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Uma analogia entre o ato tradutório e o monstro e sua criação em Frankenstein de Mary Shelley. Artigo para disciplina de Tradução Literária do programa de pós-gradução em Estudos da Tradução da Universidade de Brasília. Publicado na revista Belas Infiéis: v. 2, n. 1 de 2013
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RODRIGUES. A traduo e a criao de monstros: uma analogia entre o ato tradutrio e o monstro e sua criao
em Frankenstein.
Belas Infiis, v. 2, n. 1, p. 53-65, 2013.
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A TRADUO E A CRIAO DE MONSTROS: UMA ANALOGIA ENTRE O
ATO TRADUTRIO E O MONSTRO E SUA CRIAO EM FRANKENSTEIN THE TRANSLATION AND THE CREATION OF MONSTERS: AN ANALOGY BETWEEN THE
TRANSLATORY ACT AND THE MONSTER AND ITS CREATION IN FRANKENSTEIN
Cndida Laner Rodriguesi
(Mestranda - POSTRAD-UnB/Braslia/DF/Brasil)
Resumo: Este artigo visa retomar alguns dos conceitos referentes traduo apresentados no texto A tarefa do
tradutor, de Walter Benjamin, a fim de elaborar uma analogia entre o processo tradutrio e o processo da criao
do monstro (e o monstro em si) na obra Frankenstein, de Mary Shelley. Visando, enfim, a uma discusso dos
conceitos de traduo de Benjamin, bem como uma anlise diferenciada do monstro o traduzido e de seu criador, Victor Frankenstein o tradutor.
Palavras-chave: Analogia, traduo, criao, monstro.
Abstract: This article aims to recover some of the translation concepts presented in the text The Translator's
Task, by Walter Benjamin, in order to elaborate an analogy between the translatory process and the process of
the monster creation (and the monster itself) in Frankenstein, by Mary Shelley. Aiming, at last, a discussion
about Benjamin's translation concepts, as well as a differentiated analysis about the monster the translated and its creator, Victor Frankenstein the translator.
Keywords: Analogy, translation, creation, monster.
INTRODUO
presente artigo iniciou-se a partir de uma ideia comparativista um tanto imprecisa a
princpio, mas que plantara uma semente criativa de iminente contestao: seria
Victor Frankenstein um tradutor de algo to complexo quanto o ser humano? Em
que medida possvel comparar a criao de seu monstro com o ato tradutrio e quais so os
aspectos mais relevantes para tal analogia? Utilizando-se de alguns conceitos de traduo
presentes em A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin, pretende-se trabalhar a traduo como
uma criao geradora de monstros.
Buscou-se uma explanao metodolgica a mais didtica possvel referente a uma
impossvel separao dos conceitos de lngua e traduo, a saber: parentesco, essncia e
inteno das lnguas, bem como a inteno do autor (primeira) e do tradutor (secundria) ao
escrever ou traduzir a obra, alm dos conceitos de lngua pura e sobrevida,ii com a finalidade
de verificar se uma analogia entre a traduo e o monstro (e sua criao) possvel,
O
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revelando, ento, aspectos pertinentes aos textos original e traduzido, s lnguas, ao tradutor
e ao ato tradutrio.
O ESSENCIAL NA TRADUO: A INTENO DA LNGUA, DO AUTOR E DO
TRADUTOR
Na viso de Walter Benjamin em seu ensaio intitulado A tarefa do tradutor, as obras
de arte no devem visar o receptor, fazendo com que a comunicao entre receptor e obra
seja, portanto, contingente. A arte deve, desde o princpio, pressupor a existncia e a essncia
do homem, mas no consider-la, porque, nas palavras de Benjamin (2009), nenhum poema
vlido por relao ao leitor, nenhum quadro em relao ao contemplador, nenhuma sinfonia
por relao ao auditrio (p. 1). Se a traduo pensada como uma obra de arte, ela deve
ignorar a comunicao, fixando-se no que essencial para o ato tradutrio; do contrrio, ser
uma m-traduo que servir apenas de intermdio entre o original e o leitor.
O que seria, ento, essencial na traduo de uma obra literria? Para responder a isso,
deve-se tratar do que torna a traduo possvel, em primeiro lugar: a relao de parentesco
entre as lnguas, que remete a uma inteno de mostrar seu contedo. Entretanto, esse
contedo s completo se no tomarmos as lnguas separadas isoladamente, mas unicamente
na totalidade das intenes, que se completam umas s outras: na lngua pura (BENJAMIN,
2009, p. 5). , portanto, no ato tradutrio que se chega mais prximo da lngua pura, da
verdadeira inteno das lnguas. Tem-se, assim, a lngua como uma forma dada a um
contedo, como a casca e a polpa de uma fruta; nos termos dessa analogia, a traduo
possvel, pois a casca (lngua) incapaz de comunicar ao que ela d forma (FERRIS, 2008,
p. 65, traduo nossa).iii
Porm, por mais que as lnguas sejam incapazes de dar forma ao seu contedo, elas
ainda tm a pretenso de faz-lo, de modo que todas se completam em suas prprias
intenes, em que se deve distinguir o que se quis dizer do modo de querer dizer
(BENJAMIN, p. 5): a inteno das lnguas dizer algo, mas todas tm um modo distinto para
dizer esse mesmo algo.
Esse conceito repetido quando Benjamin escreve: Em todas as criaes da linguagem e da lingustica permanece em adio ao que pode ser transmitido algo
que no pode ser comunicado. J que a linguagem s pode discursar o que se quis dizer pelo seu modo de querer dizer ou pela sua inteno de transmitir esse querido dizer, ento tudo o que pode ser traduzido pela linguagem essa inteno
(FERRIS, 2008, p. 65, traduo nossa).iv
O essencial na traduo , portanto, buscar expressar em si o contedo interno do
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original, indo alm da comunicao, mesmo que tal contedo ou essncia seja
caracterizado por apenas um eco, isto , no sendo completamente capturado pela traduo, j
que se trata de algo interno, implcito. Desse modo, a tarefa do tradutor, como escreve
Benjamin (2009, p. 8), consiste em encontrar na lngua em que se faz a traduo a inteno a
partir da qual se ressuscita nessa lngua o eco do original.
Alm da inteno das lnguas, devem ser tambm consideradas as intenes do autor e
do tradutor: a inteno do poeta ingnua, primeira, intuitiva, a do tradutor, derivada, ltima,
idealizada. Pois o grande motivo de uma integrao das vrias lnguas numa lngua
verdadeira que d plenitude ao seu trabalho (BENJAMIN, 2009, p. 8). Seguindo por esse
vis, trazendo luz o judasmo de Benjamin e, porque no, o prprio subttulo da obra
literria aqui tratada, o moderno Prometeu, pode-se pensar na analogia do autor do original
enquanto Deus, ao passo que o monstro seria, a princpio, um ser derivado, um humano
idealizado vale lembrar que Frankenstein escolhe as feies do monstro como as mais belas
(SHELLEY, 2004, p. 68), e a altura do mesmo ultrapassa em muito a de um ser humano
comum (SHELLEY, 2004, p. 64). Entretanto, tal ideal de estrutura corprea falha quando o
monstro ganha vida, j que o que era para ser belo se torna monstruoso; do mesmo modo, o
tradutor se v desamparado perante seu trabalho final, pois sabe que o mesmo apenas um
dos possveis reflexos do contedo presente e implcito do original. Alm disso, h tambm
uma semelhana entre a integrao das lnguas com a estrutura do monstro, o qual formado
por partes de corpos distintos para formar um nico, unindo as frases, os poemas, os juzos
(BENJAMIN, 2009, p. 8) tal qual uma verdadeira obra literria.
Se a lngua a forma, e a forma o exterior, o parentesco dos seres humanos j se
inicia na sua exterioridade: somos todos identificados uns pelos outros como similares, nos
reconhecemos uns nos outros. Ao ver Victor Frankenstein como um tradutor de um ser to
complexo como o ser humano e sua obra traduzida como o miservel criado a partir dessa
ambio, possvel pensar que a inteno traduzida era a da matria da vida: Por isso,
frequentemente perguntava a mim mesmo se o princpio da vida continuava (SHELLEY,
2004, p. 61, traduo nossa),v objetivando nutrir de movimentos uma estrutura morta.
Frankenstein queria ser o criador de uma nova espcie: Uma nova espcie abenoaria-me
como seu criador e sua fonte; muitos seres de natureza feliz e excelente deveriam sua
existncia a mim. Nenhum pai teria direito gratitude de sua criana to completamente como
eu mereceria a deles (SHELLEY, 2004, p. 64, traduo nossa).vi
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Frankenstein acreditava que o contedo humano da criatura seria o de seres de
natureza feliz. Entretanto, ele no poderia estar completamente seguro quanto a isso, visto
que a inteno de vida presente na sua traduo limitava-se forma, apenas exterior, sendo
impossvel traduzir o contedo ou a essncia dos seres humanos, ou mesmo os instintos, ou,
principalmente, os desejos. Frankenstein traduz apenas a casca, apenas o corpo, que
similar entre todos ns, assim como as lnguas o so; desse modo, a polpa no poderia ser
traduzida, pois o monstro teria sentimentos prprios. Benjamin (2009) complementa que
permanece algo incomunicvel, intraduzvel, em todas as lnguas e nas duas formas (p. 11), e
tal aspecto foi visto, aos olhos de Frankenstein, no momento em que a criatura acorda: sua
ideia de seres felizes modifica-se completamente ao ver a feio do monstro e repugna-se.
Frankenstein, ento, acredita que tal criatura seja incapaz de nutrir sentimentos ou, ainda, que
maligna por natureza devido sua aparncia horrenda. Criador trata criatura como algo
menor e raso, do mesmo modo que as tradues revelam-se intraduzveis no por causa do
seu peso, mas, inversamente, devido excessiva leveza com a qual o sentido nelas se
imprimiu (BENJAMIN, 2009, p. 12). Felizmente, devido construo da narrativa, o leitor
consegue identificar parte do que seria, no monstro, o incomunicvel: a criatura de
Frankenstein mostra, ento, medos, segredos, desejos e, atravs disso, identifica-se um
contedo psicolgico ascendendo de um ser desprezado, incapaz de realizar seus sonhos,
tornando-se assim frustrado e ainda mais complexo.
LNGUA PURA
As lnguas focam-se na inteno de dizerem o que dizem (e no modo como o dizem)
para conseguir dar a essa inteno um sentido. Entretanto, de acordo com Benjamin (2009),
esse sentido s ganha forma no ato tradutrio, processo final para a expresso da relao
mais ntima das lnguas umas com as outras (p. 3). A essa relao ntima das lnguas d-se o
nome de lngua pura, pois nela que
o modo de querer dizer completa-se tendendo para o querido dizer. O que se quis
dizer nas lnguas singulares e incompletas no deve ser encontrado na sua relativa
autonomia, como nas palavras e frases singulares (isoladas), deve antes,
inversamente, ser compreendido em metamorfose contnua, at que a partir da
harmonia de todos os modos de querer dizer possa irromper como a lngua pura
(BENJAMIN, 2009, p. 6).
O querido dizer igual em todas as lnguas, o que as difere o modo de querer
dizer. Sendo da harmonia, da unio desses diversos modos de dizer que nasce a lngua pura, a
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qual interna ao ato tradutrio. Ao passo que a relao interna entre as lnguas a inteno de
significao presente em todas elas, mesmo que a lngua nunca atinja o objeto de sua
nomeao, visto que tal objeto est sempre apartado dela, tambm a traduo no atinge a
significao completa. Se o monstro aqui tratado como uma traduo do ser humano, surge
a seguinte questo para essa analogia: qual a relao interna dos seres humanos uns para
com os outros, tendo em vista a relao interna entre as lnguas?
Sob esta perspectiva, possvel adentrar em complexos questionamentos psicolgicos
(individuais) e sociais, entretanto, tentar-se-, neste caso, que responder a tal pergunta
utilizando-se da obra literria de Mary Shelley: o monstro em Frankenstein deseja se
relacionar com os demais seres humanos intencionando uma atmosfera de aceitabilidade, na
qual ele no seja desprezado como monstro, mas reconhecido como um igual, adquirindo,
assim, amigos e famlia (agregados, companhia, completude). Tal o motivo que faz a
criatura se aproximar da famlia de De Lacey e, aps falhar em sua empreitada, pedir a
Frankenstein uma correspondente feminina. Sob essa luz, pertinente supor que a inteno,
o desejo de reconhecimento, a aceitabilidade, o relacionamento que nos assemelha
internamente. Teme-se ser marginalizado, rebaixado, excludo, assim como o monstro o
pelos outros que, ao negarem-no, negam tambm qualquer semelhana que possa existir entre
eles monstro e homens, no caso. Assim, a traduo permite um melhor entendimento do
original, pois ao visualizar as questes psicossociais do monstro, entendem-se melhor alguns
temores da sociedade, tal como o propsito da traduo no revelar essa lngua pura no
original, mas antes permitir a ela brilhar sobre o original mais completamente (FERRIS,
2008, p. 66, traduo nossa).vii
Se a luz da lngua pura ilumina o original, necessrio ainda apontar um holofote para
onde a traduo-monstro ajuda a compreender o original-homem, clareando onde o Outro
(homem) levaria completude do Mesmo (monstro). H aqui uma inverso de papis, uma
vez que, na grande maioria dos estudos, o monstro considerado o Outro. Entretanto, essa
troca justificvel, na medida em que se utiliza o monstro para entender o homem. Para tanto,
partimos de algumas concepes elaboradas por Emmanuel Lvinas (apud SOUZA, 2009).
na unio das lnguas complementando-se entre si nos modos de dizer suas intenes
que se forma a lngua pura. Se o original fosse feito com tal linguagem pura, a traduo no
poderia existir porque o trabalho original no precisaria ser suplementado por outra lngua
(FERRIS, 2008, p. 65, traduo nossa).viii A inteno das lnguas a mesma, mas o modo de
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dizer no o , portanto, as lnguas se completam em suas diferentes maneiras de dizer o
mesmo; as semelhanas no acrescentam, mas sim as diferenas. Do mesmo modo, o Outro
fundamentalmente um estranho (SOUZA, 2009, p. 129), e o seu surgimento causa um
trauma na autossuficincia do Mesmo, que se v necessitando de um crescimento (um
complemento), pois ao ver o Outro pensa-se a si Mesmo como limitado, uma vez que todos os
conceitos percebidos como o real pelo Mesmo so insuficientes para ver o real alm de si
mesmo (SOUZA, 2009, p. 129) o Outro , ento, inatingvel. Assim, ocorre essa
necessidade de crescimento completude que convidativa e se tende a atend-la, pois h
uma inclinao estranheza, ao estrangeiro []. Este o Desejo [] para o Ser: o desejo que a esperana na no esperana de completao, subverso de ser. O
desejo que no pode ser completado [] e que, por isso, pode ser propriamente desejado. Um desejo que se lana para alm do horizonte, desejo do Outro, do futuro
(SOUZA, 2009, p. 132).
Tal o desejo de completude (a lngua pura) do ser humano que se via a princpio em
sua Totalidade at a chegada de uma Alteridade. Atinge-se, ento, uma noo de desejo to
subjetiva quanto a linguagem pura: enquanto as lnguas se completam em suas diferenas no
modo de dizer e nas suas intenes mesmas de querer dizer, o ser humano busca completar a
si Mesmo com as diferenas presentes no Outro; mas esse desejo ou no alcanado ou
substitudo por outro desejo, assim que o anterior atendido. Trata-se, portanto, de um
desejo sem satisfao [ou de uma] insatisfao desejante (SOUZA, 2009, p. 132), no qual o
objetivo principal completar-se pelo e com o Outro. Do mesmo modo, o monstro queria se
completar em algum, desmonstrando assim um carter atemporal da obra de Shelley.
O ATO TRADUTRIO
A relao entre o contedo e a lngua completamente diferente no original e na
traduo. Se estas relaes formam no caso do original uma unidade semelhante
do fruto e da casca; no caso da traduo, a lngua envolve o seu contedo como um
manto real em amplas pregas. Pois ela significa uma lngua mais elevada do que ela;
por isso permanece desproporcionada, forada e estranha sua prpria matria.
(BENJAMIN, 2009, p. 7)
Entende-se, assim, como a traduo eleva a sua prpria lngua para buscar atingir o
cerne essencial do intraduzvel, no sendo, portanto, uma casca, mas um manto mais refinado
e inatural que cobre a polpa, no transmitindo o mesmo modo potico do original, por mais
que no haja comunicao na traduo (dito previamente como algo inessencial). Do mesmo
modo, o monstro em Frankenstein no tem uma pele comum, mas decomposta, bem como
sua prpria criao no originada naturalmente, mas manipulada, construda em um
RODRIGUES. A traduo e a criao de monstros: uma analogia entre o ato tradutrio e o monstro e sua criao
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laboratrio.
A traduo, portanto, modifica o original, transplantando-o para um domnio mais
definitivo da lngua, no qual o original pode ser sempre elevado de novo e em novos
aspectos (BENJAMIN, 2009, p. 7), mesmo que ele no permanea nessa posio como
traduo devido sua temporalidade. Benjamin faz sua prpria analogia da traduo,
explicando que
para poder reajustar os cacos de um vaso, preciso que eles correspondam uns aos
outros nos mais pequenos pormenores, mas no tm de ser iguais, tambm a
traduo, em vez de se tornar igual ao sentido do original, tem, antes, de configurar-
se amorosamente na prpria lngua at ao nfimo pormenor do seu modo de querer
dizer, a fim de as tornar a ambas, tomadas como cacos, reconhecveis enquanto
fragmentos de um vaso, enquanto fragmentos de uma lngua mais ampla
(BENJAMIN, 2009, p. 10).
Assim como o monstro idealizado pelo tradutor Frankenstein difere-se do ser
humano por ser formado de partes decompostas, mas se assemelha a ele na sua exterioridade.
Reconhece-se o vaso como se reconhece o ser humanoide que a criatura de Frankenstein.
Entretando, ao comparar ambas as estruturas (o vaso inteiro com o vaso remontado o corpo
humano natural e o construdo), percebe-se suas diferenas mais latentes, mesmo que a
inteno entre ambos seja a mesma. A problemtica aqui se encontra no fato de que o exterior
a impresso primeira em qualquer um dos casos, enquanto a inteno implcita e deve ser
investigada. Ora, pode-se pensar que a inteno presente nos humanos e no monstro em
Frankenstein , intimamente, a mesma: vida, desejos, relacionamentos , pois um origina-se
dos outros. Porm, em sua exterioridade, os humanos pensam o monstro como um ser
estranho e inferior, e ao compararem-se com esse anormal, eles tm a certeza de sua boa
formao.
Tomando um rumo diferente, mas ainda sob a perspectiva de que Victor Frankenstein
um cientista tradutor de um original que o prprio ser humano, pretende-se verificar como
tradutor e cientista se assemelham em suas respectivas empreitadas, de modo a justificar essa
analogia pelo seu carter mais explcito. Victor, a partir de muito estudo, esforo e de um
exagerado grau de ambio cientfica, rene os instrumentos necessrios para a criao do
monstro, bem como o tradutor estuda, aprende, prospera, rene seus prpios instrumentos
materiais (dicionrios) e intelectuais (conhecimento das lnguas e teorias de traduo).
Munidos de suas armas, ambos, tradutor e cientista, pem-se prova de suas respectivas
atividades, as quais so necessrias no mbito social, porm so um tanto imprecisas.
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Assim, o tradutor tambm d vida a algo morto no sentido de acabado e ao fim
percebe como falha em sua empreitada, pois o que ele imaginava ser uma inovao bela, no
passa de uma falsa-cpia, decomposta pelos artifcios da lngua (ou pela falta dos mesmos), o
que permite obra mais interpretaes do que j possua, uma vez que o original nunca esteve
realmente morto. impossvel no citar aqui as to famosas palavras italianas no ramo da
traduo: traduttore, traditore. Ao traduzir, o tradutor torna-se um traidor de algo que se
encontra pronto (impresso e imutvel): o original de Frankenstein ser sempre o mesmo
publicado em 1831, aps as trs edies de Mary Shelley de seu texto produzido entre 1816 e
1817, ainda que ele seja traduzido e adaptado, interpretado e reinterpretado. Benjamin
tambm conceitua essa transformao do original acarretada pela traduo: uma vez que no
h objetividade no conhecimento, impossvel que exista uma teoria de imagem-cpia, ou
seja, jamais existir a possibilidade de que uma traduo seja aspirada como anloga ao seu
original at sua ltima essncia, pois na sua persistncia vital nome que seria imprprio se
no designasse metamorfose e renovao do vivente o original altera-se (BENJAMIN,
2009, p. 4).
Qual no , ento, a surpresa de Victor ao ver sua obra acabada, completa e viva? Ele
se sente, sim, como um traidor por no revelar a seus amigos e familiares a sua obra, a mesma
que os assola a vida. A princpio, possvel pensar que Victor omite sua obra por medo de
represlias, entretanto, se, acima de tudo, desejasse destruir a criatura, ele o teria feito at
mesmo com a ajuda de terceiros. Assim, possvel uma segunda interpretao: Victor
traidor de si prprio ao tratar sua criatura com descaso, no percebendo que, na verdade, a
ama por ser o fruto de seu mais devotado trabalho e ambio.
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Figura 1 - Peter Cushing, Baro Frankenstein, em Frankenstein must be destroyed, 1969.
SOBREVIDA
Benjamin conceitua em A tarefa do tradutor o sentido de sobrevida de uma obra,
ressaltando que as tradues no s favorecem a permanncia da mesma no tempo, como
tambm devem a ela sua existncia, ou seja, assim como o original recebe essa persistncia
vital da traduo, a traduo ganha a prpria vida do original, do qual depende. Entretanto, a
lngua da traduo encontra-se presente na histria de sua sociedade em um determinado
perodo: enquanto a palavra do poeta sobrevive na sua lngua, a melhor traduo est
destinada a afundar-se no crescimento da sua [prpria] lngua, a afundar-se nas suas
renovaes (BENJAMIN, 2009, p. 5); assim, a traduo temporria, pois ocorre nela uma
alterao do contedo, da essncia do original, de tal modo que vrias tradues so possveis
e, em cada uma delas, o original perpetua-se vitalmente. A isso Benjamin (2009) acrescenta
que a histria das grandes obras de arte conhece a sua filiao a partir das fontes, a sua
conformao na poca do artista e o perodo, por princpio eterno, da sua persistncia vital nas
geraes subsequentes (p. 3).
A traduo no reside na mesma permanncia que o original, uma vez que as
tendncias lingusticas de sua poca, na qual a traduo se prende para renovar a prpria
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lngua, podem vir a desaparecer. Isso ocorre devido estranheza entre as lnguas
pertencente a elas to bem quanto a familiariedade e a semelhana , o que remete questo
de que o original atemporal e a traduo, temporal, ou seja, o original no necessita de uma
renovao na prpria lngua, enquanto a traduo, aps um tempo, torna-se defasada.
Portanto, permanece negada ao homem uma soluo desta estranheza que no seja temporal
e provisria, no lhe permitida uma soluo instantnea e definitiva ou, pelo menos, ele no
pode aspirar a ela directamente (BENJAMIN, 2009, p. 6). Assim, para o original permanecer
vivo, ele deve ser continuamente traduzido atravs dos tempos.
Para realizar a analogia nessa perspectiva, resta ainda situar que a perpetuidade da
obra no atribuda unicamente corporeidade orgnica (BENJAMIN, 2009, p. 3), mas
tambm, e principalmente, persistncia na mente dos leitores nota-se que no apenas as
tradues interlinguais, segundo os conceitos de Jakobson, permitem a sobrevida: h tambm
as tradues intralinguais e intersemiticas. Desse modo, pode-se comparar o livro em si com
a criatura, uma vez que ambos tm uma vida corprea ilimitada, desconhecida no se sabe
quanto tempo de vida o corpo da criatura tinha bem como, em ambos, existe a demanda de
um intelecto: o livro exige leitores para se perpetuar, enquanto a criatura pode-se assim
analisar, necessitava do prprio criador, Victor Frankenstein.
Figura 2 - Kenneth Branagh em Mary Shelleys Frankenstein, 1994.
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Como se monstro fsico e monstro moral se complementassem: sem o lado intelectual
de Frankenstein, sem a sua companhia e ateno pois era isso que buscava, ao fazer Victor
persegui-la por todo o Polo Norte , a criatura decide dar fim prpria vida. Do mesmo
modo, o livro se perde se no lido, sua permanncia fsica inferior sua permanncia na
mente dos leitores, ou seja, o material encontra sua finitude na morte do intelectual.
No h como falar em sobrevida sem traduo, nem em traduo sem sobrevida.
Portanto, apresentamos a seguir diferentes monstros traduzidos por diferentes tradutores,
inclusive a nossa verso. Primeiramente, o original de Mary Shelley:
His yellow skin scarcely covered the work of muscles and arteries beneath; his hair
was of a lustrous black, and flowing; his teeth of a pearly whiteness; but these
luxuriances only formed a more horrid contrast with his watery eyes, that seemed
almost of the same colour as the dun-white sockets in which they were set, his
shrivelled complexion and straight black lips (SHELLEY, 2004, p. 68)
Sua pele amarela mal encobria os msculos e artrias da superfcie inferior. Os
cabelos eram de um negro luzidio e como que empastados. Seus dentes eram de um
branco imaculado. E, em contraste com esses detalhes, completavam a expresso
horrenda dois olhos aquosos, parecendo diludos nas grandes rbitas em que se
engastavam, a pele apergaminhada e os lbios retos e de um roxo-enegrecido
(SHELLEY, 1988, p. 52).
Sua pele amarela mal cobria o relevo dos msculos e das artrias que jaziam por
baixo; seus cabelos eram corridos e de um negro lustroso; seus dentes, alvos como
prolas. Todas essas exuberncias, porm, no formavam seno um contraste
horrvel com seus olhos desmaiados, quase da mesma cor acinzentada das rbitas
onde se cravavam, e com a pele encarquilhada e os lbios negros e retos.
(SHELLEY, 2001, p. 65).
Seu cabelo era de um preto lustroso. Os dentes, de um branco prola. Mas essas
caractersticas apenas formavam um contraste ainda mais pavoroso com a pele
amarelada e enrugada como couro, que mal cobria os msculos e veias debaixo dela.
Os olhos eram aquosos e fundos. Os lbios, retos e negros. (SHELLEY, 1994, p. 24-
25)
A sua pele amarela mal cobria o trabalho dos msculos e das artrias sob ela; seu
cabelo era de um preto lustroso e liso; seus dentes, de um branco perolado; mas
essas exuberncias apenas faziam um contraste mais horroroso com suas pupilas
incolores, quase do mesmo branco sombrio das rbitas onde se fixavam, sua tez
enrugada e seus negros lbios em linha reta (traduo nossa).
Percebe-se que cada tradutor d vida a um monstro singelamente diferente,
dependendo de sua concepo de traduo, da insero do tradutor num tempo e espao
distintos, das suas prprias interpretaes, da sua subjetividade e de sua ideologia.ix Devido
construo da narrativa, possvel ao tradutor ver-se no lugar de Victor Frankenstein, que o
autor de um trabalho demorado e penoso, tal como a traduo.
RODRIGUES. A traduo e a criao de monstros: uma analogia entre o ato tradutrio e o monstro e sua criao
em Frankenstein.
Belas Infiis, v. 2, n. 1, p. 53-65, 2013.
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LTIMAS CONSIDERAES
A obra da ento jovem escritora Mary Shelley continua em evidncia em nosso tempo,
parcialmente pelas suas inmeras tradues e releituras (especialmente as intersemiticas,
abrangendo filmes, desenhos, quadrinhos), mas diramos que principalmente devido ao
carter psicolgico e cientfico do personagem principal e de seu antagonista,
independentemente das interpretaes dos leitores.
De forma geral, a analogia aqui estabelecida busca clarear as semelhanas presentes
em dois conjuntos desiguais, auxiliando no entendimento de um ou de ambos. Uma analogia
entre o ato tradutrio e a criao do monstro , sim, possvel, do contrrio nosso artigo seria
invivel. Mas em que implica tal analogia? Atravs dela, possvel estabelecer uma viso
outra da obra, da traduo, do prprio homem e do monstro, conforme associamos tais
elementos aos conceitos de Benjamin sobre o processo tradutrio. Viu-se aqui como a
traduo transforma o original e, ao faz-lo, utilizando-se da lngua pura, ela o ilumina e o faz
perdurar. Tambm as lnguas so beneficiadas com a traduo, e por que no, o prprio leitor:
a traduo equipa-se da lngua de que faz parte para enriquec-la. Manter contato com
diferentes lnguas e culturas no s importante como necessrio se pretendemos constituir
uma sociedade rica culturalmente e pensante sobre o mundo. Portanto, a tarefa do tradutor no
somente mostrar a inteno do contedo da lngua (o eco) presente no original, nem buscar
sua essncia; a tarefa do tradutor responsvel tambm pela elucidao e o enriquecimento de
uma cultura, assim como Mary Shelley, na pele de Victor Frankenstein, abriu caminhos
diversos para o estudo e a pesquisa desse monstro, cujo original o mais complexo e
indagante dos seres: o homem.
RODRIGUES. A traduo e a criao de monstros: uma analogia entre o ato tradutrio e o monstro e sua criao
em Frankenstein.
Belas Infiis, v. 2, n. 1, p. 53-65, 2013.
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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2009. p. 126-146.
i Currculo lates em: .
ii Posteriormente, neste artigo, usar-se- tambm o conceito de persistncia vital, cuja escolha foi feita pela tradutora Maria Filomena Molder. Porm, por razes prprias e at mesmo poticas, prefere-se atribuir a
palavra berleben a sobrevida, tal como foi traduzido por Junia Barreto em: DERRIDA, 2006, p. 31.
iii In the terms of this analogy, translation is only possible because the skin (language) is unable to communicate
what it gives a form to.
iv This understanding is repeated when Benjamin writes: In all language and linguistic creations, there remains in addition to what can be conveyed something that cannot be communicated (SW 1, 261). Since language can only address what is meant by its way of meaning or its intention to convey that meaning, then all that can be translated by language is this intention.
v Whence, I often asked myself, did the principle of life proceed?
vi A new species would bless me as its creator and source, and many happy and excellent natures would owe
their being to me. No father could claim the gratitude of his child so completely as I should deserve theirs.
vii The purpose of translation is not to reveal this pure language in the original but rather to allow [it] to shine upon the original more fully (SW 1, 260).
viii If the original were such a pure language, translation could never exist because the original work would have no need to be supplemented by another language.
ix Utiliza-se aqui o conceito de ideologia definido por Venuti: um conjunto de valores, crenas e representaes sociais que so realizados na experincia vivida e servem, em ltima instncia, os [sic] interesses de uma
classe definida (VENUTI, 1995 apud FROTA, 2000, p. 82).