26
 A RECICLAGEM CULTURAL Walter Moser Universidade de Montreal I. Da arte s- romântic a à arte s-vang uardista No final do percurso de sua Teoria da Vanguarda 1 , Peter Bürger, dentro da lógica histórica que ele escolheu, colocou a questão de uma arte pós-vanguardista. Pois, uma vez que os vanguardi stas representaram o último assalto – exitoso ou não – à instituição burguesa da arte, então, qual estética foi concebida em seguida? Em um gesto interessante naquele momento de sua argumentação, de qualquer forma em uma posição de epílogo, Bürger deu a palavra a Hegel. Em seus “ Nachbemerkungen mit Rücksicht Auf Hegel ” ele recuou até à estética de Hegel para explorar o futuro pós-vanguardista. Re cu emos, então, com Bü rg er , para em se gu ida ab or darmos a nossa atualidade. Para Hegel, todo o futuro da arte coloca-se em termos de uma arte pós- romântica e sua atualidade estética é pensada por ele sob o título ”A dissolução da  Arte Romântica”. Como a arte romântica representa a ruptura do ideal estético clássico – concebido como “interpretação perfeita da forma e do conteúdo” -, esta última dissolução deve, logicamente, corresponder ao fim da arte 2 . Como pensar, então, tal dissolução e dentro de quais formas ela se realizará, já que o fim da arte não se caracterizará por um silêncio súbito dos artistas, nem pela amorfia total das obras?  A arte romântica representava uma ultrapassagem, senão uma dissolução, do ideal cl ás sico da ar te , uma ve z qu e ela ac or do u com um desenvol vi mento aut ôno mo em relaçã o aos dois princípios (forma e con teúdo) que deveriam se interp en etr ar harmoniosamente na obr a de arte. Desse modo, ela apresenta ao mesmo tempo um desenvolvimento excessivo do princípio exterior, sob a forma de uma objetividade prosaica e múltipla e um desenvolvimento excessivo do princípio interior, sob a forma de uma subjetividade toda-poderosa e arbitrária que dispõe os materiais segundo o gosto da genialidade artística, mas sem nenhuma necessidade objetiva, isto é, histórica. O resultado é uma arte excessiva seja em relação a um realismo prosaico ou a uma genialidade subjetiva. Entretanto, em que resultará a dissolução ou a decadência desta arte? Hegel prevê uma atividade artística separada de toda ancoragem histórica, cultural e política 3 . A relação esteticamente necessária - entre o conteúdo objetivo de um lado, o mundo da representação e a forma, do outro - seria destruída, o que dá lugar a uma atividade puramente lúdica: “a representação se torna um jogo com os objetos, uma deformação e uma reversão dos sujeitos” 4 . 1

A Reciclagem Cultural

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 1/26

Page 2: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 2/26

 A categoria do lúdico é aqui quase um sinônimo de manipulação arbitrária dosmateriais (objetos). É interessante considerar, em detalhe, os termos como Hegeldescreve os resultados de tal trabalho do artista, já que ele os desobstrui (esta é ahipótese que eu adoraria desenvolver aqui) em uma inquietante familiaridade com as

reciclagens culturais características de nossa época.

 Após a categoria do lúdico, aparece aquela da heterogeneidade

quando o sujeito se deixa levar diante do acaso os seus escárnios e brincadeiras, reunindointencionalmente as coisas mais heterogêneas e prolongando ao infinito os contatos, por maiscovardes que elas sejam5. Nessa abordagem, esse encadeamento de temas pedidosemprestados a todas as regiões do mundo e a todos os domínios do real, o humorístico pareceretroceder em direção ao simbólico6.

Haveria então um efeito de estranheza resultante do encadeamento de objetos

obtidos por empréstimo do heteróclito dentro de uma ordem contingente, resultante,aliás, já de certa mundialização, diante da circulação e disponibilidade dos materiaisreutilizados pelo artista. Mas esse distanciamento do material em relação a um lugar cultural particular se radicaliza na liberdade quase absoluta que teria o artista naescolha desses materiais. É isto que dá lugar ao princípio de indiferenciação dosobjetos:

nenhum conteúdo, nenhuma forma são mais imanentes à interioridade, à natureza, à essênciasubstancial do artista, ele não teria nenhuma preferência por nenhum assunto7 . A ligação a umconteúdo particular, e a um modo de expressão relacionado ao mesmo, tornou-se, para o artistamoderno, uma coisa do passado; a arte tornou-se um instrumento livre que pode ser aplicado, na

medida das capacidades técnicas, a qualquer conteúdo, seja de que natureza for 8

.

Resultante deste princípio, a reprise desses objetos se operará também emrelação ao pertencimento temporal ou, mais exatamente, histórico dos materiais. Todoo passado da arte torna-se um repertório de formas, encontrado em uma reserva(depósito) de objetos disponíveis que podem ser reutilizados livremente:

a individualidade mais especializada que ele (o artista) lhe empresta, não é a dele, porém ele seserve, para esta individualização, da sua reserva de imagens, dos modos de expressão que eleconhece, das formas de arte anteriores que ele guarda na lembrança, todas as coisas que, por elas mesmas, lhe são indiferentes e não adquirem importância até quando elas lhe parecem

convir melhor a tal ou tal tema9

.

Essa indiferença na escolha dos materiais, dando lugar ao um uso arbitráriopor parte do artista, não se dá sem efeitos quanto à re-apropriação do passado e sãodesaprovadas por Hegel: “não serve para nada apropriar-se, por assim dizer,substancialmente, das concepções do mundo no tempo passado”10.

Substanciais ou não, Hegel desmascara essas apropriações identitárias como poses superficiais e passageiras, notando a desvantagem da moda, daquilo que Büger chama “engajamento do artista”.

Finalmente e em conseqüência do que lhe precede, vemos aparecer 

Page 3: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 3/26

em Hegel, uma categoria que será conceituada e trabalhada mais tarde por ErnstBloch, aquela de “ não-contemporaneidade”, como é o caso na seguinte passagem:“Certes, l’artiste moderne peut se réclamer des anciens, et même des très anciens11.”

Na obra de arte pós-romântica hegeliana, que Bürger nos propõe pensar como

anunciando o que viria após as vanguardas, as identidades históricas então seapagariam ou, pelo menos, os materiais, tendo pertencido a épocas diferentes, viriama coexistir no mesmo nível e na mesma materialidade estética.

Esses diferentes aspectos da arte pós-romântica, tal como antecipado por Hegel12, permitem então à Bürger, chegar ao princípio da “disponibilidade total dosmateriais e das formas”:

 A total disponibilidade dos objetos e das formas características da arte pós-vanguardista dasociedade burguesa terá de ser investigada tanto pelas suas inerentes possibilidades, quantopelas dificuldades que elas criam, e isso, concretamente, através da análise dos trabalhos

individuais13.

Disponibilidade radical dos materiais, dando lugar à sua “reciclagem” pelosartistas que não seguem senão a lei de sua genialidade arbitrária, e que procedemsegundo um princípio lúdico, valorizando o arbitrário, eis o regime estético que Hegelpreviu para a arte pós-romântica. Esse regime também se definirá pelas categorias doheterogêneo, do arbitrário, do indiferente e ele será caracterizado pela circulaçãoilimitada dos materiais.

Bürger diz, com justeza, que Hegel historicizou a arte, mas não o conceito de

arte. Desse modo o filósofo deu prova de uma grande lucidez observando suaatualidade artística e prevendo a evolução futura das formas artísticas, mas, segundoseu conceito de arte, ele é obrigado a subsumir esses desenvolvimentos sob ascategorias de dissolução e de decadência e, no limite, do fim da arte.

 Abstraindo a conceituação hegeliana de arte, devemos nos render à evidênciade que, dentro de um plano puramente fenomênico, Hegel provou com uma notávelpremonição coisas a acontecer. Com toda a prudência necessária quando se fala deantecipação profética, é forçoso reconhecer – nós veremos a seguir – que ascategorias, às quais Hegel recorreu, nas suas previsões, são efetivamente utilizadas

hoje – e massivamente – na descrição da nossa atualidade artística e cultural. Mas aconclusão à que chegarei não é apenas que Hegel tinha razão e que ele previu tudo,mas antes, que os fenômenos - para os quais nós temos tendência a atribuir umaatualidade indiscutível e uma singularidade única - têm uma profundidade histórica quenós devemos, com vantagem, levar em consideração, para compreender suaespecificidade.

II. Lamentações dos tempos presentes:

A crise da história

Depois de Hegel e Bürger, abordemos a nossa14 própria atualidade que algunsclassificam de pós-moderna. Qual é essa atualidade? Para fins de melhor compreensão, eu me basearei aqui em dois textos. Primeiramente o livro que Jean

Page 4: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 4/26

Baudrillard publicou em 1992, intitulado  A ilusão do fim ou   A greve dos

acontecimentos15 . Em seguida o livro de Régine Robin, publicado em 1995, sob otítulo O Naufrágio do Século16 . Ele trata de duas constatações da atualidadecultural nas quais se reconhecem, dentro de combinações variadas, as atitudesdescritiva, analítica, interpretativa e diagnóstica em relação à nossa situação.

Baudrillard escreve na seqüência dos acontecimentos de 1989 e dos da guerrado Golfo. No texto, que é composto de muitos ensaios, ele discorre sobre váriosaspectos da cultura ocidental dos países do norte e trata, às vezes com uma raivamal contida e freqüentemente com cinismo, daquilo que ele chama de liquefação edesconstrução da história. Eis aqui, para dar o tom, um extrato do capítulointitulado “A greve dos acontecimentos”:

Seria muito bom se nós tivéssemos acabado com a história. Pois é possível que não somente ahistória tenha desaparecido (também o trabalho negativo, a razão política, o prestígio doacontecimento) mas que nós falhamos em alimentar seu fim. Tudo se passa como se nós

continuássemos a fabricar a história, enquanto nós não o façamos acumulando os signos dosocial, os signos do político, os signos do progresso e da mudança, em vez de alimentar o fim dahistória. Aquela, canibal e necrófaga, exige sempre novas vítimas, novos acontecimentos,  pour 

em finir un peu plus (p. 40).

O tema proposto é então aquele do fim da história, um fim anunciado ouconstatado por muitos, mas considerado impossível por Baudrillard, pelo modomesmo em que ele se concretiza. Uma das razões para essa impossibilidade éindicada aqui, sob o registro metafórico da alimentação, como aquele dadevoração, mais exatamente, da autofagia: alimentando-se de seus própriosmateriais (restos, cadáveres, signos etc.), a história se tornaria retrógrada,

revisionista, entraria, em termos hegelianos, em uma curva maléfica infinita, elanão acabaria mais de acabar.

 Aplicada à história, se reconhece a configuração do diagnóstico profético queHegel estabeleceu para a arte, com uma radicalização irônica pelo fato de que oque é condenado ao fim, não pode terminar. Hegel afirmava: a decadência da artetoma a forma de uma reciclagem generalizada das escórias da arte passada epresente; Baudrillard diz: a decadência da história toma a forma de um canibalismonecrófago da história por ela mesma. Seguiremos a reflexão de Baudrillard nodetalhe de sua figuração. Mesmo se a diatribe concerne, em última instância, à

história (ou talvez à cultura, termo que ele utiliza pouco) ele aplica sua reflexãoigualmente ao domínio da arte:

Parece que nós estamos destinados à retrospectiva infinita de tudo o que nos precedeu. O que éverdade para a política e a moral parece verdade para a arte também. Todo o movimento dapintura se afastou do futuro e se deslocou para o passado. A arte atual se apropria das obras dopassado, próximo ou longínquo. (p.44)

Aqui, como em Hegel, o princípio da reprise e da apropriação é aplicada a arte eidentificada como um modus  operandi   dominante na arte contemporânea. MasBaudrillard notou o mesmo modus operandi para a cultura e para a história em geral:

Page 5: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 5/26

É uma paródia ou preferivelmente uma palinódia da arte e da história da arte (peripécia refletindoaquela da história tout court ) – uma paródia da cultura por ela mesma em forma de vingança,característica de uma desilusão radical. É como se a história fabricasse suas próprias lixeiras eprocurasse sua redenção dentro dos detritos (p. 45).

 Aqui, o registro metafórico da alimentação17 cedeu um passo àquele da gestão dosresíduos, mas ele serve amplamente para fazer a mesma constatação: a retomada oua reciclagem dos objetos, separados do seu primeiro contexto e vazios de seuconteúdo, são entregues à morte antes de entrar no regime geral da repriseindiferenciada18.

Mais adiante, ele pede emprestado ao discurso econômico-ecológico para fazer avançar a mesma idéia de uma retomada ilimitada e infinita das formas mortas dahistória:

O imperativo ecológico é que todos os resíduos devem ser reciclados (...). Na verdade não há

problema insolúvel em relação aos dejetos. O problema é resolver pela invenção pós-modernada reciclagem e do incinerador. Os Grandes Incineradores da história, cinzas das quaisressuscitou a Phénix da pós-modernidade! É preciso se render ao fato de que tudo que era nãodegradável, não exterminável, é hoje reciclável, conseqüentemente não há solução final. Nósnão escaparemos do pior, de saber que a História não terá fim (p.46-47).

Como tudo que é resíduo pode ser retomado, reciclado infinitamente, não haverá ofim da história. O argumento, sendo reversível, pode tornar-se tautológico: como nãohá o fim da história, pode tudo ser eternamente reprisado? Seja como for, Baudrillardsitua o mal de nosso tempo e cultura na generalização daquilo que Hegel tinha jádiagnosticado para a arte pós-romântica: “o revival  anacrônico de todas as figuras do

passado” (p.46) ou, como ele dirá em uma fórmula ainda mais breve, no capítulo finalde seu livro, “o revival  das formas desaparecidas” (p.163).

Entretanto, retomada, revival  , reciclagem não é a repetição do idêntico19  .Baudrillard se auto-protege no sentido de expor em sua tese o eterno retorno. Suainsistência quase obsessiva no prefixo “re-” pode se solidificar em um conteúdosemântico, aquele da repetição20  , mas a observação de fenômenos concretos impõedistinções se não se quer faltar em relação à especificidade de nosso tempo e danossa cultura. Também Baudrillard traz precisões decisivas à seu propósito.

Entretanto essas formas anteriores não ressurgem jamais tais quais, elas nãofogem ao destino da extrema modernidade. Sua ressurreição é hiperreal. Os valoresressuscitados são fluidos, instáveis, submissos às mesmas flutuações da moda ou docapital nas bolsas. Desse modo a reabilitação das antigas fronteiras, das antigasestruturas, das antigas elites, não terá jamais o mesmo sentido. Se a aristocracia ou arealeza encontrarem um dia um estatuto, elas serão, apesar de tudo, “pós-modernas”.Todos os cenários retrô que são preparados não têm significação histórica, elesacontecem inteiramente na superfície de nosso tempo, como uma superposição detodas as imagens, mas não mudarão nada no desenrolar do filme (p.164).

Essa precisão é importante por duas razões: por um lado ela especifica a

diferença “pós-moderna” e por outro, ela explicita o que poderia se chamar a queixahistórica de Baudrillard. Uma é, aliás, função da outra: o modus operandi pós-moderno

Page 6: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 6/26

provoca a perda da significação histórica. Ele a faz desviar, perder a história, dar umavolta e tornar-se sombra de si mesma. Não há mais a história, ou a história não temmais lugar, o trabalho de história não se faz mais.

O diagnóstico de Baudrillard é grave porque ele conclui não apenas com um

desvanecimento (p.13) ou em um desaparecimento (p.17) da história. Com estediagnóstico, sua voz se une, aliás, com outras vozes: Fredric Jameson que constata ade-historização pós-moderna. E Régine Robin que trata do apagamento da História.Segundo Baudrillard essa liquidação da história se opera de um modo irônico quetoma a aparência de uma deconstrução, já que o gesto chave é aquele de um retornosobre si mesma, de um revival de suas próprias colocações, momentos e objetos21.Eis porque Baudrillard desenvolve a tese da reversão ou da retroversão da história (p.24) que ele declina, aliás, em vários quase-sinônimos, cujo denominador semânticocomum é ainda um prefixo: retrocurvatura, retroprocesso, retrospectiva (p.52-27).“Retro-“ parece indicar o movimento de retorno a um passado que não existe mais e

que Baudrillard quase não distingue de um ressurgimento dos objetos do passado.Retorno a ou retorno de, o momento definidor desta crise da história reside nareciclagem. Sobre esse assunto uma última citação repetindo a mesma constataçãodesoladora, todos confirmando sua nomeação de pós-modernidade: “Oarrependimento faz parte da pós-modernidade – a reciclagem das formas passadas, aexaltação dos resíduos, a reabilitação pela bricolage , a sentimentalidade eclética”(p.58).

 Regine Robin trata da mesma problemática em um texto apresentando nuancemuito diferente. Segundo ela, nós assistimos a uma perda do sentido da História pelo

fato de que nosso tratamento em relação ao passado se dá, mais e mais, dentro deuma regressão arcaizante, dentro de um remake, de um simulacro. Em termospsicanalíticos, não evitamos, não provocamos sequer o retorno do recalcado, porque otrabalho histórico que consiste em um trabalho de luto, não se faz. A perlaboração dosobjetos e dos conteúdos de história não encontra lugar, o que constitui um risco defazer-nos mergulhar na melancolia (p.32).

Seria certamente abusivo resumir essa crise da história pela expressão“reciclagem da história”. E, entretanto, à semelhança de Baudrillard, Robin dá umagrande importância aos fenômenos que nós podemos subsumir sob esta expressão.Ela desenvolve, aliás, uma impressionante riqueza de vocabulário para cobrir o campo

semântico aberto por essa expressão: reinventar, revamper , pastichar, parodiar,reescrever, refabricar, retocar, remanejar, reconfigurar, reutilizar, etc. De uma maneirageral, todas as atividades designadas ao acaso – e o texto multiplica os exemplostanto no Oriente quanto no Ocidente – usurpam o lugar do verdadeiro trabalho dehistória, são uma maneira de desviar o sentido da história.

No campo da arte, o trabalho de Régine Robin22 é mais nuançado que aquele deBaudrillard que, evocando muitos casos e lugares diferentes, se deixa um poucoconduzir pela lamentação geral. O texto “Naufrágio do Século”, malgrado o títuloapocalíptico, é mais diferenciado. Ele evoca, em particular, vários artistas e obras

onde o trabalho de luto histórico tem seu lugar e encontra uma expressão estéticaadequada, apesar de tateante: no cinema, Syberberg e Alexandre Kluge; em pintura,

Page 7: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 7/26

 Anselm Kiefer; em escultura, Jochen Gertz; em literatura, Heiner Müler e Christa Wolf,para mencionar os artistas que trabalham o passado alemão. Em uma paisagem que,feita as contas, é desoladora, haveria então clarões de esperança.

Apesar dessas diferenças de tom e das avaliações das situações, constata-se um

paralelismo impressionante entre as duas análises. Ele converge na figura dareciclagem: certo tratamento do passado histórico – do qual eu resumo,provisoriamente, as diferentes modalidades sob essa figura – está diretamente ligadoà uma séria crise da história, ora como seu sintoma, ora como sua causa. É, aliás,nesse lugar central dos argumentos que suas análises se parecem com aquela deHegel. Não poderíamos aí aplicar, mudando os termos, o que Bürger dizia dotratamento da arte por Hegel: eles historicizaram a história, mas não o conceito dehistória?

Para ilustrar este propósito, eu farei um desvio por Fredric Jameson, um outro

pensador e analista da atualidade cultural que se diz incomodado pelo canibalismohistórico e cultural do pós-modernismo estético. Face à massiva prática da reciclagempor parte dos artistas pós-modernos, Jameson se acha confrontado com um problematerminológico e acaba por tomar uma decisão muito clara:

Nessa situação a paródia encontra-se sem uma vocação; ela sobreviveu, e esta nova coisaestranha, o pastiche, lentamente chega para tomar-lhe o lugar. O pastiche é, como a paródia, aimitação de um estilo peculiar ou único, a roupagem de uma máscara, o discurso em uma línguamorta. Mas ele é a prática neutra de tal mímica, sem qualquer dos motivos ulteriores da paródia,amputada de seu impulso satírico, desprovida do riso ou de qualquer convicção que, ao lado deuma língua abnormal, que você em algum momento pediu emprestado, alguma lingüística sadianormalmente ainda poderia existir. O pastiche é então paródia branca, uma estátua com olhos

cegos: ele é para a paródia o que aquela outra coisa moderna interessante e historicamenteoriginal, a prática de uma sorte de ironia branca, é para o que Wayne Booth chama as ironiasestáveis do século XVIII23.

Jameson designará esta prática, não utilizando o termo paródia, mas o termopastiche. Essa decisão terminológica esconde, na realidade, uma questão deconceituação importante. Ela trata de salvaguardar o conceito moderno de paródia.

Essa conceituação nós encontraremos, com maior nitidez, em Winfried Freund24,que propõe uma teoria da paródia fundamentada na filosofia hegeliana, atualizada ecompletada pela crítica da ideologia. Segundo sua teoria a paródia é chamada parafazer o trabalho da história no interior do campo literário. Eis porque ela é associada,senão subordinada, à sátira que pressupõe sempre uma norma ideal oposta àsimperfeições reais. O trabalho paródico deve operar a ultrapassagem das formas deconsciência limitadas e figuradas, permitir à consciência humana se antecipar eparticipar do rumo do progresso histórico. O autor da paródia terá então de assumir,em literatura, o trabalho da crítica que é uma das formas que adota o negativo noprocesso histórico25.

Ou Freund cedeu à evidência que todas as paródias literárias não respondem àesse quadro ideal. Eis porque ele introduziu a distinção entre a paródia séria e a

paródia trivial. Há a paródia séria que está conectada ao bom senso, ao trabalho dehistória. A decisão aparentemente terminológica de Jameson é análoga, porém mais

Page 8: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 8/26

radical. Ele prefere renunciar ao termo paródia, a fim de preservar a sua conceituaçãomoderna. Uma prática literária que não faça o trabalho moderno da história não serámais denominada paródia. Será chamado pastiche – uma espécie de trabalho trivial,que não é mais que uma manipulação lúdica de materiais dados – e o definirá a partir da paródia por negação e privação. O pastiche será assim definido como uma paródia

amputada de seus atributos modernos:

- sem uma vocação- sem nenhum dos motivos ulteriores da paródia;- amputada de seu impulso satírico;- desprovida do riso ou qualquer convicção onde (...) alguma lingüística sadia

normalmente ainda exista

Em resumo: paródia vazia, isto é, uma paródia desprovida de suas característicasmodernas.

Não é então a reprise em si (“imitação de um estilo peculiar; linguagem que você,momentaneamente, tomou emprestado”) que é problemático para Jameson, mas suafalta de estabilidade e de controle para uma inscrição dentro do bom senso da história.

Mas é ainda mais grave, já que em Baudrillard e Robin não se vai além daparódia como uma forma simbólica diante da feitura do trabalho histórico. É a própriahistória que está em pane ou em crise. É este trabalho de história que não se faz mais,tendo em vista a pletora de práticas do tipo pastiche. Tendo em vista a generalizaçãoda reciclagem.

III. Reciclagens culturais – crise de qual história?

A problemática que eu tentei articular começa a atingir um grau de nitidez quenos permite reconhecer uma configuração repetitiva. Quer seja a arte em Hegel, aparódia em Jameson, ou ainda a história em Baudrillard e Robin, em cada caso elatrata de um diagnóstico grave: qualquer coisa entrou em crise, traçou seu fim e estádesaparecendo. Um pouco mais e não haverá mais arte, paródia, história. Um poucomais de que? – a cada vez, uma prática de reprise, uma forma de reciclagem pareceacompanhar o fenômeno observado, e mesmo se situar no coração da problemática e

constituir um elemento chave de argumentação.

É quando os materiais reciclados são separados de sua ancoragem espaço-temporal, quando a reprise se queda superficial e resulta no simulacro, quando ela nãoparticipa mais do trabalho da história, quando o verdadeiro trabalho de luto não se fazmais, quando a negação crítica não é mais suportada pelo material manipulado,quando o esforço de perlaboração falta, que a crise arrebenta e que o fim estápróximo. E cada vez, quer se trate de arte, de paródia ou de história, a constatação e odiagnóstico são acompanhados de uma carga axiológica que pode tomar a forma deindignação, de reprovação, de protesto ou ainda de cinismo – mas ela é sempre

negativa. Identifica-se aí um mal que impedirá os conceitos de serem o que eles são

Page 9: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 9/26

ou as coisas de se comportarem como os conceitos previram ou determinaram. A artenão será mais arte, a paródia não será mais paródia, a história não será mais história.

Que me compreendam; eu não defendo a estagnação das coisas, a repetição doidêntico, a conservação daquilo que é. Eu defendo, ao contrário, uma conceituação

dinâmica, para que o trabalho ao nível do conceito não seja subtraído, deduzido dahistória, como formula Bürger sobre o tema do conceito de arte em Hegel 26. Porque équando se elimina os conceitos em história que se é obrigado a concluir o fim da arte,quando certo conceito, historicamente condicionado, é situado e não funciona mais,isto é, não é mais exitoso no sentido de compreender o que se passa no mundo dosfenômenos. O caso da paródia, em Jameson, é ainda mais surpreendente: não se tevemesmo nem a idéia que se poderia retornar ao trabalho teórico sobre a paródia diantedas práticas artísticas e culturais em transformação. Colocou-se o conceito de lado,preservado como nunca no museu dos conceitos modernos.

Para deixar o argumento mais claro ainda, tomemos o conceito de sujeito. Hádécadas que se fala da crise e da morte do sujeito. Na verdade o que aconteceu éque, quando uma certa configuração do sujeito, historicamente condicionada, entrouem crise e mostrou signos cada vez mais nítidos de sufocamento e dedisfuncionamento, se concluiu o fim do sujeito tout court. Se a configuração do sujeitomudou – discursivamente, ideologicamente, psicologicamente, etc. – isso não quer dizer que não há mais sujeito, que a problemática do sujeito tenha desaparecido 27.Quando certo tipo de sujeito chega ao seu fim, não é o fim do sujeito tout court. Assimaconteceu com a arte e a paródia.

E a história? A questão é mais árdua, em dado grau, mais complexa, pois aítemos um conceito que, de certa maneira, subsume e subtende os outros dois. Aproblemática da história comporta certo mise en abîme* , na medida em que nãoenvolve somente uma maneira de pensar certos fenômenos, tais como a arte e aparódia, mas também o principio de colocar em ordem temporal e narrativa nospermitindo pensar e compreender os fenômenos. Quando tal ordem entra em crise ecausa problema, devemos concluir o fim da história, parar de falar da história, salvo deum modo negativo e privativo, renunciar a chamar “histórico” o que se passa e o quenós fazemos? Entramos aqui na ampla problemática do fim da história, da pós-história,de uma história outra que suscitou maiores debates. Eu não pretendo retomar toda aamplitude desses debates aqui, gostaria de me contentar em articular um problema

mais restrito que concerne à ligação entre a constatação da reciclagem generalizadano domínio cultural e o diagnóstico do desvanecimento da história.

* (NT) Mise en abîme é um termo em francês que significa “cair no abismo”, usado pela primeira vezpor André Gide ao falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si. Mise en abîme

pode aparecer na pintura, no cinema e na literatura. Na pintura, um exemplo seriam os quadros quepossuem dentro de si uma cópia menor do próprio quadro. No cinema quando as personagens acordamde um sonho quando ainda estão sonhando, estão vivendo um mise en abîme. Na literatura, mise en

abîme aparece quando as narrativas aparecem encaixadas – o livro “As mil e uma noites” é o melhor exemplo. Shakespeare e Edgar Allan Poe, entre outros, fizeram uso desse recurso

Page 10: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 10/26

Essa concomitância parece constituir um dos nós em relação à compreensão denossa atualidade cultural, mas ela se articula freqüentemente de maneira quasetautológica. A reciclagem avançou como o índice, o sintoma, mas também como acausa e mesmo a conseqüência da crise da história, ao mesmo tempo em que

sugeriu que a ausência da reciclagem funciona como a prova que o processo históricoestá ainda intacto, que o trabalho de história se faz. Eu gostaria de, em seguida,formular quatro proposições que poderiam nos ajudar a sair desta quase-tautologia.

Essencialmente, trata-se de rever, mais de perto, o que está em jogo, osargumentos, as atitudes constituintes desse nó, a fim de quebrar as possíveis aporiasque o fato da reciclagem parece provocar dentro do pensamento histórico moderno.Se a saída do impasse se anunciasse possível, essa não seria uma saída triunfal egloriosa, mas obtida através de pesquisa paciente, baseada em uma perlaboração deuma situação crítica, sem prejulgar o resultado. Pois nada nos indica antecipadamente

se este trabalho paciente nos colocará diante uma questão moderna ou de umaquestão desconhecida da história.

Primeira proposição

É necessário precisar o que nós entendemos como reciclagem, tendo em vistaa intenção de abordar a especificidade de nossa situação cultural e histórica.

Não se trata de ultrapassar a imprecisão que eu mesmo atribuí a este termotornando-o um denominador comum de um campo semântico que acolheu, por 

outro ponto de vista, um conjunto bastante vasto e heteróclito de termos, tais comoreutilização, reescritura, reinvenção, revamping , remake, revival , etc28. Essetrabalho de precisão e de distinção pode se articular em primeiro lugar,historicamente. Será então preciso articular os fatores históricos que tenhamcondicionado a emergência de um tratamento de objetos artísticos, culturais ehistóricos o qual desejaríamos nomear de reciclagem. Em uma abordagem rápidae superficial, quatro fatores se impõem:

 A mercantilização dos objetos e dos produtos culturaisEste fator é essencialmente de natureza econômica e conduz a um processo que já estava bem avançado no século XIX, assunto sobre o qual Walter Benjamim já

discorreu em Hochkapitalismus, quando ele examinou o “tornar-mercadoria” doobjeto de arte. A análise desse processo se deu através da crítica marxista nalinha Lukáks-Goldmann. Eu me contentarei em lembrar alguns aspectos quesobressaem. O objeto criado pelo artista corre o rico de perder seu valor 

artístico desde que ele entre no circuito de troca comercial e se torne

infinitamente intercambiável pelo dinheiro, o que o deixa comercialmente

reciclável. De obra, objeto de arte ele se torna um token de troca e um objeto decapitalização. Ele fica sujeito, de agora em diante, aos valores de flutuação dabolsa dos objetos de arte e às especulações que aí ocorrem. Essa reificação eespeculação econômica resultam, por conseqüência, na especulação do valor 

artístico ou cultural em valor comercial.

Page 11: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 11/26

 A produção e reprodução industrial dos objetos de arteDesde o século XIX, igualmente, se desenvolve um modo de produção dos objetosde arte ou, pelo menos, dos objetos que mantém um lugar na arte. Com a ajuda denovas máquinas, elaboram-se processos de produção que permitem fabricar, empouco tempo, um número muito elevado de objetos idênticos tirados do mesmo

molde, e mais tarde, com a programação eletrônica, do mesmo algoritmo. Essemodo de produção tem como efeito a implosão da distinção entre o original e acópia. A reprodução mecânica da obra de arte, da qual falou Benjamim - e quedesenvolveu-se, do ponto de vista técnico, desde a publicação, em 1936, docélebre texto benjaminiano - mantém, em parte, intacta aquela distinção, porémmodificando, em profundidade, nossa relação com a obra de arte e o uso que delafazemos.

Da industrialização da arte à indústria cultural há uma linha de desenvolvimentocontínuo. Segundo Horkheimer e Adorno, a indústria cultural é o reino da reprise e

da repetição banalizante, acelerada pelo aperfeiçoamento industrial e tecnológicoe pelo mercado em expansão. Na seqüência de Hegel, eles ainda pensam comouma decadência da “verdadeira” arte.

 A tecnologização dos meios de produção e de reprodução.Os desenvolvimentos técnicos fulgurantes dessas últimas décadas, sobretudo àmedida que eles foram tributários da eletrônica, tiveram como efeito adesmaterialização dos objetos e dos materiais manipulados. Na nossa vidacotidiana, nós estamos todos, em graus diversos, diante dessa espécie dedesvanecimento dos nossos objetos habituais. Essas novas técnicas instauraram

possibilidades de reprodução e de reciclagem que Benjamim não poderia nemsonhar quando ele redigiu seu ensaio sobre a reprodução mecânica. Pensemosem diversas máquinas de copiar 29, no tratamento eletrônico de textos e de outrosavanços de toda sorte nos permitindo, através de um simples clic , reproduzir,transferir, salvaguardar, transformar, mas também apagar textos e documentos 30

aos métodos de sampling aos quais são submetidos os documentos sonoros parapuxar e recombinar ao desejo das partes; quando pensamos, finalmente, notratamento sintético das imagens com a ajuda do computador pelo métodonumerizado que nos permite seja produzir sinteticamente os efeitos do real31, sejaretomar e retrabalhar qualquer imagem disponível nos arquivos. Essaspossibilidades são evidentemente exploradas pelas redes midiáticas – privadas ou

públicas – e asseguram disponibilidade e circulação, jamais atingidas, de textos,músicas e imagens. Sem falar do fato que essas transformações rápidas resultamcontinuamente em um nó a ser desmanchado pelos juristas que administram asleis sobre a propriedade intelectual ou artística, leis que não se adaptam facilmentee com atraso diante das novas realidades.

Decerto que esses desenvolvimentos técnicos não são, em si, responsáveispela nossa cultura de dominação citacional, mas é preciso, na sua análise, levar em conta o nível das condições de suas possibilidades históricas.

Um traço decisivo a lembrar: uma mudança importante está se operando narelação entre o humano e a máquina. Outrora a máquina podia ser pensada como

Page 12: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 12/26

um instrumento particularmente eficaz a serviço de um agente humano narealização de uma tarefa que lhe era confiada. Agora seria melhor falar de umaparceria da função do sujeito entre o humano e a máquina (portanto de umaagency* cada vez menos antropomórfica) para pensar os processos de produção ereprodução.

 A globalização no contexto pós-colonialIsso que chamamos globalização resulta da ação conjunta dos três fatoresprecedentes, mas ela pode, a seu turno, tornar-se a causa da aceleração dareferida conjunção. Na verdade, se constata hoje uma circulação de objetosculturais (produtos, símbolos, ícones, mas também looks, estilos, modas, etc.) paraalém das fronteiras nacionais, e mesmo continentais, sem respeito às áreasculturais32. Os materiais se tornaram, assim, onipresentes e exercem uma fortepressão sobre as culturas de tipo tradicionalista.

Na lógica da globalização os dois imperativos são a profundidade depenetração de um produto dado (comercialmente falando: a conquista demercados) e a velocidade de circulação. A cultura que daí resulta pode ser melhor ilustrada por aquela das metrópoles: nós encontramos os mesmos produtos, osmesmos modos de vestir e se alimentar, os mesmos centros comerciais, osmesmos espetáculos em Nova York, Paris, Buenos Aires, São Paulo. Não existeuma cultura metropolitana que não seja internacional. Graças, sobretudo, àsmídias, essa circulação do mesmo conhece, igualmente, uma penetraçãoprofunda33. Ela segue, na verdade, em primeiro lugar os percursos que adotam oscaminhos da colonização, indo do centro para a periferia, todavia, hoje e na

situação pós-colonial, ela conhece igualmente todos os tipos de retroações. Umexemplo conhecido: na literatura, o gênero romanesco foi “exportado” da Europapara a África e a América Latina, mas o boom europeu da literatura latino-americana teve o efeito de que as transformações trazidas ao gênero “na periferia”obtiveram o estatuto de um novo modelo a seguir e a reproduzir na Europa.

É importante, entretanto, não considerar a mundialização nem como umapanacéia nem como um nivelamento apagando todas as diferenças. Porque areciclagem de um modelo europeu na América Latina34 não significa a mesmacoisa que aquele de um traço típico de uma cultura periférica ou marginalretomado dentro de um centro metropolitano. Mesmo a retomada de elementos da

cultura popular pelas artes oficiais não quer dizer a mesma coisa na Argentina (por exemplo, nos romances de Manuel Puig) e nos Estados Unidos da América (por exemplo, em Vineland de Thomas Pynchon35.

Esses quatro fatores – que são certamente os principais, embora a lista possaser estendida – se mantêm e não atingem seu impacto máximo a não ser conjuntamente, reforçando reciprocamente seus efeitos. Eles formam um sistema.É através dessa maneira sistêmica que eles contribuem ao recrudescimentocontemporâneo do que aqui é delimitado pelo conceito metafórico de reciclagem.

* Ver nota 27

Page 13: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 13/26

O termo reciclagem aplicado aos processos artísticos e mais geralmenteculturais e históricos é hoje bastante utilizado. Na língua francesa, entretanto, eletende a receber uma carga axiológica negativa, já que em outras línguas,sobretudo o inglês (ch. O livro de C. Olalquiaga ) e o espanhol (ch. O livro de N.G.Canclini) o utilizam de maneira bastante neutra, como uma espécie de termo

técnico designando um certo tipo de reprise ou reprodução.

Em nenhum caso, todavia, o termo se recupera sem resto e de maneiratransparente como um conceito de fatura científica: unívoco, transparente, puro.Ele é, ao contrário, marcado por uma forte metaforicidade. Estará ele, portanto,inapto para nos ajudar a fazer o trabalho cognitivo e interpretativo que nosinteressa? Estimo que não, com a condição que se pense esta metaforicidade eque se considere as conotações que o termo veicula hoje. É que a “reciclagem” seencontra, em nossos dias, em um cruzamento interdiscursivo onde uma circulaçãointensa tem lugar entre os discursos de economia, de ecologia, da técnica

industrial e, em um grau menor, também do mito36

. Mas é, sobretudo, asuperposição da economia e da ecologia que determina o uso mais corrente dotermo. Segundo a lógica dessa superposição, nós vivemos hoje, ao mesmo tempo,em uma economia de superabundância e de penúria. Os ecologistas dissolvemesse paradoxo em uma relação causal: a superabundância despreocupadaconduziu à penúria, ou pelo menos a um desperdício de matérias primas. E mais,nossa sociedade de consumo se engajando, por razões econômicas, numa atitudede consumo muitas vezes desenfreada, produz mais e mais dejetos. Daí as visõesde uma sociedade incapaz de se desembaraçar dos resíduos e mergulhando emseus próprios detritos. A ecologia oferece, atualmente, duas vias de tratamento

para essa visão apocalíptica: a via branda, isto é, a reciclagem, e a radical queprevê a diminuição da taxa de produção e de consumo37. Reciclar tudo aparececomo um bom comportamento, como uma nova ética, podendo tomar umaconotação religiosa.

Essa tendência geral de tudo transformar em resíduos, para em seguidareciclar tudo não se explica diante do humano. Baudrillard atribuiu uma violênciaparticular que consiste em fabricar resíduos humanos ou degradar os humanos aonível de resíduos: “O pior não é que nós estamos submersos nos dejetos deconcentração industrial e urbana, é que nós estamos nos transformando emresíduos.” (p.115)

Uma volta decisiva terá sido dada a uma problemática do resíduo-reciclagem,pelo fato de que o dejeto não é mais apenas isso que o homem faz, mas também oque ele é. Ele é relegado ao estatuto de dejeto. E, segundo a lógica tornadaprática discursiva corrente, pode-se reciclar a energia, a força de trabalho contidadentro desse resíduo: “recicla-se” hoje os trabalhadores, os empregados a menosque, eles mesmos, se reciclem. O humano tornou-se um recurso entre outros.

 É importante ver as implicações desses discursos. Primeiramente, eles

pressupõem uma lógica de sistema fechado e de recursos limitados. Em seguidae, em conseqüência, eles concebem que a sobrevida desse sistema pode ser 

Page 14: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 14/26

assegurada por uma circulação interna de tipo cíclico, aí sendo introduzida umatemporalidade não linear. No interior de tal sistema poder-se-ia teoricamentereciclar indefinidamente. As diferenças temporais (passado-presente, presente-futuro) e com elas as dinâmicas históricas (o presente ultrapassa o passado secumprindo, o futuro é a projeção utópica dos projetos presentes) seriam, portanto,

praticamente abolidas. Eis aí o que coloca a história moderna em crise.

Ou essa via de aceno mítico não corresponde nunca às realidades. Mesmodentro do que se constitui neste momento o discurso e o lugar de aplicaçãoprimeira: o processo técnico da reciclagem. É verdade que a reciclagem técnicavisa recuperar a matéria prima e, por fazer isto, deve destruir (fragmentar, reduzir,moer) os objetos nascidos de um primeiro processo de produção; ela procede,portanto, pela negação de seu estatuto de objeto e apaga tanto quanto pode suaidentidade de objeto e o vestígio de seu pertencimento a uma história. Mas oprocesso revelou também que a matéria prima reciclada não corresponde em

validade à matéria primeira tout court, ela comporta impurezas, ela é de qualidadeinferior 38.

“A memória da água”: foi sob esta manchete que se anunciou recentementeuma notícia cientificamente sensacional sobre um trabalho de pesquisa emquímica que atribuía a uma matéria prima a faculdade da memória. Esta “memória”consistiria justamente das impurezas que a água teria acumulado durante seususos e passagens, sob a forma de vestígios químicos. Certamente falar da“memória da água” não seria mais que uma construção analógica obtida pelatransferência de elementos discursivos – em particular o conceito de memória - do

orgânico, e mesmo do humano, ao inorgânico, ao não-humano. Do mesmo modohá uma transferência analógica – em sentido inverso – se nós aplicarmos o termoreciclagem aos domínios da arte, da cultura e da história. Nesses domínios oapagamento da memória e do vestígio é a menor do que na reciclagem puramentetécnica. É que não se trata de um simples problema técnico, de um grau de purezaa atingir, mas de uma problemática incontornável. As questões da memória e dovestígio são indissociáveis nesses domínios, elas fazem intrinsecamente partedeles. Isto não quer dizer que a arte, a cultura e a história não conheçam oesquecimento, mas que elas sempre funcionam em uma relação dialética com amemória.

Se nós observarmos hoje os processos culturais que parecem com areciclagem técnica, isto não quer dizer que a memória esteja apagada ou que ahistória esteja anulada, mas que essa dialética está submersa, dentro do regimecultural pós-moderno, a um funcionamento extremo, onde, subjetivamente falando,se manifestam certos interesses em economizar o trabalho do luto. Se nósdefendemos o restabelecimento desse trabalho, que interesse nós podemos ter em recorrer à metáfora da “reciclagem cultural”?

Primeiramente, um interesse de não contornar o cruzamento interdiscursivoque eu esbocei e que é um fato constitutivo de nossa atualidade cultural.

Reconhecer e levar a sério esses materiais discursivos com freqüência intensa,entretanto, não equivale a aceitar todas as suas implicações. Trata-se, ao

Page 15: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 15/26

contrário, de considerá-los de maneira crítica, porém em uma atitude crítica quenão reproduziria a distância altiva de sua versão moderna. Porque, contrariamenteà crítica moderna, ela desobstruiu, progressivamente, uma crítica que não ébaseada em um gesto duplo de negação e de superioridade, mas na re-inscrição ena perlaboração.

Segundo, o interesse em integrar em nossa reflexão sobre a arte, a cultura e ahistória os múltiplos condicionamentos que evoquei e que se situam nos domínioseconômico, técnico, industrial e comunicacional. A figura conceitual de“reciclagem” considerou esses aspectos como componentes semânticosconstitutivos, que nos obriga, portanto, a pensar aqueles condicionamentos.Por essa razão o conceito de reciclagem não nos permite recair em umaabordagem idealista da arte e da cultura.

Desse modo, será preciso levar em conta a prática discursiva implicada em

idas e vindas entre o uso literal e o uso figurado da ”reciclagem” e que arriscaapagar essa distinção e, como conseqüência extrema, ora tratar o humano comoum resíduo, ora de conferir aos resíduos um estatuto de objetos culturais dotadosde memória. 

Trabalhar sobre as reciclagens culturais não quer dizer aceitar tudo o que estáimplicado nessas apostas do discurso do termo, mas tentar compreender os usosque dele nós fazemos, explicitando suas implicações.

Segunda Proposição

 A especificidade de nossa reciclagem pode ser abordada de maneira comparativa.

 A especificidade de nossas práticas culturais – e em particular de sua dominância“citacional” ou “canibal” – não deveria nos cegar diante do fato de que ela nãosaberia produzir cultura sem processos de repetição, sem a reprise de materiais jádados. Para que constitua cultura, é preciso que ela tenha um mínimo de reprise,de repetição, de persistência de pré-construtos culturais, de alguma sorte um grauzero de “reciclagem” (?). Entretanto, cada época, cada comunidade cultural ativaráeste fato cultural à sua maneira. São essas maneiras diferentes que nós podemoscomparar no sentido de melhor conhecer as práticas culturais particulares. É

verdade que existem culturas – nós temos a tendência de chamá-las “tradicionais”e, no passado, elas foram até qualificadas de “primitivas” – que atribuem umagrande importância a esses elementos e à sua integração dentro de uma tradiçãocontínua. Dessas culturas se afastaria a modernidade, definida como uma atitudecrítica para com a tradição, senão a sua ruptura com ela. Mas, os gestos deromper com o passado, de criticar a tradição, de instaurar o novo, podem, a seuturno, se repetir, tornar-se um elemento obrigatoriamente reprisado e tomar aconsistência de uma tradição39. Não se trataria então de opor as nossas práticasculturais com sua dominante citacional à cultura sem reprise nem reciclagem, maspreferivelmente, de determinar a especificidade das reciclagens culturais pós-

modernas em relação a outros momentos da prática cultural e em relação a outrostipos de culturas reciclantes.

Page 16: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 16/26

Uma dupla abordagem é então colocada, ativando tanto o eixo histórico como oeixo intercultural. Em um primeiro momento será preciso observar práticas dereprise cultural, como também suas conceituações, anteriores à nossa época. Assim, por exemplo, o conceito de imitação merece uma atenção particular, já que

pode ser considerado, de alguma forma, como um precursor da reciclagem,embora pertencendo a um paradigma estético diferente. Se o aparelho conceitualda imitação tem ainda uma ligação com a teoria da representação do tipoplatônico, se ele acomoda facilmente a mimese e pode mesmo integrar desenvolvimentos românticos que propõem uma subjetivação do processo decriação (como, entre outros, os conceitos de expressão, de originalidade, deautenticidade), a reciclagem demanda um trabalho de conceituação diferente quefaz implodir oposições tais como modelo vs  imitação, original vs cópia e, sobretudo, não permite mais atribuir ao processo de criação – ou, seria precisofalar de agora em diante de (re)produção? – a um agente autônomo e soberano. É

aqui que os fatores de condicionamento histórico, mencionados acima, devem ser mobilizados e interrogados a fim de nos permitir retraçar em detalhe a passagempara um regime cultural reciclante. Entretanto não nos iludamos em relação àexistência de regimes puros. Há antes uma superposição e combinação deregimes, por exemplo, aquele da imitação com aquele da reciclagem os quaiscoexistem dentro de um regime misto muito complexo. Desse modo, o tratamentonumérico da imagem, permitindo o tratamento do material pictórico independentedo modelo e se situando por conseqüência no registro tecnológico da “reciclagem”,pode estar carregado de uma estética “realista” e ser utilizada para produzir efeitosde realidade resultando, afirmativamente, de um ato de imitação.

O segundo eixo de comparação é intercultural. Ele tratará, portanto, decomparar a maneira como diferentes culturas e comunidades culturais “gerenciam”a pré-existência cultural. Tais comparações, para serem interessantes, deveriamlevar em consideração um grande número de funções e de aspectos: quaisinstâncias, em uma dada sociedade, são responsáveis pela persistência cultural,pela manutenção das tradições para a sua reativação; qual é o impacto dasdiferentes mídias e tecnologias sobre o jogo de repetições e variações no domíniocultural40; e, evidentemente, o que se revela como uma questão chave naspesquisas sobre as reciclagens, como é gerada a memória cultural através damanipulação dos objetos culturais disponíveis41? São igualmente comparadas

situações onde a retomada reciclante confere autoridade e dignidade a umaprática e as situações onde uma manipulação muito similar das pré-existênciasculturais dão lugar à sua banalização.

Hoje seria preciso, em primeiro lugar, pensar o efeito de nivelamento queprovoca a rápida difusão mundial de novas mídias e tecnologias, mas também astáticas de resistência que desenvolvem as culturas locais contra essaindiferenciação. Observar-se-á então formas de re-apropriação que valorizam areciclagem, se opondo ao apagamento das diferenças e que nos convidam a nãoavaliar ou generalizar com muita pressa os processos de reciclagem e seus

efeitos. É assim que o trabalho comparativo pode nos conduzir a estabelecer 

Page 17: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 17/26

diferenças lá onde um olhar mais apressado não veria mais que o nivelamento, oempobrecimento e, à semelhança de Hegel, a decadência.

Terceira proposição

Durante o trabalho de análise e de interpretação da reciclagem cultural émelhor evitar os julgamentos globais, como também as lamentações, e fazer ascoisas à parte, procedendo-se caso a caso.

 Após ter contribuído para articular um fenômeno global denominado“reciclagem cultural” e ter começado a avaliar sua importância nas práticasculturais, eu defenderei aqui um trabalho nuançado e minucioso quando se tratade abordar casos concretos de reciclagem cultural. A complexidade das situaçõesconcretas não precisa ser comprovada: nossas práticas culturais são fortementemarcadas pelo heterogêneo, pelo não-contemporâneo e pelas tecnologias as mais

revolucionárias podendo servir causas as mais divergentes. Negativamentefalando, eu me insurjo contra um tratamento hegeliano da situação atual,consistindo em não ver crise e decadência da história lá onde o Espírito nãoavança teleologicamente para a sua apoteose ou sua  parousie que marcará o Fimda História42. O trabalho da história não é talvez tão monolítico, o trabalho dareciclagem não é, em nenhum caso, tão simplista e previsível, nem no seufuncionamento, nem nos seus efeitos. Evitemos, portanto, em colocar no mesmosaco e contestar com um preconceito axiológico tudo o que, de perto ou de longe,apresente a evidência de um caso de reciclagem cultural.

Eis porque é preciso começar por reconhecer a diferença das situações, istoque é, aliás, uma parte integrante do trabalho comparativo. Eis aqui, a título deexemplo, três tipos de situações que não seriam mais divergentes, implicandoprocessos de reciclagem cultural.

Há a situação da queda do império soviético que deu lugar à desmontagem dasestátuas oficiais e ao problema subseqüente de sua liquidação ou sacrifício, àprofanação da iconografia socialista e, em seguida, à liquidação de um conjuntoheteróclito de objetos, tornados piores, de um império destruído e procurados,sobretudo, no Ocidente. Outra situação se apresenta na indústria do cinema quepassa em revista seu repertório, antigo e contemporâneo, através de todos os

tipos de técnicas, recorrendo às tecnologias mais avançadas em produtos jádados: colorir filmes em preto e branco, na esperança de retirar novos benefícios,retrabalhar sinteticamente material fílmico antigo, refazer filmes inteiros em remake

para lançá-los em um novo mercado. Uma terceira situação é aquela da músicarap que é uma música popular nascida e ligada à comunidade negra norte-americana; sua parte musical apela para uma alta sofisticação tecnológica,compreende métodos violentos incluindo o scratch rap que inclui a danificaçãomecânica de uma trilha sonora já existente e comporta também uma parte verbalque recorre a todo tipo de citação, apresentando discursos politicamenteincorretos; o todo resulta em um produto lançado rapidamente no mercado, onde

entrará em concorrência com outras formas de música popular 43.

Page 18: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 18/26

Não há dúvida que essas três situações são características de processos dotipo “reciclagem”. Porém, que enorme diferença de situação! Toda análise einterpretação deverão, portanto, levar em conta essas diferenças e começará por elaborá-las, considerando os fatores históricos, econômicos, étnicos etc. que ascondicionam. Será preciso em particular reconstruir a situação pragmática

identificando os agentes, os materiais, as mídias e os circuitos escolhidos e,sobretudo, as causas que são mobilizadas e combatidas.

Em seguida é importante reconhecer e elaborar a complexidade das situaçõesdentro das quais se dá a reciclagem cultural. Eu noto, a título de exemplo, o casoda reprise de elementos culturais tradicionais e populares em uma nova práticacultural. Concentrarei no caso da América Latina, onde esse tipo de reprise podeter tanto uma função de constituição identitária cultural quanto uma função crítica. A reativação de elementos retirados da cultura popular pode inscrever-se naconstituição de identidades nacionais ou desempenhar um papel importante, nas

estratégias de resistência local, contra traços culturais tornados dominantes nocontexto da mundialização cultural. Em alguns casos, esse processo vai desde areativação de raízes culturais pré-colombianas, ou de declará-las barrocas avant la

lettre e atribuí-las como componente intrínseca da identidade cultural barroca da América Latina.

O mesmo tipo de reprise pode, ao contrário, ter uma função crítica. É o caso,por exemplo, de um grande número de textos do autor argentino Manuel Puig que,com o mesmo gesto, foi exitoso em mostrar e questionar certa cultura popular hollywoodiana presente nas classes sociais inferiores, em particular junto às

mulheres. Longe de levar a uma reprodução afirmativa, este trabalho “reciclador”permitiu ao autor desobstruir uma distância crítica com respeito aos materiaisassim reproduzidos e retrabalhados. O caso de Luis Rafael Sánchez, que Irlemar Chiampi analisa no volume do romance La importância de llamarse Daniel Santos,revela-se ainda mais complexo. A maneira como o texto literário se encarrega dosobjetos da cultura popular latino-americana, ligadas ao bolero – descriçãobiográfica, letras das músicas, ritmos – cria, ao mesmo tempo, um efeito deidentificação e de distanciamento. Identificação em relação a um espectro deelementos culturais populares que circulam na América Latina bem além dasfronteiras nacionais e, de algum modo, sob diversos projetos de modernização;distanciamento em relação a diversos conteúdos – por exemplo, as idéias

machistas introjetadas, os clichês sentimentais – veiculados pelos materiaisreinscritos pelo autor literário em uma obra de prestígio cultural. 

 A diversidade de situações e a complexidade de operações tornam ainterpretação das reciclagens culturais muito árduas e abrem um campohermenêutico onde reinam sempre as vozes plurais, freqüentemente aambivalência e às vezes o conflito. As reciclagens são, sem exceção, casoslitigiosos quanto ao estabelecimento de seus sentidos. Não há um modo decontornar ou de evitar um curto-circuito neste diferendo hermenêutico; énecessário aí se instalar, fazer o trabalho de interpretação e assumir os resultados.

Page 19: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 19/26

Regine Robin nos deu um exemplo; observando a produção artísticacontemporânea, ela decidiu quais artistas e quais obras contribuíram para otrabalho de luto que nossa situação histórica nos impõe. Ela os vê inscritos no bomdesempenho da história, contribuindo para a elaboração do sentido da história44.Em minha opinião, contudo, ela decide muito rapidamente, ao determinar o sentido

a dar a essas obras e ao condenar aquelas que não são recuperáveis para ahistória. Ela lhes dá o sentido, o bom sentido, sem considerar os debatesinterpretativos que eles provocam. Tomemos o caso do pintor alemão AnselmKiefer: sua obra está longe de ser consensual entre os intérpretes, dadas asambivalências que ele semeou na sua passagem. Kiefer, entre outras coisas,recicla do material almejado, elementos da história cultural alemã45 que se fizeramobjeto de uma reapropriação nazista. Faz, para tanto, o jogo da ideologia nazista,e a reafirma, a celebra ou, ao contrário, - graças às técnicas de colocar a distânciacrítica que seria preciso para ele analisar de perto - exorciza esses materiaismonopolizados pelos nazistas? Aí está o debate e ele não está fechado, como

Regine Robin deixa entender.

Um debate análogo tem lugar no que concerne a retomada da reavaliação dobarroco no Brasil: todo o interesse positivo em relação ao barroco hoje e,sobretudo, todo o trabalho artístico reciclando o barroco é para ser interpretadocomo comungando com a direita política – como sugere João Adolfo Hansen46 – oué ele conciliável com as posições da esquerda política, isto é, com certamodernidade histórica, como quer Haroldo de Campos47? Igualmente ao tema daretomada do barroco, é interessante observar as hesitações interpretativas por parte da revolução cubana em relação aos autores cubanos contribuindo de

maneira decisiva ao ressurgimento do barroco na America Latina (Jose LezamaLima) ou a elaboração de uma estética neo-barroca (Severo Sarduy). Todos essesdebates interpretativos não são organizados com antecipação; eles dão lugar aconflitos interessantes e prolongados: eles devem, em conseqüência, serempensados na sua dimensão de antagonismo. E também mostram que a decisãoglobal de ordenar o fenômeno da reciclagem cultural no campo oposto ao dahistória revela-se bastante apressada e pouco nuançada, na medida em que seanalisa e interpreta casos concretos.

Quarta Proposição

No lugar de interpretar o intenso crescimento de processos culturais, do tiporeciclagem, como sendo signo de uma crise da história podemos tomá-lo comouma oportunidade e um convite para repensar a história.

Se as reciclagens culturais, sobretudo sob a influência dos fatores históricosobjetivos mencionados acima, passam a ter uma dada importância em nossa vidacultural, faremos bem em levá-las a sério e em não considerá-las simplesmentecomo obstáculos ao bom curso da história. Este é cognitivamente insuficiente paracondená-las axiologicamente e, pior ainda, para fazê-las assumir a culpa ou aresponsabilidade pela crise da história.

Page 20: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 20/26

Se for verdade que podemos atribuir às reciclagens culturais um valor sintomático ou indicial em relação à crise da história, eu proporei aqui, entretanto,uma mudança de argumentação. O recrudescimento das reciclagens que nãoentram na lógica da história poderia também ser lido como um signo indicando queuma dada maneira de pensar a história chegou ao seu ponto morto . Ela começa a

apenas sobreviver e a tornar-se um objeto de nostalgia intelectual. Porque podeser muito bem que o que está em crise não seja a história tout court, mas certamaneira de conceber o processo histórico, essencialmente a teoria moderna dahistória. Pode ser que, até o presente, certa sinonímia ou uma inclusão intrínsecatenha existido entre modernidade e história.

 A reciclagem cultural poderia nos obrigar a considerar a possibilidade dedissociar esses dois termos e de conceber um processo histórico que não sejamais moderno. Pelo menos sua insistência contemporânea na vida cultural nosconvida a pensar a história além da modernidade histórica. A pensar o que a

história poderia ser depois que os topoi e os estratagemas discursivos da históriamoderna (as grandes narrativas da liberação, da emancipação, o progresso, aevolução, a utopia, a negação crítica, o revezamento hegeliano, a revolução etc.)fossem induzidos ao disfuncionamento e revelados seus mecanismos enganosos eseus efeitos “contraprodutivos”.

Mais uma vez o trabalho de Regine Robin pode nos guiar. Ela começou aexplorar, por exemplo, a relação que existe hoje entre a historiografia e a literatura.Ela recorda a desconfiança tradicional da historiografia em relação à literatura, aqual, mais tarde, depois da ascensão do gênero romanesco, no século XVIII, se

transformou em dois discursos concorrentes. O romance tem mais liberdade formale menor comprometimento com a verdade e a historiografia tem maiscredibilidade. A autora chega a um diagnóstico interessante que talvez seja melhor formular sob a forma de hipótese: a literatura estaria avançando sobre ahistoriografia nas modalidades de construção do objeto histórico? Talvez ela tenha,em virtude de sua maior liberdade experimental, a coragem de explorar e depensar alternativas à história moderna, de inventar alguma sorte de novasmaneiras de escrever histórias, e também a história. De fato, a literaturacontemporânea retrabalha muito e sob diversos aspectos – incluindo aí o modoreciclante – as modalidades da narrativa e da história: os esquemas narrativos, osesquemas de compreensão, os esquemas de argumentação. No caso, por 

exemplo, da História do mundo em 10 ½ capítulos, Julien Barnes perlabora todauma série de colocações em ordem historiográfica, a interroga e a faz funcionar,por assim dizer, paradoxalmente, de uma maneira disfuncional. Esse tipo detrabalho comporta uma grande parte da reciclagem discursiva e opera, implícita eexplicitamente, uma interrogação de o que é isto que é a história, tanto comoconceito quanto como prática discursiva.

Conclusão

Fazendo do sintagma “reciclagem cultural” uma metáfora epistêmica que pode

nos ajudar a pensar uma dominante cada vez mais evidente em nossas práticasculturais, nós nos instalamos em uma curvatura interdiscursiva que faz, ela

Page 21: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 21/26

mesma, essas práticas. Nós não acatamos a vantagem enganadora do discursodominante, nem a duvidosa eficácia instrumental do conceito puro. Apesar doesforço em precisar o emprego que nós podemos e queremos fazer, este sintagmanão será, pois, estabilizado de uma vez por todas, dentro do seu campo deconotações: nem fixado, nem matrizado conceitualmente.

Nós corremos então o risco de pensar um objeto movente através de umametáfora que mal nos dá a distância epistemológica e crítica necessária parapensar. Pelo menos nós não nos refugiamos em um arsenal conceitual quearrisca, a seu turno, ser arrastado pela transformação que sofre nosso objeto.“Reciclagem cultural” nos permite designar um lugar bastante preciso nas nossaspráticas culturais e nos convida a uma reflexão teórica, e a um trabalho críticosobre essas práticas. Esse lugar é aquele da dominante citacional ou docanibalismo constitutivo da vida cultural contemporânea para o qual nós fazemosuma aposta no sentido de abordar sua especificidade.

Revela-se, todavia, que a problemática que a “reciclagem cultural” nos permitedelimitar tem raízes históricas profundas e amplas bases transculturais. De onde anecessidade de precisar os parâmetros históricos e culturais de cada caso dereciclagem cultural estudado e de explorar as relações específicas. Na medida emque a intensificação e a diversificação das modalidades observadas podem ser lidas hoje como um sintoma de uma crise da história, é indicado não concluir apressadamente o fim da história tout court . É mais interessante reconhecer nessadominante cultural o convite a repensar a história e, mais precisamente, de agarrar a chance que ela traz para aprender a dissociar modernidade e história.

Page 22: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 22/26

Notas

1. Frankfurt a. M.,Suhrkamp, 1974, citado aqui de acordo com a versão inglesa: Theory of the Avant-Garde, Minneapolis, University of Monnesota Press, 1984.

2. Em conseqüência é de direito perguntar se obras iguais merecem ainda ser consideradas como verdadeiras obras de arte. Consideradas à luz do conceito de ideal,tal como nós definimos acima e segundo o qual a arte comportaria, de um lado, umconteúdo necessário e permanente e de outro lado, uma forma adequada a esteconteúdo, essas criações de arte imitativa parecem apresentar um valor medíocre (G.W. Friedrich Hegel, Esthétique, tomo 5 : L’Art romantique, Paris, Aubier Montaigne,1964, p.131)

3. Para Bürger, que fala sobre isso na sua quarta parte intitulada « Avant-Garde andEngagement », se trataria de uma crise de engajamento do artista.

4. Hegel, Esthétique...p.139.5. Hegel, Esthétique...p.139. Na época de Hegel « bizarro » era um sinônimo da palavra

barroco. É interessante ver aparecer na discussão da arte contemporânea.esta alusãoindireta ao barroco, percebida como uma estética da decadência e de mau gosto. Aestética pós-moderna retomou o barroco, mas com uma revalorização positiva.

6. Hegel, Esthétique..., p.1407. Hegel, Esthétique..., p.1468. Hegel, Esthétique..., p.1409. Hegel, Esthétique..., p.14710. Hegel, Esthétique..., p.14711. Hegel, Esthétique..., p.15012. Eis a formulação mais próxima àquela de Berger : « in dieser... »13. Peter Bürger, op. cit ., p.9414. O « nós » inclue aqui as sociedades industriais avançadas que adotaram, de uma

maneira mais ou menos pura, uma economia capitalista de mercado e que sehabituaram a designá-las por termos geográficos muito imprecisos: os paísesocidentais, os países do norte.

15. Jean Bauderllard, L’Ilusion de la fin ou La grève des événements, Paris Galillé, 1992. As referências à esta obra serão dadas no próprio texto, entre parênteses.

16. Reedição de Le Cheval blanc de Lénine ou l’Histoire autre (Bruxele, ÉditionsCompléxes, 1979), Le Naufragé du siècle (Paris / Montréal, Éditons BergInternational/XYZ, 1995) aumentou com dois ensaios introdutórios : « Requiem pour une déboulonnéé » e « L’Histoire aujourd’hui à l’épreuve de la littérature ». Asreferências à esta obra serão dadas igualmente no texto, entre parênteses

17. Que, combinada com a temática do dejeto, Baubrillard pensa metaforicamente até aconseqüência de uma cultura do excremento (p.45). Ver sobre este assunto o livro de Arthur Kroker e David Cook, The Postmodern Scene, Excrementel Culture and Hyper  Aesthetics, New York, St Martin Press, 1986. Outros registros metafóricos têm umpapel primordial em Baudrillard: aquele da física, mas sobretudo o da patologia :câncer, metástese, contaminação, infecção viral para falar da cultura e história a qualpertence a uma longa tradição da crise pensada como uma doença orgânica.

18. Encontra-se uma constatação similar em Fredric Jameson, em Postmodernism, Or theCultural Logic of late Capitalism, Durham, Duke University Press, 1991.

19. Não confundir com o identitário que é mais um dos conteúdos, uma das formas de ser visado no processo da história ao avesso (Jean Baudrillard, op. Cit., p. 33). Baudrillardaí se refere, aliás, nos termos de « loucura identitária » (p. 152) e de « síndromeidentitária » (p. 153). Regine Robin não é menos crítica dos « recursos identitários »que se multiplicam ( p. cit., p.27).

20. Um pouco como Heidegger que em O Ser e o Tempo (Sein und Zeit , Tübinguen,Niemeyer, 12e éd,, 1972) obedece ao conteúdo semântico « antecipation » elaborandoa estrutura da antecipação da compreensão pela acumulação do prefixo vrr- naspalavras alemãs Vorhabe, Vorsicht, Vorgriff .

Page 23: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 23/26

21. Aqui Baudrillard está próximo da definição que Antonio Trbucchi propõe para o pós-moderno : « é um sítio que rompeu com a tradição recuperando a tradição...o resumode várias formas diferentes ». (Requiem, Lisboa, Quetzal,1994)

22. Embora eu me refira aqui apenas no primeiro ensaio sem mencionar o segundo,intitulado « A História hoje à prova (épreuve) da literatura», onde Regine Robin discute,em detalhe, as interações complexas entre o trabalho do historiador e aquele do artista

literário.23. Fredric Jameson, op. cit ., p.17.Winried Freund,24. Winfried Freund, Die literarische Parodie, Stutgart, Metizier,198125. Baudrillard, na raras tentativas de definir a história, não esquece jamais de mencionar a

negação como uma das suas modalidades de operação fundamental.26. « Hegel ... » (Peter Bürger, op. cit ., p.128 )27. Como se quer acreditar no mundo anglo-saxão mudando o termo: agency (algumas

vezes traduzido por agencement ) se encarrega, em grande parte, das questões outroraligadas à problemática do sujeito. Insiste-se de outro modo sobre uma des-antropomorfização do termo « sujeito », que o uso daquele, aliás, iniciou.

28. A riqueza assim como a pluralidade desses termos circulando hoje são, em si, umíndice discursivo de uma preocupação cultural e da emergência das novas práticas queestão a ser nomeadas.

29. Esta que tem, aliás, dado lugar ao aparecimento de uma atividade artística chamadacopy art .30. Esta facilidade técnica está na origem do que Regina Robin propõe denominar 

fenômeno delete (op. cit. P.27)31. Ou então decididamente uma « hiperrealidade » - segundo a terminologia de

Baudrillard – que nos situa bem além de toda estética mimética.32. Lembramos que Hegel previra o desprendimento das formas e objetos estéticos de sua

ancoragem espaço-temporal e, em conseqüência, sua livre circulação.33. Por exemplo o filme Bye bye Brasil que mostra como a cultura televisiva apresenta

como nunca a cara cultural do Brasil, aí compreendido o Brasil « profundo ».34. Eu não menciono aqui o exemplo, analizado por Celeste Olalquiaga ( Megalopolis,

Cultural Sensibilities, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1992), no qual osfilhos da boa sociedade chilena, para se divertirem no fim de semana se « disfarçam »

de punk .35. Será consultado nesse assunto o livro de Nestor Garcia Canclini, Culturas Híbridas.Estrategias para entrar y salir de la modernidad , (México, Grijalbo,1990) e a coletâneade textos editados por Hermann Herlinghaus e Monika Walter, Posmodernidad en la periferia. Enfoques latinoamericanos de la nueva teoria cultural (Berlin, Langer Verlag,1994).

36. Baudrillard, por exemplo, reativou o mito de Phénix para falar da reciclagem histórica eda pós-modernidade (op. cit., p. 46-47)

37. Ver o livro de Robert Thomas, Luxusware Müll (Düsseldorf,Zebulon – Verlag, 1994) querepercute e analiza os debates que ocorreram na Alemanha sobre este tema.

38. Cf. sobre esse assunto a adoção do termo Sekundärrohstoff ocorrida na RepúblicaDemocrática Alemã, a qual marca, ao mesmo tempo, que se trata de um segundocircuito de produção e que a matéria prima obtida por reciclagem é de qualidade

inferior.39. Cf. Sobre esse assunto, o livro de Harold Rosemberg, The Tradition of the New, New

York, Grove Press, 1961.40. A título de exemplo, cf. a análise que propõe Omar Calabrese dos tipos de serialidade

que se desenvolveram nos Estados Unidos nas séries televisivas (na L’etá neobarocca,Bari, Laterza, 1987).

41. Uma questão que foi abordada, entre outras, por David Gross no seu The Past inRuins. Tradition and the Critique of Modernity (Amherst, University of MassachussettsPress, 1992).

42. Ver sobre esse assunto o livro de Rainer Rotermundt, Jedes Ende ist ein Anfang  Auffassungen vom Ende Geschichte (Darmstad, Wissenschaftliche Buchgesellschaft,,1994, p.67-75) que denuncia o fim da história em Hegel como uma idéia recebida quenão encontra confirmação nos textos de filosofia.

Page 24: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 24/26

43. Pode-se ler com interesse a interpretação positiva que David Shustermann propõesobre o fenômeno Rap no seu livro Kunst – Leben ... ; trata-se de uma tradução parcialde Pragmatist Aesthetics. Living Beauty, Rethink Art )

44. Regina Robin, op. cit ., p.32-39.45. Sobretudo aquela que começa pelo romantismo e que Lukács declarou irracional e

reacionária.

46. João Adolfo Hansen, A Sátira e o Engenho. Gregório de Matos e a Bahia no século XVII , São Paulo, Companhia das Letras,1989.

47. Haroldo de Campos, O seqüestro do Barroco na formação da literatura brasileira. Ocaso Gregório de Matos, Salvador, Fundação Casa Jorge Amado,1989.

48. « L’Histoire aujourd’hui à l’épreuve de la littérature », op. cit., p. 55-100.

Page 25: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 25/26

Page 26: A Reciclagem Cultural

7/30/2019 A Reciclagem Cultural

http://slidepdf.com/reader/full/a-reciclagem-cultural 26/26

9 10 

11 

12 

13 

14 

15 

16 

17 

18 

19 

20 

21 

22

23 

24 

25 

26 

27 

28 

29 

30 

31 

32 

33 

34 

35

36 

37 

38 

39 

40 

41 

42 

43 

44 

45 

46 

47