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Bakhtiniana, São Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013. 21 O romance: uma forma ético-política na perspectiva baktiniana / The Novel: an Ethico-Political Genre from a Bakhtinian Perspective Angela Maria Rubel Fanini * RESUMO Este artigo discute alguns conceitos presentes na obra de Mikhail Bakhtin, tais como dialogismo, carnavalização e polifonia, sobretudo, a partir do gênero romanesco, objeto de estudo exaustivo do pensador russo. A discussão dos conceitos visa melhor entendê- los a fim de construir uma perspectiva teórica, metodológica e política para análise discursiva dos romances brasileiros. Ao longo do texto, ocorre exemplificação de possíveis análises de obras nacionais sob a perspectiva bakhtiniana. Destaca-se que, para o pensador russo, a linguagem é central na ontologia do ser social e que a reflexão sobre a linguagem enquanto realidade plural é a medida para se alcançar uma sociedade democrática. PALAVRAS-CHAVE: Dialogismo; Polifonia; Romance; Mikhail Bakhtin ABSTRACT This paper discusses some major categories presented in Bakhtin`s texts, such as dialogism, carnivalization, polyphony with a focus on the novelistic genre, which was the object of exhaustive study by the Russian thinker. The discussion aims to achieve a better understanding of a methodological, theoretical and political perspective of discourse analysis in Brazilian novels. Throughout the paper, there are some examples of Brazilian novels that can be read from the Bakhtinian perspective. It is emphasized that, for the Russian thinker, language is central to the ontology of social being and reflection about language as a plural reality is the measure to achieve a democratic society. KEYWORDS: Dialogism; Polyphony; Novel; Mikhail Bakhtin *Professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, UFTPR, Curitiba, Paraná, Brasil; FAPPR; [email protected]

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  • Bakhtiniana, So Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013.

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    O romance: uma forma tico-poltica na perspectiva baktiniana / The

    Novel: an Ethico-Political Genre from a Bakhtinian Perspective

    Angela Maria Rubel Fanini*

    RESUMO

    Este artigo discute alguns conceitos presentes na obra de Mikhail Bakhtin, tais como

    dialogismo, carnavalizao e polifonia, sobretudo, a partir do gnero romanesco, objeto

    de estudo exaustivo do pensador russo. A discusso dos conceitos visa melhor entend-

    los a fim de construir uma perspectiva terica, metodolgica e poltica para anlise

    discursiva dos romances brasileiros. Ao longo do texto, ocorre exemplificao de

    possveis anlises de obras nacionais sob a perspectiva bakhtiniana. Destaca-se que,

    para o pensador russo, a linguagem central na ontologia do ser social e que a reflexo

    sobre a linguagem enquanto realidade plural a medida para se alcanar uma sociedade

    democrtica.

    PALAVRAS-CHAVE: Dialogismo; Polifonia; Romance; Mikhail Bakhtin

    ABSTRACT

    This paper discusses some major categories presented in Bakhtin`s texts, such as

    dialogism, carnivalization, polyphony with a focus on the novelistic genre, which was

    the object of exhaustive study by the Russian thinker. The discussion aims to achieve a

    better understanding of a methodological, theoretical and political perspective of

    discourse analysis in Brazilian novels. Throughout the paper, there are some examples

    of Brazilian novels that can be read from the Bakhtinian perspective. It is emphasized

    that, for the Russian thinker, language is central to the ontology of social being and

    reflection about language as a plural reality is the measure to achieve a democratic

    society.

    KEYWORDS: Dialogism; Polyphony; Novel; Mikhail Bakhtin

    *Professora da Universidade Tecnolgica Federal do Paran, UFTPR, Curitiba, Paran, Brasil; FAPPR;

    [email protected]

  • 22 Bakhtiniana, So Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013.

    Introduo

    Este artigo visa a discutir algumas questes relacionadas ao gnero romanesco a

    partir da perspectiva de Mikhail Bakhtin. Para tanto nos utilizamos, mais

    especificamente, das obras focadas na problemtica do referido gnero. Os estudos do

    pensador russo se enquadram dentro da filosofia da linguagem visto que toda a sua obra

    se volta para a discusso da centralidade da linguagem na ontologia do ser social. Para o

    terico, a linguagem categoria central na instituio do humano. Isso significa que ele

    investiga, sobretudo, o corpus literrio em estreita relao com a realidade histrica

    concreta para da sistematizar seus conceitos de dialogismo, monologismo e polifonia,

    que so centrais para compreender os seus escritos. Bakhtin escreve em determinado

    contexto sociopoltico em que vigia uma cultura e uma poltica de carter monolgico

    ascendente. O advento da Revoluo Russa em 1917 prometia a instaurao de uma

    sociedade comunista onde se estabeleceria no s a utopia materialista1, suprindo o

    reino da necessidade, mas tambm o reino da liberdade, acenando para uma realidade

    libertria. Entretanto, na implantao do projeto comunista baseado na viso poltico-

    econmica de Marx e Lenin, tal promessa se desfaz e constri-se uma sociedade

    autoritria e monolgica baseada, sobretudo, no texto-prxis das cartilhas stalinistas.

    Refora-se, na sociedade, um poder central na figura do ditador e do partido nico e, no

    campo das artes e do simblico, incluindo a a linguagem, h uma ntida propenso para

    se neutralizar o contraditrio, ou seja, as vozes dissonantes. Na literatura vige o

    Realismo Socialista, esttica de louvao e enaltecimento da poltica e economia

    stalinistas. O modelo industrial-tecnolgico importado do Ocidente passa a fundamentar

    a economia, procurando-se industrializar o pas, e o taylorismo-fordismo se instaura na

    produo fabril. A massa operria vai tendendo a se adequar ao trabalho alienado e

    estranhado que tanto preocupara Marx no sculo XIX e do qual o pensador alemo

    desejava libertar o operariado. O contexto sociopoltico de ditadura e de expurgos.

    Nesse mbito, Bakhtin escreve e, com certeza, o meio de onde parte o seu

    discurso tambm determina o posicionamento do pensador. Para ele, quando falamos, a

    nossa fala duplamente orientada, ou seja, para o j dito e para a rplica, e por isso

    1Os idealizadores da revoluo bolchevista criam na possibilidade de revolucionar no s as condies

    materiais de existncia, mas tambm as culturais e polticas, seguindo sobretudo, os ensinamentos da obra

    marxiana.

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    inerentemente dialgica. Sua obra est em dilogo com seu tempo, combatendo a

    monologia, o discurso nico, a cultura oficial, o partido nico, o cerceamento do

    contraditrio, a opresso do poder centralizador e da ditadura socialista de estado. H

    uma ntida conversa em contraponto com sua poca e contexto imediato. Bakhtin

    enaltece o riso libertador, na categoria da carnavalizao, a dialogia, a polifonia, a

    emergncia e o fortalecimento da pluralidade de vozes sociais. Obviamente que a obra

    de Bakhtin no se refere somente ao contexto imediato, visto que deita razes na cultura

    ocidental e oriental milenar, recuperando toda uma histria greco-latina e judaico-crist

    de longa durao. Vai construindo os seus conceitos-chave a partir de uma investigao

    histrica rigorosa, que abarca uma temporalidade milenar, trazendo para sua obra

    numerosos discursos sociais em que a dialogia, a carnavalizao, a polifonia, a

    pluralidade de vozes esto presentes e em consonncia e em embate com a realidade

    social. Sua obra coloca-se, sempre, contra o domnio da unidimensionalidade e, sabe-se

    que, na Histria do homem, o autoritarismo da viso nica no foi prerrogativa

    exclusiva do modelo socialista russo, mas tem acompanhado a formao do ser social

    como prtica constante. Assim, v-se que o discurso bakhtiniano orientado para

    responder tanto ao seu contexto imediato quanto a outro mbito bem mais duradouro e

    milenar. O filsofo russo nos propicia uma viso libertria e emancipadora da condio

    humana, centrando sua anlise na linguagem e vendo a a possibilidade de construo de

    uma sociedade mais plural e descentrada.

    Alm da discusso de algumas questes relacionadas ao gnero romanesco, em

    consonncia com o dossi do peridico, o artigo visa a demonstrar como os conceitos de

    dialogismo, polifonia, carnavalizao e monologia podem ser agenciados para uma

    anlise do discurso do corpus literrio e para pensar a questo da linguagem.

    2 A formao da conscincia ideolgico-lingustica em Bakhtin e o romance

    A preocupao central da obra de Mikhail Bakhtin investigar a histria da

    formao da conscincia ideolgico-lingustica do homem. Essa investigao ocorre a

    partir de uma perspectiva diacrnica que se inicia com os antigos gregos e culmina nos

    romances do escritor Fidor Dostoivski. Conscincia e linguagem, para Bakhtin, esto

    imbricadas, sendo que o externo, a massa discursiva coletiva, se torna interno,

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    construindo a conscincia. Esta instituda pela palavra e essa palavra sempre um

    signo ideolgico, adquirindo significado no meio social. Desse modo, a conscincia se

    forma de fora para dentro, sendo um processo social. Essa exterioridade, porm, no

    aceita de modo passivo, mas ativo, pois a palavra sempre apreendida como uma arena

    em que se digladiam vises dspares. A palavra no somente assujeita como liberta.

    Todo ato comunicativo , na realidade, uma traduo, ou seja, o falante compreende e

    reacentua a palavra do outro a partir de suas matrizes culturais, polticas e sociais. Esse

    dialogismo interno da linguagem, que faz com que a palavra sempre se oriente pelo j

    dito e pela rplica futura, no leva necessariamente a uma situao harmnica em que

    haja sempre um acordo com a palavra do outro. O dialogismo inerente palavra no

    impede o conflito, antes vive dele. Bakhtin demonstra esse conflito a partir, sobretudo,

    da guerra discursiva em que certos discursos se impem, tornando-se quase

    hegemnicos em determinados campos. Exemplo disso, destaque-se a estrutura

    monolgica que imperou na economia e na cultura no perodo ditatorial aqui referido.

    A histria da formao da conscincia lingustico-ideolgica, empreendida por

    Bakhtin, mostra uma verdadeira batalha em que certos gneros de discurso so tornados

    oficiais, amparados pelas instituies sociais, e outros, que existem simultaneamente

    aos oficiais, atuam em campos sociais extraoficiais. Bakhtin no estabelece uma rgida

    dicotomia entre os discursos, classificando-os em verdadeiros ou falsos. Destaca,

    porm, a diferena entre discurso monolgico e dialgico. O discurso monolgico se

    constri a partir de uma atitude autoritria, exclusivista, definitiva e fechada em relao

    linguagem. Esse tipo de discurso deseja se instituir como nico e verdadeiro e, por

    intermdio de dispositivos formais, composicionais e polticos tenta abafar a realidade

    aberta, ambgua, imprecisa, e, sobretudo, histrica da linguagem. Nesse tipo de

    discurso, a atitude frente linguagem positiva, no sentido de que h uma crena em

    que a realidade pode ser dita, definida, explicada a partir do uso correto e claro da

    linguagem. A atitude monolgica contribui para que se fortaleam diversas crenas que

    servem, na realidade, para centralizar e unificar, simplificar e dominar o que, por

    natureza social, disperso, contraditrio, mltiplo. A atitude monolgica perante o

    discurso tambm uma atitude poltica, em que as foras centrpetas agem no sentido

    de fortalecer o consenso. Dessa atitude resultam posies autoritrias que no permitem

    o dissenso, a alteridade, a duplicidade, a pluralidade. A posio monolgica est a

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    reforar certas crenas sociais como: a identidade da lngua nacional nica; a

    homogeneidade da cultura popular; a interpretao correta do texto; a leitura certa; a

    objetividade e superioridade da linguagem cientfica; a traduo apropriada; a boa

    literatura. A percepo dessa monologia j libertadora uma vez que, ao enquadrar o

    discurso monolgico, vendo-o como unilateral, inclusive, empreendendo toda uma

    anlise formal dos componentes desse discurso, podemos enfrent-lo e estamos

    exercendo a dialogia da linguagem medida que desconstrumos essa monologia. O

    discurso monolgico se vale de vrios expedientes formais e institucionais para se

    impor. necessrio se empreender uma anlise discursiva apurada, demonstrando a

    monologia discursiva, que um constructo.

    Na Literatura Brasileira do sculo XIX, impera, como assevera Candido (1981),

    um empenho e um interesse em dizer o real, muitas vezes idealizando-o a fim de se

    construir, via discurso literrio, uma certa identidade nacional positiva. Muitos

    romances, sobretudo os indianistas, idealizam as relaes entre o colonizador e o

    autctone, construindo uma genealogia brasileira sem conflitos. Esses textos tendem

    para uma monologia que atende aos propsitos da criao do Estado nacional. Essa

    monologia vai ser desconstruda somente no sculo XX por outros escritores, j em

    diverso contexto histrico, o de pas subdesenvolvido. Ocorre a recuperao dos textos

    romntico-nacionalistas em um movimento de crtica, construindo-se assim um discurso

    literrio que responde ao j dito, contrapondo-se a ele, reforando-se uma dialogia

    interna. Macunama de Mario de Andrade exemplifica muito bem essa retomada crtica

    do discurso presente em Iracema de Jos de Alencar. A questo da literatura

    regionalista brasileira tambm poderia receber outra leitura, partindo de uma

    perspectiva centrada no discurso, observando os vrios regionalismos (do sculo XIX,

    de 30 e de Guimares Rosa) sob o prisma da estilizao da fala do elemento rural. A

    maioria das anlises segue o mbito econmico, ligando os romances regionais

    diretamente a certos perodos da economia nacional2.

    Se percebermos, porm, a natureza dialgica da linguagem, veremos que o

    discurso aberto, ambguo, bicentrado (a relao intersubjetiva), porque a sua essncia

    plural e histrica, comportando vrios significados e leituras. Essa atitude aberta para

    2Candido (1995) percebe essa ligao entre economia e literatura (pas jovem/1930, conscincia amena de

    atraso e pas subdesenvolvido/1930 a 1970, conscincia aguda e catastrfica de atraso), interpretao j

    clssica da novelstica regional.

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    a dialogicidade da linguagem e para a heteroglossia, ou seja, a percepo da existncia

    de vozes sociais conflitantes no interior do enunciado, tem sido a linha estruturante,

    segundo Bakhtin, da prosa romanesca, cuja pr-histria o pensador russo vai localizar

    na Grcia Antiga, sobretudo nos dilogos socrticos, nas stiras menipeias e nos

    gneros cmicos. A cultura popular milenar do riso, os gneros familiares, a fala

    cotidiana e o plurilinguismo social so elementos estruturantes do discurso romanesco.

    O romance internamente dialgico, pois ele sempre um discurso indireto em conflito

    com os gneros oficiais e com a cultura oficial. Alm disso, sempre um discurso

    indireto medida que o contexto do narrador ou narradores enquadra a fala do(s)

    outro(s), construindo uma imagem para essa fala. O enquadramento formal da fala do

    outro no contexto narrativo um dos temas mais importantes para Bakhtin/Volochinov

    e se acha investigado em detalhes e pormenor, sobretudo nas obras da dcada de 20, em

    Marxismo e filosofia da linguagem (1929/1986)3, terceira parte, ltimos trs captulos, e

    em Problemas da potica de Dostoivski (1929/1981)4, centrado na anlise da obra

    dostoievskiana. O dialogismo ocorre a como a constituio de duas ou mais vozes

    dentro de um mesmo enunciado em embate discursivo. A pr-histria do romance

    uma histria de oposio cultura oficial sria. O romance um gnero tardio e, como

    um gnero que paradoxalmente unifica a pluralidade discursiva, define-se mais

    precisamente na poca renascentista, com Miguel de Cervantes e Franois Rabelais.

    Para Bakhtin, todo discurso situado tanto por um contexto social amplo como

    por um contexto social mais imediato. Desse modo, vemos que o gnero romanesco traz

    em seu bojo toda uma massa verbal milenar do riso e da oposio ao oficial, que se

    3A questo da autoria da obra Marxismo e filosofia da linguagem controversa. Alguns a atribuem

    somente a Bakhtin; outros somente a Valentim N. Volochinov e h tambm a possibilidade de se informar

    a coautoria. Entendendo-se a autoria em uma perspectiva dialgica, possvel referenciar essa obra,

    informando-se dois autores, ou seja, Bakhtin e Volochinov, haja vista que pertenciam ao mesmo grupo de

    estudos da linguagem, comungando de vrios pressupostos sobre o objeto de pesquisa que investigavam.

    Neste artigo, adotamos esta orientao. H pontos muito semelhantes dessa obra, no que tange,

    mormente, problemtica da inter-relao entre contexto citante e citado, com a obra Problemas da

    potica de Dostoivski, levando-nos a destacar a dupla autoria. Outra questo premente tanto em

    Volochinov quanto em Bakhtin a perspectiva materialista da linguagem e a centralidade desta na

    ontologia do ser social. No entanto, h diferenas tericas que no sero analisadas, visto que no so

    objeto deste estudo, sobretudo, a questo da superao do conflito via dialtica, da luta de classes e da

    relao superestrutura e infraesturura econmica, diretamente vinculadas ao marxismo e mais presentes

    em Volochinov, e da eterna agonstica e da luta de vozes, em uma perspectiva mais ampla, em Bakhtin.

    H farta bibliografia a respeito da problemtica da autoria. 4Em 1929, Bakhtin publica a obra com o ttulo Problemas da obra de Dostoivski; em 1963, revisada e

    ampliada, ela novamente publicada com o ttulo que conhecemos hoje, Problemas da potica de

    Dostoivski.

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    constitui em contexto social amplo, que vai ser, sobretudo, no sculo XVII, ativado de

    modo especfico pelo contexto histrico mais imediato, resultando no romance europeu

    ocidental. Como esse contexto scio-histrico age e interage com essa forma literria

    que, na realidade, estetiza e aglutina vrias formas reais de comunicao? A realidade

    histrica do sculo XVII comporta mudanas estruturais na economia, na poltica, na

    cultura. O universo feudal fechado e centralizado est se esfacelando em confronto com

    uma outra ordem scio-poltica. O novo ordenamento, para se concretizar, precisa

    questionar, dessacralizar o existente. Nesse sentido, o momento histrico de mudana

    de paradigma propicia a sistematizao do discurso romanesco que tem se nutrido da

    polmica, da rplica, da atitude contestatria:

    Aponto trs dessas particularidades fundamentais que distinguem o

    romance de todos os gneros restantes: 1. A tridimenso estilstica do

    romance ligada conscincia plurilnge que se realiza nele; 2. A

    transformao radical das coordenadas temporais da representao

    literria no romance; 3. Uma nova rea de estruturao da imagem

    literria no romance, justamente a rea de contato mximo com o

    presente (contemporaneidade) no seu aspecto inacabado.

    Todos estes trs tipos de particularidade do romance esto ligados

    organicamente entre si, e todos eles esto condicionados por uma

    determinada crise na histria da sociedade europeia: sua sada das

    condies de um estado socialmente fechado, surdo e semipatriarcal,

    em direo s novas condies de relaes internacionais e de ligaes

    interlingsticas. A pluriformidade das lnguas, das culturas e das

    pocas, revelou-se sociedade europeia e se tornou um fator

    determinante de sua vida e de seu pensamento. (BAKHTIN, 1988,

    p.404)

    O contexto europeu, sobretudo do capitalismo mercantilista, da queda das

    monarquias absolutistas, das grandes navegaes, do colonialismo, das foras da cincia

    e tecnologia que adentram o universo da produo material e o mbito das ideias,

    propagando uma nova ordem social, afastando-se da escolstica e da tradio religiosa,

    propicia um estado social mais plural e de embate. Foras centrfugas rompem o poder

    das foras centrpetas anteriores. Esse dinamismo econmico, poltico e social tambm

    repercute no reino da linguagem, que incorpora essa multiplicidade e nova ordem

    revolucionria. A ordem liberal-burguesa se instaura, derrubando a ordem anterior no

    terreno tanto econmico quanto das ideias. So inmeros os autores a destacar esse

  • 28 Bakhtiniana, So Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013.

    novo ordenamento como realmente desestruturante e instaurador de novos paradigmas5.

    Bakhtin tambm v nessa perspectiva o contexto liberal-burgus e sua relao com o

    gnero romanesco. Obviamente que a nova ordem se torna a posteriori conservadora e

    a tambm ter implicaes monolgicas para a linguagem e cultura. O prprio

    romance-folhetinesco do sculo XIX segue uma lgica contrria racionalidade

    burguesa. O pensador russo, ao analisar esse gnero romanesco, no demonstra

    preconceito contra ele. Pelo contrrio, destaca o contradiscurso que a se concretiza, em

    oposio ordem liberal-burguesa. Mas, como temos aqui ressaltado, h essa ligao

    com o contexto imediato, mas tambm com o de longa durao. A obra bakhtiniana se

    refere sempre a essas duas coordenadas.

    3 O romance-folhetim em Bakhtin: o contradiscurso liberal-burgus

    Conforme Mikhail Bakhtin, os componentes formais e arquitetnicos do

    romance-folhetim do sculo XIX no constituem, por sua vez, apenas uma

    especificidade do contexto imediato, mas tambm deitam razes milenares na

    Antiguidade. Bakhtin, investigando a pr-histria do gnero romanesco, focaliza o

    romance grego de aventuras, na Antiguidade, classificando-o como romance de provas

    em que as personagens principais passam por inmeras aventuras e peripcias. Essas

    colocam prova o carter, a dignidade, a virtude das personagens que ao final triunfam,

    ultrapassando os difceis obstculos. Aqui, Bakhtin ressalta que as personagens so

    elaboradas de forma rgida, ou seja, no mudam do comeo ao fim, apenas reforam

    uma identidade inicial que se confirma a cada prova que ultrapassam. O enredo, o

    espao e as situaes so fabulosos e extraordinrios, no pertencendo ao cotidiano.

    Esse tipo de romance tem vida bastante longa e reeditado constantemente. Podemos

    perceber que essa estrutura em que o heri dado como uma unidade homognea e

    esttica, sempre igual a si mesma, no se alterando com a passagem do tempo, est

    presente, hoje, sobretudo, na teledramaturgia brasileira e esteve presente, em parte, nos

    romances brasileiros de orientao romntica e em vrios romances-folhetins do sculo

    XIX. Exemplo tpico dessa narrativa, no Brasil, seria parte da fico romntica, em que

    5A esse respeito, consultar Marx (2003), Leroi-Gourhan (1964), Hobsbawm (1993), que destacam o

    carter revolucionrio do ordenamento liberalburgus nos sculos XVIII e XIX.

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    muitas personagens sofrem inmeras provaes no tempo e no espao e isto apenas

    refora seu carter inicial (bondoso, virtuoso, viril, honesto, digno). Desse modo,

    percebemos que as razes desse tipo de romance so longnquas, no se limitando ao

    contexto imediato em que afloram.

    Bakhtin continua sua exposio sobre os romances de provas, ressaltando que

    grandes escritores como Balzac, Sthendal, Dostoivski, Dickens, Flaubert e Zola

    tambm dele se utilizaram, porm j com uma viso cronotpica diferenciada. Aqui o

    heri se submete a vrias provas, mas se modifica e altera o mundo proporo que as

    peripcias se desenrolam no tempo e no espao. L se encontra o homem formado e

    aqui o homem em formao: esta a diferena capital entre eles. Aqui o cotidiano, a

    histria nacional, a cultura local, o tempo biolgico agem sobre as personagens,

    modificando-as. O historicismo6 do sculo XIX passa a ser elemento estruturante da

    narrativa e o cronotopo dado a partir de outra chave.

    Ainda sobre o romance-folhetim em Bakhtin, ressaltamos que o terico russo

    apresenta uma viso positiva sobre as narrativas folhetinescas, citando inclusive Ponson

    du Terrail, vrias vezes, a fim de destacar a configurao carnavalesca de sua obra

    (Rocambole, a personagem principal que percorre todo o conjunto das obras de Ponson,

    se metamorfoseia em inmeros papis sociais que vo do criminoso ao justiceiro, do

    nobre ao encarcerado). No universo folhetinesco, a multiplicidade das peripcias; das

    tragdias; dos crimes; dos acasos; das situaes inusitadas e extraordinrias; dos

    dilogos exaltados e no limiar de situaes trgicas como a morte; a amplificao do

    enredo; o sentimentalismo exaltado; o universo dos fracos e injustiados e a

    flexibilidade do heri que assume diversas posies sociais, afasta a narrativa de uma

    possvel homologia com o universo burgus ordenado, bem comportado, lgico e

    racional. Esse afastamento aproxima o romance-folhetim da cultura popular em que,

    segundo Bakhtin, tem-se a totalidade das situaes, ocorrendo a imbricao, o

    nivelamento e o dialogismo dos opostos (o srio e o cmico; o baixo e o elevado; a

    verdade e a dvida; o bem e o mal; o jejum e a comida; o esprito e o corpo; o pobre e o

    rico; o aristocrata e o mendigo ). Talvez a resida uma das possveis explicaes que

    justifiquem o gosto popular pelas narrativas folhetinescas. Essa aproximao do

    6 Lwy destaca em sua obra trs correntes de pensamento e ao preponderantes no sculo XIX, a saber,

    o historicismo com base na formao dos estados nacionais, o marxismo e o positivismo. Mais detalhes

    conferir essa obra.

  • 30 Bakhtiniana, So Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013.

    universo popular est na raiz do prprio romance como gnero, pois, para Bakhtin, o

    romance deita suas razes na cultura popular e nos gneros cmicos que sempre se

    opuseram seriedade e ao monotom da cultura oficial. Bem longe estamos, no universo

    do romance-folhetim, da potica da unidade de tempo, espao e ao aristotlica. No

    romance-folhetim, tudo inflacionado e talvez por isso as crticas a essa variante

    romanesca sejam to contundentes. O universo burgus, movido pela racionalidade,

    busca o invariante, o mesmo, a ordem, o monotom, o equilbrio, o sensato e tudo que

    subverta esse ordenamento desvalorizado. O folhetim no se encaixa nessa ordem,

    sendo repelido. A obra de Bakhtin, em sua totalidade, recupera sempre os discursos e as

    prticas marginalizadas, colocados para fora do cannico, do oficial. Nesse sentido, o

    romance-folhetim tambm ser visto por Bakhtin a partir de uma perspectiva no

    cannica, sendo resgatado, especialmente, em seu poder de carnavalizar a cultura da

    ordem, do racional, do monotom. Bakhtin aponta todo um universo folhetinesco

    presente na obra de Fidor Dostoivski, exaltando a a criao de um universo no

    comedido, no ordenado pelo monotom burgus. O romance-folhetinisco responde a um

    contexto de ordenamento racional na perspectiva bakhtiniana, constituindo-se em outra

    voz em contraponto.

    Da, destacamos a importncia que Mikhail Bakhtin atribui stira menipeia

    como uma das fontes de constituio do gnero romanesco e do romance-folhetim como

    uma variante deste. As menipeias datam do sculo III aC e, em sntese, se constituem

    em discursos que buscam a verdade a partir de uma viso abrangente e carnavalizada.

    Essa busca se concretiza por intermdio da multiplicidade e simultaneidade de

    situaes, ambientes e gneros discursivos. A estrutura e temtica das stiras menipeias

    aproximam-nas dos romances de aventura e de provas que so constituintes dos

    romances-folhetins. Essa aproximao nos leva a constatar que o romance-folhetim no

    se liga apenas ao contexto do sculo XIX, mas vincula-se a uma temporalidade maior:

    Na menipeia aparece pela primeira vez tambm aquilo a que podemos

    chamar de experimentao moral e psicolgica, ou seja, a

    representao de inusitados estados psicolgico-morais anormais do

    homem - toda a espcie de loucura (temtica demonaca), da dupla

    personalidade, do devaneio incontido, de sonhos extraordinrios, de

    paixes limtrofes como a loucura, de suicdios, etc.

    [...]

  • Bakhtiniana, So Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013.

    31

    A menipeia plena de contrastes agudos e jogos de oxmoros: a hetera

    virtuosa, a autntica liberdade do sbio e sua posio de escravo, o

    imperador convertido em escravo, a decadncia moral e a purificao,

    o luxo e a misria, o bandido nobre, etc. A menipeia gosta de jogar

    com passagens e mudanas bruscas, o alto e o baixo, ascenses e

    decadncias, aproximaes inesperadas do distante e separado, com

    toda sorte de casamentos desiguais (1981, p.101).

    Alm disso, Bakhtin ressalta o carter publicstico7 das menipeias, ou seja, a

    ligao com o universo contemporneo ao texto. Essa caracterstica fundamental do

    gnero romanesco uma vez que, para o terico, o romance lida com o presente,

    carnavalizando-o, em contraposio epopeia que enaltece o passado. Essa publicstica

    se constitui no aspecto contingente e histrico das menipeias e podemos verificar que o

    romance-folhetim, retomando essa caracterstica, tambm incorpora o tempo

    contemporneo do escritor. O romance-folhetim, embora tenha componentes estruturais

    que se repetem, no pode ser entendido como uma estrutura que paira acima do

    contingente. Cada poca o revitaliza, modificando-o de acordo com o contexto social,

    histrico, poltico literrio e de leitura:

    Por ltimo, a derradeira particularidade da menipeia sua publicstica

    atualizada. Trata-se de uma espcie de gnero jornalstico da Antigidade, que enfoca em tom mordaz a atualidade ideolgica. As

    stiras de Luciano so, no conjunto, uma autntica enciclopdia da sua

    atualidade: so impregnadas de polmica aberta e velada com diversas

    escolas ideolgicas, filosficas, religiosas e cientficas, com

    tendncias e correntes da atualidade, so plenas de imagens de figuras

    atuais ou recm-desaparecidas, dos senhores das ideias em todos os campos da vida social e ideolgica (citados nominalmente ou

    codificados), so plenas de aluses a grandes e pequenos

    acontecimentos da poca, perscrutam as novas tendncias da evoluo

    do cotidiano, mostram os tipos sociais em surgimento em todas as

    camadas da sociedade, etc. Trata-se de uma espcie de Dirio de escritor, que provoca vaticinar e avaliar o esprito geral e a tendncia da atualidade em formao. As stiras de Varron, tomadas em

    conjunto, constituem esse Dirio do escritor (porm com acentuado predomnio do elemento cmico-carnavalesco). Encontramos a

    mesma particularidade em Petrnio, Apuleio e outros. O carter

    jornalstico, a publicstica, o folhetinismo e a atualidade mordaz

    caracterizam, em diferentes graus, todos os representantes da menipeia

    (1981, p.106)

    7O termo publicstico, extrado de Bakhtin, refere-se ao carter contingente e imediato a que se liga a

    forma literria. Doravante usamos esse termo nessa acepo.

  • 32 Bakhtiniana, So Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013.

    4 A questo da polifonia como utopia democrtica e descentralizadora em Bakhtin

    A genealogia do discurso romanesco encontra seu ponto de maturidade na prosa

    de FidorDostoivski, cuja arquitetura polifnica espelha um estgio avanado da

    conscincia ideolgico-lingustica do homem. A, a linguagem comporta em plenitude a

    alteridade, a ambivalncia, a ambiguidade, o duplo, a ironia. O discurso do autor-

    narrador j no manipula a voz do outro (personagem) de fora, tornando-a objetal8. O

    autor, utopicamente, j no expressa uma vontade de poder sobre a fala de suas

    personagens. As vozes, inter-relacionadas, mantm a autonomia e o poder de resistncia

    umas em relao s outras. No h o monoplio ou a hegemonia de umas sobre outras.

    O discurso romanesco de orientao polifnica formaliza esteticamente um estgio

    lingustico ideal em que o dissenso, o duplo, a inconclusibilidade so a nica realidade

    possvel. Fidor Dostoivski realiza no discurso romanesco a utopia de Bakhtin: a

    formao ideolgico-lingustica da conscincia do homem ocidental em que o conflito,

    a contradio e o mltiplo so elementos estruturantes. O romance polifnico, desse

    modo, a configurao formal de uma realidade extraliterria, pois formaliza a

    pluridiscursividade social com realismo e em sua totalidade heterognea. No romance

    polifnico, Bakhtin v a sada para a coisificao das relaes sociais visto que nesse

    tipo de romance as relaes entre o autor e o heri so de outra natureza. O autor no

    objetifica de fora o heri, construindo-o como uma entidade fechada e acabada. como

    se o autor falasse do heri sempre na presena dele, instigando-o a se defender e a

    problematizar o que se diz dele. Nos romances monolgicos, o autor fala sobre o heri.

    Este est ausente, no podendo problematizar o que dizem de si. Entretanto, entre o

    8Toma-se o termo de Mikhail Bakhtin (1988) para quem o narrador e o leitor tm um excedente de viso

    em relao ao fato narrado, pois o narrador o mediador da fbula, podendo criticar, alterar, enaltecer ou

    deturpar o fato, dependendo de suas intenes discursivas. A exotopia se constri a partir de vrios

    expedientes formais. Essa exotopia, no entanto, formaliza-se sob graus diversos. Nem sempre o

    distanciamento do outro ocorre sem conflitos, pois esse outro resiste ao enquadramento discursivo do

    narrador. Exemplo disso se d no uso do discurso indireto livre em que as fronteiras discursivas das falas

    se dissipam, formando um construto dialgico complexo. Torna-se o heri objetal quando o narrador se

    distancia e o representa de modo monolgico. Porm, ao lhe dar voz e interagir com esta em um contexto

    enunciativo dialgico, a exotopia diminui. possvel ler a relao conflituosa entre o narrador, Rodrigo, e

    a personagem principal, Macaba, da obra A hora da estrela de Clarice Lispector, a partir dessa categoria,

    pois ali o narrador, intelectualizado, percebe dificuldades em narrar sobre sua herona e torn-la objetal,

    visto que ela resiste, inclusive no reino das palavras. Boa parte da fico metaficcional da Literatura

    Brasileira pode receber uma leitura a partir dessa categoria, que envolve a complexa articulao entre o

    contexto narrativo do narrador e o enquadramento da voz do outro nesse mbito.

  • Bakhtiniana, So Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013.

    33

    romance polifnico pleno (Dostoivski) e o romance monolgico, h uma gama variada

    de narrativas que combinam esses dois extremos.

    A obra de Bakhtin pode ser apreendida como um discurso emancipatrio9. O

    autoritarismo presente na cultura oficial e nos gneros elevados, que nega a

    pluridiscursividade, deve ser carnavalizado. As razes dessa carnavalizao que

    desestabilizam o carter fechado do discurso srio se encontram, sobretudo, na cultura

    popular cmica e nos gneros cmicos. Toda essa fora centrfuga das atitudes

    culturais-discursivas que promovem a crtica cultura do centro so ativadas pelo

    gnero romanesco. Esse funciona como o grande heri da narrativa emancipatria de

    Bakhtin. Desse modo, vemos que a vida penetra a arte a partir da elaborao literria do

    plurilinguismo e a arte ilumina a vida medida que recupera toda uma totalidade

    secular no oficial da cultura do riso popular e do carnaval, que tem sido neutralizada

    pela cultura do srio. Externo e interno se articulam, iluminando-se e construindo-se

    reciprocamente.

    Podemos estabelecer, salvaguardadas as diferenas, alguns pontos em comum

    entre Bakhtin e Lukcs, sobretudo em relao ao romance. Em Teoria do romance

    (2000), o terico hngaro destaca que o discurso romanesco narra as vicissitudes, os

    conflitos e a dicotomia existentes entre o homem e o social. Do mesmo modo, Bakhtin

    assevera que Um dos principais temas do romance justamente o tema da inadequao

    de um personagem ao seu destino e sua situao. O homem ou superior ao seu

    destino ou inferior sua humanidade (1988, p.425). Para Lukcs, o romance a um

    s tempo biografia e crnica social. O mundo fragmentado e o heri no consegue

    entrar em sintonia com o social e experienciar uma vivncia de totalidade (exatamente o

    oposto ocorre nas epopeias). Para Bakhtin, a diferenciao entre romance e epopeia

    tambm se d nessa direo. Nesta, o heri no se acha desgarrado da comunidade, mas

    atrelado a ela por um discurso em que todos se reconhecem. J, no romance, o heri

    entra em atrito com a comunidade. Para Lukcs, o heri, imbudo do individualismo, do

    9A esse respeito,consultar a obra de G. Tihanov, Reification and Dialogue: Aspects of the Theory of

    Culture in Lukcs and Bakhtin. O autor traa um paralelo interessante entre Lukcs e Bakhtin, destacando

    que ambos apresentam um discurso emancipatrio e utpico, sendo que para o filsofo hngaro o heri de

    libertao se constitui nas classes operrias e, para o filsofo russo, no gnero romanesco. Esse, sobretudo

    na variao polifnica, capta a pluralidade discursiva em constante agonstica, representando, desse

    modo, a conscincia humana em seu mais elevado grau de maturidade, liberta do monologismo que a tem

    aprisionado. Desse modo, Bakhtin v a possibilidade de libertao do autoritarismo da cultura oficial a

    partir da linguagem, apreendendo-a em sua dialogicidade inerente.

  • 34 Bakhtiniana, So Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013.

    romantismo e do idealismo abstrato burgus, busca de forma isolada valores autnticos

    em um mundo degradado (2000). Tanto as ideias abstratas quanto o isolamento tornam

    essa busca infrutfera. Entretanto, nesse priplo, o heri adquire conscincia de si, ora

    sendo menor ora maior que o social. Essa conscincia, no entanto, no tem poder de

    reverter a realidade, pois essa reverso s possvel em mbito coletivo e isso ocorre,

    parcialmente, nos romances de Tolsti, quando as personagens, imbricadas entre si,

    atingem momentos epifnicos e de possvel transformao do real e de si mesmas. Essa

    constatao sobre o ser isolado no se aproximaria da crtica fundamental que Bakhtin

    faz contra o subjetivismo idealista que aprisiona o homem em si mesmo quando o

    toma como fonte individual de saber e de sentido? Lukcs termina seu maravilhoso

    ensaio, vazado em uma linguagem altamente lrica e potica, enfatizando que a obra de

    Dostoivski uma nova forma que talvez configure plenamente esse mundo coletivo em

    que o heri pode atingir a totalidade perdida (o mundo das epopeias gregas espelhava

    um heri adaptado totalidade e coletividade). interessante notar que a obra de

    Mikhail Bakhtin parece comear onde Lukcs finalizou. Bakhtin enfoca justamente a

    produo de Dostoisvki, vendo a, a partir da arquitetura polifnica, em que somente

    pelo e no coletivo, os heris entram em contato com a totalidade pluridiscursiva do

    mundo, uma sada para a coisificao do ser humano e para o resgate da totalidade

    heterognea. Ambos os tericos viram em Dostoivski uma forma nova para novos

    tempos. Essa nova forma, tanto para Bakhtin quanto para Lukcs, espelha e ilumina

    uma realidade melhor, em que o homem no existe enquanto ser isolado do outro,

    consistindo-se em um valor poltico-utpico presente em suas obras.

    Para Bakhtin, a questo da totalidade e do coletivo encontra na obra de

    Dostoivski a sua melhor representao. No romance polifnico do escritor russo,

    ocorre a representao literria da desintegrao de quaisquer relaes hierrquicas,

    recuperando-se, de certa forma, em outro tempo histrico, as antigas relaes sociais de

    uma comunidade agrria e essencialmente coletiva, onde todos usufruam o que

    produziam. Na polifonia, a recuperao do coletivo se faz via linguagem, em que o

    outro uma presena constante, visto ser a linguagem uma realidade essencialmente

    intersubjetiva. Aqui, o ser isolado, o particular, o privado so sempre atravessados pela

    coletividade, como ocorria em uma sociedade agrria em que o homem era pura

    exterioridade. Eis a certo retorno quele mundo agrrio em que tudo vivido no

  • Bakhtiniana, So Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013.

    35

    coletivo e o ser isolado ainda no existe. Essa idealizao de Bakhtin sobre as

    sociedades agrrias primitivas em contraposio s sociedades industriais, em que a

    diviso de classes sociais estrutural, est presente, sobretudo, no captulo

    Fundamentos folclricos do cronotopo em Rabelais (1988).

    O romance como gnero, para Bakhtin, conflita com os outros gneros, pois os

    integra, em uma atitude dialgica, revelando-os em seu carter limitado, histrico. O

    romance um discurso indireto medida que enquadra os outros discursos e gneros,

    representando-os. Porm, proporo que os representa, tambm representado por

    eles, pois eles dialogicamente so internos ao romance. Alm disso, o romance no

    apenas traz para dentro de si os outros gneros do discurso como tambm autocrtico,

    representando-se a si mesmo em sua limitao e relatividade. Aqui temos que

    especificar que, para Bakhtin, h dois momentos para o romance em sua trajetria rumo

    ao romance polifnico que se constitui em pice da estetizao da formao da

    conscincia ideolgico-lingustica. Esses dois momentos definem dois tipos de

    romance: os romances de primeira linha e os de segunda linha.

    Os romances de primeira linha recuperam o plurilinguismo social e o

    internalizam, porm, aqui ocorre como que uma justaposio desses discursos. O autor

    os expe como se estivessem em estado de museu, visto que eles no compem um todo

    dialogizado, mas se colocam lado a lado, entretanto, j nos dando a ideia de um todo

    no homogneo. Alm disso, Bakhtin enfatiza que, nessa variante romanesca, o discurso

    enquadrante trata de enobrecer os discursos que adentram o romance. Ocorre uma

    espcie de literaturizao das falas que passam para o interior do romance. Esse

    enobrecimento cria uma espcie de linguagem literria enobrecida e homognea. Esse

    discurso romanesco acaba dando o tom cultural, pois nos romances de primeira linha

    que os leitores vo buscar informao para agir no cotidiano: por exemplo, como se

    comportar nas festas, como escrever cartas amorosas, como relacionar-se socialmente.

    Essa variante passa a ser um guia de como agir de modo elegante, refinado e bem

    disciplinado na sociedade. Os romances de primeira linha tendem ao monologismo. O

    plurilinguismo em si penetra o romance de primeira linha; enquanto o plurilinguismo

    para si a matria prima do romance de segunda linha. Este, na realidade, constitui-se

    no objeto de estudo de Bakhtin.

  • 36 Bakhtiniana, So Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013.

    Os romances de segunda linha teriam em Dom Quixote de Miguel Cervantes

    um modelo exemplar, pois a os romances de primeira linha seriam incorporados e

    mostrados em sua limitao e relatividade histrica. Dom Quixote recupera o romance

    de cavalaria para mostr-lo em sua incapacidade de ler o mundo em virtude das foras

    centrpetas que atuam nessa variante, unificando as linguagens e os gneros justapostos

    a partir de um centro que os enobrece. O heri, Dom Quixote, vive em busca de um

    mundo perdido, idealizado, enobrecido, literaturizado. Esse discurso que parodiado e

    dessacralizado em Dom Quixote. Na literatura brasileira, Candido destaca a obra

    Filomena Borges, de Alusio Azevedo, como um romance que pode ser analisado sob

    essa luz medida que o escritor realista carnavaliza e revela as limitaes do discurso

    romntico e idealizador como um dos principais componentes formais da obra10

    . Os

    romances de segunda linha so inevitavelmente crticos do heri literrio e autocrticos

    no sentido de que problematizam o fazer literrio. So discursos sempre indiretos que

    parodiam discursos j convencionais, cristalizados e coisificados. So discursos

    dialogicamente organizados medida que se constroem na representao crtica de

    outro discurso. Bakhtin ressalta que, no sculo XIX, h predominncia das narrativas

    orientadas pela variante de segunda linha:

    Os romances da primeira linha estilstica caminham para o

    plurilingismo de cima para baixo, eles, por assim dizer, se rebaixam

    at ele (o romance sentimental ocupa uma posio particular, entre o

    plurilingismo e os grandes gneros). Contrariamente, os romances da

    segunda linha vo de baixo para cima: da profundeza do

    plurilingismo eles sobem para as esferas superiores da linguagem

    literria apoderando-se delas. O ponto de vista sobre a literaturidade

    aqui o ponto de partida. (1988, p.192)

    Os romances de primeira linha que podem ser exemplificados pelos romances

    de cavalaria, na realidade, constituem-se como uma enciclopdia do bem e justo dizer,

    de como a linguagem deve ser falada e escrita. Nesses romances predomina uma atitude

    monolgica, pois nessa variante os vrios gneros discursivos passam por uma

    maquiagem a fim de se enobrecerem, reforando-se a ideia de um centro que a todos

    10

    Consultar A. AZEVEDO, Filomena Borges. So Paulo: Martins Editora, prefcio de Antonio Candido,

    1977, p.4. Boa parte da obra de Alusio Azevedo de cunho folhetinesco pode ser relida a partir desse

    prisma, ou seja, de um confronto ao universo burgus bem comportado e de uma carnavalizao da

    linguagem romntica. Nesse sentido, essa categoria em Bakhtin pode propiciar uma releitura no campo da

    literatura brasileira, sobretudo a folhetinesca.

  • Bakhtiniana, So Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013.

    37

    domina e imprime uma mesma direo. J os romances de segunda linha parodiam,

    ironizam e dessacralizam esse estilo enobrecido. A temos uma atitude dialgica que

    no unifica, mas estabelece o conflito. No interior do mesmo enunciado, temos o

    discurso nobre e o pardico, esclarecendo-se mutuamente. Ambos preservam a sua

    autonomia, mas uma autonomia inter-relacionada dialogicamente. Nessa variante, em

    vez de atuarem as foras centrpetas que homogenezam a linguagem, encontram-se as

    foras centrfugas que trabalham sempre no sentido de preservar a guerra discursiva, a

    multiplicidade, a alteridade. Na variante de primeira linha predomina uma orientao

    pica, monolgica e oficial, em que h uma construo em monotom para o discurso; j

    na variante de segunda linha, a atitude para com o plurilinguismo se faz por

    intermdio da carnavalizao, em que o oposto e o contraditrio sempre esto presentes,

    minando a homogeneidade. Essa perspectiva permite, por exemplo, analisar a obra O

    alienista de Machado de Assis, em que o discurso e a prtica cientificistas que

    enformam a personagem principal, Simo Bacamarte, so carnavalizadas e

    desacreditadas pelo narrador a partir de outras falas de outros personagens. O discurso

    cientificista aqui uma estilizao, sendo representado em suas limitaes e

    interferncias drsticas na realidade. Boa parte da fico real-naturalista oitocentista

    brasileira pode ser analisada sob esse prisma, uma vez que incorpora o discurso

    cientificista imperante e em ascenso na poca, algumas vezes enaltecendo-o, outras

    vezes, criticando-o. A linguagem cientfica e a literria formam um hbrido dialgico e

    isso pode ser investigado a partir da categoria referida. Bakhtin v na primeira linha

    um compromisso com a totalidade unificada e sempre igual a si mesma; j na segunda

    linha, v um compromisso com a totalidade, mas esta instituda a partir da

    multiplicidade em constante conflito e agonstica:

    Abordaremos aqui a categoria extremamente importante da

    literaturidade geral da linguagem apenas de passagem. O que nos importa o seu significado no na literatura em geral nem na histria

    da linguagem literria, mas somente na histria do estilo romanesco.

    Aqui esse significado enorme: o significado direto nos romances da

    primeira linha estilstica, e indireto nos da segunda linha.

    Os romances da primeira linha estilstica aparecem com a pretenso de

    organizar e de ordenar estilisticamente o plurilinguismo da linguagem

    falada e dos gneros epistolares correntes e semiliterrios. Os

    romances da segunda linha estilstica transformam essa linguagem, ou

    seja, os indivduos literrios com seus pensamentos e atos literrios nos seus principais personagens (1988. p.178).

  • 38 Bakhtiniana, So Paulo, 8 (1): 21-39, Jan./Jun. 2013.

    Partindo dessa abordagem bakhtiniana sobre a linguagem e sobre o gnero

    romanesco, temos investigado romances da Literatura Brasileira do sculo XIX e XX,

    objetivando entender a viso arquitetnica ali constituda e os elementos

    composicionais e formais que constroem aquela viso. Contexto imediato, histria de

    longa durao, contexto narrativo monolgico ou dialgico, hierarquia de vozes, heris

    tornados objetais, enquadramento discursivo das vozes dos heris e das vozes sociais

    (discurso direto, indireto, indireto livre), romance de primeira e segunda linhas so

    categorias que tm sido verificadas na leitura dos romances. A fundamentao terica

    em Mikhail Bakhtin , antes de tudo, uma posio poltica a partir da qual a pesquisa

    pode levar para a sala de aula da graduao e da ps-graduao uma discusso sobre

    centralidade da linguagem na constituio ontolgica do ser social e na possibilidade de

    emancipao mediante uma postura mais dialgica, polifnica e carnavalizada perante

    foras centrpetas do discurso nico. Podemos ler a produo romanesca-brasileira a

    partir dessas categorias bakhtinianas, investigando a capacidade crtica, autocrtica,

    libertria, conservadora, reprodutora de valores hegemnicos de nossa produo

    literria. o que temos objetivado fazer a partir da leitura de romances com nossos

    alunos e pesquisadores de grupo de pesquisa, tendo por base a teoria bakhtiniana e

    outras que dialogam com ela.

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    Recebido em 05/12/2012

    Aprovado em 21/06/2013