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7 INTRODUÇÃO Stephen Spender* Em 1936, Malcolm Lowry escreveu um conto intitula- do Under the volcano (“À sombra do vulcão”). É o relato de uma excursão à Fiesta de Chapultepec por um homem chamado simplesmente o Cônsul, em companhia de sua filha, Yvonne, e do noivo dela, Hugh. O passeio é brutalmente interrompido por uma cena de assassinato. O corpo de um índio – com o chapéu puxado sobre os olhos para esconder um ferimento do qual es- corre sangue pelo seu rosto – é encontrado caído sob uma cerca viva, na beira da estrada. O ônibus em que os três estão viajando pára e os passageiros descem, mas, devido às leis mexicanas, que podem transformar quem dá assistência a vítimas de vio- lência em cúmplice posterior, não podem fazer nada para ajudar o índio. Antes da tragédia, o Cônsul, um alcoólatra, notou com ar conspiratório um passageiro do ônibus, um pelado** (“os pelados”, pensou, “eram aqueles que não tinham de ser ricos para explorar os realmente pobres”). O pelado estava “mesmo muito bêbado, e ele sentiu uma estranha inveja dele, ainda que talvez fosse só um impulso de companheirismo”. Ao ser encon- trado o corpo, o Cônsul nota que o pelado rouba o dinheiro do moribundo, com o qual indigna e atrevidamente ele paga sua passagem. O ônibus enfim chega à Fiesta, e o Cônsul e Hugh vêem o pelado cair na farra numa pulquería, “já ultrapassando as medidas e com um riso pateta de triunfo na cara”. O enredo do romance publicado mais de dez anos depois com o mesmo título está completo neste conto. Ele integra o * Poeta, romacista e ensaísta inglês. (N.E.) ** Termo criado nos anos 1920, para descrever certa “classe” de va- gabundos urbanos no México. (N.E.)

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INTRODUÇÃO

Stephen Spender*

Em 1936, Malcolm Lowry escreveu um conto intitula-do Under the volcano (“À sombra do vulcão”). É o relato de uma excursão à Fiesta de Chapultepec por um homem chamado simplesmente o Cônsul, em companhia de sua fi lha, Yvonne, e do noivo dela, Hugh. O passeio é brutalmente interrompido por uma cena de assassinato. O corpo de um índio – com o chapéu puxado sobre os olhos para esconder um ferimento do qual es-corre sangue pelo seu rosto – é encontrado caído sob uma cerca viva, na beira da estrada. O ônibus em que os três estão viajando pára e os passageiros descem, mas, devido às leis mexicanas, que podem transformar quem dá assistência a vítimas de vio-lência em cúmplice posterior, não podem fazer nada para ajudar o índio. Antes da tragédia, o Cônsul, um alcoólatra, notou com ar conspiratório um passageiro do ônibus, um pelado** (“os pelados”, pensou, “eram aqueles que não tinham de ser ricos para explorar os realmente pobres”). O pelado estava “mesmo muito bêbado, e ele sentiu uma estranha inveja dele, ainda que talvez fosse só um impulso de companheirismo”. Ao ser encon-trado o corpo, o Cônsul nota que o pelado rouba o dinheiro do moribundo, com o qual indigna e atrevidamente ele paga sua passagem. O ônibus enfi m chega à Fiesta, e o Cônsul e Hugh vêem o pelado cair na farra numa pulquería, “já ultrapassando as medidas e com um riso pateta de triunfo na cara”.

O enredo do romance publicado mais de dez anos depois com o mesmo título está completo neste conto. Ele integra o

* Poeta, romacista e ensaísta inglês. (N.E.)** Termo criado nos anos 1920, para descrever certa “classe” de va-gabundos urbanos no México. (N.E.)

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trágico fatalismo do México (o índio moribundo sem ajuda, o despojador do cadáver triunfante) com a própria situação do Cônsul, sua cabeça cheia de uma culpa preocupada em saber onde conseguirá o próximo drinque, seus companheiros en-volvidos numa relação que o exclui. Como o esquema joy-ceano das andanças matinais de um caixeiro-viajante através de Dublin, germe de Ulisses, a história algo esquemática de Lowry se tornou obra-prima.

Duas mudanças, essenciais e reveladoras, foram feitas no livro. Yvonne já não é a fi lha do Cônsul. É a esposa que, depois de abandoná-lo devido ao seu alcoolismo, agora está de volta. O noivo, Hugh, tornou-se o meio-irmão do Cônsul. Colocadas as duas fi cções lado a lado, a ambivalência do relacionamento pai-fi lha e a ambivalência do rival que é também um meio-ir-mão lançam luz sobre a fi gura do Cônsul. O romance explora o passado e o presente do Cônsul, relacionando seu infortúnio pessoal ao trágico fatalismo da situação mexicana: o que era um simples episódio se amplia para se converter em calvário.

Devo considerar, antes de tudo, o que talvez pareça a alguns leitores uma grave objeção a este romance: o alcoolis-mo do Cônsul. Um livro no qual o herói está bêbado durante a maior parte do tempo pode parecer demasiadamente especí-fi co, quase um histórico clínico. Não é um livro sobre a vida normal, poderão argumentar tais leitores, e não lhes diz, por conseguinte, respeito. Até certo ponto a objeção procede. Nas últimas partes do livro, creio que a desintegração do Cônsul tende de fato – e talvez inevitavelmente – a “prevalecer” em excesso –, o Cônsul se torna um objeto, e o trágico desfecho dá a impressão de estar muito fragmentado. Mas é somente nos momentos fi nais que o Cônsul parece ser seu próprio caso específi co. O caráter fragmentário de toda a última parte ser-ve, na realidade, para sublinhar o controle e a lucidez de tudo o que acontece até a morte do Cônsul. Por isso, este é um romance dos mais lúcidos.

À sombra do vulcão é talvez a melhor descrição fi ccio-nal de um “bêbado”. O vício do Cônsul é tratado como uma espécie de jogo trágico, no qual tanto há cenas quanto modos de ser que ele representa para enganar os outros, mas sobre-

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tudo para enganar a si mesmo. A origem de seu alcoolismo é a solidão. As primeiras páginas do livro, em que Monsieur Laruelle medita sobre sua amizade de infância com o Cônsul, indicam-no com a necessária clareza. Se alguém quiser de-sentranhá-lo, o histórico clínico do Cônsul está embutido na narrativa: sua ânsia por companheirismo, o medo do sexo, o puritanismo profundamente idealista, a rejeição do mundo, a tendência homossexual reprimida. Quando acabamos de ler este romance, sabemos como pensa e o que sente um bêbado, como ele caminha e se deita, e experimentamos não só as con-fusões mentais da embriaguez, mas também seus momentos de clarividência translúcida, de expressão aperfeiçoada.

Não obstante, o fato de Lowry elaborar distinções entre cerveja e vinho e Bols* e a experiência de missa negra do mescal é uma simples circunstância ante o drama real do Côn-sul, que se relaciona a este mundo, neste tempo. Fundamen-talmente, À sombra do vulcão só é tanto sobre o alcoolismo quanto o Rei Lear é sobre senilidade. O livro é sobre o Cônsul, e isso é outra coisa, pois o que sentimos a seu respeito é que ele é grande e está despedaçado. Também sentimos que ele poderia ter escrito o romance que descreve sua queda, o que quer dizer que, considerado como arte do nível de consciência atingido, isso não é uma queda, e sim seu triunfo.

Sobretudo, À sombra do vulcão é uma entre algumas obras sobre a decadência dos valores no século XX. Assim como em Rei Lear o declínio do poder é visto pela mente des-pedaçada do rei, em À sombra do vulcão o trágico desespero do México e, além do México, a falta de esperança da Europa dilacerada pela Guerra Civil Espanhola são vistos, ampliados e distorcidos nas mentes do Cônsul e de Hugh.

O Cônsul, portanto, é um herói moderno – ou um anti-herói – que refl ete uma situação externa extremada no âmbito de seus próprios extremos. Sua neurose torna-se diagnóstico não apenas dele mesmo, mas de uma fase da história. Artistica-mente ele está justifi cado porque a neurose, vista não só como o histórico clínico de um homem, mas também no contexto

* Destilaria holandesa que produz gim, vodca, licores etc. (N.E.)

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de uma luz mais ampla, é o mostrador de um aparelho que registra os efeitos de um determinado estágio da civilização sobre um indivíduo civilizado: pois o Cônsul é basicamen-te um homem de cultura refi nada. O indivíduo mais sensível, ainda que não o mais normal, pode proporcionar a expressão mais representativa de uma ruptura que afeta outras pessoas em níveis sobre os quais elas talvez não tenham consciência exata. Vendo a agulha no mostrador do aparelho, elas, no en-tanto, passam a saber que o que este registra é também, de certo modo, seu próprio caso.

À sombra do vulcão tem de ser considerado, assim, no contexto da Europa nas décadas de 1920 e 1930, que produziu Ulisses, The Waste Land, The Orators e outras obras sobre a moderna “ruptura de valores”.

Ao mesmo tempo, ele é profundamente diferente dessas obras, uma vez que Lowry era – e em medida desconcertante até para ele mesmo – diferente como homem e em sua abor-dagem literária de Joyce e Eliot, e sobretudo daqueles escri-tores dos anos 1930 que ele considerava “mestres-escola de poesia”.

A diferença é que a abordagem literária de Lowry era autobiográfi ca, pessoal, subjetiva mesmo, enquanto a intenção de escritores como Joyce e Eliot, que ele adorou, temeu, imi-tou, não compreendeu totalmente, era inventar uma literatura moderna “objetiva” expurgada de elementos autobiográfi cos subjetivos. Joyce, Eliot e Pound pretendiam uma escrita que fosse “um escape”, não “uma expressão”, da personalidade. Seus engenhos de mitologia e simbolismo, sua atitude para com a tradição, seu distanciamento e ironia dirigiam-se para uma objetivação ainda maior. Na consciência desses poetas e romancistas evidenciava-se o mapa de uma imensa paisagem, com a ordem do passado a um lado de um divisor central e, do outro lado, o caos do presente. De acordo com a estética deles, o poeta é um instrumento de sensibilidade submetido à situa-ção em que vive, relacionando a ordem do passado ao caos do presente, exercendo o julgamento, mas não comunicando sua personalidade. Sua intenção é criar uma obra de objetividade clássica, na qual a ordem do passado seja recriada numa forma

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que refl ita a fragmentação do presente. O próprio poeta usa a máscara impessoal da ironia.

A distância a que Malcolm Lowry se encontra de tais objetivos intelectualizados torna-se evidente quando compa-ramos seu uso de mitos e símbolos em À sombra do vulcão com os de Joyce e Eliot. Muitos críticos já assinalaram que À sombra do vulcão está cheio de referências a mitos. Logo no começo do livro há um bom exemplo disso. M. Laruelle, o francês produtor de cinema, amigo de infância de Geoffrey Firmin, o Cônsul, que mais tarde se apaixona por Yvonne, re-memora os fatos da morte do Cônsul, vários anos depois, en-quanto anda pelo platô onde se encontra Quauhnahuac:

No meio da ponte ele parou; acendeu mais um cigarro com o que estava fumando e se debruçou no parapeito para olhar para baixo. Estava muito escuro para ver o fundo, mas: aqui havia uma fi nalidade, e uma clivagem! A esse respeito, Quauhnahuac era como os tempos, para onde quer que você se virasse o abismo estava à sua espera na esquina. Dormitório para abutres e cidade Moloch! Quando estavam crucifi cando Cristo, assim diz a lenda hierática nascida no mar, a terra se abriu por todo esse país, embora a coincidência difi cilmente pudesse então impressionar alguém! Foi nessa ponte que o Cônsul sugeriu a ele uma vez que fi zesse um fi lme sobre a Atlântida. Sim, debruçado bem desse jeito, bêbado mas sob controle, coerente, um pouco doido, um pouco impaciente – uma daquelas raras ocasiões em que o Cônsul bebia mas fi cava sóbrio –, ele lhe falara sobre o espírito do abismo, o deus da tormenta, “huracán”, que “dava um testemunho tão sugestivo da interação dos lados opostos do oceano Atlântico”. Fosse o que fosse o que queria dizer.

Essa passagem contém uma boa dose de mitologia sim-bólica. Usada, porém, como metáfora, como analogia. Não é, como em Eliot e Pound, uma mitologia com a qual a situação contemporânea é identifi cada e, por assim dizer, transcen-dida no interior do passado. A clivagem do abismo do platô mexicano à sombra do vulcão é como os tempos eram – nas

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décadas de 1930 e 1940. Há uma sugestão de Cristo descen-do no abismo para excruciar o Inferno. Mas é no Cônsul que pensamos aqui, mais do que em Cristo. O Cônsul, no fi nal do romance, é arremessado ao abismo.

Um crítico – David Markson – observa que a “evocação mítica abrangente” em À sombra do vulcão é “joyceana”, e cita no romance paralelos homéricos que correspondem aos de Joyce em Ulisses. Para somar a Joyce, por assim dizer, algo de Eliot, ele acrescenta que o romance de Lowry incorpora “conceitos de Jung, Spengler, Freud, Frazer, Spinoza, Jessie L. Weston, metafísica oriental”, como também, em boa medi-da, “o idealismo fi losófi co de George Berkeley”.

Tudo isso está bem, mas será desorientador se nos levar a pensar que a vida e a mente reveladas em À sombra do vul-cão têm alguma semelhança com as de Ulisses ou Finnegans Wake ou The Waste Land.

O fato é que, embora todos esses três escritores possam usar simbologia e mitos e preocupar-se com a crise do mundo moderno, as intenções e os métodos de Lowry são opostos aos de Joyce e Eliot. Joyce e Eliot usam exemplos particulares de pessoas modernas para se aproximar e ingressar na universali-dade maior de uma tradição da qual a vida moderna é apenas uma parte fragmentária. Ambos usam mitos e símbolos para saírem “dos tempos” para o passado da tradição. Lowry os usa para exemplifi car “os tempos”, para descrever o Cônsul quase como uma ilustração. Símbolo e mito são usados em Ulisses a fi m de, em certos momentos, absorverem os personagens numa espécie de consciência cósmica. Lowry os usa com o efeito oposto, a fi m de criar o mundo interior do Cônsul. Ste-phen Dedalus e Bloom tendem a desaparecer no cosmo. Aca-bamos À sombra do vulcão sentindo que o Cônsul, com todos os seus defeitos, é o cosmo – e que ele é também Malcolm Lowry. O que é talvez um modo de dizer que Malcolm Lowry e seu herói são românticos.

Já se disse que o herói de Ulisses é a linguagem na qual o livro está escrito, e ninguém imagina Joyce rebatendo muito isso, desde que se acrescente que a linguagem é a história da raça. O herói de À sombra do vulcão é a consciência autobio-

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gráfi ca do Cônsul, uma máscara para Malcolm Lowry. Lowry está preocupado com a capacidade do Cônsul, condicionado por circunstâncias que são em parte as de sua própria psicologia, em parte impostas “pelos tempos”, de ganhar uma guerra consigo mesmo, de criar uma ordem a partir do material que é a sua pró-pria consciência fragmentária. À sombra do vulcão não é tanto uma exposição sobre a civilização quanto o relato de uma alma de homem dentro das circunstâncias de uma fase histórica. Nes-se sentido, não pertence à literatura de “caracterização do Oci-dente” da década de 1920, e sim à literatura mais restrita rela-cionada a essa época e mais especifi camente à década de 1930.

No romance de Lowry, os mitos e símbolos são menos centros de mistério de uma tradição fora de tempo do que fer-ramentas, guias, sinais indicativos dos tempos. São o que o Cônsul é e sabe que é – um grande homem frustrado. Joyce permite que seus personagens saibam mais do que aparente-mente deveriam saber. Não chegamos a estranhar, contudo, o saber de Leopold Bloom, menos ainda o de Stephen; nem pen-samos na mente que permeia Ulisses como a de James Joyce: reconhecemos nela uma consciência histórica que exemplifi ca uma civilização. Em À sombra do vulcão, tomamos a mitolo-gia para demonstrar a grandeza do entendimento do Cônsul. Ela é uma parte de seu triunfo em ruínas e demonstra a tragé-dia da “mente de um intelectual destronada”. O efeito, quando lemos sobre navios com os nomes Oedipus Tyrannus e Philoc-tetes, é o de tambores vibrantes acompanhando seu funeral. A roda-gigante, a barranca – a funda ravina chamada Malebolge –, o cavalo sem cavaleiro, e assim por diante, são a maquinaria de sua própria tragédia, ela mesma máquina. São o Cônsul, essa fi gura autodramatizante, de romântico tardio, quase byroniano.

Lowry tomou alguma coisa de Joyce, virou de pernas para o ar os seus estratagemas simbólicos e utilizou-os para seus próprios objetivos, fosse por audácia da inteligência, fosse por um tipo de compreensão incompleta, mas inspira-da... A infl uência mais direta sobre este livro extraordinário, a meu ver, não vem, porém, de outros romancistas, e sim de fi lmes, principalmente talvez os de Eisenstein. O cinema – isto é, o velho cinema mudo com legendas – é sentido ao longo

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de todo o romance. Jacques Laruelle é um diretor de cinema desencantado com Hollywood. O Cônsul lhe sugere o tema de um fi lme. Yvonne era uma atriz de cinema aparentemente fracassada. Hugh é um personagem que poderia muito bem aparecer num fi lme sobre a Guerra Civil Espanhola ou num fi lme revolucionário sobre o México. A técnica de À sombra do vulcão é essencialmente cinematográfi ca. A ação começa como um longo fl ashback na mente de M. Laruelle que, lem-brando-se em seu passeio da morte do Cônsul, reinterpreta em seus pensamentos as seqüências que conduziram à catástrofe. A seguir ele recua ainda mais no tempo, para chegar às cenas de infância em que Jacques Laruelle e Geoffrey Firmin eram hóspedes da família de um poeta inglês, Abraham Taskerson. Há fl ashbacks dentro de fl ashbacks e mudanças abruptas de cenas amplas para enquadramentos de perto. A técnica empre-gada assemelha-se freqüentemente à dos cortes. A frase Las manos de Orlac ocorre repetidas vezes. Ela está num cartaz que anuncia um fi lme cujo ator principal é Peter Lorre. Muitas coisas nos são ditas sobre esse fi lme. Hugh explica a Yvon-ne, pouco depois da chegada dela: “Acho que já vi em algum lugar esse fi lme com Peter Lorre. Ele é um grande ator, mas o fi lme não presta. (...) É tudo sobre um pianista que tem um sentimento de culpa porque acha que tem mãos de assassino, ou qualquer coisa assim, e vive lavando o sangue delas. Vai ver realmente que são mãos de assassino, mas já não lembro”.

Esse exemplo de como Lowry usa o simbolismo para ilustrar um tema também sublinha a preocupação de todos os personagens com o cinema. Anteriormente, Yvonne descreve-ra o cineminha da aldeia: “É um lugar estranho – minúsculo, que talvez você achasse engraçado. As notícias da tela cos-tumavam ser de dois anos antes e não creio que isso tenha mudado. Estavam sempre passando as mesmas fi tas de novo. Cimarron e The Gold Diggers of 1930 e, ah sim, no ano pas-sado vimos um fi lme de viagem, Come to Sunny Andalusia, à guisa de notícias da Espanha –”

“Caramba!”, disse Hugh.As palavras Las manos de Orlac surgem com bastante

naturalidade cada vez que um dos personagens as apreende

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em sua visão: um movimento do olho-câmera focalizando uma notícia impressa. (Pensamos em Eu sou uma câmera. Bem que alguém deveria escrever uma tese sobre a infl uência do cinema nos romances – os romances sérios.) A familiarida-de dos cinéfi los com essa técnica é engenhosamente transfor-mada numa invenção literária. Frases com signifi cados mais profundos, No se puede vivir sin amar e ¿LE GUSTA ESTE JARDÍN?, ¿QUE ES SUYO?, ¡EVITE QUE SUS HIJOS LO DESTRUYAN!, são interpoladas na ação como legendas numa língua estrangeira. E naturalmente a técnica da atenção dividida é usada com efeito maravilhoso para transmitir uma característica da embriaguez do Cônsul, sua atenção difusa.

O cinema é cinético. Lowry, criando uma paisagem em movimento – ou uma paisagem estática contra pessoas em movimento –, apodera-se de algo dessa arte para a sua própria escrita cinética. Pode-se dizer que ele escreve com o que há de ativo em cada função, ou que observa as ações: os músculos da barriga da perna, a garganta que engole, o olhar franco e voltado para fora espiando, a memória que reinterpreta. No fl ashback das lembranças de M. Laruelle dos dias passados à beira-mar com a família Taskerson, essa fusão das energias muscular e mental do corpo e do intelecto é vista no estado bruto como alegria transbordante, se bem que acompanhada de alguns tons mais sombrios. São memórias pelas quais o leitor se apaixona, invejando-as, lamentando-as:

Aqueles rapazes eram caminhantes prodigiosos, incom-paráveis. Não achavam nada demais caminhar de quarenta a cinqüenta quilômetros num dia. Mas o que parecia mais es-tranho, considerando-se que nenhum deles ultrapassara a ida-de escolar, é que eram também prodigiosos e incomparáveis beberrões. Numa simples caminhada de cinco quilômetros ou pouco mais, parariam na mesma quantidade de bares para, em cada um, tomar um ou dois copos de cerveja forte. Até o mais novo, que ainda não tinha quinze anos, era capaz de tomar, numa só tarde, uns seis. E se alguém passasse mal, melhor, porque assim contaria com lugar para mais. Nem Jacques, que tinha o estômago fraco – muito embora acostumado, em casa,

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a uma certa quantidade de vinho –, nem Geoffrey, que não gos-tava do gosto de cerveja e que estudava numa escola, além do mais, rigidamente wesleyana, poderiam agüentar aquele ritmo medieval. Toda a família, de fato, bebia muito além da conta. O velho Taskerson, homem bondoso e perspicaz, perdera o único de seus fi lhos que tinha herdado algum grau de talento literá-rio; todas as noites, sentava-se ele no escritório, com a porta aberta, para beber e ruminar hora após hora, com seus gatos no colo, abanando o jornal vespertino em distante reprovação dos demais fi lhos que se sentavam, por sua vez, bebendo, hora após hora, na sala de jantar.

Uma passagem desse tipo traz a energia da vida que des-creve. Nós vemos tudo; poderíamos dar andamento à trama, a um só tempo tão inofensiva e minada. Cantando sua inebriante canção A turma aqui só sabe andar no zigzum zigzá, os sim-páticos Taskerson, com Jacques Laruelle e Geoffrey Firmin nas fi leiras de seu exército já condenado, marchavam para o Hell Bunker: “no meio da oitava fairway, longa e em aclive, ele guarnecia de certo modo o green, se bem que a grande distância, porque fi cava muito mais para baixo e ligeiramente à esquerda dele. O abismo escancarava-se em posição propícia para engol-far a terceira tacada de um jogador como Geoffrey”.

Hell Bunker, ou o Bunker do Inferno, é também um lu-gar onde os jovens Taskerson costumavam levar namoradi-nhas. Mas “havia em geral, sobre toda essa questão de ‘pegar’, um certo ar de inocência”. Há assim uma conexão subterrânea entre o Inferno do campo de golfe à beira-mar e aquele golfo – a barranca de Malebolge – em Quauhnahuac. Um dia, Jac-ques Laruelle surpreende por acaso Geoffrey Firmin, que es-capulia do Bunker do Inferno com uma menina. Embaraçados eles vão para um bar, onde Geoffrey pede pela primeira vez uma rodada de uísque, que o garçom se nega a servir porque eles são menores. “Sua amizade, infelizmente, por alguma ra-zão não sobreviveu a essas duas pequenas frustrações, tristes, porém sem dúvida providenciais.”

Essa passagem sobre o campo de golfe contém os ele-mentos que serão encontrados na maioria das páginas de À som-

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bra do vulcão. O simbolismo é usado sintomaticamente para analisar um complexo que em parte é individual e em parte é uma conseqüência dos tempos. Para usar uma linguagem psi-canalítica, o mesmo material da neurose individual e social é investigado através de uma grande variedade de situações.

Malcolm Lowry tem um modo individualista de ver a vida que destoa por completo dos de Joyce, Faulkner e Eliot. Os personagens de Joyce são, como observei, instrumentos pelos quais fala uma consciência coletiva e, em última análise, histórica. Sua maneira de agir é importante por revelar o que eles são e, além deles, o que a vida é. Com Lowry, nunca esta-mos muito longe da idéia de que, se existe uma doença, deve existir também a cura. Se o Cônsul agisse, e com todo empe-nho, além de seus limites, sente-se que ele poderia ser salvo. Seu fracasso na ação torna-se outra espécie de ação. Sua recu-sa em ser heróico torna-o também um herói, mas um herói da consciência, e não condescendente com o heroísmo da Guerra Civil Espanhola a que se liga Hugh. Sua verdade mais profun-da parece-lhe ser seu isolamento. Ele rejeita o amor para pro-teger esse isolamento. Não dá para imaginar Stephen Dedalus ou Leopold Bloom fazendo alguma coisa que pudesse alterar toda a situação de Ulisses. Mas, se o Cônsul agisse, À sombra do vulcão seria um mundo transformado.

A consciência é, para Lowry, o resultado da ação indi-vidual. Um argumento fl ui pelos pensamentos do Cônsul: é forçoso que ele tome mescal, se só assim for capaz de atingir a consciência mais plena. A dipsomania justifi ca-se, ou tem de ser suportada. Com a mesma profundidade ele sente que o pre-ço a ser pago por estar totalmente consciente, nesses tempos, é o isolamento. Seu dilema é decidir se o isolamento envolve a rejeição amorosa. Um dilema que é real, porque intelectual-mente Yvonne não ingressa na esfera das considerações que são a consciência de terribilità do Cônsul, e por isso sua ne-cessidade de proteger suas miradas no Inferno, em outras pa-lavras, seu isolamento, é real. Mas é também um falso dilema, porque seu vício participa demais desse argumento e porque (no se puede vivir sin amar) nunca existe desculpa para não amar. O fracasso do Cônsul em amar é, por conseguinte, real,

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e o próprio dilema talvez seja também. Ele tem de rejeitar o amor para poder fi car sozinho; e ele tem de ser morto porque rejeita o amor.

O desesperado isolamento da consciência é absoluto. E é talvez por isso que o material autobiográfi co que permeia o romance é inevitável. O autor cria um personagem que é seu próprio predicamento, e isso mal se distingue da projeção de uma imagem de si mesmo.

O isolamento do tema autobiográfi co também envolve Lowry no isolamento enquanto escritor. Por mais que ele te-nha sido infl uenciado por Joyce, Lowry se considerava sozi-nho entre os escritores que foram seus contemporâneos. No diário pretensamente fi ctício Através do Panamá, seu autor, Wilderness, uma das muitas máscaras de Malcolm Lowry, ex-plode num lamento:

Sou capaz de conceber um escritor de hoje, mesmo um escritor intrinsecamente de primeira classe, que simplesmen-te não consegue entender, que nunca foi capaz de entender, o que seus companheiros escritores estão ou estiveram buscando e que sempre foi tímido demais para perguntar. Tal escritor sente essa defi ciência em si mesmo até as raias da angústia. Essencialmente um camarada modesto, a vida toda ele tentou entender o mais que pôde (embora talvez não o sufi ciente), e assim seu quarto está repleto de Partisan Reviews, Kenyon Reviews, Minotaurs, revistas Poetry, Horizons, até mesmo ve-lhos Dials, de cujo conteúdo ele não consegue extrair absolu-tamente nada...

Quanto mais lemos Lowry e a seu respeito, maior se torna a impressão de que praticamente ele não escreveu sobre nada que não tivesse visto ou experimentado em pessoa. Mas não é isso o que é, nele, profundamente autobiográfi co. O que tenho em mente ao considerá-lo um autobiógrafo é que em sua escrita ele constrói um quadro do mundo ao colocar em conjunto situa-ções que são auto-identifi cações. À sombra do vulcão é o seu melhor livro porque parece conter a soma total dessas identifi -cações. As agonias que ele suportou no México proporcionaram

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um catalisador que o capacitou a expressar seus mais profundos sentimentos sobre a vida, a sua visão “dos tempos”.

A obra de Lowry não é, como ressaltei, “um escape da personalidade”. É a montagem de um grande elenco de situa-ções que ele mesmo experimentou. Em comparação com À sombra do vulcão, a maior parte do restante de sua obra sofre com essa limitação, em que o personagem central é o próprio Lowry e os demais são personagens bidimensionais. Em À sombra do vulcão, o defeito é evitado, ou compensado, pelo fato de ele ter distribuído sua personalidade entre diversos personagens. Está claro que Hugh, o meio-irmão do Cônsul, é o Cônsul quando jovem e que ambos são aspectos do próprio Malcolm Lowry. M. Laruelle é um espelho do Cônsul, como mostram suas meditações no início do romance, totalmente cen-tradas em Geoffrey Firmin. Em seu passeio à noitinha, um ano após a morte do Cônsul, M. Laruelle vê um cavaleiro a cavalo: “tão bêbado que se escarrapachava todo na sela sem achar os estribos (...). O cavalo empinou com fúria (...) o homem, pa-recendo a princípio que ia cair para trás, salvou-se por milagre para logo escorregar para um lado como um ginete ardiloso, recompor-se na sela, deslizar, escorregar, cair para trás – e a cada vez salvar-se ainda (...)”. M. Laruelle “pensou de repente que essa visão maníaca de um furor sem sentido, mas não sem controle, não descontrolada de todo, e digna de admiração de algum modo, que isso também, obscuramente, era o Cônsul...”

E para fechar o círculo do ele-mesmo-se-transforma-em-seu-mundo, o Cônsul, na hora de sua morte, quando é baleado, dá-se conta de que ele é o “pelado” que despojou o índio que jazia à beira da estrada, que roubou seu dinheiro e estava bêbado. E o velho violeiro parado à margem do cami-nho dirigiu-lhe a mesma última palavra pronunciada pelo ín-dio moribundo. “Compañero.” De certa forma ele era o pelado e o compañero também. No se puede vivir sin amar.

Os escritores que Lowry sempre conseguiu entender eram aqueles com os quais tinha alguma afi nidade psicológica: Conrad, Kipling, Melville, Nordahl Grieg, Conrad Aiken. Para encontrar-se com Grieg e Aiken, ele viajou a grandes distâncias. Pouco após ter conhecido Aiken, este se tornou para Lowry, por

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um processo que suponho inevitável, seu “pai”. Inevitavelmen-te também, Lowry insistia em que o fi lho tem de destruir o pai. Depreende-se então que, se Joseph Conrad ou Herman Melville estivessem vivos, Lowry projetaria num deles, ou nos dois, o mesmo tipo de transferência, seguido pela mesma revolta.

A obra de Lowry é a busca de sua identidade pelo labi-rinto das experiências que ele próprio viveu. Sua biografi a não é decerto idêntica à dos seus heróis fi ctícios, mas tem uma qua-lidade lendária que a mescla inextricavelmente com a deles. Ao saber, por exemplo, que dos nove aos treze anos Lowry so-freu de uma ulceração das córneas que quase o levou à ceguei-ra – se bem que, mais tarde, ao curar-se dessa doença, ele tenha fi cado com a visão ótima –, sentimos que estamos somando algumas coisas ao nosso conhecimento da infância solitária de Geoffrey Firmin, que simplesmente não entrou no romance. Seria, pois, de todo perdoável confundir muitos fatos sobre a vida de Lowry com as fi cções da vida de Geoffrey Firmin.

Malcolm Lowry nasceu “à vista e ao rumor do mar” (como nos informa Conrad Knickerbocker) em Merseyside, Cheshire, em 28 de julho de 1909, “o último e o menos de-sejado de quatro fi lhos”. Em ambos os lados de sua família havia laivos românticos, aventurosos. Seu pai era dono de plantações de algodão no Egito, no Peru e no Texas, e era um rico negociante do ramo. Seu avô norueguês, um capitão do mar, Boden, era uma fi gura lendária, sobrevivente de muitos naufrágios. Com sete anos Malcolm foi para o internato e se-parou-se dos pais, que passavam seu tempo viajando. Após recuperar-se da doença nos olhos ele se destacou nos esportes, tornando-se, aos quinze anos, campeão juvenil de golfe da In-glaterra. Na escola secundária, The Leys, perto de Cambridge, descobriu sua vocação de escritor e decidiu não entrar para o negócio de algodão da família. Ao sair de The Leys, conven-ceu seu pai a deixá-lo passar um ano no mar, antes de ingressar em Cambridge. Ao longo desse ano, as aventuras daquele fi lho de rico que se mostrou tão desajustado entre os marinheiros quanto na escola secundária, em Cambridge ou, mais tarde, na vida literária inglesa, estão registradas em seu primeiro ro-mance, Ultramarine.

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Os que escreveram sobre Lowry tendem a tratar seu in-terlúdio acadêmico como desimportante para ele, mas na rea-lidade ele se tornou uma lenda entre seus colegas de escola, fez em Cambridge amigos para toda a vida (sobretudo John Davenport) e foi reconhecido como um dos jovens escrito-res de valor da geração particularmente brilhante de Oxford e Cambridge no começo dos anos 1930. Como Hugh em À sombra do vulcão, Malcolm Lowry foi um instrumentista, um guitarrista que era fanático por jazz.

Depois de Cambridge, Lowry viveu uma fase em Lon-dres, durante a qual seu romance Ultramarine foi publicado. Foi então para a Espanha, onde conheceu sua primeira mu-lher, Jan, uma americana. Pouco depois do casamento, Jan voltou para os Estados Unidos, e Malcolm Lowry viveu em Paris, dividindo um apartamento com o romancista e contista James Stern. Ao sair de Paris, passou cerca de um ano em Nova York, de onde foi juntar-se ao seu amigo John Daven-port em Hollywood e trabalhar em vários roteiros cinemato-gráfi cos. Interessou-se pelo cinema a fundo, menos porém por Hollywood, e, após reencontrar a mulher, foi para o México, para Cuernavaca, que fornece o cenário de À sombra do vul-cão. Em 1938, Lowry voltou a Hollywood, onde conheceu Margerie Bonner, que se tornou sua segunda mulher e em cuja Nota biográfi ca sobre Malcolm Lowry se baseiam os fatos es-quematizados aqui.

Em 1938 os Lowry se mudaram para Vancouver e, mais tarde, para o leste do Canadá, perto de Toronto. Malcolm Lo-wry passou os anos mais felizes de sua vida no Canadá, rees-crevendo À sombra do vulcão muitas vezes. Ao longo de todo o romance, a lembrança da Colúmbia Britânica proporciona um contraste quase paradisíaco com o Inferno do México. Os Lowry viveram em cabanas de paus do mato e em choças na praia construídas por eles mesmos e sujeitas ao fogo e outros contratempos endêmicos no aventureirismo de Malcolm. O golpe mais duro contra os dois não partiu, porém, da natureza, e sim das autoridades locais, que removeram os Lowry de sua choça na praia, destinando a um parque público o terreno onde ela se localizava e queimando totalmente as cabanas. Desgos-

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tosos, os Lowry partiram para a Europa em agosto de 1954, indo primeiramente para a Itália e depois para a Inglaterra. Malcolm morreu em 27 de junho de 1957 na aldeia de Ripe, em Sussex, onde eles tinham alugado uma casa.

Entre esses fatos simples há uma sucessão de aventu-ras. Conrad Knickerbocker relata que a viagem por mar, antes de Lowry ir para Cambridge, “levou-o a Cingapura, Xangai, Kowloon, Penang, [onde houve] um tiroteio no qual ele saiu ferido na perna, a gloriosas bebedeiras juvenis nos bares de Yokohama, a um tumulto com uma carga de cobras, panteras, um javali e um elefante nas docas”. Pelo que informa Marge-rie Lowry, sabemos que o manuscrito de UItramarine desa-pareceu antes da publicação e que Lowry teve de reescrever o romance a partir de notas, que o de À sombra do vulcão escapou por pouco de um incêndio, no qual Lowry se feriu ao tentar resgatá-lo, e que a tradução italiana do romance se perdeu e nunca foi encontrada.

Devido ao acidente com o tiro durante sua viagem por mar, Lowry foi dispensado pelas forças armadas e não parti-cipou da guerra. O leitor de À sombra do vulcão há de notar contudo que sua solidão e isolamento dos fatos públicos não implicavam que ele fosse indiferente aos acontecimentos da década de 1930. Pode-se sustentar inclusive que À sombra do vulcão, difícil de “situar” como é, assume grande relevo ante a literatura politicamente consciente dessa década. A Guerra Civil Espanhola move-se perturbadoramente ao longo do livro como uma consciência em si, e há páginas que estão marcadas pelas sombras malignas do fascismo. Em certa medida, Hugh é uma caricatura de jovens escritores ingleses como o poeta e estudante de Cambridge John Cornford, que morreu na Guer-ra Civil Espanhola e em quem Lowry há de ter pensado com angústia. A polícia mexicana corresponde, na balança do bem e do mal, à polícia fascista da Espanha – a odiada Guardia Ci-vil. A mexicana é também fascista e envolve-se no assassinato do índio, cuja exclamação de moribundo, “Compañero”, era a saudação usada pelos Vermelhos na Guerra Civil Espanhola. O próprio Cônsul tem má consciência em relação à política e esteve sob suspeita, no México, de ser um “espião”. Fica-

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mos aliás sabendo que na América Latina, de modo geral, os cônsules são suspeitos de espionagem. Há também indicações de que o Cônsul é perseguido por sentimentos de culpa sobre algo que aconteceu no vapor Samaritan (um navio de guerra disfarçado em cargueiro que atacava os submarinos piratas alemães que iam afundar navios mercantes), numa ocasião em que o Cônsul se distinguiu muito, embora tenha sido (antes de receber uma condecoração) submetido à corte marcial. Hugh, com suas atitudes simplistas em favor dos republicanos es-panhóis, lá está para lembrar ao Cônsul que há coisas como o engajamento e a ação, mas é talvez precisamente devido a Hugh (um lado dele mesmo) que o Cônsul não pode se com-prometer. Há uma conversa bêbada entre eles na qual Hugh diz que o sistema nazista, “mesmo estando morto, continua a engolir vivos homens e mulheres que se debatem!” – ao que o Cônsul replica: “Isso se aplicaria também a qualquer outro sistema... Inclusive o sistema comunista”.

Há um lado de Malcolm Lowry que tem afi nidades com George Orwell. Embora em sua consciência Lowry/o Cônsul apóie os republicanos espanhóis, ele desconfi a da propagan-da e não gosta do pendor de Hugh por atitudes, assim como Orwell não gostava dos intelectuais comunistas. Em seu pri-meiro romance, Ultramarine, sua transmissão sem relevo das conversas dos marinheiros, absorvidos no mundo dos seus interesses pessoais, mal-informados e talvez pouco imaginati-vos, mas basicamente mais sadios do que as classes superiores e os esquerdistas políticos, revela uma postura que não destoa da de Orwell em relação aos “proletas”, em 1984. Como os de Orwell, mas não como os dos escritores das décadas de 1920 e 1930, os valores de Lowry derivam fundamentalmente da ação. Como Orwell, Lowry não era comunista e, no entanto, deu na juventude o passo que os intelectuais comunistas bur-gueses só propunham: ele “uniu-se aos trabalhadores” ao tor-nar-se um marujo e partir na viagem descrita em Ultramarine.

O paradoxo central de À sombra do vulcão é que ele é um romance sobre a ação, mas sobre a ação negada. Há em seu cerne um grito apaixonado de que os homens devem atingir a simplicidade de ser, amar, viver e agir num mundo de escolhas

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simples. Conrad Knickerbocker cita Lowry: “A causa real do alcoolismo é a completa e frustrante esterilidade da existência que é vendida a você”. Isso implica um isolamento espiritual ainda maior que o de Orwell, que, embora se opusesse aos grupos políticos existentes, pertencia a um partido de excên-tricos anarco-socialista-conservadores que o leitor facilmente reconhece em seu próprio coração. O isolamento de Lowry condenou-o a uma perpétua autoprocura, na qual a mente cria-dora é inextricavelmente envolvida no trabalho criado. Como não há solução, no mundo contemporâneo das soluções tão falsas, a própria arte se torna uma forma de ação desafi adora, e nisso Lowry antecipa artistas posteriores – Jackson Pollock, por exemplo –, auto-envolvidos mas não autocentrados, into-xicados mas totalmente lúcidos, bebendo sem perder a sobrie-dade, que até em seus excessos parecem possuir um quê de santidade, como se suportassem o que noutros poderia parecer vícios, para o bem de todos nós. Conrad Knickerbocker es-creve: “Falando como um ventríloquo através de Wilderness [o autor do diário semifi ctício Através do Panamá], Lowry a princípio viu À sombra do vulcão menos como um romance do que como ‘um tipo qualquer de ação moral, vigorosa ainda que absurda’, pressupondo, com isso, uma rigidez de fi bra ou um arcabouço subjacente...” Difi cilmente se poderia conceber uma melhor descrição da pintura de Pollock. Knickerbocker prossegue: “O que Lowry/Wilderness reconheceu num mo-mento de terror foi o caráter de autoconsumação que há na obra. O Cônsul tinha tomado mais do que o seu quinhão; como um parente impertinente, nunca se mantinha distante. Lowry não podia realizar a cirurgia essencial de se separar dos seus personagens. Suspeitando às vezes de não ser um escritor, mas de estar sendo escrito, ele, em pânico, dava-se conta de que a auto-identidade era tão impalpável como sempre.”

Não podia se separar dos seus personagens porque eles eram expressões do seu próprio isolamento, de sua busca de identidade. A exceção a isso é certamente o retrato de Yvon-ne, que de fato representa a alternativa para o isolamento do Cônsul – um relacionamento com alguém que não a própria pessoa nas armadilhas da sua situação. Ela representa também

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várias escolhas rejeitadas pelo Cônsul (se bem que não de todo rejeitadas por Lowry, como mostra o conto “The Forest Path to the Spring”, que é o Paradiso da sua Commedia). Uma dessas escolhas é uma paisagem nórdica diferente do México (“O Mé-xico”, escreveu Lowry numa carta a um amigo, “é o lugar mais temente a Cristo do mundo para se sofrer algum tipo de infor-túnio, uma espécie de Moloch que devora almas sofredoras”).

O desespero do Cônsul é na realidade acedia, a apatia espiritual dos religiosos que se tornaram, por assim dizer, her-meticamente fechados à parte da fonte de sua religião. Seus erros são teológicos: a recusa em amar ou ser amado. Em últi-ma análise, seu pecado é o orgulho. Há uma passagem muito comovente, que estranhamente lembra The altar of the dead, de Henry James, na qual o Cônsul é visto sendo levado pelo dr. Vigil a “uma igreja que ele não conhecia”, “com tapetes sombrios, estranhas imagens votivas e uma Virgem compas-siva fl utuando no escuro, à qual ele implorou, com o coração batendo transtornado, para ter Yvonne de volta”. “‘Ela é a Vir-gem dos que não têm companhia’, disse-lhe o doutor, incli-nando a cabeça para a imagem, ‘e dos marinheiros no mar’”. Isso acontece na ausência de Yvonne e, quando ela volta e ele a rejeita, o Cônsul aparece rezando diante de outra imagem da Virgem: “‘Dê-me a graça de fazê-la feliz, livre-me dessa ter-rível tirania do eu. Já afundei muito. Deixe-me afundar mais ainda, para que eu possa conhecer a verdade. Ensine-me no-vamente a amar, a amar a vida’. Não, também não daria. ... ‘Onde está o amor, deixe-me sofrer de verdade. Dê-me minha pureza de volta e o conhecimento dos Mistérios, que traí e perdi. – Deixe-me ser só de verdade, para que eu possa rezar honestamente. Deixe-nos ser felizes de novo em algum canto, desde que juntos, desde que fora deste mundo horroroso. Des-trua este mundo!’ gritou em seu coração”.

O Cônsul vive num inferno de danação cristã e sua queda é acompanhada por um sino que entoa falas de Dan-te: Dolente... dolore! Ele é profundamente ambivalente, como demonstram suas preces, pois ao mesmo tempo reza para re-conciliar-se com Yvonne e para estar sozinho, ao mesmo tem-po pede para erguer-se e afundar ainda mais. E a ambivalência

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vai além da fi gura retratada do Cônsul: é uma clivagem na vida do próprio livro, como também no coração do escritor, que está condenado quase que à mesma morte do seu herói.

Resta saber se o vício do Cônsul foi realmente implan-tado nele – como a loucura de Hamlet – pelos tempos, ou se simplesmente ele não é um fracasso. O Purgatório onde o vi-ciado se move é um círculo de irrealidade, no qual há uma ilu-são de escolhas sendo feitas (o Cônsul pode recusar o próximo drinque, ele às vezes até o faz por momentos), mas de fato não há escolha real, pois ele já decidiu ser escolhido por seu vício. Não apenas seu vício, mas também seu modo de consciência: Lowry pensava que não escrevia, e sim que era escrito. Ser escolhido por seu vício também signifi ca que há uma escolha adiada, não nas mãos, e sim no coração da pessoa, que todavia a ignora, e é essa escolha que decide se ela está danada no Inferno ou se, mesmo sem o saber, está buscando a redenção: se a pessoa está no Purgatório. Tal é a escolha que se torna real no momento derradeiro da morte, quando o Cônsul ouve uma voz que o chama de “pelado” e, ao mesmo tempo, de “compañero”. O Cônsul decerto não está no Inferno, e sim no Purgatório. Também aqui o criador – Lowry – torna-se inse-parável de sua criatura – o Cônsul –, pois a própria existência do romance é a prova de que afi nal Lowry/o Cônsul chegou a um triunfo da consciência expressa como máximo de lucidez. Ser escolhido e aceitar a condição das escolhas ilusórias justi-fi caram-se por fi m na escolha implícita na lucidez conquistada – À sombra do vulcão.

Como observei, o tema do fatalismo do Cônsul há de encontrar-se em quase todas as páginas deste romance, por maiores que sejam suas variações de humor – elas mesmas distorcidas e exageradas pela bebida. A vida do Cônsul lem-bra variações sobre um tema musical de algum compositor como Beethoven, em que a maior variedade possível de hu-mores e ritmos é obtida sem que os elementos do tema sejam fundamentalmente alterados. Mas com isso talvez se dê muita ênfase àquele lado do romance que abarca a vontade de auto-destruição do Cônsul. Lembramo-nos também deste livro por suas cenas maravilhosas de afi rmação. A vida que seria uma

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alternativa, embora rejeitada, aparece. Há a cena maravilhosa em que Hugh e Yvonne – fi sicamente sadios, belos e atraentes, conscientes do mundo e de suas responsabilidades públicas e privadas – andam pelo vale e depois montam cavalos que alugam, com os potros correndo ao lado. Essa vida ao ar livre, de bem-estar físico e comunicação franca, é, no entanto, su-tilmente espúria: eles (e em especial Hugh) agem conscientes demais de seus papéis. Mais tarde, como um paralelo à cena entre Hugh e Yvonne, há um momento no romance em que o Cônsul, bêbado mas ainda sóbrio, fala abrupta e abertamente com ela, sem esconder seus verdadeiros sentimentos. Em con-traste com quase todo o livro, há ainda o sol sobre as cabeças, e em metade do mundo há pessoas que lutam pela liberdade, primeiro na Espanha e depois contra Hitler. À sombra do vul-cão é uma autêntica tragédia moderna porque de algum modo o assassinato do Cônsul pela polícia fascista transforma sua vida numa afi rmação convincente de valores que ele conhecia profundamente e que em sua própria consciência ele não des-truíra. A conclusão deve ser que ela é religiosa: as contradições de um herói que não age e fracassa em ser herói, a insistência implícita de que o Cônsul é o escritor, vivendo e morrendo por todos nós, a preocupação com valores que estão à margem do tempo num mundo inteiramente contemporâneo são resolvi-das no tema da Divina Comédia, o progresso da alma.