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ACTAS/ PROCEEDINGS CLÁSSICOS DOS TEATROS NACIONAIS: USOS DO CÂNONE ACTAS/ PROCEEDINGS CLÁSSICOS DOS TEATROS NACIONAIS: USOS DO CÂNONE 1 A TRANSMISSÃO DA MEMÓRIA DOS CLÁSSICOS NO ENSINO Evangelina Rodríguez Cuadros Universitat de València Quando comecei a dar aulas de teatro clássico espanhol —nos finais da década de setenta do século passado— numa universidade, não num Centro de Estudos de Teatro ou num Departamento de Drama, mas num Departamento de Literatura Espanhola, precisei de apresentar uma justificação. Reinava, logo à partida, uma acentuada rejeição que subordinava o conceito de teatro como manifestação espectacular ao texto literário. Difundia-se a visão do teatro enquanto um complexo sistema de signos que o teórico Tadeusz Kowzan explicava no seu trabalho literatura vs. espectáculo 1 . A mesma que muito antes tinha postulado Antonin Artaud (1896-1948), com um belo radicalismo poético, negando, em Le théâtre et son double (1938), que o diálogo – coisa escrita e falada – pertencesse especificamente ao palco e denunciando o drama na sua forma textual como um «teatro de idiotas, de loucos, de anti-poetas e de positivistas, quer dizer, ocidental» 2 . Sem querer entrar nas importantes razões de contexto histórico que levam o dramaturgo francês a uma atitude tão extremada (desde a herança de um teatro oitocentista europeu carregado de retórica, ao crescente fascínio pelo teatro oriental que, à época, influenciava os grandes teóricos do acto teatral para quem as potencialidades corporais do actor constituíam o centro gravitacional – basta pensarmos em V. E. Meyerhold [1879-1942] ou no mítico A preparação do actor que Constantin Stanivlaski [1863-1938] publica em 1936 –), o certo é que a derrota do ensino da história do teatro partindo de uma matriz textual era evidente e um encenador como o espanhol Lluis Pasqual (1951-), ao encenar, já em 1981, a sua versão de La hija del aire, de Calderón de la Barca, podia afirmar com contundência, a despeito dos eruditos e filólogos que assistiam ao espectáculo munidos do original para detectar as alterações e os cortes: «Calderón soy yo». Entretanto, alguns professores, para 1 Littérature et spectacle, dans leur rapports esthétiques, thématiques et sémiologiques, La Haya, Mouton, 1975 [1ª ed. 1970]. 2 El teatro y su doble, Trad. de Enrique Alonso e Francisco Abelenda, Barcelona, Edhasa, 1980, p. 44.

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ACTAS/ PROCEEDINGS CLÁSSICOS DOS TEATROS NACIONAIS: USOS DO CÂNONE

ACTAS/ PROCEEDINGS

CLÁSSICOS DOS TEATROS NACIONAIS: USOS DO CÂNONE 1

A TRANSMISSÃO DA MEMÓRIA DOS CLÁSSICOS NO ENSINO

Evangelina Rodríguez Cuadros Universitat de València

Quando comecei a dar aulas de teatro clássico espanhol —nos finais da década de

setenta do século passado— numa universidade, não num Centro de Estudos de Teatro ou

num Departamento de Drama, mas num Departamento de Literatura Espanhola, precisei de

apresentar uma justificação. Reinava, logo à partida, uma acentuada rejeição que

subordinava o conceito de teatro como manifestação espectacular ao texto literário.

Difundia-se a visão do teatro enquanto um complexo sistema de signos que o teórico

Tadeusz Kowzan explicava no seu trabalho literatura vs. espectáculo1. A mesma que muito

antes tinha postulado Antonin Artaud (1896-1948), com um belo radicalismo poético,

negando, em Le théâtre et son double (1938), que o diálogo – coisa escrita e falada –

pertencesse especificamente ao palco e denunciando o drama na sua forma textual como

um «teatro de idiotas, de loucos, de anti-poetas e de positivistas, quer dizer, ocidental»2.

Sem querer entrar nas importantes razões de contexto histórico que levam o dramaturgo

francês a uma atitude tão extremada (desde a herança de um teatro oitocentista europeu

carregado de retórica, ao crescente fascínio pelo teatro oriental que, à época, influenciava

os grandes teóricos do acto teatral para quem as potencialidades corporais do actor

constituíam o centro gravitacional – basta pensarmos em V. E. Meyerhold [1879-1942] ou

no mítico A preparação do actor que Constantin Stanivlaski [1863-1938] publica em 1936 –),

o certo é que a derrota do ensino da história do teatro partindo de uma matriz textual era

evidente e um encenador como o espanhol Lluis Pasqual (1951-), ao encenar, já em 1981, a

sua versão de La hija del aire, de Calderón de la Barca, podia afirmar com contundência, a

despeito dos eruditos e filólogos que assistiam ao espectáculo munidos do original para

detectar as alterações e os cortes: «Calderón soy yo». Entretanto, alguns professores, para

1 Littérature et spectacle, dans leur rapports esthétiques, thématiques et sémiologiques, La Haya, Mouton, 1975 [1ª ed. 1970]. 2 El teatro y su doble, Trad. de Enrique Alonso e Francisco Abelenda, Barcelona, Edhasa, 1980, p. 44.

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apaziguar a sua má consciência, afanavam-se a aplicar, como deleitosa novidade, na

análise dos textos quer o estruturalismo quer a simplificação semiótica; com isto a acção de

uma peça acabava fragmentada em sequências, núcleos e catálises; a dramatis personae

expressava-se através de relações contratuais greimasianas e a acção e encenação numa

diáspora de mimemas.

Caricaturas à parte, de onde vinham realmente estas dissidências ou esta inútil

persistência na eterna luta com o texto a respeito do teatro espanhol do Século de Ouro?

Sobretudo da sua consagração como cânone dentro do conceito de literatura nacional no

século XIX, no âmbito de uma tradição compartimentada e particular, nitidamente afastada

da Europa. A popularidade deste teatro e a sua entronização académica não promoveram

no meu país (pelo menos não tão cedo como noutros países europeus) uma tradição de

estudos teatrais definida em termos de prática da representação. A sua percepção teórica

traduzia-se numa constante reivindicação «do que é nosso». Lope de Vega será estudado

nos manuais como «criador do teatro nacional» e Calderón ser-nos-á desvelado pela crítica

alemã como promotor de um de um espírito de povo. Em meados do séc. XX quase

nenhum dos estudos sobre estes dramaturgos lhes assegurava o vigor suficiente para

superar aqueles postulados oitocentistas. Ou, pelo contrário, o vigor proveio da sublimação

do texto imposta pelo célebre princípio da chamada escola temático-estrutural anglo-

saxónica only the text can que, com o venerável mestre Alexander A. Parker à cabeça,

olhava para o teatro áureo espanhol como objecto não de uma dramaturgia activa, mas de

um debate ético e de transcendência simbólica, nem sempre isento de reticências

conservadoras3. A recuperação e o ensino dos textos teatrais dos séculos XVI e XVII

começou a converter-se numa aventura arqueológica que acabava por se entregar às mãos

da ecdótica, da colação e fixação de variantes em impressos e manuscritos. O filólogo era –

se tanto – investido na honorável função de corrector/revisor de provas ou, quanto muito,

restaurador de monumentos textuais lidos com uma reverência tão sincera como,

provavelmente, ineficaz a longo prazo.

Ora bem, o facto de outros modelos da história da arte cénica, comuns fora de

Espanha, terem promovido a distinção entre a literatura dramática e a sua produção em

espectáculo no Século de Ouro, não significou a sua incorporação unânime num cânone

europeu mais integrador e menos afecto às «singularidades» nacionais. Numa obra como a

de John Ramsey Allardyce Nicoll – destinada a manter-se durante muito tempo como

referência da história da prática teatral – só na edição de 1937 viria a aparecer, finalmente,

um apêndice (E) dedicado à cena espanhola entre os séculos XVI e XVII. Esta substancial

omissão era justificada pelo facto de que «Espanha pouco ou nada acrescentou aos

modelos cénicos europeus durante os séculos XVII e XVIII. Os seus edifícios teatrais não

3 Referimo-nos, fundamentalmente, ao seu ensaio «An approach to drama of the Spanish Golden Age», difundido, primeiro, em 1957 e sucessivamente reeditado e inclusivamente ampliado até 1971, ainda que a sua máxima difusão tenha ocorrido com a publicação da antologia preparada por Manuel Durán e Roberto González Echevarría, Calderón y la crítica: historia y antología (Madrid, Gredos, 1976, t. I, pp. 359-87).

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passaram de um pequeno afluente na corrente da história do teatro»4. De resto, admitia que

tanto Espanha como Inglaterra encontraram soluções semelhantes (os «inn-yards» e os

«corrales») para a encenação e que nos palcos representaram alguns actores da commedia

dell’arte. De um modo geral, tinha-se apontado a carência de uma infra-estrutura técnica

adequada como uma das principais debilidades do teatro espanhol do Século de Ouro:

Para o dramaturgo da nova cena dos corrales não existia nenhum modelo de

encenação tradicional que viesse auxiliá-lo nos aspectos técnicos, dramáticos ou

cénicos. À sua disposição não tinha literalmente mais do que um estrado vazio para

sobre ele invocar a vida e a acção com a varinha mágica da sua inspiração. Casa,

quartos e ruas, bosque, campos e pradarias, regatos, rios e mares, o dia e a noite,

tudo deveria brotar dos versos e da boca do actor, como de uma palavra mágica…5

Será a própria tradição anglo-saxónica a colocar as coisas no seu devido lugar, em

History of the Spanish Stage from Medieval Times until the End of the Seventeenth Century,

de Norman D. Shergold6. Mas basta dizer que, sendo um livro fundamental a que se recorre

incansavelmente quando se trata de começar a valorizar o teatro não puramente textual da

época, nunca foi traduzido nem é facilmente acessível a estudantes ou a um público não

especializado. Só muito mais tarde, e através da vigorosa tradição metodológica italiana dos

estudos de teatro, aberta tanto à narração histórica como à semiologia pragmática, se

reconhece claramente que a inter-relação constante entre género, espaço cénico e prática

de produção liberta o teatro do Século de Ouro da sua dependência total do conteúdo

temático-textual para o levar para o território da teatralidade e da meta-teatralidade7. E,

finalmente, reconhece-se que quer ao nível dos pátios de comédias comerciais, quer ao

nível dos teatros privados ou de corte, a homogeneidade do teatro à italiana (forma mentis

hegemónica da função social do teatro moderno) lhe fornece um vínculo funcional positivo

com a civilização teatral europeia.

Contudo, e tendo em conta as contradições que tenho vindo a referir, consciente de

que foi precisamente um grande teórico como Cesare Segre quem convenceu a minha

identidade filológica de que a semiótica acaba sempre por se suicidar na história, empenhei-

me no ensino do teatro – insisto, a despeito da querela entre texto e espectáculo – partindo

de um ponto de vista essencialmente etimológico. É que a palavra teatro – disso nos lembra

José Ortega y Gasset, num ensaio pouco reivindicado, proveniente, aliás, de uma

conferência proferida em Lisboa em 19468 – vem do grego θεατρον (lugar de onde se vê);

4 The development of the theater. A Study of the theatrical art from the beginning to the present day, N. York, Harcourt, Brace & C., 1927, p. 295. Traducimos del inglés. 5 Veja-se Ludwig Pfandl, Historia de la literatura nacional española en la Edad de Oro, Barcelona, Sucesores de Juan Gili, S.A., 1933, pp. 418-9. 6 Publicada em Oxford, Clarendon, 1969. 7 Veja-se a breve mas substancial Storia del teatro de Cesare Molinari (Roma, Laterza, 1996, pp. 137-147) 8 “Idea del teatro. Una abreviatura”, em La idea de teatro y otros ensayos sobre teatro, Madrid, Biblioteca Nueva, 2008, pp. 215-260.

4

do grego θεαοµαι (olhar, ver); do grego θεατησ (espectador): espectadores que se juntam

num lugar de onde se olha para ver e aceitar colectivamente, de acordo com convenções,

previamente estabelecidas, segundo as quais se aceita que se vêem coisas e se ouvem

palavras que remetem para essas coisas. Convido-vos a imaginar, por exemplo, a

representação de El Retablo de las Maravillas, de Miguel de Cervantes, em que uns vilões

ou lavradores assumem, sob uma forçada convenção ideológica (ser cristão velho, ser filho

legítimo) ou sob a complacente convenção que os faz fascinar-se perante um suposto

espectáculo de aparências e tramóias, que na poderosa palavra narrada por Chirinos ou

Chanfalla – impagável ñaque da época –se vê ou se ouve uma manada de touros, ou uma

catadupa de ratos ou leões rompantes e que se derruba um templo aos pés de Sansão e

que se vê e se ouve transbordar as águas do rio Jordão, e que se vê um moço do lugar

vibrar ao som da zarabanda dançando com a bíblica Herodíade. E, então, explico

simplesmente: isto é teatro, um acto colectivo que está no texto, que brota do texto.

Convido-vos, então, a continuar a imaginar a entrada, quase no final, de um soldado ou

fourrier (encarregado de procurar na vila alojamentos para a tropa), alguém que não faz

parte desse colectivo de espectadores fascinados pela convenção da real irrealidade teatral,

alguém que já não vê nem ouve nem compreende nada, porque é estranho a essas

convenções pré-estabelecidas. Porque o teatro deve assumir-se também, talvez, como um

complexo processo de estranhamento.

Pergunto-me, então, se o ensino do teatro (e especialmente do teatro clássico)

implica também assumir essa operação de estranhamento. E recorro a um do mais

inquietantes relatos de Jorge Luís Borges (La busca de Averroes, inserido em El Aleph), em

que o sábio se debate com um problema de índole filológica acerca da obra fundamental

que o tornaria conhecido das gentes: o comentário da Poética de Aristóteles; no início, duas

palavras misteriosas – que ele já tinha encontrado no livro terceiro da Retórica – deixam-no

perplexo: comédia e tragédia. Ninguém, no meio islâmico, tinha a mínima ideia do que

queriam dizer. Borges, no final deste conto, apresenta-nos um Averróis derrotado perante o

significado dessas palavras. Mas certo é que, provavelmente, está perto daquilo que

procura. Porque, enquanto reflecte ainda confuso, é distraído por uma espécie de melodia

e, olhando pelas grades da varanda, vê que lá em baixo

no estreito pátio de terra, brincavam alguns meninos seminús. Um, de pé nos ombros

do outro, imitava evidentemente um almuádem; com os olhos bem fechados,

salmodiava: Não há outro deus além de Deus. Aquele que o sustinha, imóvel, fazia

de minarete; outro, ajoelhado no pó, de congregação de fiéis. A brincadeira durou

pouco, todos queriam ser o almuádem e ninguém a congregação ou a torre.9

9 El Aleph, Madrid, Alianza Editorial, 1997, pp. 106-107 [1ª ed. 1949]. As citações remetem para as pp. 111 e117 respectivamente.

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Nessa mesma noite, Averróis janta em casa do alcoranista Farach, e outro dos

convidados, o viajante Abulcásim, narra um feito insólito, passado na cidade chinesa de Sin

Kalán:

—Uma tarde, os mercadores muçulmanos de Sin Kalán conduziram-me a uma

casa de madeira pintada […]. Não se pode contar como era essa casa, que mais

parecia um só quarto, com filas de armários ou balcões, uns sobre os outros.

Nessas cavidades havia gente que comia e bebia, e também no chão, e também

num terraço. As pessoas desse terraço tocavam tambor e alaúde, menos umas

quinze ou vinte (com máscaras vermelhas) que rezavam, cantavam e dialogavam.

Estavam presas, e ninguém via o cárcere; cavalgavam, mas não se apercebia o

cavalo; combatiam, mas as espadas eram de cana; morriam e punham-se de pé.

—Os actos dos loucos —disse Farach— excedem as previsões do homem

sensato.

—Não estavam loucos —teve de explicar Abulcásim—. Representavam uma

história, conforme me disse um mercador. […]

Borges conclui recordando-nos que Averróis quis saber ou «imaginar o que é um

drama sem suspeitar sequer o que é um teatro». Pois bem, atrever-me-ia a sugerir que o

ensino do teatro clássico (que nós convertemos em cânone apesar de, no seu tempo, ter

sido simplesmente uma arte da qual viviam os que o escreviam ou representavam) é

também uma maneira de provocar estranhamento. Ou, dito de outra maneira, transmitir uma

memória do passado num mundo aprisionado pelo imperativo do presente e da

instantaneidade, e optar por fazê-lo ou não como arqueologia do desconhecido. Quando

inicio as minhas aulas sobre o teatro do Século de Ouro – sem dúvida, o primeiro teatro

espanhol plenamente moderno e institucionalizado – costumo apresentar aos estudantes

imagens de um grupo de pintores (Grupo Crónica)10, um dos mais representativos da Pop

Art espanhola fundado em 1964, em que, procurando dar resposta à relação entre arte e

sociedade na Espanha coeva, se evidencia este processo de incrustação do passado no

presente (ou o contrário) numa estratégia de abertura de fendas de compreensão no

estranho.

10 Activo durante apenas 17 anos, era composto pelos artistas Manuel Valdés (1942-), Rafael Solbes (1940-1981) e Juan Antonio Toledo (1940-).

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Grupo Crónica, Las estructuras cambian, las

esencias permanecen (1968) Grupo Crónica, La rendición de Torrejón

(1971)

Portanto, trata-se, em primeiro lugar, de nunca negar a oportunidade – tendo em

conta a querela entre prós e contras da textualidade enquanto elemento integrante da arte

dramática – de ensinar a apreciar esse fabuloso estranhamento das palavras que nos

chegam dos longínquos textos de Lope de Vega, Calderón ou Gil Vicente. Porque, apesar

daquele arrebatamento poético de Artaud, ao reclamar a expulsão da palavra e do diálogo

do lugar concreto da cena, acredito, como escrevia Fernando Savater há mais de uma

década, que

O que mais prejudica o teatro nos nossos dias é o eclipse da atenção que

se dá à palavra poética, quer dizer, intensa e livre. […] O texto dramático só é

tolerado na medida em que permite aos actores representarem com ele o dia-a-dia

na cena […]; mas torna-se imediatamente alarmante se soa exótico, erudito ou

especulativo, quer dizer, se alcança o público graças à sua própria complexidade e

não recorrendo simplesmente ao panfletarismo e à vulgaridade.

A decadência do teatro (em que incluo a substituição da palavra representada – o

verbo feito carne – por ilusionismo e acrobacias, ou afásicos mimetismos orientais)

implica algo mais do que a perda de um espectáculo tradicional.11

Será bom recordar que até os próprios documentos com as apreensões morais que

no século XVII espanhol se manifestavam a respeito do teatro testemunham esta ideia das

palavras imersas nessa imensa estranheza da fala esquisita (quer dizer, em verso) e na sua

11 El País Semanal, 13 Dezembro de 1998, p. 14. Mas não necessário um filósofo ilustrado e publicista para proclamar esta convicção, especialmente significativa no que respeita textos complexos como os do teatro áureo; também podem fazê-lo os próprios actores que o levam para a cena. E assim o manifestava o actor José Luis Pellicena: «Numa época em que as frases se converteram em signos verbais e quase onomatopeias, o teatro clássico poderia ser um meio, não sei se eficaz, mas nunca contraproducente, para o reencontro com o idioma castelhano. Inventámos um jargão em que utilizamos palavras como “vale” ou “eso es muy fuerte” ou “eso está muy crudo” em vez das palavras que seriam lógicas para expressar essas ideias. Ou seja, um completo empobrecimento do idioma. No teatro clássico aconteceu-me frequentemente ficar fascinado com a beleza das formas que podemos usar para expressar algo.» («Teatro clásico hoy: la experiencia de un actor», em José Mª Díez Borque (ed.), Actor y técnica de representación del teatro clásico español, Londres, Tamesis Books, 1989, p. 174).

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oralidade mas também visualização passional. Basta ver, a partir desta perspectiva, o que

temia Juan de Zabaleta quando uma mulher, sozinha em sua casa, decide ler em voz alta

um livro de comédias:

Começa a ler suavemente. Vai evoluindo a comédia, e ela, imbuída daquele

sentimento, vai lendo e representando. Deixa-se arrebatar por uma relação em que

há dois mil gorgeios agradáveis. […] A donzela lê com o mesmo desassossego que

sentiria se aquilo lhe estivesse a acontecer a ela, e parece-lhe que se tal lhe

acontecesse seria exactamente aquilo o que faria.12

Não deveríamos esquecer o quanto de educação sentimental teve o teatro clássico

espanhol no seu tempo (e não só dirigista ou conservadora). O que não impede de recordar

que o texto (capital no seu valor artístico e retórico) está sempre, no que respeita ao teatro,

colonizado por uma projecção plástica e de imagens frequentemente entendidas como

documento excepcional num ensino obrigado, durante demasiado tempo, a narrar uma

história da literatura dramática dentro de um sistema literário.

Por todas as razões apontadas, e partindo da dupla experiência de investigar e

ensinar teatro do Século de Ouro espanhol — actualmente, um dos domínios mais activos e

transversais do hispanismo internacional —, gostaria de mostrar brevemente os três

instrumentos que a minha equipa de investigação disponibilizou na internet, pretendendo

transferir dados documentais tradicionais para a tecnologia; e tentando que a investigação

humanística supere o risco da sua marginalização em relação às novas fronteiras do

conhecimento.

Em primero lugar, o Blog Theatrica [http://www.arstheatrica.com/], uma bússola que

oferece, tanto aos investigadores como aos estudantes do teatro do Século de Ouro, uma

plataforma de informação e um fórum de debate que actua de modo interactivo e não como

mero portal ou sítio estático na web.

Blog Theatrica: Crítica sobre las tablas Blog Theatrica: Libros en escena

Em segundo lugar, o portal web Ars Theatrica Siglos de Oro

[www.parnaseo.uv.es/Ars.html], concebido, como se observa na arquitectura da sua 12 Juan de Zabaleta, El día de fiesta por la mañana y por la tarde, ed. de Cristóbal Cuevas, Madrid, Castalia, 1983.

8

disposição, enquanto interface de investigação e difusão do teatro do Século de Ouro e

plataforma de acesso ao Dicionário — que referirei daqui a pouco —, e do qual desejo

destacar a secção Documentação visual.

Ars Theatrica Siglos de Oro Ars Theatrica Siglos de Oro: Documentación

visual

Em terceiro lugar, o Diccionario crítico e histórico de la práctica escénica del Siglo

de Oro, construído a partir do projecto Léxico y Vocabulario de la práctica escénica de los

Siglos de Oro: hacia un diccionario crítico e histórico, subsidiado pelo programa de

Investigación Fundamental do Ministério da Ciência e Tecnologia, que se incorporou no

macro-projecto CONSOLIDER - INGENIO Classical Spanish Theatrical Patrimony. Texts

and research instruments. Neste projecto contamos, desde há pouco, com a comprovada

experiência do Professor José Camões em tarefas semelhantes.

Portal del Diccionario critico e histórico de la práctica escénica en el teatro de los Siglos de Oro

Página de búsquedas del Diccionario

A sua finalidade é a elaboração de um dicionário da memória cénica do teatro clássico

espanhol, acessível a partir da web, que se baseie na reorientação da sua historiografia

para uma noção de prática cénica, entendida enquanto conceito operativo que permite

identificar no acto teatral um conjunto de elementos documentais:

teoria ou preceituário de géneros e sub-géneros dramáticos sistemas de produção, encenação (teatral, para-teatral ou festiva) e agentes das mesma

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criação de perspectiva crítica (inclusivamente, derivada de juízos morais, como os das Controversias sobre a licitude do teatro) criação de memória técnica – no que diz respeito à progressiva complexidade cenográfica, musical ou dos figurinos artes ou técnicas do actor —dimensão corporal e vocal relação com as artes e cultura visual envolventes

Quer dizer, explorar e ordenar os significantes que designam estas realidades concretas,

construindo um CD-ROM com uma base de dados consultável quer a partir dos seus

elementos essenciais quer na sua totalidade discursiva e visual (DCR-DVD). Conscientes,

para além disso, de que no teatro —como em toda a ciência humana— há um problema de

nomenclatura que constitui uma das grandes dificuldades da história: o que se chama a quê

em determinados momentos. A linguagem é a malha que mantém o pensamento prisioneiro

numa determinada cultura, o que obriga à análise desses significantes no plano sincrónico e

diacrónico. Dito de outro modo: responder a esse problema de arqueologia histórica que, à

maneira de Foucault, invocamos como a relação entre as palavras e as coisas.

Não é, de nenhum modo, a primeira vez que se aborda um Dicionário sobre o teatro ou

a prática cénica em geral (e de todos os anteriores beneficiou o nosso projecto, incluindo o

projecto em construção Dicionário e o projecto HTP on Line – Documentos para a História do

Teatro em Portugal do Centro de Estudos de Teatro, da Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa); mas a sua especificidade encontra-se, talvez, na falta de tradição académica desta

tipologia de repertórios do léxico teatral no nosso país. Se os procurarmos no exaustivo

catálogo que alguns estudos oferecem sobre dicionários de especialidade não encontramos

uma única referência a um glossário de matéria teatral, ao passo que existem compilações

dedicadas à arte, botânica, ciências naturais, desporto, direito, economia e finanças, enologia,

filosofia, gastronomia, história, informática, termos literários, medicina, meio ambiente, meios

audio-visuais, mitologia, música, pesca, telecomunicações ou zoologia.

O que vou mostrar são, sobretudo, alguns exemplos da programação, desenho e

desenvolvimento do nosso Diccionario, disponível na página web Ars Theatrica Siglos de

Oro.

(http://parnaseo.uv.es/Ars/ARST6/diccionario1/diccionario.html)

A Base constrói-se utilizando o FileMaker Server, situado no servidor “Parnaseo2.uv.es”. Desenhou-se um ambiente de edição do dicionário dividido em dois espaços: o de gestão e o de pesquisa. O de gestão [backoffice] permite a introdução de dados tanto de forma remota como local (Web ou aplicação FileMaker Pro). O de pesquisa permite aos editores e utilizadores encontrar com facilidade os lemas que conduzem às diferentes entradas ou itens sobre os quais se deseja trabalhar ou consultar. Até agora, incorporaram-se 2323 lemas a que correspondem outras tantas entradas (sejam univerbais ou pluriverbais, quer dizer, unidades fraseológicas de índole diversa)

Ainda que o objectivo seja mostrar a construção do léxico da prática cénica que se instaura no Século de Ouro espanhol, devo esclarecer que não se trata estritamente de um

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projecto lexicográfico ou lexicológico, se bem que se aproxime deste tipo de metodologias, tanto na

dimensão técnica (disposição do lema, das entradas, remissões para testemunhos ou exemplos documentados, grafias ou ícones) como na sua dimensão teórica (definição dos âmbitos da teatralidade, das suas diferentes acepções e possíveis locuções complementares).

Isto leva-nos a explicar esquematicamente o que, partindo da técnica lexicográfica,

seria a macroestrutura do nosso Dicionário (isto é, o sistema de ordenação dos materiais

que o integram).

Chama-se lema à palavra-chave ou termo principal (representado na coluna da

esquerda) que supõe a representação gráfica lexicalizada de uma unidade conceptual, que,

agora como entrada (coluna mais larga da direita), é objecto de definição ou descrição e do

desenvolvimento informativo consequente (microestrutura do Dicionário). Ambas as colunas

compõem a macroestrutura do Dicionário. Por razões pedagógicas e práticas no que

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respeita à pesquisa informática (ou em suporte impresso), optámos por um sistema de

lematização que entende o lema como o núcleo das locuções fraseológicas formadas a

partir dele. De modo que o nosso Dicionário lematiza todas as formações (univerbais ou

pluriverbais), para que todas tenham entrada própria, quer por estarem associadas a um

significado recolhido nos corpora lexicográficos, quer por se entender como modificação

semântica concreta de um lema núcleo para o qual se remete na definição correspondente,

como teremos oportunidade de ver.

Tal como na macroestrutura devemos ter em conta a disposição da microestrutura

(isto é, a organização e composição da entrada), como se observará no esquema, onde se

assinalam as cinco áreas de informação:

a) Definição da única ou das várias acepções do lema a partir do corpus lexicográfico:

palavras simples (comediante, baile, palco, teatro…); Unidades pluriverbais ou

sintagmas lexicalizados em forma de combinação de substantivos mediante preposição

simples: corral de comédias, canal de elevación. Unidades pluriverbais ou sintagmas

lexicalizados em forma de substantivo + adjectivo: comedia particular, comedia antigua,

comedia amorosa, etc. Outras expressões usuais: comedia de capa y espada, dança

de cascabel, teatros del mundo. Modismos: al son, ao gracioso, etc. Locuções

adverbiais: hablar altamente, hablar com imperio, etc. Locuções prepositivas: al paño,

a los paños, etc. Outras locuções fraseológicas: tocar cajas, dar el pie, etc. Nomes

comuns elevados a nomes próprios: Coliseo del Buen Retiro. Expressões fixas ou

elementos repetitivos do discurso com semântica teatral: como que, descuido cuidadoso,

etc. Tipos ou personagens fixos da dramatis personae básica do teatro áureo: gracioso,

lacaio, dama, galán, barba, viejo ou vejete, etc. Formas adjectivais derivadas de

verbos que tenham um significado especificamente teatral ou para-teatral: divertido (no

sentido de bufão ou homem de prazer) perturbado, asombrado.

b) Testemunhos documentados ou citações;

c) Remissões para termos ou lemas de semântica adjacente (o que será essencial para

efeitos da elaboração dos índices temáticos do Dicionário);

d) O comentário histórico-crítico que emana do sentido pedagógico-enciclopédico que

orienta o Dicionário; e

e) A possível ligação através de um link — quando for pertinente — a uma galeria de

imagens (a partir da secção Documentación visual da web Ars Theatrica Siglos de Oro).

Optámos por usar o termo dicionário como hiperónimo integrador de uma série de

noções consentâneas com os interesses do utilizador a que se destina, certamente muito

mais filológicos e históricos — num sentido lato — do que estritamente linguísticos.

[1] o conceito de vocabulário — catálogo de palavras de uma actividade profissional ou de um género dramático concreto que remete para todo um campo semântico de lemas ou entradas—: farsante, comedia de capa y espada.

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Entrada farsante [1] Entrada farsante [2]

Entrada comedia de capa y espada [1] Entrada comedia de capa y espada [2]

[2] o conceito de glossário — sub-catálogo ou sub-sistema lexical de termos técnicos, coloquiais, jargões ou socialmente marcados do teatro do Século de Ouro —: devanadera a dos haces; suplidero.

Entrada devanadera a dos haces Entrada suplidero

[3] o conceito não normativo (construímos um dicionário descritivo e não normativo) de barbarismo ou estrangeirismo: salta en bancos / saltimbanco / saltimbanqui. [4] o conceito de descrição de vulgarismos: chocarrero.

Entrada saltimbanco Entrada chocarrero

[5] o conceito de léxico — sub-catálogo de termos singulares ou idiolecto que revelam a idiossincrasia de um autor—: tragisatiricomedia.

13

Entrada tragisatiricomedia

[6] Conceito de dimensão pedagógica histórico-didáctica que compreende não só a óbvia ordem alfabética como estrutura ou organização que facilite a pesquisa rápida dos dados requeridos, mas também que o desenvolvimento da microestrutura da entrada permita remeter para outros conceitos da área semântica do lema, que a entrada explique, num artigo crítico-explicativo, a origem e o devir do lema na história do teatro; e que, finalmente, se possa relacionar a entrada definida lexicograficamente e exemplificada documentalmente, com uma imagem concreta, como se pode observar nalguns exemplos de entradas completas.

Entrada canal de elevación Conexión a la Galeria de Imágenes

Entrada Herejía Conexión a la Galeria de Imágenes

Qual a relação entre este Diccionario de la práctica escénica del Siglo de Oro e a

reflexão inicial a respeito das dificuldades e problemas do ensino do teatro clássico?

Relacionam-se na medida em que um dicionário é, sobretudo, um discurso articulador de

memória de uma realidade, uma ordenação do léxico com que se manifesta a experiência e

se nomeia o mundo que a rodeia; um depósito da experiência social manifestada em

palavras cujo valor deriva da capacidade de superar a memória individual a favor do

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colectivo.13 Talvez também porque nos dicionários ou enciclopédias – melhor que noutros

lugares — podemos ler e reconhecer os conflitos ou as suas máscaras, os clichés e tópicos

que definem o álbum de uma cultura.14 E, talvez, porque encerram a possibilidade de um

olhar telescópico — sobre a palavra e a imagem ou vice-versa— para reconhecer no teatro

as realidades que ainda nos afectam. Já Hanna Arendt frisava que se o teatro é a mais

política das artes, é por ter apostado desde o início na significativa relevância do diálogo

entre iguais: os deuses, pelo contrário, preferem o inefável e os tiranos o monólogo. Em

cumplicidade com o resto da literatura, o teatro desperta em nós o amor pela força

humanizadora das palavras.

E, finalmente, porque acreditamos que renunciar à memória é a única coisa que não

é negociável no teatro. A memória não se inventa: transforma-se; e cabe a cada época

encontrar nela espaço para a recuperação da estranheza do passado, aprendendo a

compor a história do teatro a partir das suas histórias e de como estas se construíram com

textos e imagens, com palavras e coisas.

© Evangelina Rodríguez (2010)

13 Cf. L.F. Lara, “El objeto diccionario” em Dimensiones de la lexicografía: a propósito del «Diccionario del español en México», México, El Colegio de México, 1990, pp. 29-30. 14 Meschonicc, Henri, Des mots et des modes, Paris, Hatier, 1991, p. 16.