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Reis JC; Santos PS; Barata MFO; Falcão IV. Abordagem da terapia ocupacional a bebês com microcefalia: uma experiência no estágio curricular. Rev. Interinst. Bras. Ter. Ocup. Rio de Janeiro. 2018, v.2(1): 212-227. 212 ABORDAGEM DA TERAPIA OCUPACIONAL A BEBÊS COM MICROCEFALIA: UMA EXPERIÊNCIA NO ESTÁGIO CURRICULAR An occupational therapy approach to babies with microcephaly: an experiment in curricular internship Abordaje de la Terapia Ocupacional a bebes con microcefalia: una experiencia en la práctica curricular Abstract Introduction: Due to the outbreak of the Zika virus, in 2015/2016, many babies were born with microcephaly in Recife/PE, resulting in atypical development. The severity of this panorama for public health required a rapid response, through research, training and structuring of the health network. Thus, occupational therapists were incorporated into the teams for infant stimulation and rehabilitation, and into the production of knowledge in the area. Objective: To describe the experience of assisting children with microcephaly by the Zika Virus, during a curricular internship of occupational therapy. Method: Reports of the curricular internship of occupational therapy. We used the clinical supervision records from the professional and academic training, during 5 months in the infectious diseases infirmary and outpatient clinic at a referral university hospital for congenital Zika virus syndrome in Recife. Results: Twenty-four infants with microcephaly, aged between 3 and 10 months, were treated. We observed neurological impairment, with delayed neuropsychomotor development, and alterations in the tonus and visual, auditory, proprioceptive, vestibular and tactile systems. Stimulation was directed towards the skills for infant development and for creating an appropriate, safe environment in which children were able to acquire motor, sensory, communication, cognitive and social skills. Guidelines for the families, making adaptations, facilitation of playing skills and activities of daily living were also carried out. Conclusion: The training period allowed us to experience the contributions of occupational therapy for the stimulation of children with microcephaly, preparing us as future professionals for the current demands and for the production of knowledge. Keywords: Microcephaly; Occupational Therapy; Early Intervention; Clinical Clerkship; Zika Virus Resumen Introducción: Debido al brote de Zika, en 2015/2016 nacieron bebés con microcefalia en Recife / PE, resultando en un desarrollo atípico. Por la gravedad de esta nueva situación para la salud pública, se requirió una respuesta rápida, que incluyó investigación, capacitación y estructuración de la red de salud. Así, los terapeutas ocupacionales fueron incorporados en los equipos para estimulación y rehabilitación de los niños, y para producir conocimiento en el área. Objetivo: Describir la experiencia del cuidado de bebes con microcefalia por el virus Zika, durante la práctica curricular de terapia ocupacional. Método: Se trata de un informe descriptivo de la práctica curricular de terapia ocupacional. Se utilizaron los registros clínicos de supervisión de práctica por la orientadora y docente, durante 5 meses en la enfermería y clínica ambulatoria de enfermedades infecciosas, en un hospital universitario de referencia para el síndrome del virus Zika congénito en Recife. Resultados: Se atendieron 24 lactantes con microcefalia, con edades comprendidas de 3 a 10 meses. Se observó alteración neurológica, con retraso en el desarrollo neuropsicomotor y alteraciones en el tono y en los sistemas visual, auditivo, propioceptivo, vestibular y táctil. La estimulación se dirigió hacia las habilidades para el desarrollo infantil y para crear un ambiente apropiado y seguro en el cual los bebés pudieran adquirir habilidades motoras, sensoriales, de comunicación, cognitivas y sociales. También se llevaron a cabo orientaciones para las familias, realizando adaptaciones, facilitando el juego y las actividades de la vida diaria. Conclusión: El período de Estudo de caso para o ensino Jamine Cunha dos Reis Terapeuta Ocupacional, Residente em Reabilitação Física do Programa de Residência Multiprofissional do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), Recife, PE, Brasil. [email protected] Patrícia da Silva Santos Terapeuta Ocupacional, Residente em Clínica Médica do Programa de Residência Multiprofissional do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), RIO DE Janeiro, RJ, Brasil. [email protected] Mayara Francelle Oliveira Barata Terapeuta Ocupacional do Hospital Oswaldo Cruz, Universidade de Pernambuco (UPE), Recife, PE, Brasil. [email protected] Ilka Veras Falcão Professora Adjunta do Departamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Recife, PE, Brasil. [email protected] Resumo Introdução: Devido o surto de Zika, em 2015/2016, nasceram no Recife/PE bebês com microcefalia, resultando em desenvolvimento atípico. A gravidade do quadro para a saúde pública exigiu resposta rápida, com pesquisas, treinamento e estruturação da rede de saúde. Assim, o terapeuta ocupacional incorporou-se às equipes de estimulação e reabilitação das crianças e à produção de conhecimentos na área. Objetivo: Apresentar a experiência de atendimento a bebês com Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZV), durante estágio curricular de Terapia Ocupacional. Método: Relato de estágio curricular de Terapia Ocupacional utilizando registros clínicos e de supervisão pela orientadora e docente, durante estágio de cinco meses, em um serviço de Doenças Infectocontagiosas de um hospital-escola, referência para atendimento a recém nascidos com a SCVZ. Resultados: Foram atendidos 24 bebês com microcefalia, com idade entre 3 e 10 meses. Foi detectado comprometimento de funções neurológicas, com atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, alterações de tônus e dos sistemas visual, auditivo, proprioceptivo, vestibular e tátil. A estimulação foi dirigida as habilidades para o desenvolvimento infantil e criação de ambiente apropriado e seguro visando às aquisições motoras, sensoriais, de comunicação, cognitivas e sociais das crianças. Orientações as famílias, confecção de adaptações, facilitação do brincar e de atividades de vida diária também foram realizadas. Conclusão: O estágio permitiu experienciar às contribuições da Terapia Ocupacional para a estimulação de crianças com microcefalia, capacitando-nos como futuros profissionais para as demandas da atualidade e para a produção de conhecimentos. Palavras-chave: Microcefalia; Terapia Ocupacional; Estimulação precoce; Estágio clínico; Zika Vírus.

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Ter. Ocup. Rio de Janeiro. 2018, v.2(1): 212-227.

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ABORDAGEM DA TERAPIA OCUPACIONAL A BEBÊS COM MICROCEFALIA:

UMA EXPERIÊNCIA NO ESTÁGIO CURRICULAR

An occupational therapy approach to babies with microcephaly: an experiment in

curricular internship

Abordaje de la Terapia Ocupacional a bebes con microcefalia: una experiencia en la

práctica curricular

Abstract

Introduction: Due to the outbreak of the Zika virus, in 2015/2016, many babies were born with microcephaly in Recife/PE, resulting in atypical development. The severity of this panorama for public health required a rapid response, through research, training and structuring of

the health network. Thus, occupational therapists were incorporated into the teams for infant stimulation and rehabilitation, and into the

production of knowledge in the area. Objective: To describe the experience of assisting children with microcephaly by the Zika Virus, during a curricular internship of occupational therapy. Method: Reports of the curricular internship of occupational therapy. We used the

clinical supervision records from the professional and academic training, during 5 months in the infectious diseases infirmary and outpatient clinic at a referral university hospital for congenital Zika virus syndrome in Recife. Results: Twenty-four infants with microcephaly, aged

between 3 and 10 months, were treated. We observed neurological impairment, with delayed neuropsychomotor development, and alterations

in the tonus and visual, auditory, proprioceptive, vestibular and tactile systems. Stimulation was directed towards the skills for infant development and for creating an appropriate, safe environment in which children were able to acquire motor, sensory, communication,

cognitive and social skills. Guidelines for the families, making adaptations, facilitation of playing skills and activities of daily living were

also carried out. Conclusion: The training period allowed us to experience the contributions of occupational therapy for the stimulation of children with microcephaly, preparing us as future professionals for the current demands and for the production of knowledge.

Keywords: Microcephaly; Occupational Therapy; Early Intervention; Clinical Clerkship; Zika Virus

Resumen

Introducción: Debido al brote de Zika, en 2015/2016 nacieron bebés con microcefalia en Recife / PE, resultando en un desarrollo atípico.

Por la gravedad de esta nueva situación para la salud pública, se requirió una respuesta rápida, que incluyó investigación, capacitación y

estructuración de la red de salud. Así, los terapeutas ocupacionales fueron incorporados en los equipos para estimulación y rehabilitación de los niños, y para producir conocimiento en el área. Objetivo: Describir la experiencia del cuidado de bebes con microcefalia por el virus

Zika, durante la práctica curricular de terapia ocupacional. Método: Se trata de un informe descriptivo de la práctica curricular de terapia

ocupacional. Se utilizaron los registros clínicos de supervisión de práctica por la orientadora y docente, durante 5 meses en la enfermería y clínica ambulatoria de enfermedades infecciosas, en un hospital universitario de referencia para el síndrome del virus Zika congénito en

Recife. Resultados: Se atendieron 24 lactantes con microcefalia, con edades comprendidas de 3 a 10 meses. Se observó alteración

neurológica, con retraso en el desarrollo neuropsicomotor y alteraciones en el tono y en los sistemas visual, auditivo, propioceptivo, vestibular y táctil. La estimulación se dirigió hacia las habilidades para el desarrollo infantil y para crear un ambiente apropiado y seguro en

el cual los bebés pudieran adquirir habilidades motoras, sensoriales, de comunicación, cognitivas y sociales. También se llevaron a cabo

orientaciones para las familias, realizando adaptaciones, facilitando el juego y las actividades de la vida diaria. Conclusión: El período de

Estudo de caso para o

ensino

Jamine Cunha dos Reis Terapeuta Ocupacional, Residente em

Reabilitação Física do Programa de Residência

Multiprofissional do Instituto de Medicina

Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), Recife, PE, Brasil. [email protected]

Patrícia da Silva Santos Terapeuta Ocupacional, Residente em Clínica

Médica do Programa de Residência

Multiprofissional do Hospital Universitário

Clementino Fraga Filho (HUCFF), RIO DE Janeiro, RJ, Brasil.

[email protected]

Mayara Francelle Oliveira Barata Terapeuta Ocupacional do Hospital Oswaldo

Cruz, Universidade de Pernambuco (UPE), Recife, PE, Brasil.

[email protected]

Ilka Veras Falcão Professora Adjunta do Departamento de

Terapia Ocupacional, Universidade Federal de

Pernambuco, UFPE, Recife, PE, Brasil. [email protected]

Resumo Introdução: Devido o surto de Zika, em 2015/2016, nasceram no Recife/PE

bebês com microcefalia, resultando em desenvolvimento atípico. A gravidade

do quadro para a saúde pública exigiu resposta rápida, com pesquisas,

treinamento e estruturação da rede de saúde. Assim, o terapeuta ocupacional

incorporou-se às equipes de estimulação e reabilitação das crianças e à

produção de conhecimentos na área. Objetivo: Apresentar a experiência de

atendimento a bebês com Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZV), durante

estágio curricular de Terapia Ocupacional. Método: Relato de estágio

curricular de Terapia Ocupacional utilizando registros clínicos e de supervisão

pela orientadora e docente, durante estágio de cinco meses, em um serviço de

Doenças Infectocontagiosas de um hospital-escola, referência para atendimento

a recém nascidos com a SCVZ. Resultados: Foram atendidos 24 bebês com

microcefalia, com idade entre 3 e 10 meses. Foi detectado comprometimento

de funções neurológicas, com atraso do desenvolvimento neuropsicomotor,

alterações de tônus e dos sistemas visual, auditivo, proprioceptivo, vestibular e

tátil. A estimulação foi dirigida as habilidades para o desenvolvimento infantil

e criação de ambiente apropriado e seguro visando às aquisições motoras,

sensoriais, de comunicação, cognitivas e sociais das crianças. Orientações as

famílias, confecção de adaptações, facilitação do brincar e de atividades de

vida diária também foram realizadas. Conclusão: O estágio permitiu

experienciar às contribuições da Terapia Ocupacional para a estimulação de

crianças com microcefalia, capacitando-nos como futuros profissionais para as

demandas da atualidade e para a produção de conhecimentos.

Palavras-chave: Microcefalia; Terapia Ocupacional; Estimulação precoce;

Estágio clínico; Zika Vírus.

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práctica nos permitió experimentar las contribuciones de la terapia ocupacional para la estimulación de los lactantes con microcefalia, preparándonos como futuros profesionales para las demandas de hoy y para la producción de conocimiento.

Palabras clave: Microcefalia; Terapia ocupacional; Estimulación temprana; Práctica clínica; ZikaVirus.

1 INTRODUÇÃO

A formação de profissionais de saúde é ordenada pelo Sistema Único de Saúde,

orientada pelas necessidades e perfil de saúde da população e pela integralidade na atenção.

Cabe as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) definirem os parâmetros da graduação em

saúde, mostrando sintonia entre a formação e a assistência, entre os reais problemas de saúde

da população, os serviços e a produção de conhecimentos1.

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Terapia Ocupacional

determinam que a formação seja generalista, humanística, interdisciplinar, orientada por

competências e habilidades para a tomada de decisões e que haja equilíbrio entre carga

horária teórica e prática. Além disso, recomenda que as experiências práticas ocorram desde

os períodos iniciais, em todos os níveis de complexidade dos serviços de saúde, contemplando

uma aprendizagem técnica, ética e com relevância social. São previstos como obrigatório o

estágio supervisionado e a elaboração de trabalho de conclusão de curso2.

O estágio obrigatório correlaciona a teoria e prática, sendo um campo de reflexão,

aplicação e aprimoramento da aprendizagem em sala de aula e de experiências e manejo com

o paciente, a família e a equipe em variados contextos de cuidado3. Pelas DCN, o estágio tem

a carga horária mínima de 20% do total do curso e recomenda-se que ocorra em áreas

diferentes para contemplar habilidades do saber-fazer, preparando o futuro profissional para o

mercado de trabalho. É um momento privilegiado na formação, no qual o estudante conta com

orientação docente e a supervisão em serviço de um terapeuta ocupacional, para vivenciar a

dinâmica dos serviços e do trabalho em equipe2, 4

.

No Curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) o

estágio supervisionado ocorre no último ano, em serviços conveniados e escolhidos pelo

estudante, a partir de uma listagem atualizada semestralmente pela Coordenação de Estágio

do Curso. A formalização documental inclui o termo de compromisso, a apólice de seguro

obrigatório e o plano de estágio consolidado pelo estudante e profissional do serviço, antes do

início das atividades. A orientação docente é realizada com visitas regulares para discussão

das situações de aprendizagem em conjunto com o terapeuta ocupacional que supervisiona o

estágio5.

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Os campos de estágio deste curso são dinâmicos e refletem também a realidade da

inserção da categoria profissional nos diferentes serviços de saúde. Assim, entre 2015/2016,

frente a epidemia do Zika Vírus, registrada na região e em Pernambuco6,7

foi incorporado as

opções do estágio, vagas em um serviço de referência, em regime hospitalar e ambulatorial,

para atendimento aos recém-nascidos com microcefalia, associada à infecção pelo ZikaVírus.

A microcefalia é o traço mais evidente da Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZV),

que abrange sinais e sintomas que comprometem o desenvolvimento cerebral e a adequada

função do sistema nervoso central dos recém nascidos8. As consequências da infecção pelo

vírus surpreenderam a população, pesquisadores, profissionais e as autoridades de saúde no

Brasil e no mundo, desencadeando esforços conjuntos para compreender e intervir nessa

grande problemática de saúde pública.

Com isso, buscaram-se estratégias para enfrentar a problemática resultante da

Síndrome, implicando na adequação da formação, do modo de produzir conhecimento e de

prover serviços de reabilitação, uma vez que o quadro das crianças atingidas pelo Zika Vírus

difere de outros e ainda não é completamente compreendido9. O que ficou evidente desde o

inicio é que as crianças precisavam de cuidados especializados, tanto para avaliar o

comprometimento como para obter a estimulação adequada, o que deve ser responsabilidade

de uma equipe de reabilitação.

Reforçar a capacidade das equipes e dos serviços de assistirem as crianças e famílias

com SCZV tornou-se prioridade coordenada pelo Ministério da Saúde e algumas instituições

de ensino-pesquisa, em apoio aos serviços8. A formação atualizada e a educação permanente

de profissionais de saúde são metas para alcance imediato, o que justifica a inclusão desse

campo de estágio na formação do terapeuta ocupacional e motiva o presente relato, cujo

objetivo é apresentar a experiência de atendimento a bebês diagnosticados com a SCZV,

durante estágio curricular de Terapia Ocupacional.

2 MÉTODO

Consiste em um estudo de caso para o ensino, oriundo da proposta de estágio

curricular do Curso de Terapia Ocupacional/UFPE. O estágio foi realizado por duas

acadêmicas, nos serviços de enfermaria e ambulatório de Doenças Infectocontagiosas e

Parasitárias de um hospital escola, referência para o atendimento às crianças com a SCZV em

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Pernambuco. A carga horária foi de 420 horas, em turnos de 6 horas/dia, entre Fevereiro a

Junho de 2016. As intervenções em contexto hospitalar se dirigiram aos bebês com

microcefalia pelo Zika Vírus internados para o tratamento de comorbidades ou os que foram

encaminhados por pediatras à Terapia Ocupacional para atendimento ambulatorial, sendo o

acompanhamento extensivo as famílias.

O relato de experiência se deu a partir da análise de documentos produzidos durante o

estágio, relativos aos atendimentos às crianças, às reuniões de estudo e de equipe e registros

dos encontros de supervisão, tendo como fontes o plano de atividades, a evolução nos

prontuários e as anotações em diário de campo que é atividade prevista para acompanhamento

do estágio e foram realizados diariamente pelas autoras. No decorrer do estágio ainda foram

adotadas as “Fichas de avaliação e evolução ambulatorial” para as crianças que eram

acompanhadas pela Terapia Ocupacional nesse âmbito e que possibilitaram o resgate dos

objetivos e estratégias terapêuticas utilizadas.

3 A MICROCEFALIA COMO PROBLEMA EMERGENTE DE SAÚDE E

PARA A EQUIPE DE REABILITAÇÃO NO CONTEXTO HOSPITALAR.

A microcefalia é uma malformação que atinge o sistema nervoso central, com

diminuição do perímetro cefálico e consequente atraso no desenvolvimento neuropsicomotor

(DNPM) do bebê. O diagnóstico pode ser feito intra útero ou após o nascimento6.

Segundo parâmetros da Organização Mundial de Saúde adotados no Brasil8, a

microcefalia corresponde à medida do perímetro cefálico nas primeiras 24 horas após o

nascimento e até a primeira semana de vida de recém nascidos com 37 semanas de gestação,

em que o valor é igual ou inferior a 31,9 cm para crianças do sexo masculino e igual ou

inferior a 31,5 cm para as do sexo feminino. Com a medida do perímetro cefálico, histórico da

gestação e das condições de saúde do bebê, o caso é notificado e a associação com o Zika

Vírus passa a ser investigada até a sua confirmação ou descarte.

Além da microcefalia, o desenvolvimento anormal do cérebro, resulta em problemas

neurológicos e outras malformações, epilepsia, problemas visuais e auditivos. Também

podem ocorrer a artrogripose, hidropisia e atrasos do DNPM, entre outras alterações

importantes9, 10, 11

.

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De acordo com o Protocolo de Atenção à Saúde em resposta à ocorrência de

Microcefalia relacionada à Infecção pelo Zika8

a criança necessita ser encaminhada para

serviços de referência para estimulação precoce e acompanhamento de profissionais como o

terapeuta ocupacional, fisioterapeuta e fonoaudiólogo.

Nesse contexto, o termo estimulação precoce é definido como,

Um programa de acompanhamento e intervenção clínico-terapêutica

multiprofissional com bebês de alto risco e com crianças pequenas acometidas por

patologias orgânicas – entre as quais, a microcefalia, buscando o melhor

desenvolvimento possível, por meio da mitigação de sequelas do desenvolvimento

neuropsicomotor, bem como de efeitos na aquisição da linguagem, na socialização e

na estruturação subjetiva, podendo contribuir, inclusive, na estruturação do vínculo

mãe/bebê e na compreensão e no acolhimento familiar dessas crianças10

(p. 5 ).

Na estimulação precoce o profissional atende ao paciente e as famílias, com objetivo

de orientar situações que favoreçam o desenvolvimento infantil, a inserção da criança nas

atividades diárias, a estimulação adequada, o incentivo a relação mãe/pai-bebê, e promova o

envolvimento familiar no cuidado à criança12

. Conforme Rafaini et al.13

, a abordagem precoce

irá oferecer os estímulos com auxílio de brinquedos e materiais do cotidiano, visando

melhorar a relação do bebê com o ambiente.

No estágio curricular observamos que as crianças com microcefalia pelo Zika Vírus,

são acometidas por comorbidades, como infecções respiratórias, que levam a hospitalização.

Às vezes, nessa condição clínica ainda mais desfavorável, é que a criança e família tem o seu

primeiro contato com uma equipe de reabilitação. Nesse momento, o cuidado vai além da

atenção ao acometimento da microcefalia e da doença que motivou o internamento, uma vez

que a prioridade é a prevenção às consequências da hospitalização e a privação de estímulos,

que podem agravar os prejuízos ao desenvolvimento das crianças.

Essas consequências se relacionam a uma maior fragilidade da criança e família

durante a hospitalização, que sofrem com as condições fisiológicas e clínicas do adoecimento

e ainda por estarem afastadas das suas atividades cotidianas. As limitações no brincar e as

próprias condutas terapêuticas, às vezes invasivas e que exigem imobilização no leito, podem

levar a criança a perder habilidades do desenvolvimento antes adquiridas13, 14

.

O terapeuta ocupacional no ambiente hospitalar tem como principal função a

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(...) promoção da qualidade de vida, da re-humanização das relações interpessoais e

do ambiente hospitalar, a promoção da capacidade funcional e do desempenho

ocupacional durante a internação e a orientação na alta hospitalar e o

acompanhamento domiciliar15

(p. 65).

Nesse contexto o terapeuta ocupacional e a equipe interdisciplinar atuam para

favorecer as habilidades funcionais, beneficiando-se da plasticidade neuronal e da

reorganização cortical, promovido por estímulos cognitivos, motores e sensoriais, para que

ocorra o adequado desenvolvimento infantil16

.

3.1 CARACTERIZAÇÃO DO CAMPO E DAS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NO

ESTÁGIO CURRICULAR

O estágio aconteceu em um dos hospitais públicos de referência para atendimentos às

crianças com microcefalia decorrente da SCZV em Pernambuco. A equipe conta com

médicos, residentes em pediatria, enfermeiros, técnicos de enfermagem, terapeuta

ocupacional, psicólogo, fonoaudiólogo e nutricionista. Um serviço ambulatorial foi

implantado como opção para continuidade do cuidado as crianças. Nesse momento de

implantação e que correspondeu ao período do estágio, a articulação da rede de saúde estava

ainda pouco organizada, havendo crianças com atendimento em mais de um serviço,

especialmente os que envolvem pesquisa, e outras ainda não inseridas na reabilitação.

A experiência formativa das graduandas foi supervisionada cotidianamente pela

terapeuta ocupacional do hospital, concomitantemente à orientação presencial e à distância de

docente do Curso. O estágio se desenvolveu com responsabilização crescente das estudantes,

estruturando-se em etapas sequenciais ou sobrepostas, com a observação dos atendimentos

realizados pela supervisora; discussão dos casos; atendimento pela terapeuta ocupacional com

as estagiárias como apoio; atendimento pelas estagiárias com supervisão direta e indireta da

terapeuta ocupacional; registro da evolução em prontuários e no diário de campo; reunião de

equipe, de estudo e de supervisão.

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No período de estágio receberam atendimento terapêutico ocupacional 24 bebês com

microcefalia, com idade entre 3 a 10 meses, procedentes da Região Metropolitana do Recife e

do interior do Estado de Pernambuco, sendo comum o baixo nível socioeconômico das

famílias. Em sua maioria as crianças eram acompanhadas pela mãe durante a hospitalização e

também nos atendimentos ambulatoriais.

Todas as crianças com microcelafia por SCZV hospitalizadas nesse período foram

atendidas pela terapeuta ocupacional. Em torno de 40% (9) não estava recebendo atendimento

em nenhum outro serviço de reabilitação, até o momento do internamento. Na enfermaria a

assistência da Terapia Ocupacional é diária e o plano de tratamento é breve, com metas de

curto prazo, pois a hospitalização comumente não ultrapassa duas semanas. Durante o

atendimento hospitalar também há orientação para continuidade do cuidado no domicilio e

encaminhamento para serviços de estimulação do DNPM.

Outra possibilidade de assistência pela Terapia Ocupacional oferecida neste hospital é

o atendimento ambulatorial implantado especialmente para as crianças diagnosticadas com a

SCZV. Em ambos os serviços, cada sessão tem em média trinta minutos, destinados as

avaliações, estimulação e orientações de rotina para o domicílio.

Inicialmente são colhidos dados sociais e familiares; dificuldades no cuidado a

criança; relação mãe-bebê; acompanhamentos e terapias em andamento. Em seguida, são

avaliados: padrões e mudanças posturais, aquisições do DNPM, contato visual, reações

auditivas, padrão de reflexos, força e tônus muscular, motricidade, interesse por pessoas ou

brinquedos, entre outras atividades e aquisições funcionais esperadas para cada faixa etária.

Por fim, a mãe é orientada, considerando as prioridades para a criança e a dinâmica familiar.

Um plano de acompanhamento é estabelecido para revisão mensal, até a criança ser inserida

em atendimento regular de reabilitação nesse hospital ou em outro serviço especializado.

Em relação ao aspecto motor observamos que a maioria das crianças avaliadas tem

controle cervical precário, espasticidade de tronco e/ou membros, mesmo as que têm tônus de

base baixo (hipotônico), encurtamento muscular, alterações de reflexos (exacerbados ou

ausentes), polegar em adução e dedos fletidos, ineficiente manutenção da postura sentada e

dificuldade de apoio para o engatinhar. No aspecto social observamos ser comum o choro

constante, o desinteresse por brinquedos, pessoas e o ambiente. E, no aspecto sensorial,

destacam-se o comprometimento visual, auditivo, proprioceptivo, vestibular e tátil.

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Na Tabela1 apresentamos os principais objetivos das intervenções terapêuticas

ocupacionais realizadas durante o estágio e a orientação à família. Os recursos para

estimulação são brinquedos e outros materiais ou situações envolvendo a criança e familiares,

visando o DNPM, favorecer a participação, despertar o comportamento lúdico, servir de

referência para a relação mãe-bebê e a continuidade da estimulação à criança em outros

momentos.

Objetivo Detalhamento dos objetivos Estratégia

Favorecer a

adequação do

controle cervical e de

tronco.

Alongar e fortalecer a musculatura do

pescoço e tronco ativamente e passivamente;

estimular o sistema vestibular,

proprioceptivo e o tato; favorecer as reações

de retificação e alinhamento do pescoço e

tronco.

Manuseio em superfícies estáveis e

instáveis1; incentivar a postura em

decúbito ventral e sentada com apoio ou

não e uso de adaptações; manobras para

alinhamento do pescoço e tronco.

Favorecer o

desenvolvimento da

cintura escapular e

cintura pélvica

Dissociar, alongar e fortalecer as cinturas

escapular e pélvica ativamente e

passivamente; estimular o sistema

proprioceptivo e tátil

Mobilizar cintura escapular e cintura

pélvica em superfícies estáveis e

instáveis; estimular o rolar através do

seguimento visual de objetos; descarga

de peso com variação postural.

Favorecer a função

de Membros

Superiores (MMSS)

e Membros Inferiores

(MMII)

Alongar e fortalecer os MMSS e MMII,

ativamente e passivamente; estimular o

sistema proprioceptivo; favorecer as reações

de proteção; incentivar a integração bilateral,

cruzamento da linha média, coordenação

óculo-manual, alcance, e preensão.

Descarga de peso em membros com

variação postural; manuseio em

superfícies estáveis e instáveis¹.

Confecção de órtese abdutora para mão

usando faixas de gaze; alcance e

exploração de brinquedos.

Favorecer a

integração do

Sistema sensorial

Estimular o sistema visual (coordenação

mão-boca, olho-mão e olho-objeto,

sensibilidade ao contraste, reação a luz,

fixação, seguimento, acuidade e motilidade

visual); estimular o sistema auditivo

(detectar, reconhecer e responder aos sons);

estimular o sistema tátil (perceber objetos,

toques e texturas)

Visual: Uso de brinquedos com cores

contrastantes, luminosidade e tamanhos

diversos; expressões faciais do

facilitador ou familiar.

Auditivo: Uso de brinquedos com sons,

emissão de sons e música cantada pelo

facilitador ou familiar.

Tátil: Massagem; uso de brinquedos

com formas e texturas variadas.

Favorecer o

desenvolvimento das

Relações sócio

afetivas

Estimular a linguagem verbal e não verbal

com familiar e outras pessoas, estimular o

sistema tátil e visual

Uso de conversa, cantigas, brincadeiras

e brinquedos interativos; segurar a

criança em postura que possibilite a

percepção do meio; orientação familiar

para estimulação no domicilio.

Tabela 1: Atividades realizadas durante o estágio curricular e atendimentos de Terapia Ocupacional as

crianças com microcefalia em um hospital de referência, Recife/PE, no período de Fevereiro a

Junho/2016.

Fonte: elaborada pelas autoras

Outra atividade incluída posteriormente no plano de estágio surgiu de uma supervisão

conjunta, onde foi discutida a necessidade contínua de estimulação às crianças e a

1As superfícies instáveis usadas são o colo do facilitador ou mãe, o rolo, a bola suíça.

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precariedade de recursos disponíveis pelas famílias. A partir disso, foi desenvolvido um

projeto de extensão, para realização de uma gincana com os demais estudantes do Curso de

Terapia Ocupacional, para arrecadação de kits de estimulação para doação às famílias. As

equipes inscritas na gincana conceberam e confeccionaram os kits de estimulação (Figura 1).

Em contrapartida, os vencedores com maior arrecadação (100 unidades) e adequação dos kits,

receberam um “Minicurso de Estimulação precoce com enfoque em Microcefalia: Atuação da

Terapia Ocupacional”, com 8 horas teóricas e demonstração prática, ministrado pela equipe

do campo de estágio e outras terapeutas ocupacionais de serviços especializados no

atendimento a esse público.

A gincana também possibilitou apresentar a todos os participantes o serviço e a

atuação da Terapia Ocupacional com crianças diagnosticadas com SCZV, expandindo para

outros estudantes os conhecimentos em uma temática emergente e ainda não contemplada no

conteúdo curricular.

Figura 1: Itens do Kit de estimulação, produto da gincana.

Fonte: Arquivo pessoal das autoras.

4 DISCUSSÃO

Observamos que as alterações descritas na literatura9, 12

com crises convulsivas,

alterações de tônus, hiperreflexia, irritabilidade e choro constante, além de alterações

auditivas e visuais, atrasos do DNPM, são compatíveis com o quadro apresentado pelos bebês

com microcefalia atendidos durante o estágio.

Empiricamente observamos diferença positivas entre os bebês que são acompanhados

regular e precocemente para os que ainda não iniciaram as terapias. As crianças em terapia

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regular usufruem e participam melhor das sessões terapêuticas, talvez por estarem adaptadas

ao manuseio, pela habituação ao toque (estímulos) além de apresentarem menos contraturas e

dor no alongamento e mobilização. As crianças em atendimento pela primeira vez ou que

compareciam apenas as consultas mensais, tinham menor participação, choro, irritação e

expressões de desconforto durante o atendimento da Terapia Ocupacional.

Acredita-se que a reabilitação para crianças com microcefalia deva iniciar logo após

seu nascimento, com atenção especial para o primeiro ano de vida, apoiando os marcos de

desenvolvimento típico. Estudos afirmam que esta é a fase em que o cérebro se desenvolve

mais rápido, na qual o tratamento precoce minimiza riscos e oferta oportunidades para o

estabelecimento de funções que possibilitarão um melhor desenvolvimento e qualidade de

vida8, 13

.

A recomendação da estimulação precoce é pela plasticidade cerebral maior no

primeiro ano de vida, devida às conexões adequadas dos neurônios em formação. Nessa fase a

estimulação poderá prevenir sequelas antes que a deficiência seja instalada17

.

De acordo com Franceschi e Peruzzolo18

o desenvolvimento infantil é influenciado por

fatores neuronais; fatores motores, psicológicos, emocionais, culturais, condições

socioeconômicas; expectativas dos pais, características que podem repercutir no

desenvolvimento do bebê. Então, a criança com atraso no desenvolvimento, necessita muito

além dos estímulos oferecidos pelas terapias, mas também que o contexto em que vive seja

potencializado e os familiares participem do processo de cuidado.

No atendimento, foi possível identificar que os sistemas visual, auditivo,

proprioceptivo, vestibular e motor foram os mais comprometidos nas crianças. Assim, o

acompanhamento, desde o nascimento é fundamental, possibilitando prognósticos mais

favoráveis ao desenvolvimento infantil8, 19

.

O Manual de Diretrizes de Estimulação Precoce do Ministério da Saúde, referência

para os atendimentos as crianças com microcefalia, reconhece o terapeuta ocupacional como

um dos profissionais capacitados para a reabilitação dessas crianças8. O terapeuta ocupacional

poderá favorecer o melhor desempenho da criança nas atividades de vida diária e do brincar,

consideradas áreas significativas para o DNPM20

.

A estimulação precoce de bebês com microcefalia promove o desenvolvimento dos

sistemas motores, sensoriais, linguístico, cognitivo, emocional e social8. Para realizar essa

estimulação foi observado durante o estágio, a aplicação de alguns métodos, entre esses a

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estimulação sensorial e o Conceito Neuroevolutivo Bobath. Esse último é uma abordagem

cujo objetivo é a qualidade e resposta dos movimentos através da normalização de tônus

muscular, diminuição de reflexo anormal e favorecimento das reações posturais normais21

,

exigindo formação certificada para a sua aplicação. Assim, verificamos que a atualização, a

qualificação profissional mediante cursos e a educação permanente é uma necessidade que se

impõe após a graduação.

O uso de recursos lúdicos e a orientação familiar estiveram presentes em todos os

atendimentos terapêuticos ocupacionais, uma vez que a inclusão desses facilita o trabalho do

profissional e favorece o desenvolvimento infantil. Para Domingues e Martinez22

a atuação da

Terapia Ocupacional caracteriza-se por promover o desenvolvimento infantil e orientar a

família, sendo o brincar uma atividade própria e significativa para a criança da mesma forma,

que a participação familiar no cuidado a criança é algo natural, salvo em condições

excepcionais.

A ludicidade vai além de estratégia de intervenção, pois é típica da infância e essencial

para o bem estar. Por meio da brincadeira com o próprio corpo, com o corpo do outro e com

objetos a criança desenvolve seu repertório motor, sensorial, cognitivo, social e emocional,

além de ajudá-la a lidar com toda essa experiência e domínio da realidade8, 14, 23

.

O brincar foi um recurso usado como mediador nas orientações a família para o

desenvolvimento infantil. Reconhecendo a importância do brincar e a dificuldade de interação

dos bebês com microcefalia, os brinquedos/brincadeiras foram inseridos para favorecer as

funções e estruturas corporais e também as relações. Mesmo que a criança apresente

dificuldades, ela deve ser auxiliada a descobrir e aprender, de buscar a propriedade e função

dos objetos, manipulando-os e transformando-os, interagindo consigo e com o meio23

.

O brincar propicia a percepção do próprio corpo, conhecer e experienciar sensações,

explorar o ambiente para alcançar o desenvolvimento, independente das limitações18

.

Segundo Franceschi e Peruzzolo18

o profissional precisa favorecer o vínculo mãe-filho e

acolher a mãe em suas dificuldades, dando orientações e esclarecendo sobre a condição do

bebê.

Pelo período curto e determinado de atendimento, são os familiares que ficam em

contato diário com o bebê sendo responsáveis pela continuidade da estimulação. Por isso, em

nossa vivência, as mães foram incentivadas a participar em todos os momentos da terapia,

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para explicações dos benefícios, dos procedimentos, esclarecimentos sobre dificuldades, as

potencialidades do bebê e a possível manutenção pelas famílias da estimulação no domicilio.

A orientação considera os aspectos socioeconômicos, as necessidades da criança, as

condições da mãe de apreender e se envolver com a estimulação, sem perder a sua condição

materna. Holanda24

considera importante a inserção das famílias como agentes ativos para o

desenvolvimento das crianças em estimulação precoce. A autora revela ainda que a rotina

cotidiana é uma oportunidade de cuidados dos pais com seus filhos.

Entretanto, em alguns momentos identificamos resistência e dificuldade de aceitação

das mães no processo de terapia. Também ouvimos queixas da sobrecarga por exigência dos

cuidados as crianças com microcefalia e o abandono de papeis pessoais como o afastamento

do trabalho remunerado. Estudos referem que esse comportamento materno pode ser

compreendido porque o nascimento de uma criança com deficiência interfere na relação mãe-

bebê, por sentimentos conturbados, expectativa de um “filho perfeito” e dos cuidados

excessivos que uma criança adoecida requer19

. Nesses casos, cabe ao profissional acolher sem

julgar, auxiliar essa relação e a comunicação mãe-bebê. A posição do terapeuta na

estimulação precoce é a de facilitador na construção de possibilidades da relação da criança

com seus pais e o mundo que a circunda18

.

Conforme o estudo de Giardinetto et al.15

, nessa lógica de ser um facilitador, a atuação

do terapeuta ocupacional em enfermaria pediátrica também auxilia na dinâmica hospitalar e

no enfrentamento das condições adversas provocadas pelo adoecimento, além de favorecer a

estruturação da nova rotina para a criança e a família. Essa condição foi experimentada no

estágio curricular, com o apoio da supervisora e da equipe, que solicitavam atendimento para

casos da enfermaria e reconheciam em reuniões e discussão de casos, os benefícios da atuação

para a criança, a mãe e a rotina do tratamento.

Segundo Miranda-Filho et al9a criança com SCZV poderá apresentar retardo mental e

deficiências motoras, sendo necessário preocupar-se também com a inclusão escolar e

comunitária, além de estratégias de estruturação familiar. Ou seja, a preparação da rede de

serviços e de profissionais para responder as necessidades futuras dessas crianças vai

continuar além da fase epidêmica e da estimulação precoce. Com isso, fica evidente que as

crianças precisarão desde a primeira infância de atendimento multiprofissional, incluindo o

terapeuta ocupacional para a estruturação de suas rotinas.

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Embora haja esforços para uma melhor formação e integração ensino-serviço-

assistência, lacunas nesse processo faz com que futuros profissionais acumulem dificuldades

para enfrentar problemas emergentes de saúde pública, como verificado com essa recente

epidemia. Tais dificuldades ocorrem, porque as instituições de ensino não têm velocidade de

resposta, mostrando descompasso entre seus currículos, metodologias e programas, e as

necessidades de saúde que se apresentam de forma emergencial. Já as políticas e redes de

saúde enfrentam descompassos entre a alocação de recursos materiais e humanos, as

expectativas e as prioridades do que é planejado e do que é executado4, 25

.

Avaliamos que essa experiência e o aporte de conhecimentos nesse cenário permitiram

as graduandas compreender os desafios diante dessa epidemia. As alternativas efetivadas

cotidianamente no cuidado a essas crianças durante o estágio, também nos fez vislumbrar

outros horizontes como a pesquisa e a intersetorialidade como partes da solução à

problemática.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar da curta duração do estágio e do pobre desenvolvimento neuropsicomotor da

maioria das crianças foi possível observar que a intervenção da Terapia Ocupacional

possibilitou discretas mudanças e o ganho de habilidades. Dentre as quais, identificamos

melhor controle cervical, responsividade com o olhar, acomodação da hiperreatividade

sensorial ao toque e aos estímulos vestibulares, e consequentemente melhora nos padrões de

retificação e endireitamento para o brincar das crianças.

Destacamos que as estratégias utilizadas e que mais contribuíram foram o manuseio

em superfícies estáveis e instáveis para estímulo ao neurodesenvolvivemento, a utilização de

músicas e as brincadeiras proprioceptivas, além do engajamento familiar na terapia para a

continuidade da estimulação no domicilio. Durante o processo de orientação constatamos

também as famílias mais participativas, bem como corresponsáveis no percurso terapêutico

para minimizar as dificuldades de seus filhos.

A forma como a proposta de ensino-aprendizagem do estágio foi estruturada ofereceu

experiências positivas e o reconhecimento das contribuições da Terapia Ocupacional na

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estimulação as crianças com microcefalia, capacitando-nos para o atendimento e a produção

de conhecimentos. Por fim, compreendemos que as políticas, os profissionais, as instituições

de saúde e de formação precisam se estruturar para a continuidade do cuidado as crianças e

suas famílias.

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Contribuição das autoras: Jamine Cunha dos Reis e Patrícia da Silva Santos foram responsáveis pela

concepção e redação do texto. E Mayara Francelle Oliveira Barata e Ilka Veras Falcão participaram da

concepção e realizaram a discussão e revisão do texto final. Não há conflito de interesses.

Submetido em: 21/09/2017

Aceito em: 11/12/2017

Publicado em: 31/01/2018