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44 | PÚBLICO, SEX 17 AGO 2012 A razão das raízes H á entre os opositores ao Acor- do Ortográfico de 1990 (A090) quem menoscabe a importân- cia da etimologia e antes se fundamente em motivos de ordem fonografémica intrín- secos ao sistema da língua: designadamente o valor dia- crítico das chamadas conso- antes mudas no Português euro-afro-asiático, mantendo a abertura da vogal átona precedente (contrariamente à tendência comum de fechamento). É que a etimologia sofreu desde a reforma de 1911 diversos ataques que a fizeram recuar, com privilégio da aproximação à fonética, afinal o argumento mais utilizado pelos paladinos do AO90. E há muito foram simplificadas certas consoantes duplas etimológicas, e extirpados os “y” e os “ph”, além de outras mudas que acabaram por sucumbir nesses processos de mudança, u.g. o “c” em “tra- duCção”. A defesa da memória etimológica, para que seja um argumento bem-sucedido, justificar-se-ia radicalmente com o recuo a antes de 1911, reaproximando o Português de línguas como o Francês e o Inglês, e con- sequentemente do Latim, e afastando-a de outras românicas que se “modernizaram”, como o Italiano e o Castelhano. Não vou ao ponto de advogar o recuo à “orthographia” pré-Republicana. Contudo, por defeito de formação e profissão, entendo necessário preservar a memória etimológica que exis- te, como uma “reserva ecológica”. A etimologia é configuradora de memória e cultura. Línguas que mantêm na escrita a memória etimológica tornam- se mais aptas à elaboração e construção do pensamento. Isto tem sido enfatizado, e bem, por confrades como Fernando Paulo Baptista. A minha experiência de classicista, de passagem pela gramática comparativa (Grego, Latim e outras Línguas Indo-Europeias), abriu-me à percepção das constantes e das volubilidades da semântica e dos étimos e, com isto, das idiossincrasias e mundividência de cada povo falante de uma das muitas línguas desta grande família. Seja a raiz *wid-/ weid-/woid-, que transporta nas germânicas o noema de saber, em Grego de saber e ver e em Latim de ver. Com motivos antropológicos: o saber é tanto mais sólido quanto mais se basear no sentido da visão. Mas também como estudante de línguas e professor de Latim, Grego, e Português Língua Estrangeira no Luxemburgo. Como estudante, o exemplo dado é apenas uma das portas que permitiram melhor entrar no Alemão e no Luxemburguês. Como professor, concluo ser falso que a simplificação ortográfica facilite a aprendizagem — vejam-se os de língua materna inglesa ou francesa. Pelo contrário: uma das estratégias mais profícuas para promover a aquisição de vocabulário, pela relacionação, é a formação de cognatismos, ou famílias de palavras. Os meus alunos (de línguas maternas francófona ou germanófona) apropriam-se melhor se virem acção, actor, agente, actividade, activo, actuação, agenda, agir. Estas consoantes não são mudas no Francês, directamente se estabelecendo a relação: action, acteur, agent, activité, actif, actuation, agenda, agir. E para um estudante de Português língua materna? Nada muda. Retome-se o exemplo do tema ac-/ag- (fácil explicar a diferença entre “c” e “g”: esta é sonora, aquela surda, sendo sonoras as pronunciadas com a vibração das cordas vocais, ao contrário das surdas; o mesmo traço fonológico opõe “p”/”b e “t”/d”.), como pôr um aluno da escola básica e secundária portuguesa a relacionar ação (ainda vá, tem um “c”), agente, agir, com ator? Ou atividade? Sem “c” nem “g”? E já agora, com actantes, termo técnico da teoria da literatura, em que o “c” se pronuncia (salvo se os acordistas não lhe decretarem a morte sem o sabermos…). Como saberão constituir uma família de palavras, remetendo todas para a ideia de agir, fazer? Ou como poderão os alunos reconhecer e perceber a sensatez de uma relação entre Egito (uma mentira, pois o “p” não raro é pronunciado em Portugal), Egípcios e egiptologia (formas que o AO90 mantém)? Outro exemplo: optimus. Do radical, havia igualmente em Latim os optimates, que designava a aristocracia. E ainda opulentia, opulentus, opiparus, entre outros. Os últimos exemplos dados fazem perceber que a acepção para a qual apontava o radical era de abundância de recursos. Assim, ser optimas, nobre, significa “aquele que possui recursos, rico”. Óptimo é pois ser rico! Um tal exemplo é apenas útil para quem estuda Latim, mas diz-nos de como a partir de famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e as escrevem pensam. As línguas e as suas expressões utilizam estes mecanismos para criar e relacionar palavras, por vezes baseados na simples paronímia, u.g. o português ferrolho, do Latino ueruculum, com influência de ferro, pois afinal esse instrumento é feito deste metal (cf. Fr. verrou). A simplificação destrói laços de família. Há uma opacidade, um mistério da escrita de que fala ainda José Gil no texto citado, em que prevê que estas mudanças induzirão outras na forma de pensar. A ortografia “marca um espaço virtual [A etimologia] diz-nos como a partir de famílias de palavras as diversas línguas formam cultura Doutorado em Literatura. Investigador do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da U. de Lisboa. Poeta para o pensamento”. Pois, a escrita, dir- se-ia, demanda precisamente, mediante a descodificação dos signos-grafemas, a observação, a análise e o estabelecimento de relações de sentido, encobertos nos subterrâneos da história das palavras. Outra consequência da sua dissolução é, nas palavras de José Gil (Visão, 16 de Fevereiro de 2012), o empobrecimento dos “movimentos possíveis da língua”. O fim da consciência dessa opacidade “mutila o pensamento”. Anula-o na raiz. Estabelecer relações, analisar e observar são os princípios da ciência e da filosofia e, em geral, da formação de indivíduos e sociedades livres e pensantes. Só por empinanço, e graças a esforço acrescido e forçado, ou destituído de toda a lógica e intuição, ou porque o “s’tor” o diz… se ele próprio o souber. Com isto se preocupará a escola? Ou será um prerrogativa de conhecedores do Latim e do Grego? Se é que alguém doravante os conhecerá, decretado foi já o seu fenecimento… Dizem que é para facilitar… O Brasil fê-lo com as suas reformas. Portugal prepara-se para o mesmo. Mas produziu e produzirá sociedades mais cultas e pensantes? Ou linguística e culturalmente empinantes? E cuja escrita se reduza a um trogloditismo, à mera transcrição de grunhidos? Repudiamo-lo! P.S.: Uma das formas de os cidadãos se manifestarem (lembremo-lo) é subscrevendo a Iniciativa Legislativa dos Cidadãos contra o AO em http://ilcao. cedilha.net. NUNO FERREIRA SANTOS É necessário preservar a memória etimológica que existe, como uma “reserva ecológica” Debate Acordo Ortográico Rui Miguel Ventura Duarte

A RAZÃO DAS RAÍZES

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"A RAZÃO DAS RAÍZES", por Prof. Rui Miguel Duarte. PÚBLICO, 17 de Agosto de 2012, p. 44

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44 | PÚBLICO, SEX 17 AGO 2012

A razãodas raízes

Há entre os opositores ao Acor-do Ortográfi co de 1990 (A090) quem menoscabe a importân-cia da etimologia e antes se fundamente em motivos de ordem fonografémica intrín-secos ao sistema da língua: designadamente o valor dia-crítico das chamadas conso-antes mudas no Português

euro-afro-asiático, mantendo a abertura da vogal átona precedente (contrariamente à tendência comum de fechamento). É que a etimologia sofreu desde a reforma de 1911 diversos ataques que a fi zeram recuar, com privilégio da aproximação à fonética, afi nal o argumento mais utilizado pelos paladinos do AO90. E há muito foram simplifi cadas certas consoantes duplas etimológicas, e extirpados os “y” e os “ph”, além de outras mudas que acabaram por sucumbir nesses processos de mudança, u.g. o “c” em “tra-duCção”. A defesa da memória etimológica, para que seja um argumento bem-sucedido, justifi car-se-ia radicalmente com o recuo a antes de 1911, reaproximando o Português de línguas como o Francês e o Inglês, e con-sequentemente do Latim, e afastando-a de outras românicas que se “modernizaram”, como o Italiano e o Castelhano. Não vou ao ponto de advogar o recuo à “orthographia” pré-Republicana. Contudo, por defeito de formação e profi ssão, entendo necessário preservar a memória etimológica que exis-te, como uma “reserva ecológica”.

A etimologia é confi guradora de memória e cultura. Línguas que mantêm na escrita a memória etimológica tornam-se mais aptas à elaboração e construção do pensamento. Isto tem sido enfatizado, e bem, por confrades como Fernando Paulo Baptista. A minha experiência de classicista, de passagem pela gramática comparativa (Grego, Latim e outras Línguas Indo-Europeias), abriu-me à percepção das constantes e das volubilidades da semântica e dos étimos e, com isto, das idiossincrasias e mundividência de cada povo falante de uma das muitas línguas desta grande família. Seja a raiz *wid-/weid-/woid-, que transporta nas germânicas o noema de saber, em Grego de saber e ver e em Latim de ver. Com motivos antropológicos: o saber é tanto mais sólido quanto mais se basear no sentido da visão. Mas também como estudante de línguas e professor de Latim, Grego, e Português

Língua Estrangeira no Luxemburgo. Como estudante, o exemplo dado é apenas uma das portas que permitiram melhor entrar no Alemão e no Luxemburguês. Como professor, concluo ser falso que a simplifi cação ortográfi ca facilite a aprendizagem — vejam-se os de língua materna inglesa ou francesa. Pelo contrário: uma das estratégias mais profícuas para promover a aquisição de vocabulário, pela relacionação, é a formação de cognatismos, ou famílias de palavras. Os meus alunos (de línguas maternas francófona ou germanófona) apropriam-se melhor se virem acção, actor, agente, actividade, activo, actuação, agenda, agir. Estas consoantes não são mudas no Francês, directamente se estabelecendo a relação:

action, acteur, agent, activité, actif, actuation, agenda, agir.

E para um estudante de Português língua materna? Nada muda. Retome-se o exemplo do tema ac-/ag- (fácil explicar a diferença entre “c” e “g”: esta é sonora, aquela surda, sendo sonoras as pronunciadas com a vibração das cordas vocais, ao contrário das surdas; o mesmo traço fonológico opõe “p”/”b e “t”/d”.), como pôr um aluno da escola

básica e secundária portuguesa a relacionar ação (ainda vá, tem um “c”), agente, agir, com ator? Ou atividade? Sem “c” nem “g”? E já agora, com actantes, termo técnico da teoria da literatura, em que o “c” se pronuncia (salvo se os acordistas não lhe decretarem a morte sem o sabermos…). Como saberão constituir uma família de palavras, remetendo todas para a ideia de agir, fazer?

Ou como poderão os alunos reconhecer e perceber a sensatez de uma relação entre Egito (uma mentira, pois o “p” não raro é pronunciado em Portugal), Egípcios e egiptologia (formas que o AO90 mantém)? Outro exemplo: optimus. Do radical, havia igualmente em Latim os optimates, que designava a aristocracia. E ainda opulentia, opulentus, opiparus, entre outros. Os últimos exemplos dados fazem perceber que a acepção para a qual apontava o radical era de abundância de recursos. Assim, ser optimas, nobre, signifi ca “aquele que possui recursos, rico”. Óptimo é pois ser rico! Um tal exemplo é apenas útil para quem estuda Latim, mas diz-nos de como a partir de famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e as escrevem pensam. As línguas e as suas expressões utilizam estes mecanismos para criar e relacionar palavras, por vezes baseados na simples paronímia, u.g. o português ferrolho, do Latino ueruculum, com infl uência de ferro, pois afi nal esse instrumento é feito deste metal (cf. Fr. verrou). A simplifi cação destrói laços de família.

Há uma opacidade, um mistério da escrita de que fala ainda José Gil no texto citado, em que prevê que estas mudanças induzirão outras na forma de pensar. A ortografi a “marca um espaço virtual

[A etimologia] diz-nos como a partir de famílias de palavras as diversas línguas formam cultura

Doutorado em Literatura. Investigador do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da U. de Lisboa. Poeta

para o pensamento”. Pois, a escrita, dir-se-ia, demanda precisamente, mediante a descodifi cação dos signos-grafemas, a observação, a análise e o estabelecimento de relações de sentido, encobertos nos subterrâneos da história das palavras. Outra consequência da sua dissolução é, nas palavras de José Gil (Visão, 16 de Fevereiro de 2012), o empobrecimento dos “movimentos possíveis da língua”. O fi m da consciência dessa opacidade “mutila o pensamento”. Anula-o na raiz. Estabelecer relações, analisar e observar são os princípios da ciência e da fi losofi a e, em geral, da formação de indivíduos e sociedades livres e pensantes. Só por empinanço, e graças a esforço acrescido e forçado, ou destituído de toda a lógica e intuição, ou porque o “s’tor” o diz… se ele próprio o souber. Com isto se preocupará a escola? Ou será um prerrogativa de conhecedores do Latim e do Grego? Se é que alguém doravante os conhecerá, decretado foi já o seu fenecimento…

Dizem que é para facilitar… O Brasil fê-lo com as suas reformas. Portugal prepara-se para o mesmo. Mas produziu e produzirá sociedades mais cultas e pensantes? Ou linguística e culturalmente empinantes? E cuja escrita se reduza a um trogloditismo, à mera transcrição de grunhidos? Repudiamo-lo!

P.S.: Uma das formas de os cidadãos se manifestarem (lembremo-lo) é subscrevendo a Iniciativa Legislativa dos Cidadãos contra o AO em http://ilcao.cedilha.net.

NUNO FERREIRA SANTOS

É necessário preservar a memória etimológica que existe, como uma “reserva ecológica”

Debate Acordo Ortográ!ico Rui Miguel Ventura Duarte