A teoria crítica da Escola de Frankfurt e a Teoria do Reconhecimento

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Entrevista com Axel Honneth

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    Axel Honneth: Em um sentido trivial, eu diria que h, naturalmente, uma tradio de pensamento que tambm hoje continua existindo de forma relativamente vivaz. Eu digo trivial se adotamos como padro que essa tradio com diferentes pensadores entendida como uma unidade e se existem trabalhos e pesquisas que a ela se referem. As duas coisas existem e so praticadas no apenas em Frankfurt, mas em muitos outros lugares da Alemanha. H muitas pessoas, tambm jovens, que se vinculam a essa tradio de pensamento apreendida como uma unidade e procuram desenvolv-la. Eu poderia citar toda uma srie de grupos de pesquisa que menos em Frankfurt do que em outros lugares da Alemanha acreditam dar continuidade a essa tra-dio com seus prprios trabalhos. Nesse sentido positivista, conti-nua existindo uma tradio de pensamento da teoria crtica, inclusive de uma forma relativamente vivaz.

    Mas, provavelmente, a questo de saber se de fato existem tra-balhos que se compreendem como prolongamento dessa tradio no se coloca apenas positivamente, pois tambm precisamos saber se podemos falar propriamente de uma tradio de pensamento que continua a existir, a saber, a teoria crtica. Eu acredito que essa questo muito difcil de responder. O problema j surge por meio da questo de saber se podemos entender o prprio projeto de Habermas sua Teoria da ao comunicativa2 e sua investigao sobre a teoria do direito3 como prolongamento e, com isso, continuao dessa tradio de pensamento. Ou seja, teramos de saber quais so os critrios para uma continuao efetiva da tradio no apenas no sentido positivista ou emprico. Eu responderia a essa questo com certa hesitao, mas chegaria por fim a dar uma resposta afirmativa. Hesitao porque, naturalmente, a tradio de pensamento da teoria crtica tambm in-corporou uma determinada atmosfera e uma determinada experincia histrica. A experincia histrica consistiu no nacional-socialismo, e a teoria crtica preocupou-se, no geral, em estudar tanto a situao pr-fascista como tambm o choque de civilizaes causado pelo

    2. Habermas, J. Theorie des kommunikativen Handels. 2 Bde. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1981. (Habermas, J. Teoria do agir comunicativo. 2 vol. Traduo de Paulo Soe-the e Flvio Siebeneichler. So Paulo: Martins Fontes, 2012).

    3. Habermas, J. Faktizitt und Geltung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1994. (Habermas, J. Direito e democracia. 2 vol. Traduo de Flvio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997).

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    nacional-socialismo. Nesse sentido, tudo que surge depois disso pas-sa a ser outra teoria, uma vez que no se ocupa mais dessa mesma experincia histrica. Desse modo, tambm em um sentido fraco o prprio Habermas poderia ser entendido como prolongamento dessa tradio de pensamento. Naturalmente, trata-se de um prolongamen-to porque ele provavelmente assume o motivo fundamental que anima essa tradio em seu conjunto, a saber, entender o processo de mo-dernizao como um processo de racionalizao incompleta. Contu-do, a questo de se ainda hoje existe teoria crtica em um sentido coerente muito difcil de responder. Eu mesmo me esforo em esta-belecer uma determinada continuidade com essa tradio, mas, em alguns aspectos, faltam-me os pressupostos e tambm as possibilidades de prolongar produtivamente essa orientao fundamental. Eu no partilhei dessa orientao fundamental, de acordo com a qual podemos analisar nossa sociedade atual como uma forma de racionalidade cin-dida ou incompleta, porque no fundamentei minha prpria teoria social prioritariamente com base em uma teoria da racionalidade.

    A resposta difcil e complexa. Mas, caso tivesse de responder em uma nica frase, eu diria que me esforcei assim como outros tambm o fizeram em dar continuidade teoria crtica em um sen-tido coerente, na medida em que empreendi esforos tericos para fazer a mesma coisa que o prprio Habermas tambm tentou, a saber, desenvolver as teorias e os meios mais apropriados para submeter nossa situao social a uma forma fundamentada de crtica.

    Olivier Voirol: Essa fundamentao normativa exerce um papel mui-to importante em sua obra. Em seu livro Luta por reconhecimento, o Sr. tentou desenvolver as bases normativas slidas de uma teoria da so-ciedade.4 Foi justamente por causa desse ponto que seu trabalho se tornou to importante. O Sr. v um dficit na fundamentao norma-tiva da primeira teoria crtica e acredita ter fundamentado melhor e mais solidamente tais bases. Por que a fundamentao normativa da teoria crtica to importante?

    4. Honneth, A. Kampf um Anerkennung: Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1993. (Honneth, A. Luta por reconhecimento: A gram-tica moral dos conflitos sociais. Traduo de Luiz Srgio Repa. So Paulo: Edito-ra 34, 2003).

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    Axel Honneth: Na minha viso, o erro decisivo da primeira teoria crtica no consiste tanto na sua falta de fundamentao normativa, mas no dficit sociolgico. A primeira teoria crtica, tanto no mo-mento que precedeu o nacional-socialismo quanto durante seus estu-dos sobre o prprio nacional-socialismo, nunca esteve em condies de desenvolver um conceito coerente do social. Eu procurei mostrar isso na minha dissertao, que recebeu o ttulo de Crtica do poder.5 Esse dficit sociolgico me parece bem mais problemtico do que o dficit normativo da primeira teoria crtica. Em linhas gerais, essa foi tambm a razo do meu forte interesse, naquele momento, pela tradio francesa da teoria social, pois eu acredito que a singulari-dade do social foi analisada e tratada bem antes na tradio que re-monta a Durkheim. Naturalmente, isso se transformou bruscamente com Habermas, que, no fundo, entendeu toda a sua teoria como uma explicao do ncleo normativo do social, a saber, do entendimento comunicativo. Mas eu sentia que a teoria crtica anterior a Habermas estava marcada primariamente por um dficit sociolgico. Ora, o dficit sociolgico acompanha o dficit normativo na minha viso, pois os autores da Escola de Frankfurt no estavam em condies de retirar da prpria esfera do social os princpios normativos que poderiam ser teis para uma justificao interna da crtica. A partir de ento, tambm na esteira de Habermas, entendi, em princpio, que minha prpria tarefa consistiria em desenvolver, a partir de uma teo-ria do social, os critrios para a crtica de uma realizao patolgica ou incompleta do social. O caminho que propus para empreender tal tarefa foi aquele de uma teoria do reconhecimento, cuja ideia central consiste em fazer com que o princpio do reconhecimento seja, de certo modo, o ncleo do social. Nesse ponto vejo o vnculo entre a teoria do social e a fundamentao normativa. Eu acredito que toda teoria crtica precisa manter esse vnculo para poder desenvolver seus prprios critrios normativos a partir de uma teoria completa do so-cial. Isso constitui a diferena fundamental em relao tradio kan-tiana. No podemos simplesmente tomar por base, para uma crtica da sociedade ou das formas atuais de socializao, critrios normati-vos retirados de reflexes e construes racionais, pois tais critrios tm de ser apresentados como parte do ncleo constitutivo do social.

    5. Honneth, A. Kritik der Macht: Reflexionsstufen einer kritischen Gesellschaftstheorie. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1986.

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    Eu concebo meu prprio trabalho como ligado a esse projeto. E a teoria do reconhecimento uma tentativa de apresentar esse vnculo entre o social e os princpios normativos internos.

    Olivier Voirol: A ideia de uma fundamentao normativa da teoria crtica da Escola de Frankfurt est estreitamente ligada aos potenciais emancipatrios que podem ser identificados na prpria prxis. H na teoria crtica a ideia de que ela pode formular princpios normativos dos quais os atores sociais podem lanar mo em sua prxis eman-cipatria, a qual pode se realizar nos movimentos sociais. Tanto em sua teoria como na de Habermas encontramos essa ideia de que a teoria crtica tem de estar fundada normativamente nos potenciais emancipatrios existentes na prxis cotidiana. Quando observamos a forma de crtica que mobilizada pelos movimentos sociais, no-ta-se que tal forma negativa na medida em que est apoiada na denncia de formas determinadas de mecanismos de dominao. A questo que se coloca saber que forma deveria adotar uma teoria crtica que pretende manter seu vnculo com os movimentos sociais: se se trata de uma teoria que pode identificar mecanismos de domi-nao ou processos negativos para poder fazer uma anlise negativa da sociedade existente, ou de uma teoria que procura se fundamentar normativamente na prxis social. As reivindicaes dos movimentos sociais partem frequentemente de uma crtica negativa sem explici-tar suas bases normativas. E claro que eles precisam justificar suas reivindicaes. A questo que se coloca em relao ao papel de uma teoria crtica da sociedade saber se sua tarefa consiste em descrever os processos negativos ou fundamentar as bases normativas de sua crtica. De um lado encontramos Foucault, que no se ocupou em explicitar sua fundamentao normativa, e de outro Habermas, que se apoia fortemente nas bases normativas e emancipatrias da teoria crtica.

    Axel Honneth: Naturalmente, considero correta a descrio segun-do a qual os prprios movimentos sociais articulam sentimentos e descries negativas. Apenas raramente os movimentos sociais sur-gem com objetivos positivos, pois aparecem na maior parte das vezes como reao a alguma experincia negativa e expem mais o estado de coisas negativo do que demandas positivas. Sem dvida isso cor-reto. A questo saber o quo estreito deve ser esse vnculo entre

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    uma teoria crtica da sociedade e os movimentos sociais. Eu tenho certas dvidas de que tal vinculo seja realmente to estreito.

    A razo desse problema simples de notar, pois conhecemos uma quantidade de movimentos sociais com cujos objetivos simpati-zamos e outros pelos quais temos muita antipatia. Existem movimen-tos populistas, movimentos de extrema direita, movimentos contra estrangeiros etc. Todos eles so movimentos sociais. Eu acredito que j h, em sua prpria perspectiva, uma forma de orientao normativa capaz de indicar quais movimentos sociais podem ser progressistas ou, de um modo fundamentado e justificado, ser considerados progressis-tas, e quais podem ser considerados regressivos e repressivos ou, em certo sentido, imorais. Por esse motivo, eu creio que uma anlise crtica da sociedade, mesmo se ela se orienta pelos movimentos sociais, no poderia fazer mais do que apenas dar conta dessas orientaes normativas precedentes.

    Mas talvez seja somente uma diferena de temperamento ou de interesses que possa definir em que medida nos concentramos na ta-refa de demonstrar essas pr-orientaes normativas. Eu suponho que essas pr-orientaes normativas no eram to diferentes entre Foucault e Habermas, embora o principal interesse de um deles tenha consis-tido na fundamentao dessas pr-orientaes normativas, ao passo que o outro no viu grande sentido em fundament-las expressamen-te e, de certo modo, com argumentos que transcendiam o contexto. Foucault certamente tinha interesses totalmente diferentes do que aqueles de uma fundamentao de perspectivas normativas, referindo--se apenas aos movimentos sociais ligados ao sistema carcerrio e antipsiquiatria. Contudo, isso denota apenas uma diferena de inte-resse, ou talvez de orientao filosfica, mas no sistemtica, pois no penso realmente que haja aqui uma diferena sistemtica. Certamen-te h uma grande diferena no estilo das anlises e nos objetos estu-dados. Um deles se dedicou muito fundamentao normativa, o outro no se preocupou com essa questo, porm ambos partilhavam da mesma pr-orientao que necessria para afirmar por quais mo-vimentos sociais podemos nos orientar, e quais podemos considerar nocivos, regressivos ou contraproducentes.

    Essa uma resposta parcial questo. Mas ela pode nos fazer notar que, mesmo quando aceitamos que os movimentos sociais re-presentam, antes de tudo e essencialmente, formas negativas de reao diante de experincias injustas, no podemos deixar de admitir que a

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    prpria orientao esteja apoiada em bases normativas que precisam de certa fundamentao.

    Existem tambm tradies em que impera o sentimento e a convico de que essa fundamentao no tarefa de um trabalho propriamente filosfico. Suponho que Foucault pertence a esse tipo de tradio. Quanto a saber se existem razes mais profundas, pare-ce-me uma questo difcil de decidir a partir de nossa perspectiva do presente. Ou seja: saber se Foucault estaria convencido de que toda tentativa de fundamentao de normas universalistas levaria a erro. Por outro lado, tenho grandes dvidas quanto a saber se Foucault teria srias reservas contra os direitos humanos. Provavelmente no. Provavelmente ele tivesse sido um defensor decisivo dos direitos humanos. Ele pode ter considerado, assim como o fez Richard Ror-ty, que o esforo de fundamentao em seu conjunto no tinha sentido. Portanto, ele poderia ter se orientado pelos direitos huma-nos, admitindo assim, implicitamente, considerar adequadas as normas que pudessem ser aplicadas a todos os seres humanos. Mas, assim como Rorty, ele tambm diria que a tarefa de fundamentao filosfica suprflua ou simplesmente irrealizvel por determinadas razes sistemticas. Neste sentido, acredito no se tratar de uma diferena entre um universalismo moral e um perspectivismo, mas de uma diferena que implica saber se tal universalismo ou no passvel de fundamentao.

    Olivier Voirol: Ns acabamos de citar Habermas, um autor que exer-ce um papel considervel na reformulao da teoria crtica da Escola de Frankfurt. Em sua opinio, quais so as orientaes principais des-sa contribuio de Habermas para uma nova reformulao da teoria crtica? Enquanto sucessor de Habermas, que pontos dessa contribui-o o Sr. considera mais importantes?

    Axel Honneth: A orientao principal corresponde, essencialmente, ao que sempre entendemos pela virada comunicativa da teoria crti-ca. Ou seja, a tentativa de Habermas de no mais vincular a teoria crtica a uma imagem de sociedade entendida essencialmente a partir da produo ou das relaes de produo correspondentes, mas sim a um conceito do social caracterizado primariamente por processos de entendimento lingustico a virada comunicativa que consiste em considerar como o ncleo do social no mais a ao instrumen-tal, mas a ao comunicativa. Trata-se de uma teoria ligada estreita-

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    mente a Durkheim e Georg Herbert Mead. Isso tambm constitui, para mim, o impulso essencial que transformou fundamentalmente toda a arquitetnica da teoria crtica. Primeiramente, sua teoria no se apoiava na anlise da sociedade considerada como um conjunto de relaes de produo, mas na de suas relaes comunicativas, de sorte que tambm se seguisse necessariamente uma reorientao da perspectiva normativa. Esta no dependia da libertao do trabalho, ou por meio do trabalho, mas de uma libertao do potencial norma-tivo da ao orientada pelo entendimento.

    Para algum como eu, que se entende mais como um discpulo de Habermas do que de Adorno, essa transformao caracterizou um impulso essencial. Com isso, a teoria crtica se vinculou quele tipo de teoria social que, em certa medida, j tinha sido desenvolvida por clssicos como Durkheim, Max Weber e tambm Parsons. Antes de Habermas, nada disso teria sido possvel. A primeira gerao da teoria crtica, ainda fortemente ligada a Marx, entendeu a sociedade princi-palmente pelas relaes de trabalho. Por essa razo, ela limitou muito sua perspectiva normativa e apresentou, simultaneamente e de um modo especfico, penso eu, um dficit sociolgico. Eu diria que a virtude de Habermas em relao teoria crtica consiste justamente nessa transformao, ou seja, na superao do paradigma produtivista ou dessa herana histrico-filosfica que tinha suas razes em Marx.

    Olivier Voirol: Isso significa que o dficit sociolgico da primeira gerao da teoria crtica, qual o senhor acabou de fazer aluso, foi superado por Habermas?

    Axel Honneth: Sim. Ele foi superado sob determinado aspecto, do qual no estou plenamente convencido. Isso se deve ao fato e esse o drama que apresentei no livro Crtica do poder de Habermas ter substitudo o paradigma produtivista, que dominou a primeira gera-o da teoria crtica, pelo paradigma do entendimento, o que, acre-dito, acabou por limitar consideravelmente o espao para os conflitos sociais, isto , o fato da concorrncia e da luta existente entre os su-jeitos socializados. Minha prpria tentativa consistiu, por conseguin-te, em ampliar ou corrigir esse caminho, aberto por Habermas, de uma concepo do social fundada nas relaes comunicativas, com uma orientao mais fortemente ligada a uma teoria dos conflitos. E o paradigma que pretendi colocar no lugar, ou que talvez quisesse com-

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    preender como um aprofundamento do modelo do entendimento, foi o da luta por reconhecimento.

    Olivier Voirol: O Sr. entende haver um dficit tambm no conceito fundamentado de conflito em Foucault, e em outros autores que fo-ram discutidos em seu livro Crtica do poder. O Sr. pode nos esclarecer um pouco mais por que considerou to importante introduzir o con-ceito de luta nessa discusso?

    Axel Honneth: Um motivo essencial consistiu em tornar mais cla-ro para mim que s podemos determinar suficientemente o social se tambm o compreendemos como um campo de disputa e lutas so-ciais. Podemos dizer que isso diz respeito, em certa medida, heran-a marxista, ou seja, eu sempre tive a convico de que, para Marx, sua ideia de luta de classes talvez fosse mais importante do que seu paradigma produtivista. No na formulao que ele mesmo escolheu para a luta, mas como uma determinao central de uma relao so-cial fundamental o que Simmel chamou de disputa, e em outras tradies foi descrita como conflito, e em outras ainda como luta; em suma, o fato do antagonismo social, uma oposio de sujeitos que forma, em grande medida, o outro lado de sua orientao ao enten-dimento. Parecia-me que tanto a primeira gerao da teoria crtica como tambm o prprio Habermas ignoravam esse fenmeno fun-damental do social, enquanto em Foucault tal fenmeno exercia um papel bastante proeminente, ainda que, na minha opinio, ele no o tivesse analisado de forma clara e convincente. Aqui me encontro, de um lado, em acordo com uma determinada tradio alem. Ela est certamente presente em Marx, e tambm j em Hegel, mas tambm em Simmel. De outro lado, sou devedor da tradio francesa ligada a Durkheim, que props a via de uma teoria dos conflitos e foi se-guida por Bourdieu, com seu forte acento sobre a concorrncia e as lutas simblicas. Neste sentido, trata-se de um processo que pode ser dividido em trs passos: substituir o paradigma produtivista pelo paradigma do entendimento, como uma primeira abordagem efeti-va na estrutura do social, e, alm disso, no entender essa estrutura do social apenas com base no entendimento, mas tambm como um conflito no entendimento. Quanto ao que significa um conflito no entendimento, parece-me que isso pode ser melhor analisado com o paradigma da luta por reconhecimento desenvolvido por Hegel.

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    Olivier Voirol: Pode-se dizer que o Sr. est de acordo com muitas reformulaes da teoria crtica feitas a partir de Habermas, como aca-bou de sublinhar. Mas, em relao a determinados pontos, o Sr. se distancia claramente dele. A questo da luta um deles, mas existem outros. Penso aqui em sua crtica pragmtica da linguagem. Nesta sua crtica, o Sr. diz que a pragmtica da linguagem de Habermas no pode levar plenamente em considerao a experincia moral co-tidiana dos atores sociais, uma vez que a linguagem apenas uma parte dessa experincia. Por essa razo, o Sr. introduz o conceito de experincia moral. Neste sentido, pode-se dizer que Habermas fica mais do lado da linguagem, e o Sr. mais do lado da experincia. O Sr. toma uma distncia considervel da chamada virada lingustica ao substituir a teoria da linguagem por uma teoria do reconhecimento que pode valer tambm como uma teoria da experincia. Quais foram as razes tericas que motivaram essa virada?

    Axel Honneth: Essa uma questo muito complicada e difcil de responder. Talvez eu possa comear dizendo que a virada da teoria da linguagem teve com Habermas, na minha viso, um duplo signi-ficado. Por um lado, a virada lingustica privilegiou metodologica-mente a linguagem, o que significa que a relao com o mundo e com as experincias humanas nos essencialmente acessvel como fato lingustico. Ao dizer isso, sublinhamos um estado de coisas metodo-lgico no qual tudo que move os homens, e tudo que estes fazem, nos dado sob a forma de proposies lingusticas. Neste sentido, consi-dero a virada efetuada pela teoria da linguagem como algo evidente e incontornvel. E tal virada teve, naturalmente, grande repercusso sob a antiga teoria crtica, que de modo nenhum efetuou esse passo metodolgico da virada lingustica.

    Mas a virada lingustica, ou seja, a virada da teoria da linguagem da teoria crtica, privilegiou a linguagem no apenas metodologica-mente, mas tambm objetivamente. Essa diferena importante. Tal privilgio objetivo da linguagem significa que, nas relaes comuni-cativas entre os homens, somente aquilo que adota a forma da lingua-gem parece ser relevante, ou seja, relevante o que puder ser articu-lado linguisticamente. E essa relevncia no apenas metodolgica, mas tambm objetiva. Por conseguinte, na minha perspectiva isso leva a uma reduo do paradigma da comunicao e a uma respectiva li-mitao da esfera do social j que o social parece se dissolver repen-tinamente nos processos de entendimento lingustico. Isso me parece

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    ser realmente uma falcia do argumento, na medida em que iguala o primado metodolgico da linguagem com seu primado objetivo.

    A meu ver, a consequncia de fato bem infeliz, pois o que constitui as relaes de comunicao de uma sociedade algo que naturalmente abrange muito mais do que representado pelos seus processos de entendimento lingustico ou assegurado pelos processos lingusticos de interao. J as interaes pr-lingusticas dos filhos com as mes possuem um significado to importante e, segundo acre-dito, to constitutivo para toda reproduo social, que fica claro que fatal reduzir os processos de interao social e de relaes de comu-nicao dimenso estreita do entendimento lingustico. Por essa razo, eu sempre estive convencido de que, embora o uso metodol-gico da anlise da linguagem seja correto e no possua qualquer problema, no devemos concluir pela desconsiderao das formas no lingusticas de comunicao social. Isso leva a determinar as relaes de interao no social de maneira mais rica do que seria possvel com o modelo do entendimento lingustico. Pertencem a tais relaes formas no lingusticas que chegam a incluir formas corpreas e ges-tuais de interao social, que so constitutivas para a reproduo social e para a identidade social de uma sociedade, mas que no se manifes-tam como processos de entendimento lingustico. Pode-se dizer que essa a passagem da linguagem para a experincia social. Mas no quero dizer com isso que a experincia social algo que provavelmen-te s podemos analisar na medida em que a tornemos compreensvel por sua articulao lingustica. O correto dizer que pretendo voltar a considerar a experincia de interao em toda a amplitude de seu significado social, pois acredito que foi desconsiderada por Habermas em sua fixao do primado da linguagem. Para essa questo, portanto, essencial a distino entre o privilgio metodolgico e o privilgio objetivo da linguagem. O privilgio metodolgico me parece adequa-do, j o privilgio objetivo me parece uma falcia, ou, por assim dizer, trata-se de uma concluso equivocada qual se chega quando passamos da centralidade metodolgica para a objetiva. Acredito que sem formas gestuais, simblicas e corporais de interao social nossa sociedade no estaria em condies de dar continuidade a processos de repro-duo e de formao da identidade formas que possuem ao menos tanto significado quanto os processos de entendimento lingustico.

    Olivier Voirol: O Sr. acabou de nos falar sobre a questo do corpo. Em seu modelo de trs esferas de reconhecimento (amor, direito e so-

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    lidariedade), que o senhor desenvolveu no livro Luta por reconhecimento, o nvel do amor est ligado experincia corporal. Essa forma de reconhecimento est ligada a uma forma de auto-relao do sujeito, isto , de autoconfiana, e a uma forma de desrespeito, o mau-trato prtico. O mau-trato prtico significa que a integridade corporal de um indivduo foi prejudicada, por exemplo, pela tortura, pela viola-o etc. A questo do corpo tem um papel importante para a filosofia social francesa. H uma longa tradio de tematizao do corpo que provavelmente se iniciou com Bergson e se desenvolveu com autores como Merleau-Ponty, Sartre, Foucault e Bourdieu. Com exceo de Bergson, o Sr. discutiu com bastante detalhe com todos esses autores e pode-se dizer que foram muito importantes no processo de for-mao de sua teoria da luta social por reconhecimento. Alm disso, essa questo marca tambm uma diferena em relao a Habermas, na medida em que o senhor mostrou um grande interesse na tradio francesa da filosofia e da sociologia. Essa tradio francesa sobre a tematizao do corpo exerce um papel importante nesse interesse te-rico pelos aspectos no lingusticos da comunicao e da dimenso corporal? Ela contribui tambm para seu ceticismo diante do modelo habermasiano de interao?

    Axel Honneth: Acredito que foram dois traos particulares da filo-sofia social francesa que me estimularam particularmente, e que tam-bm usei como corretivo contra o desenvolvimento da teoria crtica efetuado por Habermas. Por um lado, como voc mesmo notou, h um interesse muito forte pelo corpo humano. Pode ser que isso te-nha comeado com Bergson, eu no posso avaliar com preciso se sua teoria realmente a origem, mas a questo se desenvolve com mais fora, naturalmente, com Sartre e Merleau-Ponty, pois ambos reservaram um lugar central para o corpo em suas prprias filosofias, e foram seguidos por pensadores como Lacan ou Foucault.

    Contudo, a outra razo consistiu na especial ateno que foi dada, acredito, aos fenmenos negativos do social, ou seja, quilo que antes caracterizei como o aspecto conflituoso e concorrencial do social. Isso remete provavelmente a Rousseau e se desdobra em uma tradio determinada que chega a Sartre ou Bourdieu. Em ambos identificamos uma ateno especial pelo social como um campo de concorrncia e disputa intersubjetivo, ou mesmo de inimizade. Nesse sentido, eu sempre pretendi me ocupar dessa tradio para alcanar, assim, um ponto de vista independente em relao a Habermas.

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    No que diz respeito ao acento dado corporeidade do social, devo dizer ainda que estou mais convencido hoje do que na poca em que escrevi o livro sobre a luta por reconhecimento de que todas as formas de reconhecimento social possuem uma determinada raiz corprea ou simbitica. Como voc disse corretamente, no livro o corpo surge essencialmente na primeira dimenso do amor, mas no exerce um papel central para as outras dimenses. Entretanto, acredi-to que o reconhecimento social permanece atrelado de certo modo, indiretamente, a processos simbiticos, e assim se refere sempre a gestos, expresses no lingusticas, e a todos os recursos da mmica e da gesticulao que so, por assim dizer, pr-lingusticos. Estou mais convencido disso hoje do que antes. Portanto, eu acentuaria atual-mente, com mais fora do que na poca em que escrevi o livro, a corporeidade dos processos sociais.

    Olivier Voirol: Em sua teoria, a corporeidade est sempre ligada s aes intersubjetivas. Como o Sr. entende a relao entre intersub-jetividade e formas no lingusticas de comunicao em que o corpo exerce um papel fundamental?

    Axel Honneth: Ora, acredito que a pergunta pode ser facilmente res-pondida do ponto de vista de sua ontognese. Ontogeneticamente, a intersubjetividade surge de formas pr-lingusticas de comunicao social extremamente relacionadas ao corpo. Isso significa tambm que desenvolvemos algo como uma capacidade para agir intersub-jetivamente apenas por meio de uma forma ainda pr-lingustica, ou seja, de uma interao corporal com nossa pessoa de referncia. Nesse sentido, a raiz da intersubjetividade uma forma de interao e comunicao ligada ao corpo ou mesmo uma forma diretamente corporal. Se a descrevemos diretamente como uma forma de ao, como fez Winnicot, ou meramente como gestos corporais, tal como ocorre na psicanlise, ou como interaes gestuais, como pretendeu Georg Herbert Mead, em todos esses casos se trata de formas pr--lingusticas de interao ligadas a aes corporais que, de um ponto de vista ontogentico, expem as razes para todas as dimenses da intersubjetividade.

    Alm disso, acredito ainda que a corporeidade exerce um papel em todas as nossas interaes no apenas ontogeneticamente, mas tambm estruturalmente, pois em grande medida damos forma e mo-delamos nossas interaes com a ajuda de gestos expressivos corporais.

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    Certamente, essas interaes corporais foram consideradas em parte pela pragmtica da linguagem, uma vez que se notou a importncia que possuem, para uma interao que produza sentido, aqueles nossos gestos que acompanham o entendimento lingustico. Contudo, no centro dessa teoria se deu muito pouca ateno ao fato de que o en-tendimento lingustico tambm fracassaria sem o apoio e a presena constante do corpo. Nesse sentido, acredito que o lado corporal de nosso comportamento assume uma funo fundamental na interao. No que diz respeito ao reconhecimento, a primeira forma de reconhe-cimento social incide provavelmente nas expresses pr-verbalizadas, gestuais e mimticas, s quais tambm esto reatadas as formas desen-volvidas e avanadas de reconhecimento social. Cada forma de reco-nhecimento social necessita provavelmente de um substituto simb-lico para essas formas corporais de reconhecimento. Essa dimenso simblica, que abrange as diferentes formas de reconhecimento social, est atrelada aos gestos corporais originrios. Por essa razo, eu diria que preciso dar muita ateno materialidade do reconhecimento se quisermos analisar a sociedade como uma organizao de formas sociais de reconhecimento. Eu no havia dado tanta ateno a isso antes. Mas acredito que o reconhecimento tambm constitui, por assim dizer, materialidade, ou seja, materialidade cunhada socialmen-te; e acredito ainda que esse lado material do reconhecimento esteja vinculado em grande medida corporeidade humana e corporeida-de da interao social.

    Olivier Voirol: O que o Sr. quer dizer exatamente com essa ideia de materialidade do reconhecimento?

    Axel Honneth: Quero dizer com isso que a materialidade do reco-nhecimento tem dois lados. De um lado, penso naquilo que princi-palmente Foucault, mas tambm Bourdieu perceberam, a saber, que importante considerar a ao social sempre sob o aspecto da presena fsica. Ou seja, toda ao social repercute na estrutura dos espaos materiais em que nos movemos. Nesse sentido, o reconhecimento social algo que tambm possui uma presena fsica em nosso coti-diano. Ora, mesmo o modo como o quarto de uma criana deco-rado, ou o modo como o entorno espacial das crianas se encontra disposto, j pode ser um indicador de como so constitudas as re-laes de reconhecimento. Isso significa que o reconhecimento no apenas um ato de fala, mas tambm no somente uma forma de

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    afeio ou de afirmao corporal dotada, alm disso, de linguagem, pois ele possui ainda certo lado fsico: os meios pelos quais ocorre o reconhecimento tm sua prpria localidade fsica no espao. O que significa que podemos, em princpio, investigar como as relaes de reconhecimento e as formas de desrespeito podem, fisicamente, tor-nar-se materialidade. A priso mostra, por exemplo, como os deten-tos so fisicamente desrespeitados, isto , ela indica em sua estrutura fsica uma forma determinada de desrespeito social, assim como qual-quer calada pode tambm mostrar como o pedestre considerado minimamente como um ser social. Neste sentido, a totalidade social de nosso mundo circundante possui uma presena fsica das formas dominantes de reconhecimento e de desrespeito.

    Olivier Voirol: Existem atualmente fortes tendncias cognitivistas que consideram a ao humana como determinada pelo corpo. Os tericos da ao tomam distncia diante dessa definio determinista de ao e tambm em relao a Merleau-Ponty, embora conceden-do que este havia percebido aspectos importantes disso. A teoria do reconhecimento que o Sr. prope fortemente ligada a uma posio tpica de uma teoria da ao e a uma concepo de intersubjetivida-de. O Sr. poderia desenvolver um pouco mais qual seria sua posio nesse debate?

    Axel Honneth: Isso depende de como se utiliza o conceito de corpo humano. Na minha viso, o corpo aquilo que independe diretamen-te de um sentido intersubjetivo. Contudo, o corpo tambm assume uma funo relevante para a formao de sentido no entendimento e na interao e eu chegaria a dizer at mesmo que uma funo fundamental. Isso tambm significa que nossos gestos e expresses corporais so formados socialmente, o que Merleau-Ponty j havia notado. Neste sentido, o corpo no se ope ao esprito. Eu diria que um dos principais servios prestados pela tradio ligada a Merleau-Ponty consiste em ter superado aquele antigo dualismo cartesiano entre corpo e alma. Quando se v as coisas desse modo, ento esse me parece ser um falso debate. Os chamados cognitivistas possivel-mente utilizam um conceito de corpo que est aqum de Merleau-Ponty. E isso me parece ser fatal.

    Olivier Voirol: Uma outra diferena entre Habermas e o Sr. diz res-peito ao papel que exerce a tradio filosfica e sociolgica francesa

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    na sua teoria. Habermas sempre se orientou mais pela tradio anglo--saxnica. Ele certamente discutiu a filosofia francesa atual, mas tam-bm a criticou fortemente (por exemplo, Foucault e Derrida). Em sua obra encontramos exatamente o oposto. O Sr. j disse que a filosofia francesa exerceu um papel considervel no desenvolvimento de sua teoria, dedicando muitos artigos a vrios autores franceses: Foucault, Sartre, Merleau-Ponty, Bourdieu, Lyotard e Sorel. O Sr. j mencio-nou tambm seu interesse no lado negativo do social presente nessa tradio. H ainda outras razes para o seu interesse pela tradio francesa?

    Axel Honneth: Se entendo corretamente, para Habermas existem basicamente duas grandes figuras na tradio francesa: Rousseau, en-quanto precursor de uma teoria da soberania popular, e naturalmente Durkheim, como algum que, ao lado de Georg Herbert Mead, lan-ou o primeiro olhar para o ncleo intersubjetivo do social. Tudo o que se segue foi, para Habermas, de certo modo colocado em perigo por Nietzsche, de um lado, e Heidegger, de outro lado. Eu no per-cebi as coisas assim, e isso pode ser explicado primeiramente por um pano de fundo biogrfico e, por essa razo, contingente. Enquanto percorria meus anos de formao, ou seja, os anos em que sa do gi-nsio e comecei os estudos universitrios, havia na Alemanha um in-teresse enorme na filosofia francesa e no na filosofia anglo-sax. No caso de Habermas ocorreu exatamente o contrrio. Nos anos 1950 havia certo interesse na filosofia francesa alis, ele escrevera algo nessa poca sobre Merleau-Ponty , mas no centro do interesse esta-vam os EUA e a Inglaterra. Nos tempos em que iniciei meus estudos universitrios isso era bem diferente, havia um evidente e enorme interesse nos desenvolvimentos do pensamento francs.

    Essa uma justificativa contingente. Na verdade, eu acredito que, para mim, esse fascnio surgiu a partir dos dois elementos que j tratamos anteriormente. Por um lado, a forte presena do corpo, pelo menos em comparao com a filosofia alem do ps-guerra. Antes do nacional-socialismo, esse tema tinha sido amplamente debatido tam-bm na Alemanha pela antropologia filosfica com Plessner e Geh-len. Mas aps o nacional-socialismo, e em funo de todas as coisas que caracterizaram as tradies nas quais me formei, influenciado por Habermas, o corpo praticamente no tinha mais um papel essencial. A partir de ento, a fenomenologia francesa passou a ter uma grande atratividade para mim e representou um corretivo saudvel contra a

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    centralidade da linguagem no projeto habermasiano. Por outro lado, havia a perspectiva realista, qual j me referi em questes anteriores, que era sensvel existncia do conflito social. Talvez tambm tivesse sido determinante a capacidade da filosofia francesa ao menos aque-la do ps-guerra, ligada ao desenvolvimento da tradio fenomeno-lgica em investigar intensamente as experincias cotidianas. As situaes cotidianas e a realizao de aes cotidianas tinham, tanto para Sartre como para Merleau-Ponty, uma importncia excepcional. Sartre fez programaticamente da vida moderna o ponto de referncia da filosofia, em oposio tradio alem. Na Alemanha, em razo do legado deixado por Heidegger, a filosofia se fixou fortemente sobre modos de vida pr-citadinos e no urbanos. Com Sartre, a filosofia deu grande ateno s experincias da vida urbana e, portanto, mo-derna. Isso provavelmente tambm impregnou o tipo de filosofia que pratico, e desde muito cedo me disps a estabelecer determinadas relaes com a tradio da filosofia francesa.

    Olivier Voirol: Tratamos at o momento da relao entre sua teoria e a teoria crtica, particularmente a verso habermasiana. Quando comparada primeira gerao da teoria crtica e tambm a Habermas, eu vejo em sua teoria uma grande diferena, sobretudo no que diz respeito questo da razo instrumental. Poderamos dizer que esta no exerce qualquer papel em sua teoria. O conceito tambm no possui o papel crtico que encontramos na Dialtica do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer,6 ou na Teoria da ao comunicativa, de Habermas. Em um de seus primeiros textos, o Sr. critica o conceito de trabalho em Habermas porque este operaria segundo uma reduo do trabalho ao instrumental.7 Alm disso, nota-se que sempre esteve presente em sua obra a crtica a uma definio estratgica de ao. Em diferen-tes textos o Sr. se ocupa desse tema. Por exemplo, o Sr. critica em um de seus trabalhos recentes, Redistribuio como reconhecimento.

    6. Adorno, T./Horkheimer, M. Dialektik der Aufklrung. S. Ficher, 1969. (Adorno, T./Horkheimer, M. Dialtica do esclarecimento. Traduo de Guido de Almeida. Zahar, 1985).

    7. Honneth, A. Arbeit und instrumentales Handeln. In: Honneth, A./Joas, H. (org.) Arbeit, Handlung, Normativitt. Theorien des Historischen Materialismus. Bd. 2. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1980.

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    Uma rplica a Nancy Fraser8 a distino entre cultura e economia, assim como j havia criticado a distino habermasiana entre mundo da vida e sistema. Embora se trate de diferentes aspectos de sua obra, acredito haver uma continuidade, bem como uma intuio que seria essencial na sua teoria. Pode-se dizer que essa intuio reside no fato de que o social no pode ser explicado por meio de conceitos instru-mentais ou estratgicos?

    Axel Honneth: Essa talvez a questo mais complicada de todas, porque at o momento eu ainda no consegui vincular a teoria do reconhecimento a uma teoria da racionalidade de modo que as distin-es da primeira gerao da Escola de Frankfurt pudessem ser torna-das plausveis sobre uma nova base. O acesso da Escola de Frankfurt a essa questo foi mais bem articulado a partir da crtica ao positivismo e exerceu um certo papel em Habermas. Trata-se da ideia de que nas cincias se reflete diante da realidade uma determinada atitude que possui traos da razo instrumental; portanto, preciso formular primeiramente uma crtica a essa atitude, antes que esta possa abarcar outras formas de relao com o mundo. Em Adorno se trata da oposi-o entre razo instrumental e mimese, e em Habermas da oposio entre razo instrumental e ao comunicativa.

    At o momento, nunca procurei entender a prpria concepo de reconhecimento social com base em uma teoria da racionalidade. Porm, acredito no apenas que eu deveria, mas tambm que posso faz-lo. A ideia consistiria em compreender a totalidade das relaes de reconhecimento de certo modo como elemento de uma racionali-dade do mundo da vida que estaria inscrita nas relaes humanas, de modo que tivssemos de entender determinadas atitudes e vises de mundo cientificistas, que abstraem as relaes do mundo da vida ou as desfiguram, como expresso da razo instrumental. Em outras pa-lavras, acredito que posso me vincular tradio que foi representada de certo modo por Husserl, Heidegger, Wittgenstein a tambm Ador-no, na qual o cientificismo foi interpretado como negao da racio-nalidade do mundo da vida. Podemos afirmar ento que esse cientifi-cismo, que foi importante num primeiro momento para a autocom-

    8. Honneth, A. Umverteilung als Anerkennung. Eine Erwiederung auf Nancy Fraser. In: Fraser, N./Honneth, A. Umverteilung oder Anerkennung? Eine politisch--philosophische Kontroverse. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2003.

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    preenso da cincia, tambm influenciou a autocompreenso da so-ciedade na medida em que as relaes de reconhecimento foram re-primidas ou substitudas pelas relaes instrumentais, ou seja, reflete--se diante da realidade uma atitude cientificista. Eu teria assim de re-formular em um novo nvel a intuio, que me parece correta, da primeira gerao da Escola de Frankfurt, semelhantemente como o fez Habermas, embora naturalmente com outros meios e de outro modo.

    Foi com essa mesma motivao que surgiu meu grande interesse em novas teorias da racionalidade, tais como a de John McDowell.9 Eu procurei entender o cientificismo e seus aspectos correspondentes nas atitudes sociais, a saber, as relaes instrumentais com outros su-jeitos, como a contrapartida negativa da infra-estrutura do reconhe-cimento social, de sorte que pudssemos afirmar que o cientificismo nas cincias sociais nega o ncleo do reconhecimento prprio do mundo da vida, que a atitude instrumental diante dos outros sujeitos nega a necessidade do reconhecimento no interior da sociedade, o qual constitutivo para todos ns. Tal como Adorno, Horkheimer e Habermas, eu tambm faria um paralelo entre o cientificismo e as relaes instrumentais que se tornaram dominantes no interior da sociedade. E isso seria uma reformulao da teoria da racionalidade e da respectiva crtica da racionalidade instrumental com base em uma teoria do reconhecimento. A ideia central consistiria em notar que entendemos como a forma nuclear da racionalidade humana a segun-da natureza de nossas relaes de reconhecimento recproco em suma, a carncia por reconhecimento recproco no mundo da vida que se tornou capital para todos ns. Esse seria o ncleo de uma raciona-lidade que foi cada vez mais desfigurada, encoberta e substituda pelas atitudes cientificistas e instrumentais. Nisso consistiria, portanto, a retomada de motivos que j se encontravam em Husserl, e certamen-te tambm em Heidegger e Wittgenstein, e que tm de ser reformu-lados por uma fenomenologia prpria da teoria do reconhecimento.

    Eu operaria com uma oposio entre conhecimento e reconhe-cimento e diria que o reconhecimento possui um primado diante do conhecimento, ou seja, que o prprio conhecimento uma atitude

    9. Honneth, A. Zwischen Hermeneutik und Hegelianismus. John McDowell und die Herausforderung des moralischen Realismus. In: Honneth, A. Un-sichtbarkeit. Stationen einer Theorie der Intersubjektivitt. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2003.

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    secundria. A crtica da razo instrumental valeria assim para o dom-nio crescente de uma atitude secundria sobre uma primria no mun-do da vida. Nisso consiste meu novo interesse em Wittgenstein e nos estudos fundados em sua tradio.

    Olivier Voirol: Mas o Sr. no precisa, para realizar esse projeto, pres-supor a esfera da razo instrumental, assim como Habermas pressu-ps a teoria dos sistemas?

    Axel Honneth: Acredito que a questo tem dois lados, um concer-nente teoria da racionalidade e o outro teoria social. A questo levantada pela teoria da racionalidade seria a seguinte: Podemos dis-tinguir duas formas diferentes de racionalidade humana? E, como dis-se acima, conhecimento e reconhecimento so talvez dois modos de racionalidade, ainda que o reconhecimento preceda o conhecimento.

    A outra questo implica traduzir os conceitos dessa teoria da racionalidade para uma teoria social. Habermas operou essa traduo com a distino entre sistema e mundo da vida. Considero essa traduo equivocada. Eu no tentaria descrever o fenmeno social que complementar ao cientificismo ou razo instrumental como sis-tema, mas o faria de outro modo. Eu tentaria, possivelmente, lig-lo a conceitos de instituio que reforassem ainda mais o prprio con-ceito de instituio social, um pouco como Max Weber; e tambm poderamos, assim, encontrar vnculos com a tradio mais forte do marxismo, pois Habermas, naturalmente, retrocede, com sua catego-ria de sistema, em relao quelas fortes intuies do marxismo. Eu no quero pagar esse preo. Eu tentaria antes entender as interpene-traes da racionalidade instrumental sobre o mercado, sobre os complexos processos de troca e de regulao, dos quais temos a im-presso que se desacoplaram das relaes de reconhecimento, com categorias de instituio ou melhor, de um determinado tipo de instituio. Talvez com o conceito de organizao, mas no com o aparato conceitual da teoria dos sistemas.

    Mas, voltando questo, penso que o Sr. tem razo quando diz que uma teoria crtica tambm precisa possuir um ncleo comum teoria da racionalidade. Porm, eu no o desenvolvi at o momento. E acredito realmente que s posso defender meu programa se puder empreend-lo. Esse empreendimento muito difcil, pois exige uma formulao conceitual do reconhecimento que lhe permita ocupar o ncleo de uma teoria da racionalidade. E nesse caso eu comearia com

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    uma distino fundamental entre conhecimento e reconhecimento, ou, pode-se at mesmo dizer, entre comunicao e troca, j que so conceitos paralelos. Na troca se trata no de reconhecimento, mas do conhecimento do outro. No reconhecimento, pelo contrrio, trata-se de algo essencialmente mais forte, a saber, da afirmao do outro su-jeito. Por isso eu comearia com tal distino fundamental e mostraria, assim como j havia feito Habermas, que o reconhecimento natural-mente precede o conhecimento. No caso de Habermas, o entendi-mento tem um primado diante da ao estratgica, mas eu faria essa distino, que necessria para uma teoria da sociedade, no a partir da distino entre sistema e mundo da vida, mas sim do fio condutor da distino entre conhecimento e reconhecimento.

    Olivier Voirol: Isso significa que o Sr. reintroduz a economia nesse projeto...

    Axel Honneth: Sim, mas como uma esfera secundria que, de certo modo como aparece em Hegel, cria efeitos fortes e certamente pa-tolgicos no interior de nosso mundo da vida caso no seja mantida no espao normativo regulado pelo direito.10 Isso no significa que acredito no projeto de superao da economia, mas sim em um pro-jeto de ancoramento da economia nos espaos sociais do mundo da vida, ou seja, nos espaos das relaes sociais de reconhecimento e desse modo podemos ainda encontrar vnculos com certas tradies do marxismo em que h a ideia de um liame da economia no crculo ou no horizonte do reconhecimento social, como no caso de Polanyi.

    No momento, meu interesse est todo voltado distino entre reconhecimento e conhecimento, pois acredito que esteja a a raiz de uma teoria da racionalidade que vai de encontro a essa tentativa de um reancoramento da economia. H pouco tempo escrevi um artigo sobre invisibilidade que lida com essa distino e afirma a precedn-cia do reconhecimento diante do conhecimento.11 Se eu puder expli-car essa tese to difcil, ento acredito ter encontrado o meio para

    10. Honneth, A. Leiden an Unbestimmtheit. Berlin: Reclam, 2001. (Honneth, A. So-frimento de indeterminao: Uma reatualizao da filosofia do direito de Hegel. Traduo de Rrion Melo. So Paulo: Singular/Esfera Pblica, 2007).

    11. Honneth, A. Unsichtbarkeit. ber die moralische Epistemologie von Anerkennung. In: Honneth, A. Unsichtbarkeit. Stationen einer Theorie der Intersub-jektivitt, op. cit.

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    desenvolver ainda outros pontos, pois assim aquela teoria social, que se apoia no conhecimento em vez do reconhecimento, seria uma negao cientificista da sociabilidade. Essa a ideia fundamental que pretendo traduzir como fundamento de uma teoria da sociedade.

    Acredito, alm disso, que essa a nica chance que tenho para concorrer de fato com Habermas. De certa forma, Habermas consegue ir mais fundo com sua teoria da ao comunicativa do que eu se eu no intervier nesse mbito de um primado do reconhecimento em face do conhecimento, e tambm diante do prprio discurso. Porm, no posso realizar essa interveno no quadro de uma teoria da linguagem: preciso, se compreendo corretamente o problema, retornar a Witt-genstein e Heidegger para poder apresentar o primado do reconhe-cimento o mundo da vida primrio dos homens seria, assim, no um mundo do entendimento racional, mas um mundo do reconhecimen-to. E isso no apenas do ponto de vista ontogentico, uma vez que no seria difcil mostrar que ontogeneticamente o reconhecimento afetivo sempre precede a aquisio da linguagem, mas tambm de um ponto de vista estrutural. Em suma, preciso mostrar que tambm es-truturalmente o reconhecimento precede o conhecimento. Se puder-mos alcanar esse nvel mais profundo de justificao, ento talvez seja possvel reformular a crtica da razo instrumental com uma teo-ria do reconhecimento.

    Olivier Voirol: Vamos nos ocupar um pouco mais dessa diferena en-tre sua teoria e aquela de Habermas. At aqui discutimos os temas das lutas e conflitos sociais, pragmtica da linguagem e experincia, relaes com a filosofia francesa e tambm a questo da razo ins-trumental. Gostaria de saber agora se encontramos em sua teoria uma reformulao da teoria habermasiana da esfera pblica, e qual seria a forma adotada por essa teoria.

    Axel Honneth: Para responder a essa pergunta eu gostaria de me orientar essencialmente pela ideia fundamental de Habermas de um ponto de vista normativo ela me parece apresentar a formulao mais abrangente e complexa sobre o tema. J no que diz respeito sua aplicao emprica, tenho algumas reservas e diferenas e apre-sentaria provavelmente algumas modificaes que partem, sobretu-do, da ideia de uma luta por reconhecimento. A diferena concerne basicamente a dois aspectos, o primeiro referente pressuposio de

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    participao na esfera pblica poltica, e o segundo, aos mecanismos de excluso e dominao na esfera pblica democrtica.

    Evidentemente, decorre de minha reflexo em relao a tais pressupostos que s podemos garanti-los se de fato todos os sujeitos dispuserem da possibilidade ftica de uma apario intrpida e aut-noma na esfera pblica esclareo-me com uma frase de Adam Smith: aparecer na esfera pblica sem se envergonhar.12 E essa uma for-mulao que aponta basicamente para a ideia de que os sujeitos ne-cessitam de formas diversas de reconhecimento social para realmente poder participar na formao democrtica da vontade. Nesse sentido, uma variedade de infra-estruturas normativas, que tomadas em con-junto representam as condies para a participao democrtica, precedem a prpria esfera pblica democrtica. Essas condies de reconhecimento formam um contrapeso para a esfera pblica, na medida em que os contextos de experincia e os meios culturais do reconhecimento so geralmente particularistas, e no universalistas, como o seriam em esferas pblicas democrticas. Ora, pode-se dizer que a contrapartida do conceito de esfera pblica democrtica con-siste numa concepo de relaes de interao social em que os sujei-tos podem adquirir e experimentar aquelas formas de reconhecimen-to que so necessrias para que possam apresentar-se publicamente sem sentir vergonha. Essa concepo seria uma contrapartida porque esses contextos de experincia de reconhecimento social no so necessariamente universalistas, mas sim particularistas, na medida em que no realizam valores considerados vlidos para toda a sociedade, mas apenas aspectos das relaes que ocorrem nesse todo social. Ou seja, nas relaes privadas, nos contextos profissionais e nas relaes de trabalho, os sujeitos experimentam formas de reconhecimento que so necessrias para poderem participar da vida democrtica.

    Esse um dos aspectos. No que diz respeito aos mecanismos de excluso na esfera pblica, eu provavelmente os acentuaria mais ex-plicitamente do que Habermas. Eu no confio tanto quanto ele em que a esfera pblica democrtica possua uma garantia de poder arti-cular todos os conflitos, as situaes problemticas e as concepes axiolgicas, mas me pergunto se no temos de investigar melhor se no a prpria esfera pblica democrtica que geralmente institucio-

    12. Smith, A. An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations. London, 1910, p. 351.

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    naliza mecanismos que produzem certos pseudo-efeitos. Ou seja, se ela no tem uma tendncia de empurrar para o centro temas e valores que esto muito distantes das convices e solicitaes vividas e so-fridas por grande parte da esfera pblica em suma, se ela no forma um mecanismo de represso de problemas sociais constitutivos cujas causas seriam as constries da prpria esfera pblica democrtica. Por constries entendo aquelas tendncias da indstria cultural na esfera pblica democrtica que consistem em selecionar temas e situ-aes de conflito a partir de sua prpria perspectiva, subordinados ao ponto de vista da novidade e de tudo o que em geral pode estar sob os efeitos da mdia. Nesse sentido, encontramos no interior da esfera pblica democrtica e o Sr. mesmo investiga isso em seu trabalho um tipo de conflito permanente constitudo de tal modo que os grupos sociais, cujas demandas e horizontes de experincias foram at agora reprimidos, procurem ganhar acesso a tais media da esfera pbli-ca. Provavelmente, esse conflito pela conquista de visibilidade constitutivo para um conceito de esfera pblica democrtica.

    Olivier Voirol: O Sr. acaba de dizer que o conceito de luta muito importante para compreender a dinmica da esfera pblica. Antes disso j havamos sublinhado a importncia desse conceito em sua prpria teoria. Como o Sr. consideraria a figura do escravo feliz? Pois o Sr. parte do princpio de que os atores sociais lutam quando so lesadas suas convices morais. Porm, existem muitos atores so-ciais que vivem em situaes sociais de opresso sem entrar em luta, sem manifestar resistncia, sem levantar pretenses e mesmo sem se sentir moralmente lesados...

    Axel Honneth: Esse um problema dificlimo ao qual ainda no dediquei ateno suficiente. Pois at agora eu trabalhei com um esquema dico-tmico, a saber, o esquema do desrespeito versus reconhecimento, mas ainda no desenvolvi uma terceira categoria que tivesse de ser conside-rada. Tenho em mente o conceito de falso reconhecimento,13 de falso

    13. O termo alemo empregado por Honneth Verkennung, o qual muitas vezes traduzido por desconhecimento. Porm, esta opo de traduo acaba por confundir os termos que o prprio Honneth procura distinguir, a saber, conhecimento e reconhecimento. Alm disso, preciso manter o sentido do termo como um falso juzo, falsa interpretao ou avaliao. (N. do T.)

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    endereamento,14 ou seja, o reconhecimento como ideologia.15 No existem apenas fenmenos em que determinadas convices, interes-ses ou reivindicaes por identidade no so reconhecidos, mas tam-bm situaes em que tais fenmenos so reconhecidos de um modo deslocado, equivocadamente e apenas na medida em que produzem lealdade. Para tais casos podemos usar o conceito de falso reconhe-cimento (pelo menos em alemo; no sei como ficaria o termo em francs, mas em ingls seria misrecognition) como um substituto para o velho conceito de ideologia. Vestgios desse conceito se encon-tram em Althusser e Lacan, e, para tratar adequadamente do proble-ma do escravo feliz, preciso me remeter novamente a tais vestgios. Conceitualmente, isso significa que entre o conceito de reconheci-mento em todas as suas facetas e o conceito de desrespeito em seus distintos componentes preciso colocar um terceiro e dificlimo con-ceito difcil porque no posso desenvolver adequadamente um con-ceito de falso reconhecimento sem pressupor de antemo processos de formao da identidade que permitam falar desse mesmo falso reconhecimento. E s posso admitir at o momento que estou ciente do problema, embora no saiba, de forma precisa, como solucion-lo conceitualmente. Vejo que conceitos como o de falso endereamen-to e de reconhecimento aparente seriam indispensveis, mas no vejo como superar adequadamente os problemas normativos ou as dificuldades conceituais correspondentes.

    O escravo feliz uma pessoa que encontrou uma identidade satisfatria, que se sente reconhecido, enquanto ns, como observa-dores, estamos retrospectivamente convencidos de que ele no deve-ria se identificar com essa descrio do reconhecimento. Tomemos o exemplo daquele escravo negro que ficou conhecido na figura do Tio

    14. Honneth utiliza o termo falsche Adressierung, o qual traduzimos literalmente como falso endereamento, uma vez que o prprio reconhecimento surgi-ria de condies ideolgicas consideradas insatisfatrias para a formao da identidade. Nesse sentido, o termo Adressierung sugere que o sujeito se resig-na em uma falsa destinao, ou seja, destinatrio de um falso reconheci-mento. O verbo adressieren, do qual se formam os substantivos Adressierung e Adresse, tambm possui o sentido de enderear-se a como manifestar-se a. Nesse caso, Adressierung e Adresse poderiam ser traduzidos respectivamente como manifestao e manifesto. (N. do T.).

    15. Honneth, A. Anerkennung als Ideologie. In: Westend. Neue Zeitschrift fr So-zialforschung, 1, 2004.

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    Tom trata-se aqui exatamente do caso de algum que encontrou reconhecimento no contexto patriarcal e repressivo de uma sociedade escravagista, e que ento se sente feliz por ter adquirido uma identi-dade relativamente estvel e passvel de ser vivida. Apenas ns, os observadores, estamos convencidos de que ele no deveria ter se identificado com essa oferta de reconhecimento. Isso significa, basi-camente, que supomos haver nesse caso algo como uma identificao problemtica e enganosa. Conceitualmente, trata-se de um problema muito difcil, porque parecem faltar-nos os critrios que nos permiti-riam empreender tais juzos retrospectivos sobre outras experincias. As teorias que conheo tambm aquela teoria da ideologia de Al-thusser certamente no resolveram esse problema. A maioria daque-las teorias que acreditaram ter solucionado essa questo pressups uma identidade nuclear, ou algo como interesses inalterveis de determi-nados grupos ou indivduos, ou seja, um tipo de essencialismo que permite diferenciar o endereamento falso do correto. Mas temos boas razes, atualmente, para no mais lanar mo desse tipo de essencia-lismo. Acreditamos que a identidade de sujeitos ou grupos sociais se forma por meio do reconhecimento social. E como podemos dizer que algum foi falsamente reconhecido, ou que h um reconhecimento falso ou enganoso, sem recorrer a uma concepo essencialista, isto certamente um problema. Mas creio, naturalmente, que h uma soluo que, por ora, posso apenas esboar.

    Olivier Voirol: Chegamos assim nossa ltima questo. Nesta en-trevista falamos muito sobre a teoria crtica, e principalmente sobre Habermas. O Sr. declarou recentemente em um texto que h hoje duas alternativas para o desenvolvimento da tradio da teoria cr-tica.16 A primeira corresponderia ao que Habermas fez nos ltimos anos, ou seja, uma discusso com e no interior da filosofia poltica. A segunda corresponderia ao desenvolvimento de uma tradio da filo-sofia social que se ocuparia com a identificao de patologias sociais. A segunda alternativa corresponde sua proposta para o desenvolvi-mento atual da teoria crtica. O Sr. poderia nos falar mais sobre essa alternativa?

    16. Honneth, A. Pathologien des Sozialen. Tradition und Aktualitt der Sozial-philosophie. In: Honneth, A. Das Andere der Gerechtigkeit. Aufstze zur praktischen Philosophie. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2000.

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    Axel Honneth: Talvez a distino que eu apresentei seja arbitrria. Primeiramente, eu distingui as anlises voltadas ao todo da sociedade procurando saber se estavam antes apoiadas normativamente na ideia de uma ordenao social justa ou naquela da uma auto-realizao bem-sucedida e com auto-realizao acentuo meu ponto de refe-rncia a partir do qual possvel perguntar se uma ordenao social assegura aos sujeitos condies satisfatrias para a formao da iden-tidade. Com base nessa distino fiz ainda uma diferenciao entre fi-losofia poltica e filosofia social, ou seja, entre categorias de injustia, de um lado, e categorias fundamentais de patologia social, de outro. Acredito que a tradio marxista se interessou muito mais radical-mente pelas patologias sociais do que propriamente pelas injustias sociais, mas talvez seu papel mais importante consistiu em acreditar ter mostrado que a injustia social representa simultaneamente uma patologia social. Isso significa que Marx identificou o prprio fato da injustia, ligado explorao, com uma patologia social que se realizava por meio da alienao, pois todos ns e no apenas o proletariado estvamos nos alienando das condies que formavam nossa vida social, nossa relao com a natureza e nossa prpria ex-perincia subjetiva. Se lermos os escritos do jovem Marx juntamen-te com sua obra madura, ento o ponto central de seu diagnstico consiste em mostrar que as injustias acompanham inevitavelmente as patologias sociais. Sob tais patologias sociais compreendo, como j disse, as evolues ou relaes sociais que violam as condies de auto-realizao. E para mim o desenvolvimento de uma nova teoria crtica ocorreria apenas se fssemos em direo a uma filosofia pol-tica. Habermas ainda no havia feito isso em sua Teoria da ao comuni-cativa. Nesse livro, o interesse principal estava voltado s patologias sociais, ou seja, quilo que ele chamou de colonizao do mundo da vida. Depois disso, ao sofrer forte influncia de John Rawls, ele ado-tou a direo de uma filosofia poltica interessada essencialmente nas injustias marcantes de nosso presente. Esse um desenvolvimento interessante e tambm muito importante, porm negligencia em cer-ta medida a orientao mais caracterstica de toda teoria crtica desde Marx, a saber, a tentativa de identificar no apenas as injustias so-ciais, mas alm disso as patologias da ordenao social em seu todo.

    Meu interesse consiste em manter o vnculo com essa tradio, o qual depende da possibilidade de mostrar a relao entre patologias sociais e injustia. Para poder fazer isso, temos de manter separadas ambas as perspectivas. No momento, procuro primeiramente elaborar,

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    com a ajuda do instrumental conceitual da teoria do reconhecimento, uma anlise social centrada no diagnstico de patologias sociais, para com isso poder mostrar que o desenvolvimento atual do capitalismo neoliberal aponta numa direo em que as condies de auto-realiza-o de todos ns so consideravelmente violadas, considerando as tendncias de mercantilizao, tendncias de destruio das relaes privadas ou as exigncias de gesto das identidades individuais. Se dermos mais uma vez visibilidade a essa perspectiva, ento o prximo passo consiste em mostrar o vnculo entre patologias sociais e injus-tias. Isso certamente o mais difcil em todo o empreendimento. Marx conseguiu realizar esse vnculo por certo tempo, mas com pre-missas antropolgicas provavelmente problemticas. Assim, a questo que se coloca a de saber se hoje podemos realizar esse empreendi-mento sem termos de partilhar o essencialismo antropolgico proble-mtico de Marx. Evidentemente, existem outras investigaes que apontam para essa direo. O filsofo canadense Charles Taylor sempre teve a inteno de realizar esse vnculo, mas um grande desafio que se coloca quando se quer manter esse empreendimento em vista.

    Traduo de Rrion Melo