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www.nead.unama.com.br 1 Universidade da Amazônia A Viuvinha de de de de Jos! de Jos! de Jos! de Jos! de Alencar Alencar Alencar Alencar NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal CEP: 66060-902 Belém – Pará Fones: (91) 210-3196 / 210-3181 www.nead.unama.br E-mail: [email protected] 

A Viuvinha - José de Alencar

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    Universidade da Amaznia

    A Viuvinha

    de de de de Jos de Jos de Jos de Jos de AlencarAlencarAlencarAlencar

    NEAD NCLEO DE EDUCAO A DISTNCIAAv. Alcindo Cacela, 287 Umarizal

    CEP: 66060-902Belm Par

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    A Viuvinhade Jos de Alencar

    A D.

    Janeiro de 1857.

    CAPTULO I

    Se passasse h dez anos pela praia da Glria, minha prima, antes que asnovas ruas que abriram tivessem dado um ar de cidade s lindas encostas do morrode Santa Teresa, veria de longe sorrir-lhe entre o arvoredo, na quebrada damontanha, uma casinha de quatro janelas com um pequeno jardim na frente.

    Ao cair da tarde, havia de descobrir na ltima, das janelas o vulto gracioso deuma menina que a se conservava imvel at seis horas, e que, retirando-seligeiramente, vinha pela portinha do jardim encontrar-se com um moo que subia aladeira e oferecer-lhe modestamente a fronte, onde ele pousava um beijo de amorto casto que parecia antes um beijo de pai.

    Depois, com as mos entrelaadas, iam ambos sentar-se a um canto dojardim, onde a sombra era mais espessa, e a conversavam baixinho um tempoesquecido; ouvia-se apenas o doce murmrio das vozes, interrompidas por essesmomentos de silncio em que a alma emudece, por no achar no vocbulo humanooutra linguagem que melhor a exprima.

    O arrulhar destes dois coraes virgens durava at oito horas da noite,quando uma senhora de certa idade chegava a uma das janelas da casa, j entoiluminada, e, debruando-se um pouco, dizia com a voz doce e afvel.

    Olha o sereno, Carolina!

    A estas palavras os dois amantes se erguiam, atravessavam o pequenoespao que os separava da casa e subiam os degraus da porta, onde eramrecebidos pela senhora que os esperava.

    Boa noite, D. Maria, dizia o moo. Boa noite, senhor Jorge: como passou? Respondia a boa senhora.

    A sala da casinha era simples e pequena, mas muito elegante; tudo nelarespirava esse aspecto alegre e faceiro que se ri com a vista.

    A nessa sala passavam as trs pessoas de que lhe falei um desses seresde famlia, ntimos e tranqilos, como j no os h talvez nessa bela cidade do Riode Janeiro, invadida pelos usos e costumes estrangeiros.

    Os dois moos sentavam-se ao piano; as mozinhas distradas da meninaroavam apenas pelo teclado, fazendo soar uns ligeiros arpejos que serviam deacompanhamento a uma conversao em meia voz.

    D. Maria, sentada mesa do meio da sala, jogava a pacincia; e quandolevantava a vista das cartas, era para olhar a furto os dois moos e sorrir-se desatisfeita e feliz.

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    Isto durava at hora do ch; e pouco depois Jorge retirava-se, beijando amo da boa senhora, que neste momento tinha sempre uma ordem a dar e fingiano ver o beijo de despedida que o moo imprimia na fronte cndida da menina.

    Agora, minha prima, se quer saber o segredo da cena que lhe acabei dedescrever, cena que se repetia todas as tardes, havia um ms, d-me algunsmomentos de ateno, que vou satisfaz-la.

    Este moo que designou o nome de Jorge, e que realmente tinha outro nome,em que decerto h de ter ouvido falar, era o filho de um negociante rico que falecera,deixando-o rfo em tenra idade; seu tutor, velho amigo de seu pai, zelou a suaeducao e a sua fortuna, como homem inteligente e honrado que era.

    Chegando maioridade, Jorge tomou conta de seu avultado patrimnio ecomeou a viver essa vida dos nossos moos ricos, os quais pensam que gastar odinheiro que seus pais ganharam uma profisso suficiente para que se dispensemde abraar qualquer outra.

    Temos, infelizmente, muitos exemplos dessas esterilidades a que secondenam homens que, pela sua posio independente, podiam aspirar a um futurobrilhante.

    Durante trs anos, o moo entregou-se a esse delrio do gozo que se apoderadas almas ainda jovens; saciou-se de todos os prazeres, satisfez todas as vaidades.

    As mulheres lhe sorriram, os homens o festejaram; teve amantes, luxo, e atessa glria efmera, aurola passageira que brilha algumas horas para aqueles quepelos seus vcios e pelas suas extravagncias excitam um momento a curiosidadepblica.

    Felizmente, como quase sempre sucede, no meio das sensaes materiais, aalma se conservara pura; envolta ainda na sua virgindade primitiva, dormira todo otempo em que a vida parecia ter-se concentrado nos sentidos e s despertouquando, fatigado pelos excessos do prazer, gasto pelas emoes repetidas de umaexistncia desregrada, o moo sentiu o tdio e o aborrecimento, que a ltima fasedessa embriaguez do esprito.

    Tudo que at ento lhe parecera cor-de-rosa tornou-se inspido e montono,todas essas mulheres que cortejara, todas essas loucuras que o excitaram, todoesse luxo que o fascinara, causavam-lhe repugnncia; faltava-lhe um quer que seja,sentiu um vcuo imenso; ele, que antes no podia viver seno em sociedade e nobulcio do mundo, procurava a solido.

    Uma circunstncia bem simples modificou a sua existncia. Levantou-se um dia depois de uma noite de insnia, em que todas asrecordaes de sua vida desregrada, todas as imagens das mulheres que o haviamseduzido perpassaram como fantasmas pela sua imaginao, atirando-lhe umsorriso de zombaria e de escrnio.

    Abriu a janela para aspirar o ar puro e fresco da manh, que vinha rompendo.Da a pouco o sino da igrejinha da Glria comeou a repicar alegremente;

    esse toque argentino, essa voz prazenteira do sino, causou-lhe uma impressoagradvel Vieram-lhe tentaes de ir missa.

    A manh estava lindssima, o cu azul e o sol brilhante; quando no fosse poresprito de religiosidade excitava-o a idia de um belo passeio a um dos lugaresmais pitorescos da cidade.

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    CAPTULO II

    Alguns instantes depois Jorge subia a ladeira e entrava na igreja.A modesta simplicidade do templo imps-lhe respeito; ajoelhou; no rezou,

    porque no sabia, mas lembrou-se de Deus e elevou o seu esprito desde a misriado homem at a grandeza do Criador.

    Quando se ergueu, parecia-lhe que se tinha libertado de uma opresso que ofatigava; sentia um bem-estar, uma tranquilidade de esprito indefinvel.

    Nesse momento viu ajoelhada ao p da grade que separa a capela, umamenina de quinze anos, quando muito: o perfil suave e delicado, os longos clios quevendavam seus olhos negros e brilhantes, as tranas que realavam a sua frontepura, o impressionaram.

    Comeou a contemplar aquela menina como se fosse uma santa; e, quandoela se levantou para retirar-se com sua me, seguiu-a insensivelmente at a casaque j lhe descrevi porque esta moa era a mesma de que lhe falei, e sua me D.Maria.

    Escuso contar-lhe o que se passou depois. Quem no sabe a histria simplese eterna de um amor inocente, que comea por um olhar, passa ao sorriso, chega aoaperto de mo s escondidas e acaba afinal por um beijo e por um sim, palavrassinnimas no dicionrio do corao?

    Dois meses depois desse dia comeou aquela visita ao cair da tarde, aquelaconversa sombra das rvores, aquele sero de famlia, aquela doce intimidade deum amor puro e tranquilo. Jorge esperava apenas esquecer de todo a sua vida passada, apagarcompletamente os vestgios desses tempos de loucura, para casar-se com aquelamenina e dar-lhe a sua alma pura e sem mancha.

    J no era o mesmo homem: simples nos seus hbitos e na sua existncia,ningum diria que algum tempo ele tinha gozado de todas as voluptuosidades doluxo; parecia um moo pobre e modesto, vivendo do seu trabalho e ignorandointeiramente os cmodos da riqueza.

    Como o amor purifica, D...! Como d foras para vencer instintos e vcioscontra os quais a razo, a amizade e os seus conselhos severos foram impotentes efracos!

    Creia que se algum dia me metesse a estudar as altas questes sociais quepreocupam os grandes polticos, havia de cogitar alguma coisa sobre essa forainvencvel do mais nobre dos sentimentos humanos.

    No h a um sistema engenhoso que pretende regenerar o homempervertido, fazendo-lhe germinar o arrependimento por meio da pena edespertando-lhe os bons instintos pelo isolamento e pelo silncio?

    Por que razo h de procurar-se aquilo que contra a natureza edesprezar-se o germe que Deus deu ao corao do homem para regener-lo epurific-lo?

    Perdo, minha prima; no zombe das minhas utopias sociais; desculpe-meesta distrao; volto ao que sou simples e fiel narrador de uma pequena histria.

    Em amor, dois meses depressa se passam; os dias so momentosagradveis e as horas flores que os amantes desfolham sorrindo.

    Por fim chegou a vspera do casamento que se devia fazer simplesmente emcasa, na presena de um ou dois amigos; o moo, fatigado dos prazeres ruidosos,fazia agora de sua felicidade um mistrio.

    Nenhum dos seus conhecidos sabia de seus projetos; ocultava o seu tesouro,

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    com medo que lho roubassem; escondia a flor do sentimento que tinha dentrod'alma, receando que o bafejo do mundo onde vivera a viesse crestar.

    A noite passou-se simplesmente como as outras; apenas notava-se em D.Maria uma atividade que no lhe era habitual.

    A boa senhora, que exigira como condio que seus dois filhos ficassemmorando com ela para alegrarem a sua solido e a sua viuvez, temia que algumacoisa faltasse festa simples e ntima que devia ter lugar no dia seguinte.

    De vez em quando erguia-se e ia ver se tudo estava em ordem, se no haviaesquecido alguma coisa; e parecia-lhe que voltava aos primeiros anos da suainfncia, repassando na memria esse dia, que uma mulher no esquece nunca. Nele se passa o maior acontecimento de sua vida; ou realiza-se um sonho deventura, ou murcha para sempre uma esperana querida que se guarda no fundo docorao; pode ser o dia da felicidade ou da desgraa, mas sempre uma datanotvel no livro da vida.

    No momento da partida, quando Jorge se levantou, D.Maria, quecompreendia o que essas duas almas tinham necessidade de dizer-se mutuamente,retirou-se. Os dois amantes apertaram-se as mos e olharam-se com um desses olhareslongos, fixos e ardentes que parecem embeber a alma nos seus raios lmpidos ebrilhantes.

    Tinham tanta coisa a dizer e no proferiram uma palavra; foi s depois de umcomprido silncio que Jorge murmurou quase imperceptivelmente:

    Amanh...

    Carolina sorriu, enrubescendo; aquele amanh exprimia a felicidade, arealizao desse belo sonho cor-de-rosa que havia durado dois meses; a linda einocente menina, que amava com toda a pureza de sua alma, no tinha outraresposta.

    Sorriu e corou.Jorge desceu lentamente a ladeira e, ao quebrar a rua, voltou-se ainda uma

    vez para lanar um olhar casa.Uma luz brilhava nas trevas entre as cortinas do quarto de sua noiva; era a

    estrela do seu amor, que brevemente devia transformar-se em Lua-de-mel.

    CAPTULO III

    Deve fazer uma idia, minha prima, do que ser a vspera do casamentopara um homem que ama.

    A alma, a vida, pousa no umbral dessa nova existncia que se abre e dalana um volver para o passado e procura devassar o futuro.

    Aqum a liberdade, a iseno, a tranqilidade de esprito, que se despedemdo homem; alm a famlia, os gozos ntimos, o lar domstico, esse santurio dasverdadeiras felicidades do mundo que acenam de longe.

    No meio de tudo isto, a dvida e a incerteza, essas inimigas dos prazereshumanos, vm agitar o esprito e toldar o cu brilhante das esperanas que sorriem. O futuro valer o passado?

    E nessa questo louca e insensata debate-se o pensamento, como se aprudncia e sabedoria humana pudessem dar-lhe uma soluo, como se os clculos

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    da providncia fossem capazes de resolver o problema. isto pouco mais ou menos o que se passava no esprito de Jorge, quando

    caminhava pela praia da Glria, seguindo o caminho de sua casa.Davam dez horas no momento em que o moo chegava rua de

    Matacavalos, porta de um pequeno sobrado, onde habitava, depois da sua retiradado mundo.

    Ao entrar, o escravo preveniu-lhe que uma pessoa o esperava no seugabinete; o moo subiu apressadamente e dirigiu-se ao lugar indicado.

    A pessoa que lhe fazia essa visita fora de horas era seu antigo tutor, o amigode seu pai, a quem por algum tempo substituiu com a sua amizade sincera everdadeira.

    O senhor Almeida era um velho de tmpera antiga, como se dizia h algumtempo a esta parte; os anos haviam aumentado a gravidade natural de suafisionomia.

    Conservava ainda toda a energia do carter, que se revelava na vivacidadedo olhar e no porte firme de sua cabea calva.

    A sua visita a estas horas... disse o moo, entrando. Admira-o? perguntou o senhor Almeida. Certamente; no porque isto no me d prazer; mas acho extraordinrio. E com efeito o ; o que me trouxe aqui no foi o simples desejo de

    fazer-lhe uma visita. Ento houve um motivo imperioso? Bem imperioso.

    Neste caso, disse o moo, diga-me de que se trata, senhor Almeida; estoupronto a ouvi-lo.

    O velho tomou uma cadeira, sentou-se mesa que havia no centro dogabinete e, aproximando um pouco de si o candeeiro que esclarecia o aposento,tirou do bolso uma dessas grandes carteiras de couro da Rssia, que colocoudefronte de si.

    O moo, preocupado por este ar grave e solene, sentou-se em face e esperoucom inquietao a decifrao do enigma.

    Chegando a casa h pouco, entregaram-me uma carta sua, em que meparticipava o seu casamento.

    No o aprova? Perguntou o moo inquieto. Ao contrrio, julgo que d um passo acertado ; e com prazer que aceito o

    convite que me fez de assistir a ele. Obrigado, senhor Almeida.

    No isto, porm, que me trouxe aqui ; escute-me.

    O velho recostou-se na cadeira e, fitando os olhos no moo, considerou-o ummomento, como quem procurava a palavra por que devia continuar a conversa.

    Meu amigo, disse o senhor Almeida, h cinco anos que seu pai faleceu. Trata-se de mim ento? Perguntou Jorge, cada vez mais inquieto. Do senhor e s do senhor. Mas o que sucedeu? Deixe-me continuar. H cinco anos que seu pai faleceu; e h trs que,

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    tendo o senhor completado a sua maioridade, eu, a quem o meu melhor amigohavia, confiado a sorte de seu filho, entreguei-lhe toda a sua herana, queadministrei durante dois anos com o zelo que me foi possvel.

    Diga antes com uma inteligncia e uma nobreza bem raras nos tempos dehoje.

    No houve nada de louvvel no que pratiquei; cumpri apenas o meu dever dehomem honesto e a promessa que fiz a um amigo.

    A sua modstia pode ser dessa opinio; porm a minha amizade e o meureconhecimento pensam diversamente.

    Perdo; no percamos tempo em cumprimentos. A fortuna que lhe deixaraseu pai e que ele ajuntara durante trinta anos de trabalho e de privaes, consistiaem cem aplices e na sua casa comercial, que representava um capital igual, aindamesmo depois de pagas as dvidas. Sim, senhor, graas sua inteligente administrao, achava-me possuidorde duzentos contos de ris, a que dei bem mau emprego, confesso.

    No desejo fazer-lhe exprobraes; o senhor no mais meu pupilo, umhomem; j no lhe posso falar com autoridade de um segundo pai, massimplesmente com a confiana de um velho amigo.

    Mas um amigo que me merecer sempre o maior respeito. Infelizmente o senhor no tem dado provas disto; durante perto de um ano

    acompanhei-o como uma, sombra, importunei-o com os meus conselhos, abusei dosmeus direitos de amigo de seu pai e tudo isto foi debalde.

    verdade, disse o moo, abaixando tristemente a cabea, para vergonhaminha verdade!

    A vida elegante o atraa, a ociosidade o fascinava; o senhor lanava pelajanela s mos cheias o ouro que seu pai havia ajuntado real a real.

    Basta; no me lembre esse tempo de loucura que eu desejava riscar daminha vida.

    Conheo que o incomodo; mas preciso. Durante este primeiro ano, emque ainda tive esperanas de o fazer voltar razo, no houve meio que noempregasse, no houve estratagema de que no lanasse mo. Responda-me, no exato?

    Alguma vez o neguei? Diga-me do fundo da sua conscincia: julga que um pai no desespero

    podia fazer mais por um filho do que eu fiz pelo senhor? Juro que no! disse Jorge, estendendo a mo.

    Pois bem, agora preciso que lhe diga tudo. Tudo?... Sim; ainda no conclu. Os seus desvarios de trs anos arruinaram a sua

    fortuna. Eu o sei. As suas aplices voaram umas aps outras e foram consumidas em

    jantares, prazeres e jogos. Resta-me, porm, a minha casa comercial. Resta-lhe, continuou o velho, carregando sobre esta palavra, a sua casacomercial, mas trs anos de m administrao deviam naturalmente ter infludo noestado dessa casa.

    Parece-me que no.

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    Sou negociante e sei o que o comrcio. Depois que o vi finalmente voltar vida regrada, quis ocupar-me de novo dos seus negcios; indaguei, informei-me eontem terminei o exame da sua escriturao, que obtive de seus caixeiros quaseque por um abuso de confiana. O resultado tenho-o aqui.

    O velho pousou a mo sobre a carteira.

    E ento? Perguntou Jorge com ansiedade.

    O senhor Almeida, fitando no moo um olhar severo, respondeu lentamente sua pergunta inquieta:

    O senhor est pobre!

    CAPTULO IV

    Para um homem habituado aos cmodos da vida, a essa existncia da genterica, que tem a chave de ouro que abre todas as portas, o talism que vence todosos impossveis, essa palavra pobre a desgraa, mais do que a desgraa, umafatalidade.

    A misria com o seu cortejo de privaes e de desgostos, a humilhao deuma posio decada, a terrvel necessidade de aceitar, seno a caridade, ao menosa benevolncia alheia, tudo isto desenhou-se com as cores mais carregadas noesprito do moo simples palavra que seu tutor acabava de pronunciar.

    Contudo, como j se havia de alguma maneira preparado para uma vidalaboriosa pelo tdio que lhe deixaram os seus anos de loucura, aceitou com umaespcie de resignao o castigo que lhe dava a Providncia.

    Estou pobre, disse ele, respondendo ao senhor Almeida, no importa; soumoo, trabalharei e, como meu pai, hei de fazer fortuna.

    O velho abanou a cabea com uma certa ironia misturada de tristeza.

    O senhor duvida? O meu passado d-lhe direito para isso; mas um dia lheprovarei o contrrio e lhe mostrarei que mereo a sua estima.

    Esta promessa ma restitui toda. Mas que conta fazer? No sei; a noite me h de inspirar. Liquidarei esse pouco que me resta... Esse pouco que lhe resta?

    Sim. No me compreendeu ento; disse-lhe que estava pobre; no lhe resta

    seno a misria e... E... balbuciou o moo, plido e com a alma suspensa aos lbios do velho,

    cuja voz tinha tomado uma entonao solene ao pronunciar aquele monosslabo. E as dvidas de seu pai, articulou o senhor Almeida no mesmo tom.

    Jorge deixou-se cair sobre a cadeira com desnimo; este ltimo golpe oprostrara; a sua energia no resistia.

    O velho cuja inteno real era impossvel de adivinhar, porque s vezestornava-se benvolo como um amigo e outras severo como um juiz, encarou-o por

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    algum tempo com uma dureza de olhar inexprimvel:

    Assim, disse ele, eis um filho que herdou um nome sem mancha e umafortuna de duzentos contos de ris; e que, depois de ter lanado ao p das ruas asgotas de suor da fronte de seu pai amassadas durante trinta anos, atira ao desprezo,ao escrnio e irriso pblica esse nome sagrado, esse nome que toda a praa doRio de Janeiro respeitava como o smbolo da honradez. Diga-me que ttulo mereceeste filho?

    O de um miservel e de um infame, disse Jorge, levantando a cabea: eu osou! Mas a memria de meu pai, que eu venero, no pode ser manchada pelos atosde um mau filho.

    O senhor bem mostra que no negociante. No preciso ser negociante para compreender o que a honra e a

    probidade, senhor Almeida. Mas preciso ser negociante para compreender at que ponto obriga a

    honra e a probidade de um negociante. Seu pai devia; em vez de saldar essasobrigaes com a riqueza que lhe deixou, consumiu-a em prazeres; no dia em que onome daquele que sempre fez honra sua firma for declarado falido, a sua memriaest desonrada.

    O senhor severo demais, senhor Almeida. Oh! no discutamos; penso desta maneira; no sou rico, mas procurarei

    salvar o nome de meu amigo da desonra que seu filho lanou sobre ele. E o que me tocar a mim ento? Ao senhor, disse o velho, erguendo-se, fica-lhe a misria, a vergonha, o

    remorso, e, talvez mais tarde, o arrependimento.

    A angstia e o desespero que se pintavam nas feies de Jorge tocavamquase alucinao e ao desvario; s vezes era como uma atonia que lhe paralisavaa circulao, outras tinha mpetos de fechar os olhos e atirar a matria contra amatria, para ver se neste embate a dor fsica, a anulao do esprito, moderavam oprofundo sofrimento que torturava sua alma.

    Por fim uma idia sinistra passou-lhe pela mente e agarrou-se a ela como umnufrago a um destroo de seu navio; o desespero tem dessas coincidncias; umpensamento louco s vezes um blsamo consolador, que, se no cura, adormeceo padecimento.

    O moo ficou de todo calmo; mas era essa calma sinistra que se assemelhaao silncio que precede as grandes tempestades.

    Tudo isto se passou num momento, enquanto o senhor Almeida, com o seusorriso irnico, abotoava at a gola da sua sobre casaca, dispondo-se a sair.

    Estamos entendidos, senhor; pode mandar debitar-me nos seus livrospelas dvidas de seu pai. Boa noite. Adeus, senhor.

    O velho saiu direito e firme como um homem no vigor da idade.Jorge escutou o som de suas passadas, que ecoaram surdamente no soalho, at omomento em que a porta da casa se fechou.

    Ento curvou a cabea sobre o brao, apoiado ao umbral da janela, e chorou.Quando um homem chora, minha prima, a dor adquire um quer que seja de suave,uma voluptuosidade inexprimvel; sofre-se, mas sente-se quase uma consolao em

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    sofrer.Vs, mulheres, que chorais a todo o momento, e cujas lgrimas so apenas

    um sinal de vossa fraqueza, no conheceis esse sublime requinte da alma que senteum alvio em deixar-se vencer pela dor; no compreendeis como triste uma lgrimanos olhos de um homem.

    CAPTULO V

    Uma hora seguramente se passara depois da sada do velho.O relgio de uma das torres da cidade dava duas horas.Jorge conservou-se na mesma posio; imvel com a cabea apoiada sobre

    o brao, apenas se lhe percebia o abalo que produzia de vez em quando um soluoque o orgulho do homem reprimia, corno que para ocultar de si mesmo a suafraqueza.

    Depois nem isto; ficou inteiramente calmo, ergueu a cabea e comeou apassear pelo aposento: a dor tinha dado lugar reflexo; e ele podia enfim lanarum olhar sobre o passado, e medir toda a profundeza do abismo em que iaprecipitar-se.

    Havia apenas duas horas que a felicidade lhe sorria com todas as suas coresbrilhantes, que ele via o futuro atravs de um prisma fascinador; e poucos instantestinham bastado para transformar tudo isto em uma misria cheia de vergonha e deremorsos.

    As oscilaes da pndula, que na vspera respondiam alegremente spalpitaes de seu corao, a bater com a esperana da ventura, ressoavam agoratristemente, como os dobres montonos de uma campa, tocando pelos mortos.

    Mas no era o pensamento dessa desgraa irreparvel, imensa, que tanto oafligia; os espritos fortes, como o seu, tm para as grandes dores um granderemdio, a resignao. A pobreza no o acobardava; a desonra, no a temia; o que dilacerava agoraa sua alma era um pensamento cruel, uma lembrana terrvel:

    Carolina!...

    A pobre menina, que o amava, que dormia tranqilamente embalada poralgum sonho prazenteiro, que esperava com a inocncia de um anjo e a paixo deuma mulher a hora dessa ventura suprema de duas almas a confundirem-se nummesmo beijo!

    Podia, ele, desgraado, miservel, escarnecido, iludir ainda por um dia essecorao e ligar essa vida de inocncia e de flores existncia de um homemperdido?

    No: seria um crime, uma infmia, que a nobreza de sua alma repelia;sentia-se bastante desgraado, verdade, mas essa desgraa era o resultado deuma falta, de uma bem grave falta, mas no de um ato vergonhoso.

    O seu casamento, pois, no podia mais efetuar-se; o seu dever, a sualealdade, exigiam que confessasse a D. Maria e sua filha as razes que tornavamimpossvel esta unio.

    Sentou-se mesa e comeou a escrever com uma espcie de delrio umacarta me de Carolina; mas, apenas havia traado algumas linhas, a pena estacousobre o papel.

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    Seria mat-la! balbuciou ele.

    Outra idia lhe viera ao esprito; lembrou-se de que no estado a que tinhamchegado as coisas, essa ruptura havia de necessariamente prejudicar a reputaode sua noiva.

    Ele seria causa de que se concebesse uma suspeita sobre a pureza dessamenina, que havia respeitado como sua irm, embora a amasse com uma paixoardente; e este s pensamento paralisara a sua mo sobre o papel.

    Recordou-se de que D. Maria um dia lhe havia dito:

    Jorge, a confiana que tenho na sua lealdade tal que entreguei minhafilha antes de pertencer-lhe. Lembre-se de que se o senhor mudasse de idia,embora ela esteja pura como um anjo, o mundo a julgaria uma moa iludida. Esperoque respeite em sua noiva a sua futura mulher.

    E o moo reconhecia quanto D. Maria tinha razo; lembrava-se, no tempo dasua vida brilhante, que comentrios no faziam seus amigos sobre um casamentorompido s vezes por motivo o mais simples.

    Deixar pesar a sombra de uma suspeita sobre a pureza de Carolina, era coisaque o seu esprito nem se animava a conceber; mas iludir a pobre menina,arrastando-a a um casamento desgraado, era uma infmia.

    Durante muito tempo o seu pensamento debateu-se nesta alternativa terrvel,at que uma idia consoladora veio restituir-lhe a calma.

    Tinha achado um meio de tudo conciliar; um meio de satisfazer ao sentimentodo seu corao e aos prejuzos do mundo.

    Qual era este meio? Ele o guardou consigo e o concentrou o fundo d'alma;apenas um triste sorriso dizia que ele o havia achado e que sobre a dor profundaque enchia o corao, ainda pairava um sopro consolador.

    Toda a noite se passou nesta luta ntima.De manh o moo saiu e foi ver Carolina, para receber um sorriso que lhe

    desse foras de resistir ao sofrimento.A menina na sua ingnua afeio apercebeu-se da palidez do moo, mas

    atribuiu-a a um motivo bem diverso do que era realmente.

    No dormiste, Jorge? perguntou ela. No. Nem eu! disse, corando.

    Ela cuidava que era s a felicidade que trazia essas noites brancas, quedeviam depois dourar-se aos raios do amor.

    Como se enganava!De volta, Jorge disps tudo que era necessrio para seu casamento e

    fechou-se no seu quarto at tarde.

    CAPTULO VI

    Quatro pessoas se achavam reunidas na sala da casa de D. Maria.O senhor Almeida, sempre grave e sisudo, conversava no vo de uma janela

    com um outro velho, militar reformado, cuja nica ocupao era dar um passeio

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    tarde e jogar o seu voltarete.O honrado negociante estava vestido em traje de cerimnia e machucava na

    mo esquerda um par de luvas de pelica branca, indcio certo de alguma grandesolenidade, como casamento ou batizado.

    Os dois conversavam sobre o projeto do desmoronamento do morro doCastelo, projeto que julgavam devia estender-se todos os morros da cidade; era umponto este em que o reumatismo do senhor Almeida e uma antiga ferida do militarreformado se achavam perfeitamente de acordo. As outras duas pessoas eram um sacerdote respeitvel e uma encantadoramenina, que esperavam sentados no sof, a chegada de Jorge.

    Quando ser o seu dia? dizia, sorrindo, o padre. coisa em que nem penso! respondia a moa, com um gracioso gesto de

    desdm. Ande l! H de pensar sempre alguma vez.

    Pois no!

    E, dizendo isto, a menina suspirava, minha prima, como suspiram todas asmulheres em dia de casamento: umas desejando, outras lembrando-se e muitasarrependendo-se.

    A um lado da sala estava armado um oratrio simples; um Cristo, algunscrios e dois ramos de flores bastavam religio do amor, que tem as galas e aspompas do corao.

    Jorge chegou s cinco horas e alguns minutos.O senhor Almeida apertou-lhe a mo com a mesma impassibilidade

    costumada, como se nada se tivesse passado entre eles na vspera.Um observador, porm, teria reparado no olhar perscrutador que o negociante

    lanou ao moo, como procurando ler-lhe na fisionomia um pensamento oculto.O padre revestiu-se dos seus hbitos sacerdotais; e Carolina apareceu na

    porta da sala guiada por sua me.Dizem que h um momento em que toda mulher bela, em que um reflexo

    ilumina o seu rosto e d-lhe esse brilho que fascina; os franceses chamam a isto... labeaut du diable.

    H tambm um momento em que as mulheres belas so anjos, em que oamor casto e puro lhes d uma expresso divina; eu, bem ou mal, chamo a isto... abeleza do cu.

    Carolina estava em um desses momentos; a felicidade que irradiava no seusemblante, o rubor de suas faces, o sorriso que adejava nos seus lbios, como onncio desse monosslabo que ia resumir todo o seu amor, davam-lhe uma graafeiticeira.

    Envolta nas suas roupas alvas, no seu vu transparente preso coroa deflores de laranjeira, os seus olhos negros cintilavam com um fulgor brilhante entreaquela nuvem difana de rendas e sedas.

    Jorge adiantou-se plido, mas calmo, e, tomando a mo de sua noiva,ajoelhou-se com ela aos ps do sacerdote.

    A cerimnia comeou.No momento em que o padre disse a pergunta solene, essa pergunta que

    prende toda a vida, o moo estremeceu, fez um esforo e quase imperceptivelmenterespondeu. Carolina, porm, abaixando os olhos e corando, sentiu que toda a suaalma vinha pousar-lhe nos lbios com essa doce palavra;

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    Sim! murmurou ela.

    A bno nupcial, a bno de Deus, desceu sobre essas duas almas, que seligavam e se confundiam.

    Pouco depois desapareceram os adornos de cerimnia e na sala ficaramapenas algumas pessoas que festejavam em uma reunio de amigos e de famlia afelicidade de dois coraes.

    Jorge s vezes esforava-se por sorrir; mas esse sorriso no iludia sua noiva,cujo olhar inquieto se fitava no seu semblante.

    Entretanto a alegria de D. Maria era to expansiva; o velho militar contavaanedotas to desengraadas e to chilras, que todos eram obrigados a rir e a semostrar satisfeitos.

    Jorge, mesmo fora de vontade, conseguiu dar ao seu rosto uma expressoalegre, que desvaneceu em parte a inquietao de Carolina.

    Contudo havia nessa reunio uma pessoa a quem o moo no podiaesconder o que se passava na sua alma, e que lia, no seu rosto como um livroaberto.

    Era o senhor Almeida, que s vezes se tornava pensativo como secombinasse alguma idia que comeava, a esclarecer-lhe o esprito; sabia que a suapresena era naquele momento uma tortura para Jorge, mas no se resolvia aretirar-se.

    Deram dez horas, termo sacramental das visitas de famlia ; passar alm, s permitido aos amigos ntimos; verdade que os namorados, os maantes e osjogadores de voltarete costumam usurpar este direito.

    Todas as pessoas levantaram-se, pois, e dispuseram-se a retirar-se.O negociante, tomando Jorge pelo brao, afastou-se um pouco.

    Estimei, disse ele, que a nossa conversa de ontem no influsse sobre asua resoluo.

    O moo estremeceu.

    Era uma coisa a que estava obrigada a minha honra, mas...

    O senhor Almeida esperou a palavra, que no caiu dos lbios de Jorge. Omoo tinha empalidecido.

    Mas?... insistiu ele. Queria dizer que no sou to culpado como o senhor pensa; talvez breve

    tenha a prova.

    O negociante sorriu.

    Boa noite, senhor Jorge.

    O moo cumprimentou-o friamente.As outras visitas tinham sado e D. Maria, sorrindo sua filha, retirou-se com

    ela.

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    CAPTULO VII

    Eram onze horas da noite. Toda a casa estava em silncio.

    Algumas luzes esclareciam ainda uma das salas interiores, que fazia parte doaposento que D. Maria destinara a seus dois filhos.

    Jorge, em p no meio desta sala, de braos cruzados, fitava um olhar deprofunda angstia em uma porta envidraada atravs da qual se viam suavementeesclarecidas as alvas sanefas da cortina.

    Era a porta do quarto de sua noiva. Duas ou trs vezes dera um passo para dirigir-se quela porta e hesitara;temia profanar o santurio da virgindade; julgava-se indigno de penetrar naqueletemplo sagrado de um amor puro e casto.

    Finalmente tentou um esforo supremo; revestiu-se de toda a sua coragem eatravessou a sala com um passo firme, mas lento e surdo.

    A porta estava apenas cerrada; tocando-a com a sua mo trmula, o mooabriu uma fresta e correu o olhar pelo aposento.

    Era um elegante gabinete forrado com um lindo papel de cor azul-celeste,tapeado de l de cores mortas; das janelas pendiam alvas bambinelas de cassa,suspensas s lanas douradas.

    A moblia era to simples e to elegante como o aposento: dois consolos demrmore, uma conversadeira, algumas cadeiras e o leito nupcial, que se envolvianas longas e alvas cortinas, como uma virgem no seu vu de castidade.

    Era, pois, um ninho de amor este gabinete, em que o bom gosto, a elegnciae a singeleza tinham imprimido um cunho de graa e distino que bem revelavaque a mo do artista fora dirigida pela inspirao de uma mulher.

    Carolina estava sentada a um canto da conversadeira, a alguns passos doleito, no vo das duas janelas; tinha a cabea descansada sobre o recosto e osolhos fitos na porta da sala.

    A menina trajava apenas um alvo roupo de cambraia atacado por alamaresfeitos de laos de fita cor de palha; o talhe do vestido, abrindo-se desde a cintura,deixava-se entrever o seio delicado, mal encoberto por um ligeiro vu de rendafinssima.

    A indolente posio que tomara fazia sobressair toda a graa do seu corpo edesenhava as voluptuosas ondulaes dessas formas encantadoras, cuja mimosacarnao percebia-se sob a transparncia da cambraia.

    Seus longos cabelos castanhos de reflexos dourados, presosnegligentemente, deixavam cair alguns anis que se espreguiavam languidamentesobre o colo aveludado, como se sentissem o xtase desse contato lascivo.

    Descansava sobre uma almofada de veludo a ponta de um pezinho delicado,que rocegando a orla do seu roupo, deixava admirar a curva graciosa que se perdiana sombra.

    Um sorriso, ou antes um enlevo, frisava os lbios entreabertos; os olhos fixosna porta vendavam-se s vezes com os seus longos clios de seda, que,cerrando-se, davam uma expresso ainda mais lnguida ao seu rosto.

    Foi em um desses momentos que Jorge entreabriu a porta e olhou: nunca viraa sua noiva to bela, to cheia de encanto e de seduo.

    E entretanto ele, seu marido, seu amante, que ela esperava, ele, que tinha afelicidade ali, junto de si, sorriu amargamente como se lhe houvessem enterrado umpunhal no corao.

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    Abriu a porta e entrou. A moa teve um leve sobressalto; e, dando com os olhos no seu amante,ergueu-se um pouco sobre a conversadeira, tanto quanto bastou para tomar-lhe asmos e engolfar-se nos seus olhares.

    Que muda e santa linguagem no falavam essas duas almas, embebendo-seuma na outra! Que delcia e que felicidade no havia nessa mtua transmisso devida entre dois coraes que palpitavam um pelo outro!

    Assim ficaram tempo esquecido; ambos viviam uma mesma vida, que secomunicava pelo fluido do olhar e pelo contato das mos; pouco a pouco as suascabeas se aproximaram, os seus hlitos se confundiram, os lbios iam tocar-se,Jorge afastou-se de repente, como se sentisse sobre a sua boca um ferro em brasa;desprendeu as mos e sentou-se plido e lvido como um morto.

    A menina no reparou na palidez de seu marido; toda entregue ao amor, notinha outro pensamento, outra idia.

    Deixou cair a cabea sobre o ombro de Jorge; e, sentindo as palpitaes doseu corao sobre o seio, achava-se feliz, como se ele lhe falasse, a olhasse e lhesorrisse. Foi s quando o moo, erguendo docemente a fronte da menina, a deps sobre orecosto da almofada, que Carolina olhou seu amante com surpresa e viu que algumacoisa se passava de extraordinrio.

    Jorge, disse ela com a voz trmula e cheia de angstias, tu no me amas. No te amo! exclamou o moo tristemente; se tu soubesses de que

    sacrifcios capaz o amor que te tenho!... Oh! no, continuou a moa, abanando a cabea ; tu no me amas! Vi-te

    todo o dia triste; pensei que era a felicidade que te fazia srio, mas enganei-me. No te enganaste, no, Carolina, era a tua felicidade que me entristecia. Pois ento saibas que a minha felicidade est em te ver sorrir. Vamos, no

    me ames hoje menos do que me amavas h dois meses! H dois momentos, Carolina, em que o amor mais do que uma paixo,

    uma loucura; o momento em que se possui ou aquele em que se perde o objetoque se ama.

    A menina corou e abaixou os olhos sobre o tapete.

    Dize-me, tornou ela para disfarar a sua confuso, o que sentiste hoje nomomento em que as nossas duas mos se uniram sob a bno do padre?

    Jorge estremeceu e ia soltar uma palavra que reteve; depois disse com algumesforo:

    A felicidade, Carolina. Pois eu senti mais do que a felicidade; quando nossas mos se uniam

    tantas vezes e que ns conversvamos horas e horas, eu era bem feliz; mas hojequando ajoelhamos, no sei o que se passou em mim; parecia-me que tudo tinhadesaparecido, tu, eu, o padre, minha me e que s havia ali duas mos que setocavam, e nas quais ns vivamos!

    O moo voltou o rosto para esconder uma lgrima.

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    Vem c, continuou a moa, deixa-me apertar a tua mo; quero ver se sintooutra vez o que senti. Ah! naquele momento parecia que nossas almas estavam tounidas uma outra que nada nos podia separar.

    A moa tomou as mos de Jorge e, descansando a cabea sobre o recostoda conversadeira, cerrou os olhos e assim ficou algum tempo.

    Como agora!... continuou ela, sorrindo. Se fecho os olhos, vejo-te a ondeests. Se escuto, ouo a tua voz. Se ponho a mo no corao, sinto-te!

    Jorge ergueu-se ; estava horrivelmente plido.Caminhou pelo gabinete agitado, quase louco; a moa o seguia com os olhos;

    sentia o corao cerrado; mas no compreendia.Por fim o moo chegou-se a um consolo sobre o qual havia uma garrafa de

    Chartreuse e dois pequenos copos de cristal. Sua noiva no percebeu o movimentorpido que ele fez, mas ficou extremamente admirada, vendo-o apresentar-lhe umdos clices cheio de licor.

    No gosto! disse a menina com gracioso enfado. No queres ento beber minha sade! Pois eu vou beber tua.

    Carolina ergueu-se vivamente e, tomando o clice, bebeu todo o licor. Ao nosso amor!

    Jorge sorriu tristemente.Dava uma hora da noite.

    CAPTULO VIII

    Jorge tomou as mos de sua mulher e beijou-as.

    Carolina! Meu amigo! Sabes o meu passado: j te contei todas as minhas loucuras e tu me

    perdoaste todas; preciso, porm, ainda do teu perdo para uma falta mais grave doque essas, para um crime talvez!

    Dize-me: esta falta faz que no me ames? perguntou a menina um poucoassustada.

    Ao contrrio, faz que te ame ainda mais, se possvel! exclamou o moo. Ento no uma falta, respondeu ela, sorrindo. Quando souberes! murmurou o moo, talvez me acuses. Tu no pensas no que ests dizendo, Jorge! replicou a moa sentida. Escuta: se eu te pedir uma coisa, no me negars? Pede e vers. Quero que me perdoes essa falta que tu ignoras! Causa-te prazer isto? Como tu no fazes. idia! disse o moo com um acento profundo. Pois bem; ests perdoado. No; no h de ser assim; de joelhos a teus ps.

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    E o moo ajoelhou-se diante de sua mulher.

    Criana! disse Carolina, sorrindo. Agora dize que me perdoas! Perdo-te e amo-te! respondeu ela, cingindo-lhe o pescoo com os braos e

    apertando a sua cabea contra o seio.

    Jorge ergueu-se calmo e sossegado; porm ainda mais plido.Carolina deixou-se cair sobre a conversadeira; suas plpebras cerravam-se a

    seu pesar; pouco depois tinha adormecido.O moo tomou-a nos braos e deitou-a sobre o leito, fechando as alvas

    cortinas; depois foi sentar-se na conversadeira e colocou o seu relgio sobre umabanquinha de charo.

    Assim, com a cabea apoiada sobre a mo e os olhos fitos nas pequenasagulhas de ao que se moviam sobre o mostrador branco, passou duas horas.

    Cada instante, cada oscilao, era um ano que fugia, um mundo depensamentos que se abismava no passado.

    Quando o ponteiro, devorando o ltimo minuto, marcou quatro horas justas,ele ergueu-se.

    Tirou do bolso uma carta volumosa e deitou-a sobre o consolo de mrmore. Abriu as cortinas do leito e contemplou Carolina, que dormia, sorrindo talvez imagem dele, que em sonho lhe aparecia.

    O moo inclinou-se e colheu com os lbios esse sorriso; era o seu beijonupcial.

    Tornou a fechar as cortinas e entrou na sala onde estivera a princpio, a abriuuma janela e saltou no jardim.

    Seguiu pela ladeira abaixo; a noite estava escura ainda; mas pouco faltavapara amanhecer.

    Debaixo da janela esclarecida do aposento de Carolina destacou-se um vultoque seguiu o moo a alguns passos de distncia.

    A pessoa, qualquer que ela fosse, no desejava ser conhecida; estavaenvolvida em uma capa escura e tinha o maior cuidado em abafar o som de suaspisadas.

    Jorge ganhou a rua da Lapa, seguiu pelo Passeio Pblico e dirigiu-se praiade Santa Luzia.

    O dia vinha comeando a raiar; e o moo, que temia ver esvaecerem-se assombras da noite antes de ter chegado ao lugar para onde se dirigia, apressava opasso.

    O vulto o acompanhava sempre a alguma distncia, tendo o cuidado decaminhar do lado do morro, onde a escurido era mais intensa.

    Quando Jorge chegou ao lugar onde hoje se eleva o hospital da Misericrdia,esse lindo edifcio que o Rio de Janeiro deve a Jos Clemente Pereira, o horizontese esclarecia com os primeiros clares da alvorada.

    Um espetculo majestoso se apresentava diante de seus olhos; aos toques daluz do sol parecia que essa baa magnfica se elevava do seio da natureza com osseus rochedos de granito, as suas encostas graciosas, as suas guas lmpidas eserenas. O moo deu apenas um olhar a esse belo panorama e continuou o seucaminho.

    O vulto que o seguia tinha desaparecido.

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    CAPTULO IX

    O Rio de Janeiro ainda se lembra da triste celebridade que, h dez anospassados, tinha adquirido o lugar onde est hoje construdo o hospital da SantaCasa.

    Houve um perodo em que quase todas as manhs os operriosencontravam em algum barranco ou entre os cmoros de pedra e de areia, ocadver de um homem que acabara de ptermo sua existncia.

    Outras vezes ouvia-se um tiro; os serventes corriam e apenas achavam umapistola ainda fumegante, um corpo inanimado e, sobre ele, alguma carta destinada aum amigo, a um filho, ou a uma esposa.

    Amantes infelizes, negociantes desgraados, pais de famlia carregados dedvidas, homens ricos cados na misria, quase todos a vinham, trazidos por umm irresistvel, por uma fascinao diablica.

    As Obras da Misericrdia, como chamavam ento este lugar, tinham a mesmareputao que o Arco das guas Livres de Lisboa e a Ponte Nova de Paris.

    Era o templo do suicdio, onde a fragilidade humana sacrificava emholocausto a esse dolo sanguinrio tantas vtimas arrancadas s suas famlias eaos seus amigos.

    Essa epidemia moral, que se agravava todos os dias, comeava j ainquietar alguns espritos refletidos, alguns homens pensadores, que viam comtristeza os progressos do mal.

    Procurava-se debalde a causa daquela aberrao fatal da natureza e no erapossvel explic-la.

    No tnhamos, como a Inglaterra, esse manto de chumbo, que pesa sobre acabea dos filhos da Gr-Bretanha; esse lenol de nvoa e de vapores, que osenvolve como uma mortalha.

    No tnhamos, como a Alemanha, o idealismo vago e fantstico, excitadopelas tradies da mdia idade e, modernamente, pelo romance de Goethe, que topoderosa influncia exerceu nas imaginaes jovens.

    Ao contrrio, o nosso cu, sempre azul, sorria queles que o contemplavam;a natureza brasileira, cheia de vigor e de seiva, cantava a todo o momento um hinosublime vida e ao prazer.

    O gnio brasileiro, vivo e alegre no meio dos vastos horizontes que ocercam, sente-se to livre, to grande, que no precisa elevar-se a essas regiesideais em que se perde o esprito alemo.

    Nada enfim explicava o fenmeno moral que se dava ento na populaodesta corte; mas todos o sentiam e alguns se impressionavam seriamente.

    Era fcil, pois, naquela poca, adivinhar o motivo que levava Jorge s quatrohoras da manh ao lugar onde se abriam os largos alicerces do grande hospital deSanta Luzia.

    O moo afastou-se da praia e desapareceu, por detrs de alguns montes deareia que se elevavam aqui e ali pelo campo.

    Meia hora depois ouviram-se dois tiros de pistola; os trabalhadores quevinham chegando para o servio, correram ao lugar donde partira o estrondo e viramsobre a areia o corpo de um homem, cujo rosto tinha sido completamentedesfigurado pela exploso da arma de fogo.

    Um dos guardas meteu a mo no bolso da sobrecasaca e achou uma carteira,contendo algumas notas pequenas, e uma carta apenas dobrada, que ele abriu eleu:

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    "Peo a quem achar o meu corpo o faa enterrar imediatamente, a fim depoupar minha mulher e aos meus amigos esse horrvel espetculo. Para issoachar na minha carteira o dinheiro que possuo."

    Jorge da Silva

    5 de setembro de 1844.

    Uma hora depois a autoridade competente chegou ao lugar do suicdio e,tomando conhecimento do fato, deu as providncias para que se cumprisse a ltimavontade do finado.

    O trabalho continuou entre as cantilenas montonas dos pretos e dosserventes, como se nada de extraordinrio se houvesse passado.

    CAPTULO X

    Cinco anos decorreram depois dos tristes acontecimentos que acabamos denarrar.

    Estamos na Praa do Comrcio.Naquele tempo no havia, como hoje, corretores e zanges, atravessadores,

    agiotas, vendedores de dividendos, roedores de cordas, emitidores de aes; todosesses tipos modernos, importados do estrangeiro e aperfeioados pelo talentonatural.

    Em compensao, porm, ali se faziam todas as transaes avultadas; a setratavam todos os negcios importantes com uma lisura e uma boa-f que se tornouproverbial praa do Rio de Janeiro.

    Eram trs horas da tarde.A praa ia fechar-se; os negcios do dia estavam concludos; e dentro das

    colunas que formam a entrada do edifcio, poucas pessoas ainda restavam.Entre estas notava-se um negociante, que passeava lentamente ao comprido

    do saguo, e que por momentos chegava-se calada e lanava um olhar pela ruaDireita.

    Era um moo que teria quando muito trinta anos, de alta estatura e de umporte elegante, primeira vista parecia estrangeiro.

    Tinha uma dessas feies graves e severas que impem respeito e inspiramao mesmo tempo a afeio e a simpatia. Sua barba, de um louro cinzento, cobria-lhetodo o rosto e disfarava os seus traos distintos.

    A fronte larga e reflexiva, um pouco curvada pelo hbito do trabalho e dameditao, e o seu olhar fixo e profundo, revelavam uma vontade calma, mas firme etenaz.

    A expresso de tristeza e ao mesmo tempo de resignao que respiravanessa fisionomia, devia traduzir a sua vida; ao menos fazia pressentir na suaexistncia o predomnio de uma necessidade imperiosa, de um dever, talvez de umafatalidade.

    Ningum na praa conhecia esse moo, que a aparecera havia pouco tempo;mas as suas maneiras eram to finas, os seus negcios to claros e sempre vista,as suas transaes to lisas, que os negociantes nem lhe perguntavam o seu nomepara aceitarem o objeto que ele lhes oferecia.

    Todas as pessoas j tinham partido e ficara apenas o moo, que sem dvida

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    esperava algum; entretanto, ou porque ainda no tivesse chegado a horaaprazada, ou porque j estivesse habituado a constranger-se, no dava o menorsinal de impacincia.

    Finalmente a pessoa esperada apontou na entrada da rua do Sabo eaproximou-se rapidamente.

    A senhora, que talvez tenha imaginado um personagem de grandeimportncia vai decerto sofrer uma decepo quando souber que o desconhecidoera apenas um mocinho de dezenove para vinte anos.

    Um observador ou um homem prtico, o que vale a mesma coisa,reconheceria nele primeira vista um desses virtuosido comrcio, como ento haviamuitos nesta boa cidade do Rio de Janeiro.

    A classificao nova e precisa uma explicao.A lei, a sociedade e a polcia esto no mau costume de exigir que cada

    homem tenha uma profisso; donde provm esta exigncia absurda no sei eu, maso fato que ela existe, contra a opinio de muita gente.

    Ora, no uma coisa to fcil, como se supe, o ter uma profisso. Apesardo novo progresso econmico da diviso do trabalho, que multiplicou infinitamenteas indstrias e, por conseguinte, as profisses, a questo ainda bem difcil deresolver para aqueles que no querem trabalhar.

    Ter uma profisso quando se trabalha, isto simples e natural, mas ter umaprofisso honesta e decente sem trabalhar, eis o sonho dourado de muita gente, eiso problema de Arquimedes para certos homens que seguem a religio do dolce farniente.

    O problema se resolveu simplesmente.H uma profisso, cujo nome to vago, to genrico, que pode abranger

    tudo. Falo da profisso de negociante.Quando um moo no quer abraar alguma profisso trabalhosa, diz-se

    negociante, isto , ocupado em tratar dos seus negcios.Um mao de papis na algibeira, meia hora de estao na Praa do

    Comrcio, ar atarefado, so as condies do ofcio.Mediante estas condies o nosso homem tido e havido como negociante;

    pode passear pela rua do Ouvidor, apresentar-se nos sales e nos teatros. Quando perguntarem quem este moo bem vestido, elegante, de maneirasto afveis, respondero um negociante.

    Eis o que eu chamo virtuosi do comrcio, isto , homens que cultivam aindstria mercantil por curiosidade, por simples desfastio, para ter uma profisso.

    tempo de voltar dessa longa digresso, que a senhora deve ter achadomuito aborrecida.

    O mocinho negociante, tendo chegado Praa do Comrcio, tomou o braoda pessoa que o esperava, dizendo-lhe:

    Est tudo arranjado. Seriamente? exclamou o outro moo, cujos olhos brilharam de alegria. Pois duvidas! Ento, amanh... Ao meio-dia. Obrigado! disse o moo, apertando a mo de seu companheiro com

    efuso. Obrigado, por qu? O que fiz vale a pena de agradecer? Ora, adeus! Vem

    jantar comigo.

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    No, acompanho-te at l; mas preciso estar s quatro horas em minhacasa.

    Os dois moos de brao dado dobraram o canto da rua Direita.

    CAPTULO XI

    Seguram pela rua do Ouvidor.

    No sei que interesse, dizia o nosso negociante, continuando a conversa;no sei que interesse tens tu, Carlos, em resgatares aquela letra!

    uma especulao que algum dia te explicarei, Henrique, e na qualespero ganhar.

    possvel, respondeu o outro, mas permitirs que duvide. Por qu? Ora, boa! uma letra de um homem j falecido, de uma firma falida!

    Aposto que no sabias disto?! No; no sabia! disse Carlos, sorrindo amargamente. Pois ento deixa contar-te a histria. Em outra ocasio. Por que no agora? Reduzo-te isto a duas palavras, visto que no ests

    disposto a escutar-me. Mas... Trata-se de um negociante rico, que faleceu, deixando ao filho coisa de

    300 contos de ris e algumas dvidas, na importncia de um tero dessa quantia. Ofilho gastou o dinheiro e deixou que protestassem as letras aceitas pelo pai, o qual,apesar de morto, foi declarado falido.

    Enquanto seu companheiro falava, Carlos se tinha tornado lvido; conhecia-seque uma emoo poderosa o dominava, apesar do esforo de vontade com queprocurava reprimi-la.

    E esse filho... o que fez? perguntou com voz trmula, O sujeito, depois de ter-se divertido larga, quando se viu pobre e

    desonrado, enfastiou-se da vida e fez viagem para o outro mundo. Suicidou-se? verdade; mas o interessante foi que na vspera de sua morte se tinha

    casado com uma menina lindssima. Conheces? Ora! quem no conhece a Viuvinha no Rio de Janeiro?

    a moa mais linda, a mais espirituosa e a mais coquette dos nossos sales.A conversa foi interrompida, os dois amigos caminharam por algum tempo

    sem trocarem palavra.Carlos ficara triste e pensativo; o seu rosto tinha neste momento uma

    expresso de dor e resignao que revelava um sofrimento profundo, mas habitual.Quanto ao seu companheiro, fumava o seu charuto, olhando para todas as

    vidraas de lojas por onde passava e apreciando essa exposio constante deobjetos de gosto, que j naquele tempo tornava a rua do Ouvidor o passeio habitual

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    dos curiosos.De repente soltou uma exclamao e apertou com fora o brao de seu

    amigo.

    O que ? perguntou este. Nada mais a propsito! Ainda h pouco falamos dela, e ei-la!

    Onde? exclamou Carlos, estremecendo. No a viste entrar na loja do Wallerstein? No; no vi ningum. Pois vers.

    Com efeito, uma moa vestida de preto, acompanhada por uma senhora jidosa, havia entrado na loja do Wallerstein.

    A velha nada tinha de notvel e que a distinguisse de uma outra qualquervelha; era uma boa senhora que fora jovem e bonita e que no sabia o que fazer dotempo que outrora levava a enfeitar-se.

    A moa, porm, era um tipo de beleza e de elegncia. As linhas do seu rostotinham uma pureza admirvel.

    Nos seus olhos negros e brilhantes radiava o esprito da mulher cheio devivacidade e de malcia. Nos seus lbios mimosos brincava um sorriso divino efascinador.

    Os cabelos castanhos, de reflexos dourados, coroavam sua fronte como umdiadema, do qual se escapavam dois anis, que deslizavam pelo seu colo soberbo.

    Trajava um vestido de cetim preto, simples e elegante; no tinha um ornato,nem uma flor, nem outro enfeite, que no fosse dessa cor triste, que ela pareciaamar.

    Essa extrema simplicidade era o maior realce da sua beleza deslumbrante.Uma jia, uma flor, um lao de fita, em vez de enfeit-la, ocultariam uma das milgraas e mil perfeies que a natureza se esmerara em criar nela.

    Os dois moos pararam porta do Wallerstein; enquanto seu amigo olhava amoa com o desplante dos homens do tom, Carlos, atravs da vidraa, contemplavacom um sentimento inexprimvel aquela graciosa apario.

    Os caixeiros do Wallerstein desdobraram sobre o balco todas as suas maisricas e mais delicadas novidades, todas as invenes do luxo parisiense, verdadeirodemnio tentador das mulheres. A cada um desses objetos de gosto, a cada uma das mimosas fantasias damoda, ela sorria com desdm e nem sequer as tocava com a sua alva mozinha,delicada como a de uma menina.

    As fascinaes do luxo, as bonitas palavras dos caixeiros e as instncias desua me, tudo foi baldado. Ela recusou tudo e contentou-se com um simples vestidopreto e algumas rendas da mesma cor, como se estivesse de luto, ou se preparassepara as festas da Semana Santa.

    Assim, depois de cinco anos, disse-lhe sua me em voz baixa, persistesem conservar este luto constante.

    A Viuvinha sorriu.

    No luto, minha me: gosto. Tenho paixo por esta cor; parece-me queela veste melhor que as outras.

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    No digas isto, Carolina; pois o azul desta seda no te assentaperfeitamente?

    J gostei do azul; hoje o aborreo! uma cor sem significao, uma cormorta. E o preto? Oh! O preto alegre! Alegre! exclamou um caixeiro, admirado dessa opinio original em matriade cor. Eu pelo menos o acho, replicou a moa, tomando de repente um ar srio: a cor que me sorri.

    Esta conversa durou ainda alguns minutos.Poucos instantes depois, as duas senhoras saram e o carro que as esperava

    porta desapareceu no fim da rua.Carlos despediu-se do seu companheiro.Ento amanh sem falta!

    Ah! Ainda insistes no negcio? Mais do que nunca! Bem. J que assim o queres... Posso contar contigo? Como sempre. Obrigado.

    Henrique continuou a arruar, fazendo horas para o jantar.Carlos dobrou a rua dos Ourives e dirigiu-se a casa. Morava em um pequeno

    sto de segundo andar no fim da rua da Misericrdia.

    CAPTULO XII

    A razo por que o moo, saindo da rua Direita, dera uma grande volta pararecolher-se no fora unicamente o desejo de acompanhar Henrique. Havia outromotivo mais srio.

    Ele ocultava a sua morada a todos; o que, alis lhe era fcil, porque depois dedois anos que estava no Rio de Janeiro no tinha amigos e bem poucos eram osseus conhecidos. Havia muito de ingls no seu trato. Quando fazia alguma transao oudiscutia um negcio, era de extrema polidez. Concluda a operao, cortejava onegociante e no o conhecia mais. O homem tornava-se para ele uma obrigao,um ttulo, uma letra de cmbio.

    De todas as pessoas que diariamente encontrava na praa, Henrique era onico com quem entretinha relaes e essas mesmas no passavam de simplescortesia.

    Entrando no seu aposento, Carlos fechou a porta de novo; e, sentando-se emum tamborete que havia perto da carteira, escondeu a fronte nas mos com umgesto de desespero.

    O aposento era de uma pobreza e nudez que pouco distava da misria. Entreas quatro paredes que compreendiam o espao de uma braa esclarecido por umajanela estreita, via-se a cama de lona pobremente vestida, uma mala de viagem, a

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    carteira e o tamborete.Nos umbrais da porta, dois ganchos que serviam de cabide. Na janela, cuja

    soleira fazia as vezes de lavatrio, estavam o jarro e a bacia de loua branca, umabilha d'gua e um copo com um ramo de flores murchas. Junto cama, em umacantoneira, um castial com uma vela e uma caixa de fsforos. Sobre a carteira,papis e livros de escriturao mercantil.

    Era toda a moblia.Quando, passado um instante, o moo ergueu a cabea, tinha o rosto

    banhado de lgrimas.

    Era um crime, murmurou ele, mas era um grande alvio! Coragem!

    Enxugou as lgrimas e, recobrando a calma, abriu a carteira e disps-se atrabalhar. Tirou do bolso um mao de ttulos e bilhetes no valor de muitos contos deris, contou-os e escondeu tudo em uma gaveta de segredo; depois tomou nos seuslivros notas das transaes efetuadas naquele dia.

    Fora um dia feliz.Tinha realizado um lucro lquido de 6:000$000. No havia engano; os

    algarismos ali estavam para demonstr-lo: os valores que guardava eram a prova.Mas essa pobreza, essa misria que o rodeava e que revelava uma existncia

    penosa, falta de todos os cmodos, sujeita a duras necessidades?Seria um avarento?.Era um homem arrependido que cumpria a penitncia do trabalho, depois

    de ter gasto o seu tempo e os seus haveres em loucuras e desvarios. Era um filhoda riqueza, que, tendo esbanjado a sua fortuna, comprava, com sacrifcio do seubem-estar, o direito de poder realizar uma promessa sagrada.

    Se era avareza, pois, era a avareza sublime da honra e da probidade; era aabnegao nobre do presente para remir a culpa do passado. Haver moralista,ainda o mais severo, que condene semelhante avareza? Haver homem de corao,que no admire essa punio imposta pela conscincia ao corpo rebelde e aosinstintos materiais que arrastam ao vcio?

    Terminadas as suas notas, esse homem, que acabava de guardar uma somaavultada, que naquele mesmo dia tinha ganho 6:000$000 lquidos, abriu umagaveta, tirou quatro moedas de cobre, meteu-as no bolso do colete e disps-se asair.

    Aquelas quatro moedas de cobre eram um segredo da expiao corajosa, damisria voluntria a que se condenara um moo que sentia a sede do gozo e tinhaao alcance da mo com que satisfazer por um ms, talvez por um ano, todos oscaprichos de sua imaginao.

    Aquelas quatro moedas de cobre eram o preo do seu jantar; eram a taxa fixae invarivel da sua segunda refeio diria; eram a esmola que a sua razo atiravaao corpo para satisfao da necessidade indeclinvel da alimentao.

    Os ricos e mesmo os abastados vo admirar-se, por certo, de que um homempudesse jantar no Rio de Janeiro, naquele tempo, com 160r., ainda quando essehomem fosse um escravo ou um mendigo. Mas eles ignoram talvez, como asenhora, minha prima, a existncia dessas tascas negras que se encontram emalgumas ruas da cidade, e principalmente nos bairros da Prainha e Misericrdia.

    Nojenta caricatura dos hotis e das antigas estalagens, essas locandasdescobriram o meio de preparar e vender comida pelo preo nfimo que pode pagara classe baixa.

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    Quando Carlos chegou ao Rio de Janeiro, uma das coisas de que primeirotratou de informar-se, foi do modo de subsistir o mais barato possvel. Perguntou aopreto de ganho que conduzira os seus trastes, quanto pagava para jantar. O pretodispendia 80 r. O moo decidiu que no excederia do dobro. Era o mais que lhepermitia a diferena do homem livre ao escravo.

    Talvez ache a coragem desse moo inverossmil, minha prima. possvel.Compreende-se e admira-se o valor do soldado; mas esse herosmo inglrio, essemartrio obscuro, parece exceder as foras do homem.

    Mas eu no escrevo um romance, conto-lhe uma histria.A verdade dispensa a verossimilhana.Acompanhemos Carlos, que desce a escada ngreme do sobrado e ganha a

    rua em busca da tasca onde costuma jantar.Passando diante de uma porta, um mendigo cego dirigiu-lhe essa cantilena

    fanhosa que se ouve noite no saguo e vizinhana dos teatros. O moo examinouo mendigo e, reconhecendo que era realmente cego e incapaz de trabalhar, tirou dobolso uma das moedas de cobre e entrou em uma venda para troc-la.

    O caixeiro da taverna sorriu-se com desdm desse homem que trocava umamoeda de 40 r., e atirou-lhe com arrogncia o troco sobre o balco. O pobre,reconhecendo que a esmola era de um vintm, guardou a sua ladainha deagradecimentos para uma caridade mais generosa.

    Entretanto, o caixeiro ignorava que aquela mo que agora trocava umamoeda de cobre para dar uma esmola, j atirara loucamente pela janela montes deouro e de bilhetes do tesouro. O pobre no sabia que essa ridcula quantia querecebia era uma parte do jantar daquele que a dava e que nesse dia talvez omendigo tivesse melhor refeio do que o homem a quem pedira a esmola.

    O moo recebeu a afronta do caixeiro e a ingratido do pobre com resignaoevanglica e continuou o seu caminho.

    Seguiu por um desses becos escuros que da rua da Misericrdia se dirigempara as bandas do mar, cortando um ddalo de ruelas e travessas.

    No meio desse beco via-se uma casa com uma janela muito larga e umaporta muito estreita.

    A vidraa inferior estava pintada de uma cor que outrora fora branca e que setornara acafelada. A vidraa superior servia de tabuleta. Liam-se em grossas letras,por baixo de um borro de tinta informe e com pretenses a representar uma ave,estas palavras : "Ao Garniz".

    O moo lanou um olhar direita e esquerda sobre os passantes e, vendoque ningum se ocupava com ele, entrou furtivamente na tasca.

    CAPTULO XIII

    O interior do edifcio correspondia dignamente sua aparncia.A sala, se assim se pode chamar um espao fechado entre quatro paredes

    negras, estava ocupada por algumas velhas mesas de pinho.Cerca de oito ou dez pessoas enchiam o pequeno aposento: eram pela maior

    parte marujos, soldados ou carroceiros que jantavam.Alguns tomavam a sua refeio agrupados aos dois e trs sobre as mesas;

    outros comiam mesmo de p, ou fumavam e conversavam em um tom que fariacorar o prprio Santo Agostinho antes da confisso.

    Uma atmosfera espessa, impregnada de vapores alcolicos e fumo de

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    cigarro, pesava sobre essas cabeas e dava queles rostos um aspecto sinistro.A luz que coava pelos vidros embaciados da janela, mal esclarecia o

    aposento e apenas servia para mostrar a falta de asseio e de ordem que reinavanesse couto do vcio e da misria.

    No fundo, pela fresta de uma porta mal cerrada, aparecia de vez em quando acabea de uma mulher de 50 anos, que interrogava com os olhos os fregueses eouvia o que eles pediam. Era a dona, a servente e ao mesmo tempo cozinheira dessa tasca imunda.

    A cada pedido, a cabea, coberta com uma espcie de turbante feito de umleno de tabaco, retirava-se e, da a pouco, aparecia um brao descarnado, queestendia ao fregus algum prato de loua azul cheio de comida, ou alguma garrafade infuso de campeche com o nome de vinho.

    Foi nesta sala que entrou Carlos.Mas no entrou s; porque, no momento em que ia transpor a soleira, um

    homem que havia mais de meia hora passeava na calada defronte da tasca,adiantou-se e deitou a mo sobre o ombro do moo.

    Carlos voltou-se admirado dessa liberdade; e ainda mais admirado ficou,reconhecendo na pessoa que o tratava com tanta familiaridade o nosso antigoconhecido, o senhor Almeida.

    O velho negociante no tinha mudado; conservava ainda a fora e o vigor queapesar da idade animava o seu corpo seco e magro; no gesto a mesma agilidade;no olhar o mesmo brilho; na cabea encanecida o mesmo porte firme e direito.

    Est espantado de ver-me aqui? disse o senhor Almeida, sorrindo. Confesso que no esperava, respondeu o moo, confuso e perturbado. O mal pode ocultar-se; o bem se revela sempre; acrescentou o velho em

    tom sentencioso. Que quer dizer? . Entremos.

    Para qu? O senhor no ia entrar?

    Carlos recuou insensivelmente da porta e, querendo esconder do velhonegociante o seu nobre sacrifcio fez um esforo e balbuciou uma mentira:

    Passava... por acaso... Vou ao largo do Moura...

    O senhor Almeida fitou os seus olhos pequenos, mas vivos, no rosto do moo,que no pde deixar de corar; e, apertando-lhe a mo com uma expressosignificativa, disse-lhe :

    Sei tudo! Como? perguntou Carlos, admirado ao ltimo ponto. aqui que costuma jantar. E por isso adivinho qual tem sido a suaexistncia, durante estes cinco anos. Imps-se a si mesmo o castigo da sua antigaprodigalidade; puniu o luxo de outrora com a misria de hoje. nobre, mas exagerado.

    No, senhor; justo. O que possuo atualmente, o que adquiro com o meutrabalho, no me pertence; um depsito, que Deus me confia, e que deve servirno s para pagar as dvidas de meu pai, como tambm a dvida sagrada que

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    contra para com uma moa inocente. Gastar esse dinheiro seria roubar, senhorAlmeida.

    Bem; no argumentemos sobre isto ; no se discute um generososacrifcio: admira-se. Venha jantar comigo.

    No posso, respondeu o moo. Por qu? No aceito um favor que no posso retribuir.

    Quem faz o favor aquele que aceita e no o que oferece. Demais, eupobre, nunca me envergonhei de sentar-me mesa de seu pai rico, acrescentou ovelho com severidade.

    Desculpe!

    O velho tomou o brao de Carlos e dirigiu-se com ele ao Hotel Pharoux, quenaquele tempo era um dos melhores que havia no Rio de Janeiro; ainda no estavatransformado em uma casa de banhos e um ninho de danarinas.

    Poucos instantes depois, estavam os dois companheiros sentados a uma dasmesas do salo; e o senhor Almeida, com um movimento muito pronunciado deimpacincia, instava para que o moo concordasse na escolha do jantar que elehavia feito vista da data.

    Carlos recusava com excessiva polidez os pratos esquisitos que o velholembrava, e a todas as suas instncias respondia, sorrindo :

    No quero adquirir maus hbitos, senhor Almeida.

    O velho reconheceu que era intil insistir.

    Ento o que quer jantar?

    Carlos escolheu dois pratos.

    Somente? Somente. No me meto mais a teimar com o senhor, respondeu o velho, olhando deencontro luz o rubi liquido de um clice de excelente vinho do Porto.

    Serviu-se o jantar.O senhor Almeida comeu com a conscincia de um homem que paga bem e

    que no lastima o dinheiro gasto nos objetos necessrios vida. Satisfez oestmago e deixou apenas esse pequeno vcuo, to difcil de encher, porque sadmite a flor de um manjar saboroso ou de uma iguaria delicada.

    Ento, bebendo o seu ltimo clice de vinho do Porto, passando na boca aspontas do guardanapo, cruzou os braos sobre a mesa com ar de quem dispunha aconversar.

    Pode acender o seu charuto, no faa cerimnia. J no fumo, respondeu Carlos simplesmente. O senhor j no o mesmo homem. No come, no bebe, no fuma;

    parece um velho da minha idade. H uma coisa que envelhece mais do que a idade, senhor Almeida: a

    desgraa. E alm disto o senhor tem razo; no sou, nem posso ser o mesmo

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    homem; j morri uma vez, acrescentou em voz baixa. Mas h de ressuscitar.

    essa a esperana que me alimenta. E como vai esse negcio? perguntou o velho com interesse.

    Tem-me custado recolher as letras de meu pai; j paguei 60:000$, eamanh devo pagar 5:000$ ; seis letras que me faltam no sei onde se acham. Seeu pudesse anunciar...

    Mas, na minha posio, receio comprometer-me.

    Pensou bem. Porm s restam por pagar essas seis letras? Unicamente. Quer saber ento onde elas esto? o maior favor que me pode fazer. Com uma condio. Qual? Que h de ouvir-me como se fosse seu pai quem lhe falasse, disse ovelho, estendendo a mo.

    Por toda a resposta o moo apertou, com efuso e reconhecimento, a moleal do honrado negociante.

    Essas seis letras, disse o senhor Almeida, esto em meu poder. Ah! Lembra-se do que lhe disse, h cinco anos, na vspera do seucasamento?

    Lembro-me de tudo. Era minha inteno salvar a firma de meu melhor amigo... de seu pai. Masa sua morte suposta impossibilitou-me.

    O passivo da casa excedia as minhas foras. Os credores reuniram-se eresolveram fazer declarar a falncia.

    De um homem morto. Verdade. No o pude evitar. O mais que consegui foi abafar estenegcio, comprando a alguns credores mais insofridos as suas dividas. Eis comoessas letras vieram parar minha mo. Obrigado, senhor Almeida, disse o moo comovido, ainda lhe devo maisesse sacrifcio.

    Est enganado, respondeu o velho, querendo dar sua voz a asperezahabitual; no fiz sacrifcio; fiz um bom negcio; comprei as letras com um rebate de50%, ganho o dobro.

    Mas quando as comprou no tinha esperana de ser pago. Tinha confiana na sua honra e na sua coragem.

    E se eu no voltasse? Era uma transao malograda; a fortuna do negociante est sujeita a estesriscos. Felizmente, Deus ajudou-me e quis que um dia pudesse agradecer-lhesem corar, esse benefcio. O que tinha sido da sua parte uma ddiva generosa,tornou-se um emprstimo que devo pagar-lhe hoje mesmo.

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    No consinto; prometeu-me ouvir como a seu pai ; eis o que ele lhe ordenapela minha voz. Todas as suas dvidas acham-se pagas; a sua honra est salva; tempo de voltar ao mundo.

    Mas as seis letras que esto em sua mo? Interrompeu o moo. Aqui as tem, disse o senhor Almeida, entregando-lhe um pequeno mao.

    Devo-lhe ento... Deve o que dei por elas; e me pagar quando lhe for possvel.

    No sei quanto lhe custaram esses ttulos; sei que eles representam umvalor emprestado a meu pai. O senhor podia perder; justo que lucre.

    Bem, faa o que quiser. Quanto ao pagamento, posso realiz-lo imediatamente; j o teria feito se

    h mais tempo soubesse que esses ttulos lhe pertenciam. Eu ocultei-os de propsito. Quando chegou dos Estados Unidos e mecomunicou o que tinha feito e o que pretendia fazer, resolvi, para facilitar-lhe ocumprimento de seu dever, deixar que o senhor pagasse primeiro os estranhos. Agora, porm, essa dificuldade desapareceu; vamos minha casa. Para qu? Para receber o que lhe devo. No tratemos disso agora. Escute, senhor Almeida; depois de cinco anos de provanas e misrias,no sei o que Deus me reserva. Mas, se ainda h neste mundo felicidade para mim,antes de aceit-la preciso que eu tenha reparado todos os meus erros; precisoque eu me sinta purificado pela desgraa. Uma dvida, embora o credor seja umamigo, se tornaria um remorso. Tenho dinheiro suficiente para pag-la.

    E que lhe restar? Um nome honrado e a esperana.

    O senhor Almeida resignou-se e acompanhou Carlos at sua casa.Ai, o moo abriu a carteira e, tirando os valores que h pouco havia guardado,

    entregou ao negociante a quantia de 30:000$ representada pelo algarismo das seisletras.

    J lhe disse que s me deve 15:000$, disse o velho, recusando receber. Devo-lhe o valor integral destes ttulos; se a firma de meu pai no inspirou

    confiana aos outros, para seu filho ela no sofre desconto.

    Enquanto o senhor Almeida, mordendo os beios, guardava as notas dobanco e os bilhetes do tesouro, Carlos abria uma pequena carteira preta e, depoisde beijar a firma de seu pai escrita no aceite, fechou com as outras essas ltimasletras que acabava de pagar.

    Aqui est a minha fortuna, disse, sorrindo com altivez. Tem razo, respondeu o velho; porque a est o mais nobre exemplo de

    honestidade. E tambm o mais belo testemunho de uma verdadeira amizade.

    Jorge!... exclamou o negociante, comovendo-se.

    Alguns instantes depois, o senhor Almeida despediu-se do moo.

    Escuso recomendar-lhe uma coisa, disse Jorge ao negociante.

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    O qu? A continuao do segredo. Nem uma palavra!

    Quando for tempo, eu mesmo o revelarei. Ainda no sou Jorge.

    Que falta? Depois lhe direi.

    E separaram-se.

    CAPTULO XIV

    As ltimas palavras do velho negociante esclareceram um mistrio que j seachava quase desvanecido.

    Jorge era o verdadeiro nome desse moo que morrera para o mundo e que,durante cinco anos, vivera como um estranho sem famlia, sem parentes, semamigos, ou como uma sombra errante condenada expiao das suas faltas.

    A pgina em que eu devia ter escrito as circunstncias desse fato ficou embranco, minha prima; agora, porm, podemos l-la claramente no esprito de Jorge,que, sentado sua carteira, triste e pensativo, repassa na memria esses anos desua vida, desde a noite do seu casamento.

    Acompanhando o moo no seu sinistro passeio s obras da Santa Casa deMisericrdia, o vimos sumir-se por entre os cmoros de areia que se elevavam portoda essa vasta quadra em que est hoje assentado o hospital de Santa Luzia.

    O vulto que o seguia de perto, embuado em uma capa e tomando todas asprecaues para no ser conhecido nem pressentido pelo moo, desapareceu comoele nas escavaes do terreno.

    Jorge, como todo homem que depois de longa reflexo toma uma resoluofirme e inabalvel, estava ansioso por chegar peripcia desse drama terrvel; porisso parou no primeiro lugar que lhe pareceu favorvel ao seu desgnio.

    Mas um espetculo ainda mais horrvel do que o seu pensamentoapresentou-se a seus olhos; viu a realizao dessa ir idia louca que desde avspera dominava o seu esprito.

    Um infeliz, levado pela mesma vertigem, o tinha precedido; seu corpo jaziasobre a areia na mesma posio em que o surpreendera a morte instantnea, meiorecostado sobre o declive do terreno.

    A cabea era uma coisa informe; o tiro fora carregado com gua para tornar aexploso surda e mais violenta; as feies haviam desaparecido e no deixavamreconhecer o desgraado.

    Naturalmente quis ocultar a sua morte, para poupar sua famlia o escndaloe a impresso dolorosa que sempre deixam esses atos de desespero.

    Aquele espetculo horrorizou o moo; em face da realidade seu espritorecuou; houve mesmo um instante em que se espantou da sua loucura; e voltou orosto para no ver esse cadver, que parecia escarnecer dele.

    Mas a lembrana do que o esperava, se voltasse, triunfou; julgou-seirremissivelmente condenado; e chamou cobardia o grito extremo da razo quesucumbia.

    Tirou as suas pistolas e armou-as, sorrindo tristemente; depois ajoelhou ecomeou uma prece.

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    Desvario incompreensvel da criatura que, ofendendo a Deus, ora a essemesmo Deus! Demncia extravagante do homem que pede perdo para o crimeque vai cometer!

    Quando o moo, terminada a sua prece, erguia as duas pistolas e ia aplicaros lbios boca da arma assassina, o vulto que o tinha acompanhado, e que seachava nesse momento de p, atrs dele, com um movimento rpido paralisou-lheos braos.

    Jorge ergueu-se precipitadamente, e achou-se em face do homem que seopusera sua vontade de uma maneira to brusca.

    Era o senhor Almeida.O velho, com a sua perspiccia e com os exemplos de tantos fatos

    semelhantes em uma poca em que dominava a vertigem do suicdio, adivinhara asintenes do moo.

    Aquela pronta resignao, aquela espcie de contradio entre os nobressentimentos de Jorge e a calma que ele afetava, deram-lhe uma quase certeza doque ele planejava.

    No quis interrog-lo, convencido de que lhe negaria.Resolveu espi-lo durante aquela noite, at que pudesse avisar a Carolina do

    que se passava, a fim de que ela defendesse pelo amor uma vida ameaada porloucos prejuzos.

    Sua expectativa realizou-se; recostado no muro da chcara que ficavafronteira s janelas do quarto da noiva, acompanhou por entre as cortinas toda acena noturna que descrevi; conheceu a agitao do moo, viu-o deitar algumasgotas de pio no clice de licor que deu sua mulher; no perdeu nem um incidente,por menor que fosse.

    Um instante, enquanto o moo meditava, com os olhos no mostrador do seurelgio, o senhor Almeida, receou que ele quisesse fazer do quarto da noiva umaposento morturio; mas respirou, quando o viu saltar na rua.

    Seguiu-o e, pela direo, adivinhou o desenlace da cena de que foraespectador; preparou-se, pois, para representar tambm o seu papel; e por issoachava-se em face de Jorge no momento supremo em que a sua interveno setornara necessria.

    O primeiro sentimento que se apoderou do moo, vendo o senhor Almeida,foi o do pejo; teve vergonha do que praticava e pareceu-lhe fraqueza aquilo quehavia pouco julgava um ato de herosmo.

    Logo depois o despeito e o orgulho sufocaram esse bom impulso.

    Que veio fazer aqui? perguntou com arrogncia. Evitar um crime, respondeu o velho com severidade. Enganou-se, disse Jorge secamente. No me enganei, porque estou certo de que no h homem que depois de

    escutar a razo cometa semelhante loucura. Qual o benefcio que lhe pode dar amorte?

    Salvar-me da desonra. Uma desonra no lava outra desonra. O homem que atenta contra sua

    vida, fraco e cobarde... Senhor Almeida! cobarde, sim! Porque a verdadeira coragem no sucumbe com um

    revs; ao contrrio luta e acaba por vencer.

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    Matando-se, o senhor rouba os seus credores, porque lhes tira a ltimagarantia que eles ainda possuem, a vida de um homem.

    E que vale esta vida? Vale o trabalho. E o sofrimento! verdade; mas no temos direito de sacrificar a um pensamento egosta

    aquilo que no nos pertence. Se a sua existncia est condenada ao sofrimento,deve aceitar essa punio que Deus lhe impe, e no revoltar-se contra ela.

    Jorge abaixou a cabea; no sabia o que responder quela lgica inflexvel.

    Escute, disse o velho depois de um momento de reflexo, o que teme osenhor dessa desonra que vai recair sobre a sua vida? Teme ver-se condenado asofrer o desprezo do mundo, e sentir o escrnio e o insulto sem poder erguer afronte e repeli-lo; teme, enfim, que a sua existncia se torne um suplcio devergonha, de remorso e de humilhao! no isto?!

    Sim! balbuciou o moo. Pois no preciso cometer um crime para livrar-se dessa tortura; morra

    para o mundo, morra para todos; porm viva para Deus, e para salvar a sua honra eexpiar o seu passado.

    Que quer dizer? perguntou o moo admirado. Ali est o corpo de um infeliz; um cadver sem nome, sem sinais que

    digam o que ele foi; deite sobre ele uma carta, desaparea, e, daqui a uma hora, osenhor ter deixado de existir.

    E depois? Depois, como um desconhecido, como um estranho que entra no mundo,

    tendo a lio da experincia e a alma provada pela desgraa, procure remir as suasculpas. Um dia talvez possa reviver e encontrar a felicidade.

    Jorge refletiu :

    Tem razo, disse ele.

    Pouco depois ouviu-se um tiro; os trabalhadores das obras que iam chegandoencontraram um cadver mutilado e a carta de Jorge; ao mesmo tempo o moo e osenhor Almeida ganhavam pelo lado oposto a praia de Santa Luzia.

    Passava um bote a pouca distncia de terra; o velho acenou-lhe que seaproximasse.

    O acaso nos favorece, disse ao moo; sai amanh para os Estados Unidosum navio que me foi consignado; melhor embarcar agora, para no excitardesconfianas; hoje mesmo lhe tirarei um passaporte.

    O bote aproximou-se; o embarque nestas paragens incmodo; mas asituao no admitia que se atendesse a isto.

    Eram 9 horas quando o senhor Almeida, tendo deixado Jorge na barcaamericana e tendo tomado um carro na primeira cocheira, chegou casa de D.Maria.

    A boa senhora recebeu-o com um sorriso; estava sentada na sala prxima ao

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    quarto de sua filha e esperava tranqilamente que seus filhos acordassem.O velho, vendo aquela serena felicidade, hesitou; no teve nimo de enlutar

    esse corao de me.Nisto a porta do quarto abriu-se e Carolina, branca como a cambraia que

    vestia, apareceu na porta, tendo na mo a carta de Jorge.A me soltou um grito; a filha no podia falar; e assim passou um momento

    de tortura, em que uma dessas dores procurava debalde adivinhar a desgraa e aoutra se esforava por achar uma palavra que a revelasse.

    No dia seguinte, Jorge partia para os Estados Unidos e Carolina trocava,suas vestes de noiva por esse vestido preto que nunca mais deixou.

    Seria longo descrever a vida desse moo, morto para o mundo e existindo,contudo, para sofrer; durante cinco anos, alimentou-se de recordaes e de umaesperana que lhe dava foras e coragem para lutar.

    O amor de Carolina, talvez mais do que o sentimento da honra, o animava;trabalhou com uma constncia e um ardor infatigveis e ganhou para pagar todas asdvidas de seu pai.

    Logo que se achou possuidor de uma soma avultada, Jorge preferiu viracabar a sua expiao no seu pas, onde ao menos se sentiria perto daqueles queamava.

    De fato chegou ao Rio de Janeiro com o nome de Carlos Freeland; dava-sepor estrangeiro; alguns, porm, julgavam que nascera no Brasil e que a vivera muitotempo mas no se recordavam de o ter visto.

    A desgraa tinha mudado completamente a sua fisionomia; do moo tinhafeito um homem grave; alm disso, a barba crescida ocultava a beleza dos seustraos.

    O seu primeiro cuidado foi procurar o senhor Almeida e pedir-lhe que oauxiliasse no resgate das letras, que devia ser feito de modo que ningum osuspeitasse. O que fez o velho negociante, j o sabe.

    Como disse, Jorge ocultava sua vida de todos e do prprio velho ; sofriacorajosamente a misria a que se condenara, mas no queria que ela tivesse umatestemunha.

    O senhor Almeida, porm, surpreendera o segredo.

    CAPTULO XV

    Vou lev-la, D..., mesma casinha do morro de Santa Teresa, ondecomeou esta pequena histria.

    So 10 horas da noite. Penetremos no interior.D. Maria acabava de recolher-se, depois de ter beijado sua filha; toda a casa

    estava em silncio; apenas havia luz no aposento de Carolina.Esse aposento era a mesma cmara nupcial, onde cinco anos antes aquela

    inocente menina adormecera noiva para acordar viva, no dia seguinte ao do seucasamento.

    Nada a tinha mudado, a no ser o corao humano. Cinco anos que passaram por esse bero de amor, transformado de repente

    em um retiro de saudade, no haviam alterado nem sequer a colocao de um trasteou a cor de um ornato da sala.

    Apenas o tempo empalidecera as decoraes, roubando-lhes a pureza e obrilho das coisas novas e virgens; e a desgraa enlutara a rola, que se carpia viva

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    no seu ninho solitrio.Carolina estava sentada na conversadeira, onde na primeira e ltima noite de

    seu casamento recebera seu marido, quando este, trmulo e plido, se animara atranspor o limiar desse aposento, sagrado para ele como um templo.

    Justamente naquele momento, esse quadro se retraava na memria damenina com uma fora de reminiscncia tal que fazia reviver o passado. O seuesprito, depois de saturar-se o amargo dessas recordaes, desfiava rapidamente ateia de sua existncia desde aquela poca.

    Quer saber naturalmente o segredo dessa vida, no , minha prima?Aqui o tem.Nos primeiros dias que se seguiram catstrofe, Carolina ficou sepultada

    nessa letargia da dor, espcie de idiotismo pungente, em que se sofre, mas semconscincia do sofrimento.

    D. Maria e o senhor Almeida, que a desgraa tinha feito amigo dedicado dafamlia, tentaram debalde arrancar a moa a esse torpor e sonolncia moral. O golpefora terrvel; aquela alma inocente e virgem, bafejada pela felicidade, sentira to fortecomoo que perdera a sensibilidade.

    O tempo dissipou esse letargo. A conscincia acordou e mediu todo oalcance da perda irreparvel. Sentiu ento a dor em toda a sua plenitude e profunda apatia sucedeu uma irritao violenta. O desespero penetrou muitas vezese assolou esse corao jovem.

    Mas a dor, a enfermidade da alma, como a febre, a enfermidade do corpo,quando no mata nos seus acessos, acalma-se.

    O sofrimento, em Carolina, depois de a ter torturado muito, passou do estadoagudo ao estado crnico.

    Vieram ento as lgrimas, as tristes e longas meditaes, em que o espritoevoca uma e mil vezes a lembrana da desgraa, como uma tenta que mede aprofundeza da chaga, em que se acha um prazer acerbo no magoar das feridas quese abrem de novo.

    A pouco e pouco o que havia de amargo nessas recordaes se foiadoando: as lgrimas correram mais suaves; o seio, que o soluo arquejava, arfoubrandamente a suspirar. E, como no cu pardo de uma noite escura surge umaestrela que doura o azul, a saudade nasceu n'alma de Carolina e derramou a suadoce luz sobre aquela tristeza.

    Tinha decorrido um ano.Comeou a viver dentro do seu corao, com as reminiscncias do seu amor,

    como uma sombra que se sentava a seu lado, que lhe murmurava ao ouvidopalavras sempre repetidas e sempre novas. Sonhava no passado; diferente nissodas outras moas, que sonham no futuro.

    Mas um corao de 15 anos um tirano a que no h resistir; e Carolinano contara com ele.

    Quando uma planta delicada nasce entre a sara, muitas vezes o fogoqueima-lhe a rama e o hastil; ela desaparece, mas no morre, que a raiz vive naterra; e s primeiras guas brota e pulula com toda a fora de vegetao queincubara no tempo de sua mutilao.

    O corao de Carolina fez como a planta. Apenas aberto, a desgraa ocerrara; mas veio a calma e ele tornou a abrir-se.

    A princpio bastou-lhe a saudade para ench-lo; depois desejou mais, desejoutudo. Tinha sede de amor; e no se ama uma sombra.

    O mundo ao longe corria s vezes o pano a uma das suas brilhantes cenas e

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    mostrava menina refugiada no seu retiro e na sua saudade a aurola que cinge afronte das mulheres belas; aurola que aos outros parece brilho de luz, mas querealmente para aquelas que a trazem, chama de fogo.

    Carolina resistia, envolvendo-se na branca mortalha de seu primeiro amor;mas a tela fez-se transparente e no lhe ocultou mais o que ela no queria ver.Sentiu-se arrastar e teve medo.

    Teve medo de esquecer. No descreverei, minha prima, a luta prolongada e tenaz que travaram n'almadessa menina a saudade e a imaginao.

    A senhora, se algum dia amou, deve compreender a luta e o resultado dela. Omundo venceu. Carolina tinha 15 anos e no havia libado do amor seno perfumes.

    Mas, ainda vencida, ela defendeu contra a sociedade as suas recordaes,que se tornaram ento um culto do passado.

    Entrou nos sales, porm com esse vestido preto, que devia lembrar-lhe atodo o momento a fatalidade que pesara sobre a sua existncia.

    Excitou a admirao geral pela sua beleza. No houve talento, posio eriqueza que se no rojasse a seus ps. Sabiam vagamente a sua histria;suspeitavam a virgindade sob aquela viuvez e se lhe dava um toque de romantismoque inflamava a imaginao dos moos moda.

    Chamavam-na a Viuvinha.A senhora deve t-la encontrado muitas vezes, minha prima, no tempo em

    que comeou a freqentar a sociedade. Estava ela ento no brilho de sua beleza.Na menina gentil e graciosa encarnara a natureza a mulher com todo o luxo dasformas elegantes, com toda a pureza das linhas harmoniosas.

    A influncia que o vestid