos plenos de provas, de desfalecimentos e de combates, mas cheios tam-bm de progressos, vitrias e deslumbramentos.

    Coragem, pois, amigo! Estou perto de ti, derramando em tua fronte todas as afeies de meu corao e procurando te tornar mais suave a etapa que te falta transpor.

    Alguns dias depois o fiel guia lhe traz, por sua vez, seu socor-ro moral.

  • Durand escreve ele veio me dar alguns valiosos conselhos de que minha contristada alma tinha grande ne-cessidade.

    A dvida, da qual todo pesquisador consciencioso conhece os inesperados retornos, a interrogao muda e insistente, o assalta por um momento.

    necessrio distinguir o joio do trigo. dizem-lhe. Em todas as manifestaes, que se produzem entre espritos e encarnados, h sempre coisas vagas e confusas devidas influncia material do meio. Sabei, porm, distinguir, nessa obscuridade, as verdades que vos servem para domar as paixes e a dvida.

    S se chega a uma f plena e completa, dir ele, mais tarde, por meio de uma lenta e dolorosa iniciao. Ele sabia disso por experincia.

    Em 31 de julho de 1873 uma nova revelao lhe foi feita. Ele rev um dos episdios mais importantes de suas vidas anteriores. Descobre o segredo que devia iluminar todo o seu destino.

    Encontra em Sorella, Joana, a companheira, a inspiradora, a amiga de sempre, a alta e virginal figura do amor e do sacrifcio, a que jamais o esqueceu e jamais o abandonar.

    Em 20 de agosto do mesmo ano, Lon Denis, seus amigos Aguzoly e o capito Harmant conhecem as circunstncias em que se fez o primeiro encontro entre eles, numa vida anterior, ao fim de uma batalha naval, no reinado de Louis XIV. E eis que esto novamente reunidos, numa nova etapa de suas existncias, segundo a lei que quer que os seres ligados por uma verdadeira amizade se reencontrem em situaes imprevistas de seus desti-nos, segundo o eterno plano, impenetrvel ao nosso pobre enten-dimento humano.

    No ano seguinte recebia da prpria Joana esta tocante exorta-o:

    Coragem amigo! Agora que o destino se apresenta mais claro, agora que as horas da luta se aproximam, que provas

  • mais fortes vo te assaltar, estarei ainda mais perto de ti, sustentando cada um de teus passos.

    No esqueas, amigo, que o alvo j est a, o alvo que preciso atingir, alvo que te abrir as portas de um mundo melhor.

    A rota estava traada. Foste escolhido disseram-lhe anteriormente para

    cumprir uma misso til aos homens. As vicissitudes te as-saltaro, porm segue sem temor. Vai sempre para diante. Ns te ajudaremos.

    E o jovem missionrio enveredou corajosamente pelo spero caminho.

  • III

    Os incios

    Treinamento oratrio

    Desde o ano de 1869, Lon Denis havia recebido a iniciao manica na Loja dos Demfilos, de Tours (rito do Grande Oriente).

    Rapidamente, aps a guerra, tornou-se o orador mais aplaudi-do. Dotado do verdadeiro dom da palavra, entregava-se arte oratria, sob a inspirao de seus guias, seus nicos mestres da eloquncia.

    Trabalho, coragem, esperana! repetia-lhe Sorella ; eis qual deve ser tua divisa.

    Amigo, preciso consagrar todos os teus lazeres ao tra-balho esprita, ao estudo; preciso, principalmente, te habi-tuares a defender e esclarecer nossa doutrina, no que de-vas, a partir de hoje, falar dessas coisas a todo instante; no. preciso, porm, que sejas corajoso, que te prepares, em silncio, para a hora solene que no te deve surpreen-der, mas te encontrar pronto.

    Alm de Sorella, Durand tambm o assiste, sempre pontual, sempre fiel.

    preciso trabalhar disse-lhe ele para se tornar um orador e um escritor. Com esse objetivo, preparar os textos e corrigi-los; depois submet-los apreciao de seus ami-gos; se lhe fizerem observaes, quer sejam justas ou in-fundadas, aceit-las sempre de bom grado, depois julgar in-timamente o que fazer, a propsito.

    Ser necessrio estudar previamente o estilo, o encadea-mento das frases nos autores que lhe sero indicados, ulte-riormente.

  • Evitar sobretudo a facilidade, a abundncia romntica. Um estilo suave e severo ao mesmo tempo, simples na ex-presso, despojado de ornamentos inteis, sempre polido.

    Em 19 de fevereiro de 1873 fez seus primeiros exames orat-rios perante cinco mestres espirituais, trazidos por Durand. Sorella o assiste, mas ele ficou emocionado como um candidato diante de uma comisso examinadora. Leu seu segundo discurso.

    Est tudo bem disseram-lhe , exceto alguns detalhes fceis de retocar. Os progressos conseguidos so sensveis e justificam as esperanas que pusemos em ti.

    A 17 de maro, ele falava sobre materialismo, em sesso pri-vativa, na Loja dos Demfilos. O discurso precedente, que havia marcado sua estreia na arte oratria, tratava de Patriotismo. O terceiro era uma apologia ao Espiritualismo.

    Temas vrios, propcios a discusses de ideias gerais, susce-tveis de abordar as questes que ele reservava para mais tarde aprofundar.

    Esse tema do Materialismo perante a Cincia e a Razo devia requerer todos os esforos do jovem divulgador e lev-lo a abordar, inicialmente, o maior acontecimento da Histria con-tempornea.

    Quase todas as questes que agitam nossa poca tm seu ponto de partida na Revoluo de 1789. Ela levantou afirmava ele o problema poltico e o problema religioso: governo dos povos pela Democracia, religio das almas pe-la Cincia.

    Infelizmente, as ideias espiritualistas dos grandes convencio-nais no foram partilhadas por seus sucessores; a cincia materi-alista diminuiu o domnio da verdadeira cincia, minou o alicer-ce da religio, abalou a f nas almas e conduziu os homens para as doutrinas niilistas, donde surgiram as inquietaes da atual sociedade.

    Vemos anunciar-se o tema que ele desenvolver, mais tarde, com mais profundidade e vigor em suas obras.

  • Ainda so apenas exerccios de eloquncia. Ele aborda outros assuntos, porm todos convergem para a ideia principal: a pre-dominncia necessria do Novo Espiritualismo. Trata, sucessi-vamente, do Evolucionismo, da Religio natural, da famlia, do Centenrio da Independncia Americana, de Deus, a alma e a vida. So palestras particulares, discursos de recepo ou de festas da Ordem, valendo como treinos, nos quais se exercitava para o papel que se esperava dele.

    Sua tarefa j aparecia singularmente complicada, se conside-rarmos que ele teve que se consagrar a uma trplice atividade: o trabalho profissional, o estudo e o manejo da palavra.

    Todavia, suas atividades comerciais se tornaram menos desa-gradveis, menos montonas, mais de acordo com seus gostos; viajava por conta da casa comercial.

    Seu raio de ao , de incio, regional, mas ele deseja ampli-lo. Inicialmente, visita o centro, depois as provncias mais dis-tantes: Lorraine, Normandie, Bretagne, Prigord, Auvergne e pases vizinhos.

    Em 1872 faz uma rpida passagem por Londres. Nos anos se-guintes percorre a Frana, em todos os sentidos; os negcios esto em franco progresso.

    Inaugurou, por seu esprito de iniciativa, um novo mtodo de trabalho, na poca em que os viajantes comerciais se contenta-vam em fazer pequenas viagens, numa rea restrita, que atendia s suas limitadas ambies.

    Lon Denis, obediente a seu senso comercial, soube conven-cer seu patro da necessidade de ampliar seu campo de trabalho. E assim, realizou roteiros cada vez mais longos e, sem dvida, cada vez mais proveitosos.

    Nota-se seu secreto contentamento, sua alegria sem igual, quando lhe foi traado seu primeiro itinerrio. Devia, dessa vez, visitar a regio de Vaud, na Sua, a Crsega, a Lombardia, depois a Arglia, Tunsia, com um regresso pela Itlia.

    Admiremos aqui como o destino se compraz em atender aos nossos mais ousados desejos e de colocar ao nosso alcance os mais ambicionados sonhos.

  • Assim, do modo mais fcil, seus mais caros desejos esto em vias de realizao.

    Denis vai partir para uma bela viagem. Alm da expectativa, sente-se contente, porque Joana dArc, antes de sua partida, quis lhe entregar um testemunho to inesperado quanto precioso de sua ternura e de sua f.21

    A bela viagem

    A 27 de setembro de 1876 Lon Denis deixava Tours. Seguindo o caminho mais longo, percorria a Auvergne:

    Clermont-Ferrand, Thiers; depois, atravessando o Velay, foi para Lyon. Tendo visitado Fourvire e assistido, em casa de amigos, a uma interessante reunio esprita, seguiu, a 3 de outubro, para Genebra. Esta cidade o havia encantado. Lausanne e a ribeira do Vaud acabavam de conquist-lo.

    O incomparvel quadro dos grandes Alpes, o enorme espelho lquido do Lman, a amplido do horizonte o comovem at suas mais ntimas fibras.

    Ele aprecia, ao demais, a seriedade, a amabilidade das popu-laes ribeirinhas, to perto de ns pela identidade de origem, da lngua e pela urbanidade dos costumes.

    Alguns dias mais tarde ele est em pleno Valais. Detm-se em Sion, uma localidade bem pitoresca, porm su-

    ja. Chove. Os carros, puxados por bois ruivos, vo aos solavan-cos pelas pssimas estradas da montanha; os habitantes da regio recolhem os cestos das vindimas, em suas aldeias escondidas.

    Felizmente, no dia seguinte, sua partida, um Sol radioso dissipa a bruma que envolvia as encostas. Os cimos aparecem, cobertos por suas neves resplandecentes.

    Em Brieg, o cenrio maravilhoso. preciso parar. Foi for-oso atravessar Simplon de carro. Um engenheiro valdense companheiro de viagem de Denis.

  • Ambos almoam num restaurante improvisado para uso dos turistas. A viagem encantadora!

    Para trs, os montes deslumbrantes de Tourtemagne e o vale de Zermatt. Os campanrios das aldeias, de teto metlico, a torrente do Vige reluzem com um fulgor especial, produzindo um curiosssimo efeito.

    Em Brisal um jovem ingls substitui o engenheiro. Uma i-mensa perspectiva acaba de se abrir sobre o Valais. O rio corre, ao longe, entre os montes, como uma fita de prata. A estrada faz inmeras curvas; os viajantes, a p, sobem atravs das pastagens e dos altos pinheirais.

    Em Cavalrienberg descobrem o Finsteraahorn e o alto Ober-land. A noite sobrevm; preciso parar e pernoitar na montanha, na pousada prevista.

    No dia seguinte, s 7 horas, prosseguem o caminho. A vista soberba. Brieg aparece l embaixo a uma profundidade espanto-sa. Neve e geleiras cintilantes por toda parte. No h nenhuma vegetao. Os altos cumes revestem-se de um aspecto grandioso, porm desolado, de uma austera solido; o vento spero aoita o rosto dos viajantes. Por todos os lados, rochedos abruptos, precipcios, onde desabam avalanches por abismos tremendos.

    O desfiladeiro, porm, foi transposto e comea a descida para a vertente italiana. O carro, que fora deixado na aldeia de Sim-plon, leva agora nosso excursionista para os vales do Ticino.

    Para nada perder do admirvel panorama do desfiladeiro de Gondo, onde rugem as guas do Doveria, nosso viajante sobe no teto do veculo e se instala entre as bagagens.

    O vento frio e aoitante, mas a vista to bela! Em Iselle foi preciso parar na alfndega e j se avistam os

    mendigos, crianas maltrapilhas, o sol e as canes: a Itlia. O vale se alarga, as aldeias, escondidas nas colinas ou espa-

    lhadas nas encostas, mostram, de longe, suas fachadas pintadas, seus campanrios ocultos pelas folhagens.

    Por todos os cantos, amoreiras, parreiras pelas muralhas e castanheiros que nos do seus frutos espinhosos.

  • Domodossola, bem limpa, bem delicada, lhe d, na chegada, uma excelente impresso; depois aparece Mergozzo e seu pe-queno e lindo lago; enfim, Pallanza, beira do Verbano encan-tado.

    No dia seguinte, com seus companheiros de viagem, Denis fez a tradicional peregrinao s ilhas Borromeias, (no Lago Maggiore), e sente a magia dessas margens encantadas, mas no podia demorar-se mais.

    Em 12 de outubro, chega a Milo, a bela capital lombarda, toda ruidosa e animada por uma vida intensa.

    Veneza, porm, o chama! Ele j no havia percorrido, em so-nhos, a cidade dos doges? No a havia visto, num quadro estra-nhamente sugestivo e para sempre fixado em sua memria, seus deslumbrantes espetculos no tempo de seu esplendor?

    Numa jornada de calor e poeira, ei-lo rodando para o Adriti-co. Brgamo e seu velho castelo; Brescia, Lonato, de onde se v, numa escapadela prestigiosa, o lago de Garda; ao longe, Verona e depois Vicenze desfilam diante de seus olhos maravilhados.

    Sobrevm a noite, mas o viajante logo v brilharem os fogos de Veneza. A ponte atravessada; eis a estao; eis as gndolas que esto espera. De repente, a estranha impresso de um sonho acordado, o deslizar da embarcao entre as trevas das muralhas, onde os raios da Lua vm brincar.

    Tendo passado o resto da noite em sua hospedaria, Denis le-vanta-se bem cedo para admirar a curiosa cidade em sua graa matinal.

    Foi Praa So Marcos e depois Baslica. Subiu ao famoso campanrio, de onde se descortina a cidade toda cercada pelo mar luminoso.

    A seguir, est no palcio Ducal, e observa as obras de Ticia-no, Tintoreto e de Paolo Veronese. Deseja ver tudo: os museus, as escadarias e as esttuas, as praas e as igrejas, at o gueto srdido e leproso.

    noite, aps um ltimo passeio na praa, ainda se demora um pouco, envolvido pelos esplendores da cidade sem igual e

  • embriagado pelo seu perfume violento, no terrao do Caf Flori-ani, para admirar a ferica viso noturna do grande canal.

    Antes de deixar essas maravilhas, e para que seus pais sejam informados de sua alegria, ele lhes escreve, envolvido pelo entusiasmo de suas primeiras impresses:

    Veneza, Hotel della Luna. Queridos Pais, Ver Veneza e depois morrer, dizem os italianos. Ento,

    eu posso morrer, j vi Veneza. Passei aqui todo o domingo. Enquanto, na Frana, envol-

    vidos pela poltica, todos os meus compatriotas correm pa-ra a votao, eu sonho de dia, contemplo Veneza resplan-decente de graa e de beleza, sob um cu azul e sem nu-vens.

    Deso do campanrio de So Marcos, torre cujo terrao domina a praa, a 100 metros de altura. Fiquei ali mais de uma hora, no me podendo desprender desse maravilhoso espetculo de Veneza, espraiando-se, imensa, em meu der-redor, no meio de um mar banhado de luz.

    Os trs sinos do campanrio soavam a meu lado, lanan-do em meus ouvidos um som ensurdecedor. Ao seu sinal, todas as igrejas de Veneza existem mais de cem come-am a tocar seus sinos. O som se elevava de todas as partes e formava um estranho concerto.

    Sim, Veneza bela. a mais bizarra e a mais cativante cidade que j conheci. Como bom viver aqui!

    A natureza to suave, o sol to acariciante e o mar to azul! Todavia, por que a populao to m, to vingativa e to srdida? Meu Deus! Em toda parte, infelizmente, ao lado das maravilhas criadas pelo gnio humano, aparecem chagas revoltantes: preguia, mendicncia, paixes furio-sas!...

    Como descrever uma tal cidade! Impossvel encontrar termos que lhe faam uma fiel imagem. Maravilha das ma-ravilhas!

  • Tenho ouvido missa na Baslica de So Marcos, essa es-plndida igreja onde esto acumuladas todas as obras-primas da arte veneziana e oriental (mrmores, mosaicos, joias preciosas e relquias).

    Os olhos ficam deslumbrados com todas essas preciosi-dades. E o Palcio Ducal e o dos Procuradores! Um mundo de admirveis monumentos que se elevam em torno dessa Praa So Marcos, clebre no mundo inteiro.

    Convm ver, do Cais dos Esclaves, estender-se o mar sobre o qual o sol lana seus raios dourados; e as gndolas deslizam, rpidas, silenciosas, sobre a gua calma e trans-parente.

    Ao longe, as ilhas, o Lido, San-Pietro di Castello, La Gi-udecca, San-Giorgio Maggiore, etc. Veneza inteirinha, suas inumerveis abbadas, suas ruas estreitas, suas pontes, suas praas animadas e ruidosas. Em torno dela, como um xale azul, lagunas e o mar, por toda parte...

    Fugi de Milo para ver tudo isso e a ela retorno; mas re-torno com uma poderosa imagem gravada em minha me-mria. Jamais esquecerei Veneza! Sou como um estudante fazendo gazeta e ningum deve saber que vim aqui. Mas, to perto de Veneza, podia eu resistir ao desejo de v-la?

    No outro dia retornou a Milo, depois esteve em Turim. Em seguida, seus negcios o chamam a Menton, de onde seguiu para Gnova pela Riviera italiana e de l para Livorno, a fim de embarcar para Crsega.

    Estamos no fim de outubro. Lon Denis peregrina pelas mag-nficas florestas de Cervione. Que importa que as hospedarias sejam mal cheirosas e a comida deixe a desejar!

    Ilha de beleza, a magia a envolveu inteiramente. Partindo de Cervione com um certo Pestalozzi, dirige-se Corte, inicialmen-te, montado numa mula, depois de carruagem. O encantamento prossegue. medida que sobem, admirveis vales vo surgindo, silenciosos, lembrando as idades primitivas, entre as altas encos-tas recobertas de castanheiros seculares.

  • O outono lana suas tonalidades ardentes sobre as frondosas copas e, atravs das aberturas das folhagens, brilham as cascatas, as torrentes que descem das neves dos montes.

    Em Piedirocco foi preciso parar. Os animais esto muito can-sados e o dia seguinte dia de Todos os Santos.

    Denis consagra, portanto, esse dia para um passeio solitrio, na montanha, pelos caminhos pedregosos, sob os grandes casta-nheiros. No profundo silncio, s se ouvem o jorrar das torrentes no fundo dos vales e o grito estridente dos falces no cu azul.

    s vezes os sinos ressoam e a meditao termina com louvor a Deus.

    No dia seguinte, ao meio-dia, numa velha carroa puxada por um burro, Denis chega cidade de Corte.

    O cu de um azul profundo e o sol deslumbrante. Os cumes das montanhas esto envoltos numa atmosfera de admirvel transparncia.

    Diante do panorama sublime do Monte dOro, lhe servem um suculento almoo, numa hospedaria perdida.

    Ele se sente literalmente embriagado pela luz e pelo ar salu-bre. Infelizmente, chegando a Sartne e a Ajcio, encontra-se em plena febre eleitoral, no meio de uma populao vociferante, que esquecia, por um momento, seu bom senso e sua originalidade costumeira.

    Retorna a Marseille; depois de curto descanso, embarca para a Arglia, onde chega a 20 de dezembro, com um cu encoberto. No dia seguinte, porm, o cu est sem nuvens.

    Admira esse espetculo novo para ele, o rudo inusitado, as cenas indescritveis da vida rabe.

    Tendo visitado Argel e Casbah, foi a Blidah, a rainha do Sa-hel, que o deixa totalmente deslumbrado. Mas ali, nosso viajante visivelmente tentado pelo desejo de penetrar mais fundo na vida indgena, de deixar as rotas comerciais movimentadas para adentrar-se na montanha, no corao do pas cabila.22

    Tendo ido pela diligncia para Tizi-Ouzou, eis que toma ou-tra direo e, sempre de carro, viaja para Forte Nacional. Em seu

  • derredor, a terra um vergel: jardins nas encostas, pastagens nas alturas. Ao longo da estrada bem conservada circulam os natu-rais da regio: pastores e camponeses, crianas e mulheres, algumas bonitas e sem vu, caminhando em todos os sentidos, numa grande algazarra.

    O Sol invade com seus raios as cristas denteadas do Djurdju-ra,

    23 e nesse cenrio banhado de cores e transbordante de vida

    que Denis almoa em Forte Nacional, entre os cabilas acocora-dos e gesticulantes. Mas preciso encontrar guias para a projeta-da excurso montanha e ele no tarda a encontrar um.

    Um certo Mustapha Belkassen, rapaz esperto, educado, limpo como uma moeda nova, que lhe havia sido recomendado, logo se oferece para acompanh-lo em sua excurso. Mustapha se utiliza dos servios de um arrieiro, Ibrahim, que conhece muito bem a regio. Lon Denis deseja ir a Abkou, em pleno territrio cabila. Quanto a isso no havia impedimento.

    Munido de um salvo-conduto, que lhe foi dado, muito ama-velmente, pelo capito do posto rabe, ei-lo a caminho, desde cedo montado em sua mula e ladeado por Mustapha e Ibrahim, que vo a p rumo ao campo dos An-Chellata.

    A estrada ruim, maltratada pelas recentes chuvas, porm a paisagem maravilhosa. De todas as partes h lavouras e grande quantidade de vegetao.

    O campo, que cerca as formidveis muralhas do Djurdjura, parece um grande jardim. Os cabilas esto no trabalho. Cantos e gritos por toda parte.

    As fumaas das aldeias sobem ao ar de um azul admirvel. Mustapha, que fala corretamente o francs, lembra cenas da

    insurreio de 1871 que o arruinou e tambm aos de sua tribo, cujos bens foram confiscados.

    Conversando sempre, o pequeno grupo sobe para Alta Cab-lia. Foi abandonada a estrada para seguir por veredas terrivel-mente escarpadas e pedregosas.

    O burro em que estava nosso viajante sobe penosamente por entre enormes quarteires de rochas.

  • Afinal, aps uma hora de perigosa escalada, chega-se a Thi-filkouth, miservel aldeia de casas srdidas, de uma sujeira repugnante.

    Todos os trs esto esgotados e a montaria no est nada bem. Vo casa do amin pedir algumas provises: leite e frutas. Ces ferozes latem em seus calcanhares; as mulheres fogem ao avistar um roumi,24 as crianas se escondem. Tendo Mustapha obtido as provises solicitadas, nossos excursionistas se instalam para almoar sobre as lajes da djemaa.

    Logo, um crculo de curiosos os cerca. As mulheres, j refei-tas do susto, mostram o roumi a seus garotos.

    Lon Denis, porm, tem muita pressa em seguir viagem, por-que Abkou ainda est longe, mas a m sorte os visita. O burro, assustando-se com as roupas escuras de seu cavaleiro, foge, desaparece, o que provoca um riso incontrolvel dos presentes.

    Com grande sacrifcio, Mustapha consegue recuper-la, mas torceu o p.

    Seguem por um caminho errado, descendo pelas encostas, a-travessando leitos secos e tornando a subir pelas ladeiras ngre-mes.

    Anoitece. preciso chegar rapidamente ao acampamento dos An-Chellata para ali passar a noite.

    Felizmente l se encontrava o amin, que ordena lhe traduzam o salvo-conduto e depois leva o roumi at sua casa.

    Foram obrigados a segui-lo, atravs de um labirinto de muros, escorregando num lamaal cujo mau cheiro invade as narinas.

    Os ces rosnam e mostram suas presas aguadas. Aps pula-rem uma cerca, chegam a uma grande cabana, cuja porta est desconjuntada. ali o pouco singular reservado ao turista, mas no havia escolha.

    Por causa do forte frio, acende-se uma grande fogueira de ga-lhos secos, no prprio cho. A fumaa invade todos os cantos. Noutra extremidade da choa, mulheres moem os gros no pilo, mas desaparecem, com a presena do francs.

  • O mobilirio se compe unicamente desses grandes vasos de pedra, da altura de um homem, onde os cabilas guardam seus cereais. O amin e seu jovem filho, acompanhados de parentes, entraram com os viajantes. Ficam acocorados em torno da fo-gueira e se aquecem ao calor. Trazem uma lmpada indgena de cobre, sustentada numa alta haste de ferro.

    O muezzin fez ouvir um canto triste e suave e as oraes so proferidas. Os cabilas, envoltos em seus albornozes, j esto adormecidos.

    s nove horas, trazem o cuscuz, num prato de madeira com p, em forma de compoteira.

    Numa outra vasilha, de cermica azul, esto a fumegar as a-ves cozidas. O molho vem separado, num pote.

    O amin pega uma comprida colher de ferro, cospe para limp-la, depois a enxuga, gravemente, numa ponta de seu imundo albornoz.

    Lon Denis vacila um momento... Entretanto, Mustapha d o exemplo: ele faz um buraco no cuscuz e se serve vontade. O francs ainda demonstra alguma repugnncia, mas conveniente agradar o hospedeiro.

    Pegando um pedao de frango com a mo, o infortunado francs se d por satisfeito; o cuscuz est terrivelmente apimen-tado.

    Felizmente, a moringa que contm uma gua, deliciosamente fresca, vem amenizar, em parte, a irritao causada pela infernal iguaria. Entretanto, os outros convivas esto em festa: forram completamente o estmago e em seguida enrolam-se em seus trapos, para descansarem no cho. Todos dormem, logo, num sono profundo.

    S o chefe da expedio, ainda acordado, pensa na sua aven-tura, avaliando a surpresa da me e dos amigos, se o vissem naquela situao.

    O ar frio da montanha entra pela porta mal fechada. A todo momento, cabras e carneiros penetram no reduto, vo farejar os dorminhocos e se deitam entre eles. legies de pulgas comeam

  • a devorar o infortunado turista e lhe causam coceiras intermin-veis.

    As horas passam lentas, ao ritmo dos roncos humanos e dos suspiros dos animais.

    A manh, afinal, vem terminar seu suplcio. Ele desperta Mustapha, agradece ao hospedeiro ainda adormecido, que lhe responde com resmungos entrecortados. Denis afasta-se depressa desse refgio, na verdade bem primitivo.

    So 5 horas. A Lua brilha e os ces ladram furiosamente. Pe-los caminhos pedregosos, Lon Denis se apressa, montado em seu animal, que conduzido pelo imperturbvel Ibrahim e que Mustapha Belkassen acompanha, manquejando, rumo a Abkou, que o destino dessa memorvel viagem Cablia.

    * * *

    Dessas excurses em terra africana, o representante da Casa Pillet, de Tours, devia guardar muitas lembranas de contratem-pos e de decepes, mas que suportou com bom humor.

    Viajando de Abkou para Philippeville, da a Guelma, depois a Bne, sacudido nos trens, nas diligncias ou no lombo dos burros, ativo, curioso e encantado por tudo, realizou uma traves-sia bem difcil para chegar a Tnis. Seus aborrecimentos haviam comeado desde o embarque. Chegando ao cais no ltimo mo-mento, quando j suspendiam a escada, foi obrigado a se agarrar e a subir a bordo com a fora de suas mos.

    At La Calle a travessia foi encantadora, o mar estava calmo. De repente, o vento se tornou muito frio e a pequena embarcao balanava cada vez mais.

    A noite havia sido terrvel. As ondas se lanavam sobre o convs. Tonis, tambores, correntes e cordas rolavam pelo convs com um barulho infernal. Pancadas surdas, preocupantes, ressoavam no poro, pela m arrumao da carga.

    Nos camarotes, a loua se quebrava. Os passageiros precisa-vam se agarrar firmemente nas barras da embarcao, enquanto as mulheres e as crianas gritavam de pavor.

  • O controle do navio se fez cada vez mais trabalhoso no meio da tempestade, mas depois tudo se acalmou, assim que atravessa-ram o Cabo Farina.

    Lon Denis queria ver Tnis, antes de retornar pela Itlia; de-sejava visitar as runas da antiga Cartago e se sentir levado pelo fabuloso mar que embalou nossa civilizao.

    Ei-lo na grande capital do Protetorado: suja, cheia de vida, barulhenta e colorida. Abandonando os bairros novos da Porta da Marinha, penetra nos souks.25 a que passa suas horas de lazer.

    Gosto disse ele de me entranhar, ao acaso, pelos quarteires rabes de Tnis, buscando os recantos mais so-litrios e mais silenciosos.

    no corao da cidade indgena que ele procura descobrir os aspectos mais originais da vida muulmana.

    O campo tambm o atrai, o verde vale do Medjerda, repleto de brancas vilas europeias.

    Antes de embarcar para Malta, que ele deseja visitar, no dei-xar Tnis sem primeiro ver a vila dos Mirtos, encantadora construo do estilo mourisco, pertencente a um banqueiro francs.

    Desses floridos terraos, quer contemplar mais uma vez o es-petculo do sol poente em terras africanas. Aqui est o quadro que ele nos traa com sua pena admirvel:

    A noite se aproxima. O sol, j abaixo do horizonte, lan-a seus derradeiros raios sobre Tnis, dourando as mura-lhas e os edifcios.

    Ao longe, as montanhas se tingem de cores variadas, passando, sucessivamente, do azul ao rosa suave e ao viole-ta. medida que o disco solar se abaixa, as cores se suavi-zam e mergulham no crepsculo. Logo os mais distantes cumes se iluminam e se deixam dourar pelas luzes do sol poente.

    E eis que o espetculo purificante acontece:

  • A noite chegou e, num cu sem nuvens, a Lua se ergueu e derrama sua plida luz sobre Tnis adormecida.

    Faz brilhar as guas borbulhantes das fontes e as cpulas, com suas meias-luas de cobre. Invade as arcadas dos prti-cos e se reflete nas colunas de mrmore, estendendo sobre os campos as grandes sombras dos minaretes e das palmei-ras.

    Seus raios prateados penetram como flechas atravs das abbadas de verdura e se jogam sobre a areia. Nenhum ru-do, nenhum sopro perturba a paz da noite. 26

    Deixemos nosso viajante se inebriar, um instante, com esses encantos, novos para ele, deixemos que passeie, dois dias depois, em Malta, entre os pitorescos highlanders,27 os carregadores maltrapilhos e as mulheres da ilha, em seus mantos negros.

    Agora o encontramos na Siclia, visitando Catnia, populosa e miservel; Taormina, que fica num rochedo calcinado; Messi-na, com suas venerveis igrejas, sempre curioso por tudo, percor-rendo o cais dessas cidades, no meio de primitivos carros de bois, conduzidos por carreiros de semblantes selvagens.

    Contudo, preciso andar depressa, porque o tempo passa ra-pidamente.

    A 15 de dezembro, Lon Denis embarca no Marco Polo, com destino a Npoles.

    Observa, na popa do pequeno barco, os animados grupos de passageiros do Estreito de Messina.

    A proa vence os redemoinhos espumosos de Charybde. di-reita, sobranceiro, ergue-se o Scylla 28 e os montes da Calbria, cobertos de bruma.

    Aps uma pssima noite, o Marco Polo entra na baa de Npoles.

    O corao do viajante bate de emoo diante do inesquecvel espetculo. Aps desembarcar e se alimentar devidamente, toma um nibus para Capo-di-Monte, de onde retorna decepcionado por no ter podido visitar o Palcio Real; dirige-se ento a Chi-agga, onde desfilam as suntuosas carruagens da aristocracia

  • napolitana. Para em Margellina, apesar do vento frio, para con-templar o maravilhoso pr-do-sol sobre o mar.

    Voltou para o hotel pela Strada di Porto, onde fumegam as barracas ao ar livre e a janta mal. A cozinha terrivelmente italiana e lembra o cuscuz da cidade em Cablia.

    Consola-se, porm, em San Carlo, onde assiste ao Trovador e, para que a festa seja completa, vai ao cais ver a Lua nascer sobre a baa adormecida.

    Dois dias depois, tendo feito a obrigatria visita s runas de Pompeia, parte para Roma.

    Da janela do trem em que viaja, ele v desenrolar-se o como-vente panorama dos lugares consagrados pela Histria. Aps os Abruzos estreis, surgem logo cobertas de neve, as montanhas do Lcio, a Serra dos Volscos e, pelo mar, o promontrio de Circe. Depois, a regio dos Sabinos, Albano, Frascati e, a seguir, os campos de Roma. Ao longe aparece a cidade Eterna, com suas cpulas, seus campanrios brilhantes sob o cu azul, tudo se destacando em tons cinza sobre o fundo resplandecente dos Apeninos.

    esquerda, a Via pia e seus tmulos e por toda parte a-quedutos, arcos semidesmoronados, inmeras runas, todos os vestgios que falam bem alto alma de um filho da latinidade.

    Assim que ficou instalado, razoavelmente, aps os pequenos aborrecimentos prprios da viagem, sua primeira visita foi Baslica de So Pedro.

    De incio, a impresso no foi nitidamente favorvel. Entretanto diz ele , medida que eu entrava, a mara-

    vilhosa srie de colunas, em parte escondida pelas casas do fundo da praa, desdobrava-se de ambos os lados. Da ma-ravilhosa cpula e das naves, a impresso de grandeza se destaca, pouco a pouco; ela ganha em poder, medida que percorro o interior desse templo sem igual.

    Os raios do poente, penetrando nas vidraas, lanam re-flexos chamejantes sobre as colunas de mrmore precioso, sobre os tmulos dos papas, sobre o ouro e as cores.

  • O gnio do Catolicismo ali est manifesto, ou melhor, o sentimento religioso, sem nada mais, dos homens da Re-nascena.

    noite, no corso, a animao grande. Roma se agita por causa de uma crise ministerial. A formao

    do novo Gabinete Depretis-Crispi excita a paixo poltica dessa populao ardorosa.

    Denis consagra o dia seguinte Roma dos Csares. Sobe o Capitlio, visita o Coliseu, as Termas de Caracala. Diante das formas puras dos prticos, evoca os grandes dias da Antiguidade.

    Aps jantar, sai para ir gozar do espetculo das runas, ilumi-nadas pela Lua. Em companhia de um jovem holands, vai ao Coliseu. O edifcio, de noite, apresenta um aspecto estranho. De repente, ele lhe parece como o tmulo de todo um povo.

    Os visitantes so numerosos; suas tochas errantes produzem reflexos fantsticos nas galerias profundas. o Frum, aos clares da Lua, reveste-se de um aspecto mgico. Sobre Roma adorme-cida se estende o cu pleno de estrelas. O silncio noturno, no meio desses emocionantes fragmentos da histria, enche o visitante de uma impresso inesquecvel. Ele a completar, no dia seguinte, com a visita ao Museu do Vaticano, no ptio do Belvedere e Capela Sistina, diante de autnticas obras-primas da arte antiga e da renascentista.

    preciso, porm, abandonar as meditaes sublimes. As exi-gncias da atividade comercial no se acomodam muito tempo com belos sonhos.

    Adeus, Rainha da Trplice Coroa! Quem j te viu uma vez, jamais poder te esquecer. Aquele que agora est voltando, atravs da Toscana, para seu jardim da Frana enregelado sob um cu de inverno, leva para sempre, gravada em sua lembrana, entre tantas vises vrias, tua face venervel, onde se imprimiu, para os sculos, um momento da beleza do mundo.

  • Outra viagem

    Lon Denis deveria rever a Itlia, visitar, com calma, suas ci-dades e seus museus; retornaria muitas vezes Arglia, onde o chamavam as obrigaes da casa em que trabalhava e, mais tarde, sua tarefa de divulgador esprita. Sob essa rede to variada de impresses superpostas devia permanecer, em seu frescor primitivo, a profunda variedade de lembranas acumuladas durante as maravilhosas viagens.

    Quando criana, debruado sobre seu Atlas, durante os anos de estudo, o filho do oficial de pedreiro de Foug sonhava com aventuras futuras, com longas excurses pelo mundo. E eis que essas quimeras estavam em parte realizadas.

    Numa poca em que os franceses pouco viajavam, ele percor-ria o pas em todas as direes e se estendia alm das fronteiras, de Barcelona at Haia, de Nantes a Milo. Mas ele tinha um sistema prprio de viajar.

    verdade que no perdia tempo sentado mesa farta dos res-taurantes ou em mesas de bilhares. Ele deixava bruscamente o Gaudissart 29 em segunda mo.

    Calando seus borzeguins de viagem, pondo s costas sua mochila, como em 1870, partia em excurso, com uma boa bengala.

    Excursionar, para ele, era percorrer todo o pas com seus pr-prios recursos, com a nica ajuda de um mapa militar.

    Em 1871, em La Rochelle, exercitara-se em topografia. Com o fim da guerra, ficou disponvel o estoque de mapas que se encontravam nos escritrios da 26 Diviso. Encheu com eles suas malas. Jamais deixava de levar os que poderia utilizar em suas excurses, experimentando, por vezes, graas a esse proce-dimento, um malicioso prazer em esclarecer os habitantes do lugar sobre a sua prpria regio.

    Por esse meio, as runas histricas, nenhum velho calvrio, megalito ou o menor detalhe, nada escapava s suas investiga-es e, assim, ele demonstrava perfeito conhecimento da regio visitada. Sua curiosidade nada deixava passar. Alm disso, ele

  • era excelente andarilho. Para um turista dessa espcie fcil adivinhar-se que pouco lhe preocupava uma boa hospedagem e alimentao abundante.

    O que chamamos de conforto hbito a que j nos acostu-mamos no entrava em suas preocupaes.

    Geralmente comia debaixo de uma rvore, beira de uma fonte ou de um rio. Tirando de sua mochila alguns mantimentos, almoava como um simples nmade. s vezes ia a uma aldeia prxima fazer sua refeio num albergue, com uma simples omelete ou um pedao de toucinho. Dessa forma percorreu a Auvergne, a Savoie, o Dauphin 30 e cada uma das demais pro-vncias francesas.

    No lugar de uma boa cama de hotel, na cidade, ele prefere dormir na simplicidade de uma casa na montanha. Os cumes o atraem; ele gosta dos lugares altos. Ali a comida muitas vezes escassa, mas como saudvel para o esprito!

    Alm de sua Lorraine natal, da Auvergne austera, a regio que mais admirou foi a Armorique. Suas recortadas costas e suas ilhas selvagens; suas enseadas cheias de secreta magia; os pnta-nos e seus bosques cortados por invisveis regatos; as verdes pastagens e suas culturas, tudo ele visitou.

    De Trgon, na regio de Lon, at Vannes, na Cornualha, ele passeou examinando os monumentos e se inteirando das velhas lendas.

    Certa vez, na floresta de Paimpont, derradeiro vestgio da an-tiga Brocliande, avista uma pastorazinha maltrapilha cujos olhos se esbugalham de espanto e de medo, ao v-lo se aproxi-mar.

    A menina selvagem teve vontade de fugir, mas o viajante a interpela, em seu dialeto. Ela se encoraja.

    Poderia me dizer onde fica a Fonte de Baranton? A pequena responde balanando afirmativamente a cabea. Quer me levar at l? Mesma resposta, e ei-lo avanando, no meio das moitas, at

    beira de um pntano, cujas guas apodrecem entre as ervas.

  • a disse ela a Fonte de Baranton. Amarga decepo! Eis o que resta do Espelho de Viviane e da

    escadaria mgica onde Merlin se sentava. Mas no so apenas as belas lendas que interessam a esse

    grande amigo da natureza: ele observa a vida secreta to profun-damente variada da floresta. A rvore sua confidente e sua amiga; o animal perseguido pelo impiedoso caador lhe inspira um sentimento de fervorosa piedade.

    Certo dia, na floresta de Chinon, que conhecia muito bem, ele v precipitar-se em direo encruzilhada, onde est fazendo sua refeio, um veado desesperado que foge de uma matilha. O belo animal, coberto de suor, os flancos arquejantes, estaca a poucos passos do andarilho imvel. Escuta o barulho dos ces e dos caadores que se aproximam e, mudando rapidamente de dire-o, d um salto prodigioso e se interna no interior da floresta. Os ces farejam em vo; o rastro est perdido. Os caadores interrogam Lon Denis, que lhes disse ter visto, h poucos instantes, o animal perto dele.

    E por que no o espantou para que voltasse? exclamou um deles.

    Evitei de faz-lo respondeu ele, imperturbvel, rindo-se por dentro pela decepo e o ar zangado dos caadores.

    De todos