7
A VIAGEM DE INVERNO (1979) Georges Perec i Na última semana de Agosto de 1939, enquanto os rumores de guerra invadiam Paris, um jovem professor de letras, Vincent Degraël, foi convidado a passar alguns dias numa propriedade nas cercanias de Le Havre que pertencia aos pais de um dos seus colegas, Denis Borrade. Na véspera do regresso, quando explorava a biblioteca dos anfitriões à procura de um daqueles livros que desde sempre nos prometemos ler, mas que em geral só temos tempo de folhear ao acaso junto ao fogo da lareira, antes de tomar parte numa rodada de bridge, Degraël deu com um magro volume intitulado A viagem de inverno, cujo autor, Hugo Vernier, era-lhe totalmente desconhecido, mas cujas primeiras páginas lhe causaram uma impressão tão forte que só teve tempo de se desculpar junto ao amigo e a seus pais e subir correndo a fim de lê-lo no quarto. A viagem de inverno era uma espécie de relato escrito em primeira pessoa e situado num país semi-imaginário, cujos céus carregados, florestas sombrias, sinuosas colinas e canais cortados por eclusas esverdeadas evocavam com uma insistência insidiosa as paisagens de Flandres ou das Ardenas. O livro estava divido em duas partes. A primeira, mais curta, descrevia em termos sibilinos uma viagem com ares iniciáticos, de etapas que pareciam marcadas por um fracasso, e ao fim do qual o herói anônimo, um homem que fazia crer fosse jovem, chegava à beira de um lago imerso em bruma espessa; um barqueiro o esperava ali, para conduzi-lo a uma ilhota escarpada, no centro da qual se elevava uma construção alta e sombria; mal o jovem tocava o pé no estreito pontão que constituía o único acesso à ilha, aparecia-lhe um estranho casal: um velho e uma velha, ambos envoltos em compridas capas negras; pareciam surgir do nevoeiro e vinham encostar-se a ele, tomando-lhe os cotovelos e se apertando o mais possível a seus flancos; quase aderidos i PEREC, Georges. “A viagem de inverno”. In: A coleção particular. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.

A Viagem de Inverno - Georges Perec (Conto)

Embed Size (px)

Citation preview

A VIAGEM DE INVERNO

(1979)

Georges Perec

Na ltima semana de Agosto de 1939, enquanto os rumores de guerra invadiam Paris, um jovem professor de letras, Vincent Degral, foi convidado a passar alguns dias numa propriedade nas cercanias de Le Havre que pertencia aos pais de um dos seus colegas, Denis Borrade. Na vspera do regresso, quando explorava a biblioteca dos anfitries procura de um daqueles livros que desde sempre nos prometemos ler, mas que em geral s temos tempo de folhear ao acaso junto ao fogo da lareira, antes de tomar parte numa rodada de bridge, Degral deu com um magro volume intitulado A viagem de inverno, cujo autor, Hugo Vernier, era-lhe totalmente desconhecido, mas cujas primeiras pginas lhe causaram uma impresso to forte que s teve tempo de se desculpar junto ao amigo e a seus pais e subir correndo a fim de l-lo no quarto.

A viagem de inverno era uma espcie de relato escrito em primeira pessoa e situado num pas semi-imaginrio, cujos cus carregados, florestas sombrias, sinuosas colinas e canais cortados por eclusas esverdeadas evocavam com uma insistncia insidiosa as paisagens de Flandres ou das Ardenas. O livro estava divido em duas partes. A primeira, mais curta, descrevia em termos sibilinos uma viagem com ares iniciticos, de etapas que pareciam marcadas por um fracasso, e ao fim do qual o heri annimo, um homem que fazia crer fosse jovem, chegava beira de um lago imerso em bruma espessa; um barqueiro o esperava ali, para conduzi-lo a uma ilhota escarpada, no centro da qual se elevava uma construo alta e sombria; mal o jovem tocava o p no estreito ponto que constitua o nico acesso ilha, aparecia-lhe um estranho casal: um velho e uma velha, ambos envoltos em compridas capas negras; pareciam surgir do nevoeiro e vinham encostar-se a ele, tomando-lhe os cotovelos e se apertando o mais possvel a seus flancos; quase aderidos uns aos outros, escalavam uma trilha aluda, entravam na casa, subiam por uma escadaria de madeira e chegavam a um quarto. Ali, to inexplicavelmente quanto haviam aparecido, os velhos sumiam, deixando o jovem sozinho no meio do cmodo. Estava sumariamente mobiliado: uma cama recoberta por um lenol estampado, uma mesa, uma cadeira. Uma chama ardia na lareira. Sobre a mesa, uma refeio pronta: sopa de favas, uma fatia de pato. Pela alta janela do quarto, o jovem contemplava a lua cheia emergir das nuvens; depois sentava-se mesa e comeava a comer. E com essa ceia solitria terminava a primeira parte. A segunda parte constitua, sozinha, quase quatro quintos do livro e parecia desde logo que o curto relato que a precedia no passava de um pretexto anedtico. Era uma longa confisso de lirismo exacerbado, entremeada de poemas, mximas enigmticas, sortilgios blasfematrios. Mal comeou a ler, Vincent Degral teve uma sensao de mal-estar que lhe foi impossvel definir com preciso, mas que se acentuava medida que virava as pginas do volume, com a mo cada vez mais trmula: era como se as frases que tinha diante dos olhos se tornassem de chofre familiares, fazendo-o irresistivelmente lembrar alguma coisa, como se leitura de cada uma delas se impusesse, ou antes superpusesse, a lembrana ao mesmo tempo precisa e frouxa de uma frase quase idntica que ele j lera em algum lugar; como se aquelas palavras, mais ternas que carcias ou mais prfidas que venenos, aquelas palavras ora lmpidas ora hermticas, obscenas ou calorosas, fascinantes, labirnticas, oscilando sem parar, como a agulha desvairada de uma bssula entre uma violncia alucinada e uma serenidade fabulosa, desenhassem uma configurao confusa na qual se podia ver confundidos Germain Nouveau e Tristan Corbire, Villiers e Banville, Rimbaud e Verhaeren, Charles Cros e Lon Bloy.Vincent Degral, cujo campo de interesses incidia precisamente sobre tais autores preparava havia anos uma tese sobre "a evoluo da poesia francesa dos parnasianos aos simbolistas" julgou a princpio que j tivesse lido o livro ao acaso das pesquisas; depois, com maior verossimilhana, que talvez fosee vtima de uma iluso de dej vu, pela qual assim como o simples sabor de um gole de ch nos transporta de repente Inglaterra de trinta anos atrs bastava um nada, um som, um odor, um gesto talvez esse instante da hesitao que sentira antes de retirar o livro da estante, onde estava classificado entre Verhaeren e Viel-Griffin, ou ainda a maneira vida com que percorrera as primeiras pginas para que a lembrana falaciosa de uma leitura anterior viesse sobrepor-se a ela, perturbando-a at tornar impossvel a leitura que estava ponto de fazer. Mas logo a dvida no pde sustentar-se e Degral teve de se render evidncia: talvez a memria lhe pregasse uma pea, talvez no passasse de um acaso que Vernier parecesse tomar emprestado a Catulle Mends o seu "solitrio chacal assediando os sepulcros de pedra"; talvez pudesse levar em conta os encontros fortuitos, as influncias ostensivas, as homenagens voluntrias, as cpias inconscientes, a vontade de pastiche, o gosto das citaes, as coincidncias felizes; talvez pudesse considerar que expresses como "o vo do tempo", "nvoas do inverno", "obscuro horizonte", grutas profundas", fludas fontes, "incertos clares das macegas selvagens" pertencessem de pleno direito a todos os poetas e que perfeitamente normal encontr-las num pargrafo de Hugo Vernier ou nas estncias de Jean Moras, mas era de todo impossvel no reconhecer, ao sabor da leitura, palavra a palavra ou quase, aqui um fragmento de Rimbaud ("Via honestamente uma mesquita no lugar de uma fbrica, uma escola de tambores formada por anjos") ou de Mallerm ("inverno lcido, estao de arte serena"), ali um Lautramont ("Vi no espelho esta boca machucada pela minha prpria vontade"), Gustave Kahn ("Deixa expirar a cano... a alma chora. / Rasteja um bistre em torno claridade./ O silncio subiu lentamente, apavora / Os rudos habituais da ntima vacuidade"), ou, mal modificado, um de Verlaine ("no tdio interminvel da plancie, luzia a neve como se fosse areia. O cu era da cor do cobre. O trem deslizava sem um s murmrio...") etc.Eram quatro horas da manh quando Degral terminou a leitura de Viagem de inverno. Havia localizado cerca de trinta emprstimos. Certamente haveria outros. O livro de Hugo Vernier parecia uma prodigiosa compilao dos poetas do fim do sculo XIX, um cento desmesurado, um mosaico em que quase todas as peas eram obra de outrem. Mas no exato momento em que se esforava por imaginar esse autor desconhecido que decidira extrair de livros alheios a prpria matria do seu texto, quando tentava figurar at o fim esse projeto insensato e admirvel, Degral sentiu nascer em seu ntimo uma suspeita assustadora: acabava de lembrar que, ao tomar o livro da estante, havia maquinalmente observado a data, movido por esse reflexo do jovem investigador que jamais consulta uma obra sem atentar para os dados bibliogrficos. Talvez se tivesse enganado, mas achava que havia lido 1864. Verificou a data, o corao batendo. Lera corretamente: isso queria dizer que Vernier havia "citado" um verso de Mallarm com dois anos de antecipao, plagiado Verlaine dez anos antes das suas Pequenas rias esquecidas, escrito versos de Gustave Kahn cerca de um quarto de sculo antes dele! Isso queria dizer que Lautramont, Germain Nouveau, Rimbaud, Corbire e outros mais no passavam de copistas de um poeta genial e desconhecido que, numa obra nica, soubera recolher a prpria substncia de que se nutririam em seguida trs ou quatro geraes de autores!A menos, evidentemente, que a data de impresso que figurava na obra estivesse errada. Mas Degral recusava-se a admitir essa hiptese. A descoberta era bela demais, evidente demais, necessria demais para no ser verdadeira, e ele j imaginava as conseqncias vertiginosas que iria provocar: o escndalo prodigioso que constituiria a revelao pblica dessa antologia premonitria, a amplitude de suas repercusses, o enorme questionamento de tudo o que os crticos e historiadores da literatura haviam imperturbavelmente professado durante anos e anos. E sua importncia era tal que, renunciando definitivamente ao sono, precipitou-se para a biblioteca a fim de tentar saber algo mais sobre esse Vernier e sua obra.No encontrou nada. Os poucos dicionrios e livros de referncia existentes na biblioteca de Borrade ignoravam a existncia de Hugo Vernier. Nem Denis nem seus pais souberam dar maiores informaes: o livro fora adquirido num leilo, havia cerca de dez anos, em Honfleur, haviam-no consultado sem prestar grande ateno.O dia inteiro, com ajuda de Denis, Degral procedeu a um exame sistemtico da obra, procurando os fragmentos revelados em dezenas de antologias e compilaes; encontraram cerca de trezentos e cinqenta, repartidos por cerca de trinta autores: tanto os mais clebres quanto os mais obscuros poetas do fim do sculo, e s vezes at mesmo alguns prosadores (Lon Bloy, Ernest Hello), bem pareciam ter feito de Viagem de inverno a bblia de que haviam extrado o melhor de si mesmos: Banville, Richepin, Huysmans, Charles Cros, Leon Valade a andavam de par com Mallarm e Verlaine e outros mais, hoje cados no esquecimento, que se chamavam Charles de Pomairols, Hyppolyte Vaillant, Maurice Rollinat (o afilhado de George Sand), Laprade, Albert Mrat, Charles Morice ou Antony Valabrgue.Degral anotou cuidadosamente num caderno a lista de autores e a referncia de seus emprstimos, e retornou a Paris decidido a prosseguir suas pesquisas no dia seguinte, na Biblioteca Nacional. Mas os acontecimentos no o permitiram. Em Paris, esperava-o a convocao para o exrcito. Mobilizado em Compigne, viu-se, antes que tivesse tempo de compreender por que, em Saint-Jean-de-Luz, passou para a Espanha e de l retornou para a Inglaterra, donde s retornou Frana em fins de 1945. Durante toda a guerra, transportou consigo o caderno e miraculosamente conseguiu no perd-lo. Suas pesquisas evidentemente no haviam avanado, mas ainda assim fizera uma descoberta capital: no British Museum, pudera consultar o Catlogo geral de livros franceses e a Bibliografia da Frana e confirmar sua formidvel hiptese: A viagem de inverno, de Vernier (Hugo), fora mesmo editada em 1864; em Valenciennes, pelos Irmos Herv, impressores-livreiros, e, submetida ao depsito legal incidente sobre todas as obras publicadas na Frana, fora depositada conformemente na Biblioteca Nacional, onde lhe foi atribudo o nmero catalogrfico Z 8712.Nomeado professor em Beauvais, Vincent Degral consagrou da em diante todo o seu tempo livre Viagem de inverno.

Pesquisas profundas em dirios ntimos e na correspondncia da maior parte dos poetas de finais do sculo XIX persuadiram-no rapidamente de que Hugo Vernier gozara, em seu tempo, da celebridade que merecia: notas como "recebi hoje uma carta de Hugo", ou "escrevi uma longa carta a Hugo", "li V.H. a noite inteira", ou ainda o clebre "Hugo, apenas Hugo" de Valentin Havercamp no se referiam absolutamente a "Victor" Hugo, mas a essse poeta maldito cuja obra breve parecia ter incendiado todos aqueles que a tiveram em mos. Contradies espantosas que a crtica e a histria literria jamais haviam explicado encontravam assim sua nica soluo lgica, e era evidentemente pensando em Hugo Vernier e ao que deviam Viagem de inverno que Rimbaud tinha escrito "Eu um outro" e Lautramont, "A poesia deve ser feita por todos e no por um".Mas quanto mais realava o lugar preponderante que Hugo Vernier deveria ocupar na histria literria da Frana do fim do sculo passado, menos ele podia fornecer provas tangveis a respeito: pois que nunca conseguiu pr a mo num exemplar de A viagem de inverno. O que havia consultado fora destrudo ao mesmo tempo que a cidade por ocasio dos bombardeios de Le Havre; o exemplar depositado na Biblioteca Nacional no estava no lugar quando o solicitou e somente ao cabo de longas diligncias que conseguiu saber que o livro, em 1926, fora enviado a um encadernador que nunca o recebeu. Todas as buscas que mandou fazer junto a dezenas e centenas de bibliotecrios, arquivistas e livreiros abaram por se revelar inteis, e Degral logo se persuadiu de que os quinhentos exemplares da edio tinham sido voluntariamente destrudos por aqueles mesmos que se haviam inspirado neles.Sobre a vida de Hugo Vernier, Vincent Degral no descobriu nada ou quase nada. Uma pequena nota imprevista, desentranhada de uma obscura Biografia dos homens ilustres do Norte da Frana e da Blgica (Verviers, 1882), dava a saber que o autor nascera em Vimy (Pas-de-Calais) em 3 de Setembro de 1836. Mas os assentamentos do registo civil da municipalidade de Vimy haviam queimado em 1916, ao mesmo tempo que as cpias recolhidas prefeitura de Arras. No constava que qualquer certido de bito tivesse sido alguma vez lavrada.Por cerca de trinta anos, Vincent Degral esforou-se em vo por coletar provas da existncia do poeta e de sua obra. Quando morreu, no hospital psiquirico de Verrires, alguns dos seus ex-alunos trataram de classificar a imensa pilha de documentos e manuscritos que Degral deixara; entre eles figurava uma grossa agenda encadernada em percalina preta, cuja etiqueta consignava, em letra cuidadosamente caligrafada, A viagem de inverno: as oito primeiras pginas descreviam a histria de suas pesquisas frustradas; as outras trezentas e noventa e duas estavam em branco. PEREC, Georges. A viagem de inverno. In: A coleo particular. So Paulo: Cosac & Naify, 2005.