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02/07/13 A Rendição às panelas - gastronomia e economia criativa www.canalrh.com.br/Mundos/imprimir.asp 1/2 Colunistas www.canalrh.com.br A Rendição às panelas - gastronomia e economia criativa Ana Carla Fonseca | segunda-feira, 24 de setembro de 2012 Por anos a fio convencionou-se dizer que a gastronomia brasileira era sustentada pelo triunvirato churrasco-feijoada-moqueca. Quanta injustiça proferida contra os barreados, os patos no tucupi, os azuis-marinho e a infinita variedade de bolos, quitutes e docinhos de nomes sugestivos. Quem não sonhou com um beijinho, com a brevidade de um suspiro, tentando driblar a língua da sogra ou do sogro brigadeiro? Nas últimas duas décadas, a gastronomia brasileira, com sua miríade de influências, derivações e ingredientes, vem sendo incensada cada vez mais por gulosos e gourmets de todos os gostos e bolsos. Que o diga o D.O.M., espaço de perdições que em menos de dez anos passou do anonimato internacional à posição de quarto melhor restaurante do mundo. Que o comprovem talentos consagrados, como o de Carla Pernambuco e o de jovens chefes como Isabella Masano, Ana Luiza Trajano, Rodrigo Oliveira e Helena Rizzo, que antes dos trinta anos já se firmavam com releituras dignas de encantar os cinco, seis e todos os sentidos que ainda virão a ser descobertos. Enquanto isso, nossas feiras e mercados se transformam em uma Babel. A cada ano, levas e mais levas de chefes estrangeiros de todas as nacionalidades desembarcam ávidos por garimpar frutas, pimentas, temperos e outros acepipes com alto potencial de fascínio, aprender técnicas de cozimento e mergulhar nas tradições culinárias. Mas, se esse manancial de inspirações sempre existiu e o brasileiro é um notório bom de garfo, o que mudou? Primeiro, a catálise de transformações provocada pelo binômio globalização & mídias digitais parece ter-nos levado a descortinar um novo horizonte de sabores e texturas, em nosso próprio país. Há vinte anos os poderes mágicos do açaí eram conhecidos apenas pela população amazonense; a castanha de baru tinha seus domínios restritos ao Cerrado; e as frutas do Nordeste e do Sudeste se encontravam muito excepcionalmente em uma gôndola de supermercado. E certamente muito mais há por ser descoberto, degustado e aprovado. Segundo, talvez como reação a uma cultura que se funde cada vez mais no âmbito global, tornamo-nos fervorosos apreciadores das singularidades locais. Quem tiver idade para isso se lembrará de que até mesmo a cachaça, que hoje motiva uma constelação de cursos de todos os níveis e tem marcas disputadas a peso de ouro, era invariavelmente relegada a plano B das festas de formatura - porque, afinal, ocasiões especiais exigiam algo mais requintado. Somando-se a nós, os turistas internacionais - que, segundo a Organização Mundial de Turismo, devem chegar a 1,6 bilhão de pessoas em 2020 -, partem em busca de experiências gastronômicas impregnadas de conteúdo simbólico, pelos quatro cantos do mundo. Terceiro, a gastronomia passou a ser reconhecida cada vez mais como indústria criativa de relevância econômica fundamental, nas cidades das mais diferentes escalas e de perfis socioeconômicos os mais variados. Nas pequenas cidades, quem nunca se surpreendou com as inúmeras possibilidades de transmutação do milho, da mandioca ou do morango em dezenas de pratos que encantam olhos e estômagos, em um calendário de celebrações culinárias profundamente ancoradas em culturas, ritualizações e tradições orais? Junto com o prato vêm o café, a lembrancinha, a hospedagem e toda uma série de gastos que caracterizam o impacto econômico do turismo gastronômico. No outro extremo, muitas grandes cidades vêm despontando no circuito gastronômico - destaque entre elas, a capital paulistana firmou-se, nas últimas décadas, como templo gastronômico mundial, com suas dezenas de milhares de restaurantes, cafeterias, barzinhos e botecos de todas as vertentes e das mais incríveis influências. Ano após ano, os turistas de negócios estendem sua permanência na cidade e cresce a vinda de turistas de lazer aos fins de semana. Segundo estudo de demanda turística na cidade de São Paulo, realizado pela SPTuris junto a turistas nacionais e internacionais, a gastronomia é a principal atividade realizada durante sua estada na cidade (motivo de visita alegado por 49,41% dos turistas em geral, chegando a 71,42%, no caso dos estrangeiros). A gastronomia também sobressai como item mais bem avaliado da cidade - ótima para 55,87% dos turistas e boa para outros 32,07%.

A Rendição Às Panelas - Gastronomia e Economia Criativa

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A Rendição Às Panelas

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02/07/13 A Rendição às panelas - gastronomia e economia criativa

www.canalrh.com.br/Mundos/imprimir.asp 1/2

Colunistas www.canalrh.com.br

A Rendição às panelas - gastronomia e economia criativaAna Carla Fonseca | segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Por anos a fio convencionou-se dizer que a gastronomia brasileira era sustentada pelo triunvirato churrasco-feijoada-moqueca.

Quanta injustiça proferida contra os barreados, os patos no tucupi, os azuis-marinho e a infinita variedade de bolos, quitutes e

docinhos de nomes sugestivos. Quem não sonhou com um beijinho, com a brevidade de um suspiro, tentando driblar a

língua da sogra ou do sogro brigadeiro?

Nas últimas duas décadas, a gastronomia brasileira, com sua miríade de influências, derivações e ingredientes, vem sendo

incensada cada vez mais por gulosos e gourmets de todos os gostos e bolsos.

Que o diga o D.O.M., espaço de perdições que em menos de dez anos passou do anonimato internacional à posição de

quarto melhor restaurante do mundo. Que o comprovem talentos consagrados, como o de Carla Pernambuco e o de jovens

chefes como Isabella Masano, Ana Luiza Trajano, Rodrigo Oliveira e Helena Rizzo, que antes dos trinta anos já se firmavam

com releituras dignas de encantar os cinco, seis e todos os sentidos que ainda virão a ser descobertos.

Enquanto isso, nossas feiras e mercados se transformam em uma Babel. A cada ano, levas e mais levas de chefes estrangeiros

de todas as nacionalidades desembarcam ávidos por garimpar frutas, pimentas, temperos e outros acepipes com alto potencial

de fascínio, aprender técnicas de cozimento e mergulhar nas tradições culinárias. Mas, se esse manancial de inspirações

sempre existiu e o brasileiro é um notório bom de garfo, o que mudou?

Primeiro, a catálise de transformações provocada pelo binômio globalização & mídias digitais parece ter-nos levado a

descortinar um novo horizonte de sabores e texturas, em nosso próprio país. Há vinte anos os poderes mágicos do açaí eram

conhecidos apenas pela população amazonense; a castanha de baru tinha seus domínios restritos ao Cerrado; e as frutas do

Nordeste e do Sudeste se encontravam muito excepcionalmente em uma gôndola de supermercado. E certamente muito mais

há por ser descoberto, degustado e aprovado.

Segundo, talvez como reação a uma cultura que se funde cada vez mais no âmbito global, tornamo-nos fervorosos

apreciadores das singularidades locais. Quem tiver idade para isso se lembrará de que até mesmo a cachaça, que hoje motiva

uma constelação de cursos de todos os níveis e tem marcas disputadas a peso de ouro, era invariavelmente relegada a plano B

das festas de formatura - porque, afinal, ocasiões especiais exigiam algo mais requintado. Somando-se a nós, os turistas

internacionais - que, segundo a Organização Mundial de Turismo, devem chegar a 1,6 bilhão de pessoas em 2020 -, partem

em busca de experiências gastronômicas impregnadas de conteúdo simbólico, pelos quatro cantos do mundo.

Terceiro, a gastronomia passou a ser reconhecida cada vez mais como indústria criativa de relevância econômica fundamental,

nas cidades das mais diferentes escalas e de perfis socioeconômicos os mais variados. Nas pequenas cidades, quem nunca se

surpreendou com as inúmeras possibilidades de transmutação do milho, da mandioca ou do morango em dezenas de pratos

que encantam olhos e estômagos, em um calendário de celebrações culinárias profundamente ancoradas em culturas,

ritualizações e tradições orais? Junto com o prato vêm o café, a lembrancinha, a hospedagem e toda uma série de gastos que

caracterizam o impacto econômico do turismo gastronômico.

No outro extremo, muitas grandes cidades vêm despontando no circuito gastronômico - destaque entre elas, a capital

paulistana firmou-se, nas últimas décadas, como templo gastronômico mundial, com suas dezenas de milhares de

restaurantes, cafeterias, barzinhos e botecos de todas as vertentes e das mais incríveis influências. Ano após ano, os turistas

de negócios estendem sua permanência na cidade e cresce a vinda de turistas de lazer aos fins de semana. Segundo estudo de

demanda turística na cidade de São Paulo, realizado pela SPTuris junto a turistas nacionais e internacionais, a gastronomia é a

principal atividade realizada durante sua estada na cidade (motivo de visita alegado por 49,41% dos turistas em geral,

chegando a 71,42%, no caso dos estrangeiros).

A gastronomia também sobressai como item mais bem avaliado da cidade - ótima para 55,87% dos turistas e boa para outros

32,07%.

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02/07/13 A Rendição às panelas - gastronomia e economia criativa

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É difícil resistir a essa indústria criativa, que se desenrola em uma cadeia econômica de vasto espectro e capacidade de

inclusão - da quituteira da Praça Benedito Calixto ao chapeiro dos sanduíches do Mercadão, passando pelos sommeliers dos

restaurantes premiados e envolvendo um sem-fim de fornecedores de produtos e serviços. É a criatividade posta em prática,

trazendo as mais ricas influências da diversidade cultural, sujeita a releituras e adaptações, para oferecer produtos e serviços

em um contexto inimitável e irrepetível. Que, para nosso deleite, concilia impactos culturais, sociais e econômicos. Bom

apetite!

Ana Carla Fonseca é economista e urbanista, consultora e palestrante internacional pela Garimpo de Soluções