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história, são paulo, 23 ( 1-2 ) : 2004 85 A “tagarelice” de Macedo e o ensino de história do Brasil Dislane Zerbinatti MORAES 1 RESUMO : Neste artigo realizamos a leitura do romance A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, sob o ângulo da produção de textos que visavam à construção da idéia de modernidade, valor comum nos discur- sos médico, pedagógico e historiográfico no século XIX. Tratamos tam- bém de fornecer elementos metodológicos para a análise histórica de do- cumentos literários e avaliamos os limites e possibilidades de utilização dessa linguagem no ensino de História. Entendemos a literatura como uma fonte documental específica, que merece uma análise acurada para que se possa apreender os elementos históricos associados à dimensão textual e aos contextos de produção e recepção. PALAVRAS - CHAVE : Ensino de História; Literatura brasileira; História cultural do Império. O ideal romântico-nacionalista de criar a expressão nova de um país novo encontra no romance a linguagem mais eficiente. Basta relancear em nossa literatura para sentir a importância deste, mais ainda como instrumeto de interpretação social do que como realização artística de alto nível. Este alto nível, poucas vezes atingido, aquela interpretação levada a efeito com vigor e eficiência equivalentes aos dos estudos históricos e sociais. (Antonio Candido) 2 Neste artigo empreendemos a leitura do romance A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, com o objetivo de construir uma meto- dologia de interpretação de textos literários no ensino de História do

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  • histria, so paulo, 23 (1-2): 2004 85

    A tagarelice de Macedo e o ensino de

    histria do Brasil

    Dislane Zerbinatti MORAES1

    R E S U M O: Neste artigo realizamos a leitura do romance A Moreninha, deJoaquim Manuel de Macedo, sob o ngulo da produo de textos quevisavam construo da idia de modernidade, valor comum nos discur-sos mdico, pedaggico e historiogrfico no sculo XIX. Tratamos tam-bm de fornecer elementos metodolgicos para a anlise histrica de do-cumentos literrios e avaliamos os limites e possibilidades de utilizaodessa linguagem no ensino de Histria. Entendemos a literatura comouma fonte documental especfica, que merece uma anlise acurada paraque se possa apreender os elementos histricos associados dimensotextual e aos contextos de produo e recepo.

    PA L AV R A S - C H AV E : Ensino de Histria; Literatura brasileira; Histriacultural do Imprio.

    O ideal romntico-nacionalista de criar

    a expresso nova de um pas novo encontra no

    romance a linguagem mais eficiente. Basta

    relancear em nossa literatura para sentir aimportncia deste, mais ainda como instrumeto

    de interpretao social do que como realizao

    artstica de alto nvel. Este alto nvel, poucas

    vezes atingido, aquela interpretao levada

    a efeito com vigor e eficincia equivalentes

    aos dos estudos histricos e sociais.(Antonio Candido)2

    Neste artigo empreendemos a leitura do romance A Moreninha, deJoaquim Manuel de Macedo, com o objetivo de construir uma meto-dologia de interpretao de textos literrios no ensino de Histria do

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    Brasil. Poesias, romances e crnicas so modalidades de textos citadoscom alguma freqncia nos livros didticos de Histria e circulam portodo o currculo do ensino fundamental e mdio. Ora eles so usadoscomo sugesto ou introduo dos mais variados assuntos, com o objeti-vo de atrair a ateno do aluno, ora so apropriados pelo discursohistoriogrfico como fontes documentais.

    Estamos pensando aqui no aproveitamento destes textos como ele-mentos constitutivos do ensino de Histria, e no como ilustrao deconceitos histricos desenvolvidos em outra parte. Quais as dimenseshistricas de um texto literrio? Que relaes histricas esto presentesem textos que foram escritos seguindo princpios artsticos? De que for-ma podemos superar os anacronismos e a leitura superficial, quandotrabalhamos com a fico nas aulas de Histria? Essas e outras questes,muito complexas, nos motivam neste estudo.

    Os textos literrios, por terem sido escritos por pessoal capacitado escritores de renome so muito atraentes, seduzindo os leitoresiniciantes alunos da escola bsica , e respondem s expectativas dosprofessores, que se sentem mais tranqilos e motivados com a adesodos alunos s aulas. No s a literatura preenche estas caractersticas,como outros tipos de documentao: cinema, fotografia, msica, artesplsticas. O ingresso destas linguagens na sala de aula traz a questo daleitura adequada, porque elas so modalidades especiais de discursoinseridas em gneros, estilos e cnones literrios, e conseqentemente,no se efetivam como objetos neutros, que falariam objetivamente darealidade como se fossem espelhos. Lembra-nos Antonio Candido: Ora,em boa literatura, apenas na aparncia a prosa natural ou equivalenteda fala diria, entre ambos h um afastamento necessrio, sempre que oescritor pretende algo mais do que divertir um pblico mediano.3

    Esta documentao precisa ser entendida como olhares sociais comdeterminaes histricas especficas. So documentos relativos ao uni-verso cultural do momento em que foram escritos. Muitas vezes, o maisimportante esclarecer o sentido conferido obra pelo autor, que faz amediao entre o real e a fico, pois como se costuma dizer existemvrios nveis de realidade presentes na literatura. Citando Nicolau Sev-cenko, a propsito do estudo de Lima Barreto e Euclides da Cunha:

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    O estudo da literatura conduzido no interior de uma pesquisa historio-grfica, (...) preenche-se de significados muito peculiares. Se a literaturamoderna uma fronteira extrema do discurso e o proscnio dosdesajustados, mais do que o testemunho da sociedade, ela deve trazer emsi a redeno dos seus focos mais candentes de tenso e a mgoa dos afli-tos. Deve traduzir no seu mago mais um anseio de mudana do que osmecanismos de permanncia. Sendo um produto de desejo, seu compro-misso maior com a fantasia do que com a realidade. Preocupa-se comaquilo que poderia ou deveria ser a ordem das coisas, mais do que com oseu estado real.4

    Assim, podemos dizer que os textos literrios so objetos comple-xos, sobre os quais recaem determinaes de vrios nveis de profundi-dade, ligados vida mental e estrutura socioeconmica. Os textos pro-duzem jogos de mediaes, reconfiguram o real, montando por meio dafico um mundo novo, de acordo com o sistema ideolgico e literrioem que o autor est inserido. Com relao ao real, que a matria detoda obra literria, estabelecer uma homologia, tanto na forma de cari-catura, ironia, comicidade, alegoria, enfim, metforas de todo tipo, quantona forma de estruturas narrativas, que carregam consigo concepes demundo.5

    Para uma boa compreenso dos textos literrios devemos levar emconta trs elementos indicados por Antonio Candido: um conjunto deprodutores literrios, mais ou menos conscientes de seu papel, um con-junto de receptores, formando os diferentes tipos de pblico, sem os quaisa obra no vive e um mecanismo transmissor (de modo geral uma lin-guagem traduzida em estilos) que liga uns e outros.6

    SISTEMA LITERRIO ROMNTICO E AMBINCIA

    HISTRICO-CULTURAL DO IMPRIO

    Tomando este modelo como base de nossa interpretao, iniciare-mos nosso estudo sobre A Moreninha buscando reconstituir o sistemaliterrio formado pelos escritores romnticos, destacando seu projetoideolgico para a sociedade brasileira e identificando as marcas desseprojeto no texto. A leitura de Macedo estratgica no ensino de Histria

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    do Brasil porque o autor viveu e atuou em uma sociedade que passavapor transformaes e estabilizao de coordenadas de pensamentolanadas ao Pas com a vinda da Famlia Real e com o processo de Inde-pendncia do Brasil. As condies do meio intelectual mudaram com avinda da Famlia Real, que se viu na obrigao de criar instituies cul-turais e artsticas. Foram implantados cursos superiores, escolas tcni-cas, grande imprensa. As revistas literrias, como Niteri, Revista Brasi-liense de Cincias, Letras e Artes (1836), Minerva Brasiliense (l853-l844) eGuanabara (l849-l855), deram continuidade efervescncia intelectual,formando a tendncia romntico-nacionalista brasileira. Niteri trazia aepgrafe: Tudo pelo Brasil, e para o Brasil.7

    Os elementos biogrficos que constituem o ncleo de sua forma-o como escritor tambm so relevantes para o entendimento do pro-cesso de construo do pensamento da elite intelectualizada sobre o Brasil.Macedo fez carreira como professor de Histria e de Geografia do Brasilno Colgio Pedro II, foi preceptor dos netos do imperador, filhos da prin-cesa Isabel, e ocupou cargos polticos de mdio porte. Membro do Parti-do Liberal, foi deputado provincial e deputado federal de l864 a l868 e del878 a l881. Participou ativamente do Instituto Histrico e GeogrficoBrasileiro, ocupando os cargos de secretrio (l852-l856) e orador efetivo(l857-l881). Fundou com Porto Alegre e Gonalves Dias em l849 a revis-ta Guanabara. Como historiador escreveu muito pouco, destacando-seum ensaio sobre as implicaes da invaso holandesa. Escreveu relatrios,oraes necrolgicas e biografias dos colegas do Instituto.8 Dizia-se dis-cpulo de Varnhagen e, como este, concentrou seus esforos e pesquisana construo de uma imagem positiva da monarquia. Segundo JosHonrio Rodrigues, Macedo foi sempre um liberal conservador, quer comohistoriador, quer como poltico.9

    Joaquim Manuel de Macedo (l820-l882) escreveu A Moreninhaquando tinha 23 anos de idade e estava se formando em Medicina. Dapara a frente notabilizou-se como romancista, dramaturgo, poeta e ora-dor. Ao mesmo tempo em que escrevia o romance, defendia sua tese dedoutoramento, Consideraes sobre a Nostalgia. Tanto no romance comona tese, percebe-se sua tendncia ao estudo dos sentimentos e interessepelas questes de seu tempo. interessante perseguir os conceitos mdi-cos presentes na sua obra literria, que em uma primeira leitura poderia

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    ser identificada, como de fato a consideraram alguns crticos, como sendoum mero romance folhetinesco sobre namoros e vida social da corte. claro que A Moreninha retrata esse ambiente da corte, mas um romanceromntico que tem como objetivo fazer, como de resto toda a literaturaromntica, uma interpretao da realidade brasileira, e simultaneamente,uma proposta de modernizao do Pas, eliminado-se, no imaginrio so-cial, o seu passado colonial e dependente da cultura portuguesa. No Bra-sil, jornalistas, poetas, romancistas vo constituir-se em uma elite inte-lectual com participao direta na vida poltica do Pas. As circunstnciasde escassez de livros e de dificuldades de instruo elevavam a posiodos escritores, os quais assumiram funes de carter pblico e seguiramo ideal ilustrado europeu, preocupando-se com as questes sociais.

    O ideal de nacionalidade o fermento que ensejou toda a obra ro-mntica. A medicina, tanto quanto a literatura, nesse perodo assumi-ram significado essencial. O campo da medicina trazia os princpios cien-tficos para o Pas, e montava um corpo burocrtico especializado para oEstado, que buscava se consolidar. Jurandir Freire Costa, no livro OrdemMdica e Norma Familiar, discorre sobre o desenvolvimento das teoriashigienistas, dentro do campo da Medicina, e suas conseqncias na or-ganizao da sociedade. Estabelece as relaes entre fortalecimento doEstado Independente Brasileiro, o crescimento do poder mdico e o fe-nmeno da urbanizao. importante ressaltar que uma das fontespara o seu trabalho foram as teses de doutoramento defendidas no scu-lo XIX na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, como a que foi de-fendida por Macedo.10

    As reflexes dos intelectuais que exerciam variadas funes sociais,associadas s mudanas polticas e culturais ensejaram modernas pro-postas de educao escolar e sentimental da sociedade. Os escritores de-fenderam novas maneiras de conceber a vida infantil, a juventude, a ve-lhice, o namoro e o casamento. Drsticas transformaes atingiram ospapis sociais feminino e masculino e a maneira de representar o senti-mento amoroso. Essas transformaes culturais estavam relacionadas,como se sabe, ao movimento internacional de consolidao do modo devida burgus.11

    No romance estudado, somos levados aos tempos do incio do Se-gundo Reinado. A Moreninha foi publicado em l844, poca em que, pas-

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    sado o perodo regencial, os ares democrticos permaneciam no Pascomo possibilidade ou utopia. No entanto, a opo monrquica indica-va uma orientao poltica conservadora. Esses primeiros grupos letra-dos viviam esse momento de transio; eram uma gerao vacilante,tanto do ponto de vista poltico quanto no plano literrio. O grupo osci-lava entre duas estticas, o neoclassicismo e o romantismo, e entre duasatitudes polticas, certo liberalismo de origem regencial e o respeitoso aca-tamento ao Monarca, analisa Antonio Candido. Os embates eram calo-rosos e eles foram responsveis pela criao da vida literria no Brasil,e conseqentemente, tm enorme importncia na configurao da nos-sa vida mental.12

    Para entendermos melhor essa gerao, necessrio lembrar que oiderio romntico externo consistia nas seguintes proposies: f no avan-os materiais da cincia; utopia de sociedade humanitria e igualitria;instalao de uma nova sociabilidade representada pela vida urbana bur-guesa e civilizada, com controle sobre si mesma; reconhecimento da his-tria como elemento constitutivo do presente. Essa ateno histrialeva os romances romnticos a terem grande fora realista, na medidaem que se propem a pesquisar a sociedade brasileira e traduzem, litera-riamente, as tenses sociais. Por outro lado, forte o acento moraliza-dor, pois idealiza a nao moderna. Macedo chegou a dizer que atravsde sua atividade como escritor queria educar com esmero.

    Alm disso, no podemos esquecer que ele obteve grande sucessocomo escritor, pois sua obra tornou-se muito popular, abrindo cami-nho para outros escritores, ajudando na formao de pblico e nainstitucionalizao da profisso. O empenho educativo da obra literriade Macedo talvez possa ser associado, tambm, sua atividade profissio-nal como professor de Histria e Geografia do Brasil, secretrio e mem-bro do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Escreveu livros did-ticos nas reas de Histria e Geografia, e provavelmente foi o autor maislido do sculo XIX. Seu livro Lies de Histria do Brasil, de l860, foieditado 11 vezes, publicando-se em mdia seis mil exemplares em cadauma das edies.13

    O romance, por sua vez, era compreendido como elemento de edu-cao informal da sociedade. Veja-se o comentrio de um crtico da po-ca sobre o romance Vicentina, de l853:

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    O romance dorigem moderna, veio substituir as novelas e as histriasque tanto deleitavam a nossos pais. uma leitura agradvel e diramosquase um alimento de fcil digesto proporcionado a estmagos fracos.Por seu intermdio pode-se moralizar e instruir o povo fazendo-lhe che-gar o conhecimento de algumas verdades metafsicas, que alis escapariam sua compreenso. Se o teatro foi justamente chamado a escola dos cos-tumes, o romance a moral em ao [...].14

    Criar uma sociedade nova, com valores do individualismo burgus,levaram Macedo a produzir obra copiosa, 20 romances tratando de perfisfemininos e histrias de ascenso social por meio de casamentos, 14 pe-as de teatro e obra variada de cunho documental, como Memrias daRua do Ouvidor (l878). Suas obras mais prestigiadas pela crtica literria epelos historiadores so, alm de A Moreninha, O Moo Loiro (1845), per-sonagem com uma bondade incrvel; Os Dois Amores (l848), anlise dafisiologia do corao do pobre e das contradies nas relaes entre ricose pobres; Rosa (l849), romance que revela a natureza histrica das com-plicaes amorosas; As Vtimas Algozes (l869), em que examina os efeitosmorais da escravido. A publicao do primeiro romance de Macedo coin-cidiu com o desenvolvimento da imprensa de grande porte e com a tra-duo de literatura folhetinesca francesa (George Sand, Chateaubriand,Balzac, Dumas, Eugne Sue). Esses fatores concorreram para a ampliaodo pblico leitor e o aprimoramento do gosto pelo gnero romanesco.Marlise Meyer, em estudo sobre os folhetins, relata como os autores nacio-nais e internacionais eram simultaneamente lidos e prestigiados por lei-tores e pela sociedade de literatos. Por exemplo, os jornais de l844 traziamanncios publicitrios dos livros de Macedo, A Moreninha, e de EugneSue, Les mistres de Paris, j com traduo para o portugus. No mesmoano, o livro de Eugne Sue comeou a ser publicado em forma de folhe-tim no rodap do Jornal do Comrcio. A prtica de leitura j indicava oscaminhos do fazer literrio, mobilizando gneros, estilos e temas.15

    UMA APROXIMAO AO TEXTO DO ROMANCE

    A Moreninha uma histria contada por um narrador oniscienteexterno aos acontecimentos. O livro est dividido em 24 captulos cur-tos, com episdios completos, que poderiam ser lidos diariamente nos

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    jornais. O narrador vai distribuindo no texto pistas para o desvendamentoda trama. Trata-se da histria de amor de Augusto e Carolina, a Moreni-nha. O tempo da narrativa curto, os episdios acontecem durante umms, entre os dias 20 de julho e 20 de agosto. O narrador minucioso naindicao do tempo, mostrando a evoluo dos sentimentos e as trans-formaes pelas quais os personagens passam. Quatro rapazes, Fabrcio,Leopoldo, Filipe e Augusto, estudantes de medicina, vo passar o do-mingo de SantAna na casa da av de um deles, Filipe. L os jovens na-moram as primas de Filipe e Augusto conhece Carolina, jovem de 15anos travessa como beija-flor, inocente como uma boneca, faceira como opavo, e curiosa, como ...uma mulher (p. 81).16 Augusto defendia a tesede que se deveria amar todas as mulheres, entregar-se ao amor apaixo-nadamente. A entrega deveria ser total, mas os amores seriam passagei-ros e, por ele ser um amador de todas as moas, no se fixaria em umaem particular. Da a fama de Augusto de ser volvel. O rapaz aposta comos amigos que, se se apaixonasse por uma moa durante o perodo deum ms, ele teria que escrever um romance.

    Depois de vrias peripcias, cenas cmicas e lances de desencontro,Augusto se apaixona perdidamente pela Moreninha. Mas ele vive umdilema. Quando criana havia vivido um episdio marcante de encon-tro e promessa de amor eterno a uma menina, que perdeu de vista. Oepisdio importante para a compreenso dos aspectos histricos pre-sentes no texto porque uma manifestao do humanitarismo, um dosvalores da utopia romntica, e por isso ser aqui narrado. Augusto com13 anos e a menina com 8 anos haviam socorrido um ancio doente edado algum dinheiro para a famlia. O ancio, delirando, fez um ritualde casamento entre as crianas, abenoando-as e dizendo que a virtudese deve juntar, assim como o vcio se procura, (...) So dois anjos que seunem (...) (p.112). Os smbolos do casamento so dois objetos pessoaistrocados entre as crianas: um camafeu e uma esmeralda. Ao final doromance, desvenda-se o segredo: Augusto, na verdade, havia encontradoa menina que lhe dera a esmeralda, a Moreninha, e os jovens se tornamnoivos, com a aprovao da famlia. A histria muito simples, mas oenredo muito complicado. Cada captulo, atravs de um realismo mi-do, vai examinando elementos essenciais, estruturais, da sociedade bra-sileira do sculo XIX.

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    A escolha do tema do amor no se explica pelo fato de o romanceser dirigido ao pblico feminino, nem porque o sexo seja motivo liter-rio caro aos romancistas franceses. Na verdade, essas complicaes sen-timentais traduzem na sua forma uma infra-estrutura de diviso dapropriedade, que fundamentada na posio da mulher. Os temas liga-dos ao namoro, coqueteria, arte da seduo revelam mecanismosessenciais da moral burguesa, apoiada na necessidade de adquirir, guar-dar e ampliar propriedade. As mulheres agem segundo estas convenesporque percebem que, sendo o casamento a sua carreira, o amor a tcni-ca de obt-lo do melhor modo.17

    Nessa poca, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro desen-volviam-se os princpios da higiene, os quais levaram os mdicos a pro-por novos critrios para as relaes matrimoniais. O casamento entremulheres jovens e homens velhos passou a ser desaconselhado. A idadeideal do casamento, para os mdicos, era a de 24 a 25 anos para os ho-mens, e a de 18 a 20 anos para as mulheres. Estabeleciam-se tambmcritrios fsicos e morais aos noivos. Tanto os homens quanto as mulhe-res deveriam ser sadios, esbeltos e de bom carter. As mulheres vaidosase de aparncia frgil poderiam transtornar a vida matrimonial. Serianecessrio educar a mulher para que ela pudesse cumprir os papis deesposa e me. Eram repudiados o celibato e o homossexualismo. Pode-mos ler em uma das teses mdicas defendidas na poca a seguinte crticaao matrimnio tradicional:

    [...] muitos e muitos casamento se fazem, que anunciam um viver ligeiropara os desposados, e no entanto ao cabo de um ou dois anos, de algunsmeses e at de dias os esposos j no se amam, vivem em guerra aberta, ecom enfado um suporta a presena do outro. [...] [Estas situaes] pro-vm de no haver reserva e prudncia na escolha das pessoas com quemtemos de nos ligar em matrimnio; provm de antepormos as ms quali-dades s boas, s porque aquelas muitas vezes vm ataviadas de riquezas;de fazermos de casamento um mercado. Quantos pais no coagem suasfilhas a unir-se com um estpido s porque este abastado? Quantoshomens no procuram no casamento seno riquezas? De casamentoscontrados debaixo de maus auspcios [...] nascem filhos que tm sempreante seus olhos o pssimo proceder de seu pai, de sua me ou de ambos,simultaneamente mal-educados, recalcitrantes a seus ascendentes, desti-

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    tudos de ternura fraternal, sem a menor noo das virtudes domsticas,base das virtudes sociais.18

    O culto mocidade est presente tambm no iderio romnticobrasileiro, que atribua juventude a responsabilidade da construo daPtria, a renovao moral, e a formao de uma nova tendncia literria.Evaristo da Veiga, jornalista e poltico, representante do movimento pr-romntico, dizia:

    Idias elevadas, filhas da Filosofia do Sculo, triunfam nessa idade, que amoral dos interesses no corrompeu ainda; e os seus coraes livres desedues, que os esperam, s anelam o bem da Ptria, os cabedais dainstruo, o aperfeioamento intelectual. O Brasil tem posto na sua Mo-cidade as suas mais caras esperanas.19

    Macedo figura, no romance, as relaes familiares e sociais, descre-vendo os papis femininos e masculinos, e propondo mudanas muitosemelhantes quelas defendidas pelo pensamento mdico. O conjuntodos personagens se divide em dois plos: o grupo obediente aos com-portamentos convencionais, herdados da estrutura colonial paternalista,e os dois personagens romnticos, Augusto e a Moreninha, ainda poucodefinidos, mas j apresentando sinais de atitudes mais individualistas,com maior sensibilidade pela sua vida interior. H dois personagensmediadores: Filipe, irmo da Moreninha, e D. Ana, sua av, os quaispromovem a aproximao dos dois e acomodam as tenses entre a pe-quena elite local e os modos extravagantes, para a poca, do par romn-tico. As moas so descritas como sendo fteis, maliciosas, sonsas,fingidas, tendo uma conversa sofrvel e sentimental (p. 77), utilizando-se de estratgias padronizadas para conquistar um marido. Os rapazesso quase cafajestes, interesseiros e irresponsveis. As cores so caricatas,para realar a novidade dos sentimentos romnticos.

    O romance est estruturado sobre um conjunto de antteses, quese repetem no enredo, na caracterizao do personagem, na escolha deperipcias. Por exemplo, no enredo so citadas duas cantigas. Uma delasexplica a forma tradicional de conquistar maridos e a outra faz o elogiodo amor romntico:

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    I - Menina bonita/ Que almeja casar, / No caia em amar / A homem al-gum; /Nem seja notvel/ Por sua esquivana, / No tire a esperana / Deamante nenhum.

    II - Meream-lhe todos / Olhares ardentes, / Bem pode soltar; / No negue anenhum / Protestos damor, / A qualquer que for / O pode jurar.

    III - Os velhos no devem / Formar exceo / Porquanto eles so / Um grandepartido; / Que em na falta de moo / Que fortuna faa, Nunca foi desgraa/ Um velho marido (p.130-131).

    Enquanto as moas entoam essa cantiga, a Moreninha canta umaantiga balada inspirada em um mito indgena: I Eu tenho quinze anos/ E sou morena e linda! Mas amo e no me amam. / E tenho amor ainda: /E por to triste amar, / Aqui venho chorar (p.145).

    A funo educativa do romance ocorre pelo artificio de valoriza-o do tipo feminino representado pela Moreninha e desvalorizao doscomportamentos das outras personagens femininas. Observe a descri-o da vestimenta e entrada da Moreninha no sarau:

    Entre todas essas elegantes e agradveis moas, que com aturado empe-nho se esforam por ver qual delas vence em graa, encantos e donaires,certo sobrepuja a travessa Moreninha, princesa daquela festa.

    Hbil menina ela! Nunca seu amor prprio presidiu com tanto estudoseu toucador e, contudo, dir-se-ia que o gnio da simplicidade a pentearae vestira. Enquanto as outras moas haviam esgotado a pacincia de seuscabeleireiros, posto em tributo toda a habilidade das modistas da rua doOuvidor e coberto seus colos com as mais ricas e preciosas jias, D. Caro-lina dividiu seus cabelos em duas tranas, que deixou cair pelas costas;no quis ornar o pescoo com seu adereo de brilhantes, nem com seulindo colar de esmeraldas; vestiu um finssimo, mas simples vestido degara, que at pecava contra a moda reinante, por no ser sobejamentecomprido. E vindo assim aparecer na sala, arrebatou todas as vistas e aten-es (p.212-213).

    Est se formando um novo perfil de mulher, sensvel e indepen-dente, mas plenamente adequado ao modelo da domesticidade femini-na. A Moreninha pura, mesmo sendo hbil, sua maneira, na conquis-ta dos homens. Logo no incio do romance os dois jovens se avaliam,

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    buscam identificar as qualidade e defeitos de carter. Admiram-se mu-tuamente pela dotes de solidariedade e de inteligncia. Ela conquistaAugusto pela vivacidade, perspiccia, originalidade e bondade; no pelabeleza fsica. No entanto, h passagens em que o narrador mostra osseus dotes fsicos e o seu treinamento para ser uma boa esposa e me.Por exemplo, quando ela se mostra uma exmia artes nos trabalhos ma-nuais e quando demonstra preocupao com a sua me de leite, que ha-via estado doente. O episdio cmico porque, na verdade, Paula, agre-gada na casa, havia tomado uma bebedeira. Mas a Moreninha no percebeo incidente e demonstra muito afeto pela senhora. nesse ponto do en-redo que Augusto percebe-se apaixonado por ela.

    Augusto atento aos seus prprios estados de alma e a histria vainarrando e comentando a instabilidade psicolgica do personagem. Nofinal da histria, Augusto impedido pelo pai de ir ver sua amada. Caino estado de alma melanclico, motivo literrio romntico. O narradornos conta:

    J era tarde. Augusto amava deveras, e pela primeira vez em sua vida; e oamor, mais forte que seu esprito, exercia nele um poder absoluto e inven-cvel. Ora, no h idias mais livres que as do preso; e, pois o nosso encar-cerado estudante soltou as velas da barquinha de sua alma, que voou,atrevida, por esse mar imenso da imaginao; ento comeou a criar milsublimes quadros e em todos eles aparecia a encantadora Moreninha, todacheia de encantos e graas (p.283).

    Trata-se de um novo tipo de namoro e de casamento, em que asrazes sentimentais e amorosas prevalecem em relao aos interesses eco-nmicos familiares. O romance no tece uma quadro de conflito abertoentre o indivduo e a sociedade, mas sugere uma mudana de comporta-mento. Os dois jovens buscam um amor mais sensvel, autntico, mas afamlia est por trs controlando o processo do namoro e os jovens perten-cem ao mesmo grupo social. Assim, no h grandes obstculos para ocasamento dos dois. Portanto, Macedo no fere a estrutura social da bur-guesia carioca. Segundo Antonio Candido, os romances de Macedo apre-sentam dois eixos narrativos: o eixo do real, em que a histria comea etermina sob o signo da normalidade, e o eixo ficcional, formando o recheiodo enredo, em que os personagens passam por situaes de desequilbrio.

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    Macedo era tido como o escritor das famlias. Podemos dizer queele foi conservador em literatura, em poltica e em historiografia. Noentanto, as agitaes parlamentares do final da Regncia e incio do Se-gundo Reinado, o processo de urbanizao, que influenciava a sensibi-lidade das pessoas, ao multiplicar as possibilidades de escolha individuale tornava mais complexa a vida mental e social , todas essas realidadeshistricas faziam com que Macedo ampliasse a sua viso sobre o meioem que vivia. Embora sua obra seja bem comportada, ela tem rasgos decompreenso das mudanas e contradies sociais. So de Antonio Can-dido estas consideraes:

    A experincia das agitaes regenciais, toda a mar de inquietudes sociale de esperana democrtica, rompida pela coligao cada vez mais slidados homens da ordem e do dinheiro, e dissolvida no paternalismoescravocrata do segundo reinado, deve ter vincado a sensibilidade deMacedo, para sua vista ficasse, por um momento to clara e penetrante.20

    Como podemos aproveitar esses momentos vivos de representa-o literria da realidade histrica do incio do Segundo Reinado? Lendoo texto com olhos de historiador, encontramos passagens que revelamtenses entre os grupos sociais. Normalmente so passagens escritas coma linguagem da ironia, da stira e da pardia, recursos literrios que per-mitem o confronto entre vozes sociais e vises de mundo. O texto trazem seu bojo o dilogo social, referido como discurso citado; muitas ve-zes, sem que o autor faa a avaliao pessoal, transformando-o.21 Ape-nas, est apresentando o universo mental para que seja avaliado por seusleitores. Nesses momentos a realidade viva transparece na linguagem eserve aos propsitos de reconstruo histrica.

    A TAGARELICE DE MACEDO:

    TESTEMUNHO HISTRICO DE UMA POCA

    Selecionamos alguns trechos que testemunham particularidadeshistricas:

    1. Primeiramente destacaremos a estratgia de discurso que se refe-re formao do pblico leitor. Na histria, Augusto ir escrever um ro-mance. Com esse recurso o autor est promovendo o gnero no momen-

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    to mesmo em que este est sendo ensaiado no Pas. Como se sabe, Macedo considerado o iniciador do romance romntico no Brasil. Aproveita oromance para fazer a propaganda, a divulgao e o convencimento dosleitores. Em vrios momentos o narrador comenta a forma como a his-tria est sendo contata, instruindo a leitura do receptor. Por exemplo:

    E fizemos muito bem em concluir depressa, porque Filipe acaba de rece-ber Augusto com todas as demonstraes de sincero prazer e o faz entrarimediatamente [...] (p.56).

    Um autor pode entrar em toda parte e, pois...No, no, alto l! No gabi-nete das moas... no senhor, no dos rapazes, ainda bem. A porta estaberta (p.200).

    A cena se estava tornando pattica (p.300).

    2. O autor mimetiza a fala coloquial, incorporando no romancediscursos de grupos sociais. difcil escolher um exemplo da citao defalas coloquiais, pois todo o texto foi construdo por meio de dilogos,como se fosse uma pea de teatro. Exemplo:

    Mas as moas falam j h cinco minutos; faamos por colher algumasbelezas, o que , na verdade, um pouco difcil, pois, segundo o antigocostume, falam todas quatro ao mesmo tempo. Todavia, alguma coisa seaproveitar.

    Que calor!...exclamou d. Gabriela, afetando no abanar de seu leque todoo donaire de uma espanhola; oh! No parece que estamos no ms de ju-lho; mas, por minha vida, vale bem o incmodo que sofremos, o regaloque tm tido nossos olhos.

    Bravo, d. Gabriela!...ento seus olhos...

    Tm visto muita coisa. Olhe, que no por falar mas, por exemplo, hobjeto mais interessante do que d. Luisa mostrar-se gorda, esbelta, bemfeita?

    verdade! verdade! bradavam as trs.

    E ns que a conhecemos! disse d. Clementina. Fora o que se v e emcasa, to escorridinha!...Ora, nem se sabe onde lhe fica a cintura.

    um saco!

    E como feia!...

    horrenda!

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    histria, so paulo, 23 (1-2): 2004 99

    um bicho!

    E no vimos a filha do capito com sua dentadura postia?...Agora nofaz seno rir!...

    Coitadinha! Aperta tanto os olhos!

    Se ela pudesse arranjar tambm um postio para o queixo!

    Ora d. Clementina, no me obrigue a rir!...

    D. Joaninha, voc reparou no vestido de chalim de d. Carlota?...Quantoa mim, est absolutamente fora de moda.

    Ainda que estivesse na moda, no h nada que nela assente bem.

    Ora... um pau vestido!...tem uma testa maior que a rampa do largo doPao!...

    Um nariz com tal cavalete, que parece o morro do Corcovado!...

    E a boca?...ah! ah! ah!

    Parece que anda sempre pedindo boquinhas.

    E que lngua que ela tem!

    uma vbora!

    Eu no sei porque as outras no ho de ser como ns que no dizemosmal de nenhuma delas (p.171-172).

    3. Macedo, por meio de uma conversa entre os rapazes sobre tem-peramentos de mulheres, apresenta as diferenas entre a vida urbana e avida rural:

    Estudemos as duas vidas. A moa da corte escreve e vive comovida sem-pre por sensaes novas e brilhantes, por objetos que se multiplicam e serenovam a todo momento, por prazeres e distraes que se precipitam;ainda contra a vontade, tudo a obriga a ser volvel: se chega janela uminstante s, que variedade de sensaes! [...] ela se faz por fora e por costu-me to inconstante como a sociedade em que vive, to mudvel como a modados vestidos. Queres agora ver na solido de seus campos, talvez menosalegres, porm certamente, mais livres; sua alma todos os dias tocada dosmesmos objetos: ao romper dalva, sempre e s aurora que bruxoleia nohorizonte; durante o dia, so sempre os mesmos prados, os mesmos bos-ques, e rvores [...] Assim, ela se acostuma a ver e amar um nico objeto;seu esprito, quando concebe uma idia, no a deixa mais [...] quandochega a amar, para nunca mais esquecer, para viver e morrer por aque-le que ama (p.244-245, grifos nossos).

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    100 histria, so paulo, 23 (1-2): 2004

    4. O universo mental da Medicina, invadindo a interpretao dossentimentos e regulando o comportamento social. Marcas refratadas dolugar social do autor:

    Que interessante terceto! Exclamou Augusto com tom teatral; que cole-o de belos tipos! ... uma jovem de dezessete anos, plida ...romntica e,portanto, sublime; uma outra, loura...de olhos azuis...faces cor-de-rosa...e...no sei que mais; enfim clssica e por isso bela. Por ltimo umaterceira de quinze anos...moreninha, que, ou seja romntica ou clssica,prosaica ou potica, ingnua ou misteriosa, h de, por fora, ser interes-sante, travessa e engraada (p.32-33).

    Ora, esses derramamentos dalma bastante me assustaram, porque eu melembro que em patologia se trata mui seriamente dos derramamentos(p.43).

    5. O avano da Medicina experimental, cientfica, procurando seimpor ao saber popular sobre as doenas. O debate entre a Medicinatradicional das sangrias e dos humores, a alopatia e homeopatia citadode maneira cmica:

    Sangue! Sempre sangue! Eis a medicina romntica dos insignificantesBroussais! Mas eu detesto tanto a medicina sanguinria, como aestercorria, herbria, sudorria e todas as que acabam em ria. DesdeHipcrates, que foi o maior charlato de seu tempo, at os nossos dias,tem triunfado a ignorncia, mas j, enfim, brilhou o sol da sabedo-ria...Hahnemann....ah! quebrai vossas lancetas, senhores! Para curar omundo inteiro basta-vos uma botica homeoptica com o Amazonas aop! [...] (p.187).

    6. Os costumes regrados de uma sociedade baseada nas aparnciasso descritos na cena do sarau:

    Um sarau o bocado mais delicioso que temos, de telhados baixos. Emum sarau todo o mundo tem que fazer. O diplomata ajusta, com um copode champanha na mo, os mais intricados negcios, todos murmuram eno h quem deixe de ser murmurado. O velho lembra-se dos minuentese das cantigas do seu tempo, e o moo goza todos os regalos da sua poca;as moas so no sarau como as estrelas no cu; esto no seu elemento

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    histria, so paulo, 23 (1-2): 2004 101

    (...)Ali v-se um ataviado dandy que dirige mil finezas a uma senhoraidosa, tendo os olhos pregados na sinh, que senta-se ao lado. Finalmen-te, no sarau no essencial ter cabea nem boca, porque, para alguns regras, durante ele, pensar pelos ps e falar pelos olhos (p.211-212).

    7. A emergente valorizao dos jovens como figuras-chave da fam-lia e o comeo da desqualificao dos velhos, que deixam de ser os trans-missores privilegiados da cultura, so assuntos aludidos no texto:

    Os rapazes estavam nos seus gerais; a princpio, como seu velho costu-me, haviam festejado, cumprimentado e aplaudido as senhoras idosas quese achavam na sala, principalmente aquelas que tinham trazido consigomoas; mas passada meia hora, adeus etiquetas e cerimnias!... Estabele-ceu-se um cordo sanitrio entre a velhice e a mocidade; [...] (p. 192, grifosnossos).

    8. A cena do casamento simblico entre as crianas, em que apare-cem elementos rituais do casamento catlico e, simultaneamente, a intro-misso de objetos pessoais, profanos. Episdio que pode ser assinaladocomo documento da progressiva laicizao da sociedade, fortalecimentoda regulao social sob princpios liberais, sem que fossem abandona-dos os valores catlicos. documento muito rico para perceber-se omovimento social como confluncia de vises de mundo, denso de pas-sado e presente.

    Quando as ordens do ancio foram completamente executadas, ele to-mou os dois breves e, dando-me o de cor branca, disse-me:

    Tomai este breve, cuja cor exprime a candura da alma daquela menina.Ele contm o vosso camafeu; se tendes bastante fora para ser constante eamar para sempre aquele belo anjo, da-lho, a fim de que ela o guardecom desvelo.

    Eu mal compreendi o que o velho queria ainda: maquinalmente entre-guei o breve linda menina, que o prende no cordo de ouro que traziaao pescoo.

    Chegou a vez dela. O homem deu-lhe o outro breve, dizendo:

    Tomai este breve, cuja cor exprime as esperanas do corao daquelemenino. Ele contm a vossa esmeralda; se tendes bastante fora para ser

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    constante e amar para sempre aquele bom anjo, da-lho, a fim de que ele oguarde com desvelo (p.114).

    9. Encontramos no romance vrias informaes sobre a educaofeminina do perodo. A Moreninha ensaia sua vida adulta atravs dasbonecas que cultiva em seu quarto, e faz questo de mostrar essa prepa-rao ao namorado. O captulo chama-se Segundo Domingo: brincandocom bonecas:

    J tem cuidados? ...

    Quem que deles carece?...O pai de famlia tem os filhos, o senhor osseus livros e eu, que sou criana, tenho minhas bonecas. Quer v-las?

    Com o maior prazer.

    Um momento depois a sala estava invadida por uma enorme quantidadede bonecas, cada uma das quais tinha seus parentes, seus vestidos, jias eum nmero extraordinrio de bugiarias, como qualquer moa da modaas tem em toucador [...]

    Com efeito, Augusto j sabe de cor e salteado todos os nomes dos mem-bros daquela muito numerosa famlia; conhece os diversos graus de pa-rentesco que existem entre eles, acalenta as bonecas pequenas, despe umase veste outras, batiza, casa, em uma palavra, dobra-se aos prazeres de suabela mestra, como uma varinha ao vento (p.275-276).

    Brincar com bonecas, do ponto de vista da histria da vida privadano sculo XIX, significou para as mulheres a possibilidade de reflexointerior, de identificao de seus estados de alma. A brincadeira passa ater uma funo psicolgica, ao favorecer o monlogo interior, as confi-dncias, o reconhecimento de si mesmo e a descoberta da identidadesocial. Participa, associada a outros elementos da vida privada, como afotografia, o espelho, a escrivaninha, o dirio, a leitura, da construo daintimidade burguesa e da literatura romntica. No incio do sculo XIX,as bonecas ainda no tm aspecto de meninas, representam mulheresem miniatura, com todos os adereos da moda, o que permite uma iden-tificao maior entre a brincadeira e a situao social das moas. A par-tir da segunda metade do sculo XIX, comeam a ser fabricadas bonecascom aparncia de meninas e, ao final do sculo, j temos as bonecas re-presentando recm-nascidos, os bebs. Neste estgio a relao de me e

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    filha se impe nas brincadeiras. As bonecas deixam de proporcionar areflexo psicolgica e tornam-se um instrumento de aprendizado.22

    10. Macedo, na maioria de suas romances, fugiu do submundo ca-rioca e das circunstncias sociais relacionadas escravido. No entanto,dedicou uma obra inteira, As Vtimas Algozes, sobre a pobreza dos bair-ros perifricos do Rio de Janeiro. Em A Moreninha encontramos poucasreferncias vida dos escravos, mas existe uma passagem que considera-mos muito significativa, porque traz a viso da classe dos proprietriosem relao aos escravos. Talvez essa passagem tenha sugerido aos autoresda segunda e terceira geraes romnticas, e a Machado de Assis, umponto de vista indito e muito fecundo. Rafael o escravo de quarto deAugusto, cuida de suas roupas, comida e outras afazeres, como levar men-sagens e fazer compras. Quando Augusto est aborrecido, aplica castigosno escravo e isto tem o mesmo valor que outras aes do personagem.Isto , o texto no faz censura direta ao fato, faz um leve julgamento, masno assume uma posio humanitria, porque a escrita est orientadapara refletir sobre os sentimentos amorosos de Augusto e no para a con-dio social do escravo. Atente-se ao artifcio do discurso indireto livre,que faz fluir, na descrio, a voz do personagem Augusto. Com isso, ca-ractersticas da mentalidade escravocrata transparecem com certa nitidez:

    O nosso Augusto, por exemplo, est agora bronco para as lies e imper-tinente com tudo. Rafael quem paga o pato; se o inocente moleque lheapronta o ch muito cedo, apanha meia dzia de bolos, por que quer irvadiar pelas ruas; se no dia seguinte se demora s dez minutos, leva doispescoes, para andar mais ligeiro. No h, enfim, cousa alguma que pos-sa contentar o sr. Augusto; est aborrecido da medicina, tem feito duasgazetas nas aulas; de ministerial, que era, passou a oposio; no quer serassinante de peridicos, no h para seus olhos lugar nenhum bonito nomundo; aborrece a corte, detesta a roa e s gosta de ilhas (p.253-254,grifos nossos).

    EM BUSCA DE UMA SNTESE, MESMO QUE PROVISRIA

    A fortuna crtica do romance pequena. Poucos crticos se interes-saram em desenvolver pareceres sobre a obra. Na verdade, temos duasgrandes interpretaes: a de Dutra Melo, contempornea publicao

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    do livro, e a de Antonio Candido, publicada inicialmente como prefcio edio da Editora Martins, nos anos de l950. Dutra Melo era poetaromntico e precursor da crtica literria brasileira. De esprito abertopara o novo estilo que surgia, legou-nos o seguinte comentrio: V-seque uma facilidade, uma simpleza, um no sei o qu de franco, de interes-sante, de desimpedido, so os dotes principais do estilo em que manejadaa Moreninha; e tal julgamos ser o carter do autor.23

    Antonio Candido, no ensaio j citado, sobre o qual no podemosdeixar de ressaltar o seu carter de leitura estimulante e esclarecedora,acompanha o julgamento esttico de Dutra Melo:

    Correndo os olhos por esta obra longa e prolixa [...], vem-nos a impressode que o bom e simptico Macedinho, como era conhecido, cedeu antesde mais nada a um impulso irresistvel de tagarelice. Os seus romances,digressivos e coloquiais; entremeados de piadas ou lgrimas, vontade;tendendo caricatura, mesmo ao lado da tragdia; cheios de aluso po-ltica e aos acontecimentos os seus romances parecem, antes, narrativaoral de algum muito conversador, cheio de casos e novidades, no desde-nhando uns enfeites para realar a alegria ou tristeza do que vai contando.24

    Enfim, o jeito conversador de Macedo, sua tagarelice, sua manei-ra desimpedida de falar sobre o meio social acanhado em que vivia,ensejou uma obra prolixa e irregular que, em seus melhores momentos,revelou uma acuidade para os pequenos casos que definem melhor a na-tureza das aes. Essas qualidades textuais justificam a sua escolha comoobra especialmente rica em referncias ao contexto social e mental dosculo XIX. Esperamos ter aberto um caminho para o aproveitamentodas obras literrias no ensino de Histria. Trata-se de um trabalhomultidisciplinar, em que a leitura de Histria e de crtica literria pare-ce-me essencial para a compreenso dessa documentao.

    Incurses didticas com textos literrios na disciplina de Histriamobilizam vrios tipos de informaes histricas e dependem de umconhecimento das tcnicas de escrita literria, gneros e temticas, re-cursos de linguagem e de contedo. bom ressaltar que, como j disse-mos, os textos no so reflexos objetivos de contextos histricos estan-ques. Nosso trabalho no o de simplesmente identificar contedoshistricos presentes nos textos literrios. O objetivo mostrar como os

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    textos literrios dialogam com outros textos sociais formas de pensa-mento, mentalidades, estruturas sociais e, eventualmente, gneros lite-rrios. A literatura escrita gil, esperta, depende de leitores muito beminformados. Nas aulas de Histria, a literatura tem o poder de materia-lizar o perspectivismo e o relativismo dos conceitos e comportamentoshumanos. ferramenta essencial de compreenso da realidade histrica,porque traz informaes de pontos de vista singulares, de gruposintelectualizados que tm, pela natureza de sua arte, compromisso coma interpretao de aspectos sociais e individuais. metodologia que desa-fia e seduz alunos e professores. Provoca o intelecto. Ativa a sensibilidade.

    MORAES, Dislane Zerbinatti. The Macedos garrulity and the History ofBrazil Teaching. Histria, So Paulo, v. 23 (1-2), p. 85-107, 2004.

    A B S T R AC T: In this article we do a reading of Joaquim Manuel de Macedosnovel, A Moreninha, from the point of view of the production of textsthat aims the construction the idea of modernity, common worth formedical, educational and historiographical discourse in the 19th. Cen-tury. We also intend to provide methodological elements to the historicalanalysis of literary documents and we evaluate the limits and possibilitiesof the use of this language in History teaching. We take the literature as aspecific documental source that needs a refined analysis, in order to ap-prehend the historical elements that are associated with the textual di-mension and the contexts of production and reception.

    K E Y WO R D S :History teaching; Brazilian literature; Cultural history ofempire.

    NOTAS

    1 Professora do departamento de Metodologia do Ensino e Educao Comparada

    de Histria da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo CEP 05508-

    908. dzmoraes @ usp.br2 CANDIDO, Antonio. Aparecimento da fico. In: . Formao da literatura

    brasileira: momentos decisivos. So Paulo: Martins, 1969, v.2, p.112.3 CANDIDO, Antonio. O Honrado e Facundo Joaquim Manuel de Macedo. In:

    Idem, v.2, p.138.

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    4 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso: tenses sociais e criao cultural na

    Primeira Repblica. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.29.5 Sobre a questo da homologia entre forma literria e realidade histrica consultar

    ADORNO, Theodor W. Lrica e Sociedade. Benjamin, Adorno, Horkheimer, Haber-

    mas. So Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleo Os Pensadores). H dois estudos

    clssicos de Antonio Candido que explicam esse tipo de anlise literria. Trata-se

    dos estudos Dialtica da Malandragem (sobre Memrias de um sargento de milcias,

    de Manuel Antonio de Almeida) e De cortio a cortio (anlise de O Cortio, de

    Alusio Azevedo), encontrados no livro O discurso e a cidade. So Paulo: Duas Ci-

    dades, 1998.6 CANDIDO, Antonio. Literatura como sistema. In: . Op. cit., v.1, p.23.7 Idem. O Nacionalismo Literrio. In: . Op. cit., v.2, p.13.8 Idem. Formao da Literatura Brasileira, v.2, p.377.9 apud SCHWARCZ, Llia. Os guardies da nossa histria oficial: os institutos hist-

    ricos e geogrficos brasileiros. So Paulo: IDESP, 1989, p.15.10 Jurandir Freire Costa, no livro Ordem Mdica e Norma Familiar, Rio de Janeiro:

    Graal, 198311 PERROT, Michelle. Histria da Vida Privada. Da Revoluo Francesa Primeira

    Guerra Mundial. So Paulo: Companhia das Letras, 1991.12 CANDIDO, Antonio. Gerao Vacilante. In: . Op. cit., v.2, p.47.13 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes.. Livro didtico e conhecimento histrico:

    uma histria do saber escolar. So Paulo, 1993. Tese (doutorado) FFLCH-USP,

    Depto. de Histria, p.205-206.14 PINHEIRO, J.C. Vicentina, Romance do sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo,Guanabara, III. Apud. CANDIDO, Antonio. Os primeiros sinais. In: . Op.cit., v.2, p.119.15 MEYER, Marlise. Folhetim: uma histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1996,p.281-283.16 MACEDO, Joaquim Manuel. A Moreninha. So Paulo: Martins, s/d. Todas aspassagens de texto citadas foram retiradas desta edio.17 CANDIDO, Antono. O honrado e facundo Joaquim Manuel de Macedo. In: .Op. cit., v.2, p.139.18 GOMES, Antonio Francisco. p.2 . Influncia da educao fsica do homem. Tese.Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1852. Apud. COSTA, Jurandir Freire, Op.

    cit., p.219-220.19 VEIGA, Evaristo. Aurora Fluminense. n.147, p.607. Apud. CANDIDO, Antonio.Os gneros pblicos. In: . Op. cit., v.1, p.266.

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    histria, so paulo, 23 (1-2): 2004 107

    20 CANDIDO, Antonio. O honrado e facundo Joaquim Manuel de Macedo. In:

    . Op. cit., v.2, p.144.21 Sobre as questes do plurilingismo, dialogismo, discurso de outrem, pardia e

    stira, estou usando os livros de Mikhail Bakhtin Questes de literatura e de esttica:

    a teoria do romance. So Paulo: Unesp, Hucitec, 1993, e Problemas da potica de

    Dostoiviski. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997.22 CORBIN, Alain. O segredo indivduo. In: PERROT, Michelle (org.). Histria da

    Vida Privada. Da Revoluo Francesa Primeira Guerra Mundial. So Paulo: Com-

    panhia das Letras, 1991, p.480-481.23 DUTRA e MELO. A Moreninha, Minerva Brasiliense, v.II, p.748 apud. CANDIDO,

    Antonio. O Honrado e Facundo Joaquim Manuel de Macedo. In:______. Op. cit.,

    v.2, p.138.24 CANDIDO, Antonio. O Honrado e Facundo Joaquim Manuel de Macedo. Op.

    cit., v.2, p.137. (grifos nossos).

    Artigo recebido em 10/2004. Aprovado em 12/2004.