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A última corrida de touros em Salvaterra Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as músicas. Chegou el-rei, e logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo, e vê-se ondear um oceano de cabeças e de plumas. Na praça ressoam com brava alegria as trombetas, as charamelas e os timbales. Aparecem os cavaleiros, fidalgos distintos, todos, com o conto das lanças nos estribos, e os brasões bordados no veludo das gualdrapas dos cavalos. As plumas dos chapéus debruçam-se em matizados cocares; e as espadas em bainhas lavradas pendem de soberbos talins. Os capinhas e os forcados vestem com garbo à castelhana antiga. No semblante de todos brilha o ardor e o entusiasmo. O conde dos Arcos, entre os cavaleiros, era quem dava mais na vista. O seu trajo, cortado à moda da corte de Luís XV, de veludo preto, fazia realçar a elegância do corpo. Na gola da capa e no corpete, sobressaíam as finas rendas da gravata e dos punhos. Nos joelhos, as ligas bordadas deixavam escapar com artifício os tufos de cambraieta alvíssima. O conde não excedia a estatura ordinária, mas, esbelto e proporcionado, todos os seus movimentos eram graciosos. As faces eram talvez pálidas de mais, porém animadas de grande expressão, e o fulgor das pupilas negras fuzilava tão vivo e, por vezes, tão recobrado, que se tornava irresistível. Filho do marquês de Marialva e discípulo querido de seu pai, o melhor cavaleiro de Portugal, e talvez da Europa, a cavalo, a nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam os olhos. Ele e o corcel, como que ajustados em uma só peça, realizavam a imagem do centauro antigo. A bizarria com que percorreu a praça, domando sem esforço o fogoso corcel arrancou prolongados e repetidos aplausos. Na terceira volta, obrigando o cavalo quase a ajoelhar diante de um camarote, fez que uma dama escondesse turvada no lenço as rosas vivíssimas do rosto, que decerto descobririam o melindroso segredo da sua alma, se, em momentos rápidos como o faiscar do relâmpago, pudesse alguém adivinhar o que só dois sabiam. El-rei, quando o mancebo o cumprimentou pela última vez, sorriu- se, e disse voltando-se: — Porque virá o conde quase de luto à festa? Principiou o combate. Não é propósito nosso descrevermos uma corrida de touros. Todos têm assistido a ela, e sabem de memória o que o espectáculo oferece de notável. Diremos só que a raça dos bois era apurada, e que os touros se corriam desembolados, à espanhola. Nada

A última corrida de touros em Salvaterra

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A ltima corrida de touros em Salvaterra

A ltima corrida de touros em Salvaterra

Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as msicas. Chegou el-rei, e logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo, e v-se ondear um oceano de cabeas e de plumas. Na praa ressoam com brava alegria as trombetas, as charamelas e os timbales. Aparecem os cavaleiros, fidalgos distintos, todos, com o conto das lanas nos estribos, e os brases bordados no veludo das gualdrapas dos cavalos. As plumas dos chapus debruam-se em matizados cocares; e as espadas em bainhas lavradas pendem de soberbos talins. Os capinhas e os forcados vestem com garbo castelhana antiga. No semblante de todos brilha o ardor e o entusiasmo.O conde dos Arcos, entre os cavaleiros, era quem dava mais na vista. O seu trajo, cortado moda da corte de Lus XV, de veludo preto, fazia realar a elegncia do corpo. Na gola da capa e no corpete, sobressaam as finas rendas da gravata e dos punhos. Nos joelhos, as ligas bordadas deixavam escapar com artifcio os tufos de cambraieta alvssima. O conde no excedia a estatura ordinria, mas, esbelto e proporcionado, todos os seus movimentos eram graciosos. As faces eram talvez plidas de mais, porm animadas de grande expresso, e o fulgor das pupilas negras fuzilava to vivo e, por vezes, to recobrado, que se tornava irresistvel. Filho do marqus de Marialva e discpulo querido de seu pai, o melhor cavaleiro de Portugal, e talvez da Europa, a cavalo, a nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam os olhos. Ele e o corcel, como que ajustados em uma s pea, realizavam a imagem do centauro antigo.A bizarria com que percorreu a praa, domando sem esforo o fogoso corcel arrancou prolongados e repetidos aplausos. Na terceira volta, obrigando o cavalo quase a ajoelhar diante de um camarote, fez que uma dama escondesse turvada no leno as rosas vivssimas do rosto, que decerto descobririam o melindroso segredo da sua alma, se, em momentos rpidos como o faiscar do relmpago, pudesse algum adivinhar o que s dois sabiam.El-rei, quando o mancebo o cumprimentou pela ltima vez, sorriu-se, e disse voltando-se: Porque vir o conde quase de luto festa?Principiou o combate.No propsito nosso descrevermos uma corrida de touros. Todos tm assistido a ela, e sabem de memria o que o espectculo oferece de notvel. Diremos s que a raa dos bois era apurada, e que os touros se corriam desembolados, espanhola. Nada diminua, portanto, as probabilidades do perigo e a poesia da luta.Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo a porta do curro, e um touro preto investiu com a praa. Era um verdadeiro boi de circo. Armas compridas e reviradas nas pontas, pernas delgadas e nervosas, indicio de grande ligeireza, e movimentos rpidos e sbitos, sinal de fora prodigiosa. Apenas locara o centro da praa, estacou como deslumbrado, sacudiu a fronte e, escarvando a terra, impaciente, soltou um mugido feroz no meio do silncio que sucedera s palmas e gritos dos espectadores. Dentro em pouco, os capinhas, salvando a pulos as trincheiras, fugiam velocidade espantosa do animal, e dois ou trs cavalos expirantes denunciavam a sua fria.Nenhum dos cavaleiros se atreveu a sair contra ele. Fez-se uma pausa. O touro pisava a arena ameaador e parecia desafiar em vo um contendor. De repente, viu-se o conde dos Arcos, firme na sela, provocar o mpeto da fera, e a haste flexvel do rojo ranger e estalar, embebendo o ferro no pescoo musculoso do boi. Um rugido tremendo, uma aclamao imensa do anfiteatro inteiro, e as vozes triunfais das trombetas e charamelas encerraram esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo passou a galope por baixo do camarote, diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o cavalo, a mo alva e breve de uma dama deixou cair uma rosa, e o conde, curvando-se com donaire sobre os ares, apanhou a flor do cho, sem afrouxar a carreira, levou-a aos lbios e meteu-a no peito. Investindo depois com o touro tornado imvel com a raiva concentrada, rodeou-o estreitando em volta dele os crculos, at chegar quase a pr-lhe a mo na anca.O mancebo desprezava o perigo e, pago at da morte pelos sorrisos que seus olhos furtavam de longe, levou o arrojo a arrepiar a testa do touro com a ponta da lana. Precipitou-se ento o animal com fria cega e irresistvel. O cavalo baqueou trespassado, e o cavaleiro, ferido na perna, no pde levantar-se. Voltando sobre ele, o boi, enraivecido, arremessou-o aos ares, esperou-lhe a queda nas armas e no se arredou seno quando, assentando-lhe as patas sobre o peito, conheceu que o seu inimigo era um cadver.Este doloroso lance ocorreu com a velocidade do raio. Estava j consumada a tragdia, e no havia expirado ainda o eco dos ltimos aplausos.De repente, um silncio em que se conglobavam milhares de agonias, emudeceu o circo. Rei, vassalos e damas, meio corpo fora dos camarotes, fitavam a praa sem respirar, e erguiam logo depois a vista ao cu, como para seguir a alma que para l voava envolta em sangue.Quando o mancebo, dobado no ar, exalava a vida antes de tocar o cho, um gemido agudo, composto de soluos e choro, caiu sobre o cadver como uma lgrima de fogo. Uma dama, desmaiada nos braos de outras senhoras, soltara aquele grito estridente, derradeiro ai do corao ao rebentar no peito.El-rei D. Jos, com as mos no rosto, parecia petrificado.A corte, desta vez, acompanhava-o sinceramente na sua dor.Mas o drama ainda no tinha concludo. Quem sabe?! O terror e a piedade iam cortar de novas mgoas o peito a todos.O marqus de Marialva assistira a tudo do seu lugar. Revendo-se na gentileza do filho, seus olhos seguiam-lhe os movimentos, brilhando radiosos a cada sorte feliz. Logo que entrou o touro preto, carregou-se de uma nuvem o semblante do ancio. Quando o conde dos Arcos saiu a farpe-lo, as feies do pai contraram-se e a sua vista no se despregou mais da arriscada luta.De repente, o velho soltou um grito sufocado e cobriu os olhos, apertando depois as mos na cabea. Os seus receios haviam-se realizado. Cavalo e cavaleiro rolavam na arena, e a esperana pendia de um fio tnue! Cortou-lho rapidamente a morte, e o marqus, perdido o filho, luz da sua alma e ufania de suas cs, no proferiu uma palavra, no derramou uma lgrima; mas os joelhos fugiam-lhe trmulos, e a elevada estatura inclinou-se, vergando ao peso da mgoa excruciante.Volveu, porm, em si, decorridos momentos. A lvida palidez do rosto tingiu-se de vermelhido febril, subitamente. Os cabelos desgrenhados e hirtos revolveram-se-lhe na fronte inundada de suor frio como as sedas da juba de um leo irritado. Nos olhos amortecidos faiscou, instantneo mas terrvel, o sombrio claro de uma clera em que todas as nsias insofridas da vingana se acumulavam.Em um mpeto, a presena reassumiu as propores majestosas e erectas, como se lhe corresse nas veias o sangue do mancebo que perdera. Levando por acto instintivo a mo ao lado, para arrancar a espada, meneou tristemente a cabea. A sua boa espada cingira-a ele ao prprio filho, neste dia que se convertera para a sua casa em dia de eterno luto!Sem querer ouvir nada, desceu os degraus do anfiteatro, seguro e resoluto, como se as neves de setenta anos lhe no branqueassem a cabea. Sua Majestade ordena ao marqus de Marialva que aguarde as suas ordens disse um camarista, detendo-o pelo brao.O velho fidalgo estremeceu, como se acordasse sobressaltado, e cravou no interlocutor os olhos desvairados, em que reluzia o fulgor concentrado de um pensamento imutvel. Desviando depois a mo que o suspendia, baixou mais dois degraus. Sua Majestade entende que este dia foi j bastante desgraado e no quer perder nele dois vassalos... O marqus desobedece s ordens de el-rei?!... El-rei manda nos vivos, e eu vou morrer! atalhou o ancio em voz spera, mas sumida. Aquele o corpo de meu filho! e apontava para o cadver. Est ali! Sua Majestade pode tudo, menos desarmar o brao do pai, menos desonrar os cabelos brancos do criado que o serve h tantos anos. Deixe-me passar, e diga isto.D. Jos vira o marqus levantar-se e percebera a sua resoluo. Amava no estribeiro-mor as virtudes e a lealdade nunca desmentidas. Sabia que da sua boca no ouvia seno a verdade, e a ideia de o perder assim era-lhe insuportvel. Apenas lhe constou que ele no acedia sua vontade, fez-se branco, cerrou os dentes convulso e, debruado para fora da tribuna, aguardou em ansioso silncio o desfecho da catstrofe.A esse tempo j o marqus pisava a praa, firme e intrpido, como os antigos Romanos diante da morte. Dentro do peito o seu corao chorava, mas os olhos ridos queimavam as lgrimas, quando subiam a rebentar por eles. Primeiro do que tudo queria a vingana.Por impulso instantneo, todo o ajuntamento se ps de p. Os semblantes consternados e os olhos arrasados de gua exprimiam aquela dolorosa conteno do esprito, em que um sentido parece concentrar todos.Deixai-o ir, ao velho fidalgo! A mgoa que o trespassa no tem igual. O fogo, que lhe presta vida e foras, a desesperao. Deixai-o ir, e de joelhos!: Saudai a majestade do infortnio!O pai angustiado ajoelhou junto do corpo do filho e pousou-lhe um sculo na fronte. Desabrochou-lhe depois o talim e cingiu-o, levantou-lhe do cho a espada e correu-lhe a vista pelo fio e pela ponta de dois gumes. Passou depois a capa no brao e cobriu-se. Decorridos instantes, estava no meio da praa e devorava o touro com a vista chamejante, provocando-o para o combate.Cortado de comoes to cruis, no lhe tremia o brao, e os ps arreigavam-se na arena, como se um poder oculto e superior lhos tivesse ligado repentinamente terra.Fez-se no circo um silncio glido, tremendo e to profundo, que poderiam ouvir-se at as pulsaes do corao do marqus, se naquela alma de bronze o corao valesse mais do que a vontade.O touro arremete contra ele... Uma e muitas vezes o investe cego e irado, mas a destreza do marqus esquiva sempre a pancada.Os ilhais da fera arfam de fadiga, a espuma franja-lhe a boca, as pernas vergam e resvalam, e os olhos amortecem de cansao. O ancio zomba da sua fria. Calculando as distncias, frustra-lhe todos os golpes sem recuar um passo.O combate demora-se.A vida dos espectadores resume-se nos olhos.Nenhum ousa desviar a vista de cima da praa.A imensidade da catstrofe imobiliza todos.De sbito, solta el-rei um grito e recolhe-se para dentro da tribuna. O velho aparava, a peito descoberto, a marrada do touro, e quase todos ajoelharam para rezarem por alma do ltimo marqus de Marialva.A aflitiva pausa apenas durou momentos. Por entre as nvoas de que a pupila trmula se embaciava, viu-se o homem crescer para a fera, a espada fuzilar nos ares e, logo aps, sumir-se at aos copos entre a nuca do animal. Um bramido, que atroou o circo, e o baque do corpo agigantado na arena encerraram o extremo acto do funesto drama.Clamores unssonos saudaram a vitria. O marqus, que tinha dobrado o joelho com a fora do golpe, levantava-se mais branco do que um cadver. Sem fazer caso dos que o rodeavam, tornou a abraar-se com o corpo do filho, banhando-o de lgrimas e cobrindo-o de beijos.O touro ergueu-se e, cambaleando com a sezo da morte, veio apalpar o stio onde queria expirar. Ajuntou ali os membros, e deixou-se cair sem vida ao lado do cavalo do conde dos Arcos.Nesse momento os espectadores, olhando para a tribuna real, estremeceram. El-rei, de p e muito plido, tinha junto de si o marqus de Pombal coberto de p e com sinais de ter viajado depressa.Sebastio Jos de Carvalho voltava de propsito as costas praa, falando com o monarca. Punia assim a barbaridade do circo. Temos guerra com a Espanha, Senhor. inevitvel. Vossa Majestade no pode consentir que os touros lhe matem o tempo e os vassalos! Se continussemos neste caminho... cedo iria Portugal vela. Foi a ltima corrida, marqus. A morte do conde dos Arcos acabou com os touros reais, enquanto eu reinar. Assim o espero da sabedoria de Vossa Majestade. No h tanta gente nos seus reinos, que possa dar-se um homem por um touro. El-rei consente que v em seu nome consolar o marqus de Marialva? V! pai. Sabe o que h-de dizer-lhe... O mesmo que ele me diria a mim, se Henrique estivesse como est o conde. El-rei saiu da tribuna, e o marqus de Pombal, entrando na praa em toda a majestade da sua elevada estatura, levantou nos braos o velho fidalgo, dizendo-lhe com voz meiga e triste: Senhor marqus! Os Portugueses como vossa excelncia so para dar exemplos de grandeza d'alma e no para os receberem. Tinha um filho e Deus levou-lho. Altos juzos Seus. A Espanha declara-nos guerra, e el-rei, meu amo e meu senhor, precisa do conselho e da espada de vossa excelncia.E travando-lhe da mo, levou-o quase nos braos, at o meterem na carruagem. D. Jos I cumpriu a palavra dada ao seu ministro. No seu remado nunca mais se picaram touros em Salvaterra.

REBELO DA SILVA (1822-1871), in ltima Corrida de Touros em Salvaterra