Aborto Pedro Galvão

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    Aborto

    Pedro Galvo

    1. A questo tica

    Uma das questes mais acesas em muitas das sociedades actuais a desaber em que circunstncias, e de que forma, a lei deve proibir e penalizar oaborto. impossvel debater sensatamente esta questo sem enfrentar umaoutra bastante mais bsica: a de saber quando, e por que razo, o aborto eticamente errado. Pois, se nada houver de errado em matar fetos humanos, aproibio jurdica de abortar ficar destituda de fundamento. Mas se, pelocontrrio, abortar for eticamente equiparvel a matar deliberadamente umacriana ou um adulto, ser bastante mais difcil justificar a ausncia de limiteslegais apertados prtica do aborto.

    Vamos concentrar-nos apenas na questo tica do aborto. Que questo esta? A verdade que o aborto coloca muitos problemas ticos distintos.Contudo, para captar o desacordo essencial entre os que se situam no campopr-vida (ou conservador ) e os que se incluem antes no campopr-escolha (ouliberal ), podemos identificara questo tica do aborto com o seguinteproblema:

    Ser que normalmente errado profundamente errado matar um fetohumano logo durante o primeiro trimestre da gestao?

    Qualquer defensor da posio pr-vida, qualquer conservador,

    responder SIM. Mas, como a pergunta se refere apenas aos casos normais outpicos, esta resposta deixa espao para grandes dissenses internas. Muitosconservadores diro que permissvel abortar em pelo menos algumas dassituaes seguintes: a gravidez resultou de violao ou de ignorncia profundae desculpvel dos efeitos da cpula; o embrio tem apenas alguns dias, aindano se implantou no tero; o feto evidencia deficincias ou defeitos genticosgraves. Os conservadores mais radicais no aceitam nenhuma destas

    excepes proibio de abortar, mas mesmo eles geralmente concedem que permissvel provocar a morte do feto se a continuao da gravidez constituir

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    um risco significativo para a vida da mulher isto desde que ainteno noseja matar o feto, costumam acrescentar.

    Qualquer defensor da posio pr-escolha, qualquer liberal, responderNO pergunta acima formulada. Tambm neste campo h lugar paradivergncias. Enquanto alguns no vem razes de peso para condenar oaborto mesmo quando este praticado no ltimo trimestre de gestao, muitosliberais tm uma posio mais moderada e consideram que, de um modo geral,o aborto tardio eticamente objectvel ou pura e simplesmente inadmissvel.Um desafio que se lhes coloca apontar os factos em virtude dos quais oaborto se torna menos tolervel quando a gravidez se aproxima do seu termonatural.

    2. Defesas do aborto

    O argumento do violinista

    De acordo com uma das alegaes pr-vida mais comuns, o aborto errado porque um feto humano tem j o direito moral vida. No comeo dosanos 70 do sculo passado, Judith Thomson enfrentou esta alegao de uma

    forma original, que abriu uma nova vertente no debate do aborto. Em vez decontestar a suposio de que o feto tem j um direito moral vida to fortecomo o nosso, Thomson admite, pelo menos para benefcio da discusso, quenisso os conservadores tm razo mas eles enganam-se, acrescenta,quando inferem da que o aborto errado. Na verdade, se compreendermos oque significa ter o direito vida, concluiremos que o aborto permissvel.

    Na sua defesa do aborto, Thomson (1971) descreve uma situaohipottica que se tornou clebre. Convida-nos a imaginar que um diaacordamos num hospital, sem sabermos como isso aconteceu, ligados portubos a uma pessoa que est inconsciente. Dizem-nos que um violinistafamoso. Ele padece de uma doena fatal nos rins, mas alguns dos seusadmiradores no esto dispostos a deix-lo morrer. Foi por isso que nosraptaram na noite anterior, alis. Descobriram que, em virtude de termos umtipo de sangue muito raro, os nossos rins podem servir para limpar o sistemacirculatrio do violinista. Note-se que ele nunca chegou a saber do plano uma parte inocente nesta histria. E agora, o que haveremos de fazer? Se nos

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    desligarmos do violinista, ele morrer. Contudo, se aceitarmos manter a ligaodurante nove meses, permanecendo todo esse tempo no hospital, ele ficarcurado.

    Perante este caso, Thomson diz-nos que embora salvar o violinista fosseum acto de grande generosidade, no teramos aobrigao de fazer essesacrifcio. Se preferssemos desligarmo-nos dele para seguirmos com a nossaprpria vida, nada faramos de errado. E, no entanto, o violinista uma pessoainocente que tem o direito vida. Acontece que o facto de um indivduo ter odireito vida no significa que ele tenha direito a usar o corpo de outrem parase manter vivo, nem sequer que ns tenhamos a obrigao de sustentar a suavida atravs do nosso corpo, suportando um fardo considervel.

    A analogia que Thomson pretende estabelecer entre o caso do violinista ea gravidez bastante bvia. Tal como o msico, o feto um ser humanoinocente cujo direito vida est fora de questo. Alm disso, ambos dependemdo corpo de outrem para se manter vivos. Portanto, no sendo erradodesligarmo-nos do violinista, tambm ser permissvel a mulher grvidadesligar-se do feto, abortando.

    Importa esclarecer melhor a posio pr-escolha de Thomson em dois

    aspectos. (1) A sua ideia no que o direito da mulher a controlar o prpriocorpo mais forte do que o direito vida do feto, de tal forma que, havendo umconflito entre estes direitos, o primeiro suplanta o segundo, tornandopermissvel a sua violao. Na verdade, Thomson no nos apresenta o abortocomo uma violao justificvel do direito vida. Diz-nos antes que abortar noconsiste, em rigor, em qualquer violao do direito vida. (2) Contudo,Thomson no pensa que o aborto seja sempre permissvel. Pois o acto de

    abortar, ainda que no viole o direito vida, pode ser errado por outras razes.No estando em causa a sade da mulher ou do feto, o aborto tardio afigura-se-lhe condenvel, dado que, quando a gravidez j vai muito adiantada, lev-laat ao fim no implica um sacrifcio muito grande para a mulher. Do mesmomodo, se para salvar o violinista tivssemos de permanecer ligados durante umperodo muito inferior a nove meses, seria errado recusarmo-nos a auxili-lo,ainda que essa recusa no implicasse violar o seu direito vida.

    Como seria de esperar, o amplo debate que a perspectiva de Thomsonmotivou tem-se centrado na fora da sua analogia. Muitos autores defendem

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    que, em aspectos eticamente relevantes, a situao de quem raptado pelosmelmanosno como a situao normal de uma mulher grvida. Vale a penadelinear duas das objeces principais analogia ambas discutidas, alis,pela prpria Thomson. (1) Ao passo que o violinista um estranho para apessoa raptada, o feto filho da mulher grvida. Ora, como as mes tm umaobrigao muito forte de cuidar dos seus filhos, o juzo de que seria permissveldesligarmo-nos do msico no autoriza a concluso de que o aborto aceitvel. (2) No somos minimamente responsveis pelo facto de o violinistadepender de ns para se manter vivo, mas a mulher grvida responsvel pelofacto de o feto estar dependente de si. Por esta razo, apesar de no termos aobrigao de manter o msico vivo, a mulher grvidadeve sustentar a vida dofeto.1

    A objeco da responsabilidade no se coloca quando a gravidez resultoude violao nem, talvez, nos casos em que se deveu a ignorncia desculpvelsobre os efeitos da cpula. Por isso, o conservador que se oponha analogiado violinista apenas com esta objeco, poder conceder que o argumento deThomson torna razovel aceitar estas excepes proibio do aborto.

    O argumento da conscincia de siContrariamente a Thomson, muitos liberais argumentam a favor da

    permissividade do aborto sustentando que os fetos humanos no tm umdireito moral vida. Deve-se a Michael Tooley (1972) a defesa mais conhecidadesta perspectiva. Segundo Tooley, uma condio necessria para ter o direito vida ser consciente de si. Ora, como nem mesmo na fase final da gravidezo nascituro possui esta capacidade mental, segue-se que nenhum feto tem o

    direito vida.Tooley comea por examinar o prprio conceito de direito moral,

    afirmando a existncia de uma conexo conceptual entre ter direitos e tercertos desejos.

    1 Para uma discusso muito pormenorizada das crticas a Thomson uma discusso

    favorvel sua perspectiva pr-escolha , veja-se Boonin 2003.

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    Ser consciente de si , podemos acrescentar, implica precisamente ser umindivduo que se concebe a si mesmo como um sujeito contnuo de estadosmentais comoalgum que existe ao longo tempo. Deste modo, os indivduosdestitudos de conscincia de si no tm o desejo de continuar a existirenquanto sujeitos de estados mentais o desejo sem o qual no h razopara lhes atribuir o direito vida. E os fetos, manifestamente, no tmconscincia de si. Todos os estudos cientficos desmentem semelhantehiptese. Portanto, os fetos no tm o direito moral vida.

    Para Tooley, a permissividade do aborto um corolrio desta concluso.Outro corolrio a permissividade doinfanticdio , dado que tambm um recm-nascido ainda no consciente de si.

    Embora no veja razes para reconsiderar esta avaliao do infanticdio,Tooley admite que o argumento acima delineado exige algumas qualificaes.Pensemos em pessoas que no desejam continuar a viver porque esto muitodeprimidas, porque ficaram temporariamente em coma ou porque sofreramuma lavagem cerebral. Tooley considera inaceitvel julgar que estaspessoas, pelo facto de no terem agora o desejo relevante, esto privadas do

    direito vida. Isso leva-o a qualificar da seguinte forma a sua perspectiva inicialsobre o conceito de direito:

    [ ] ,

    : ( ) ; ( ) ; ( ) . (1972: 83)

    Ao introduzir estas qualificaes, no entanto, Tooley abre as portas a umaobjeco importante sua defesa do aborto (Gensler 1986: 110-112). Poisimagine-se que introduzimos apenas mais uma qualificao:

    ( ) , .

    Ora, razovel supor que normalmente os fetos desejariam continuar aviver se crescessem, tornando-se seres humanos adultos. Assim, com esta

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    qualificao adicional, obtm-se a concluso de que afinal os fetos tmtambm o direito vida. O desafio que agora se coloca a um defensor daperspectiva de Tooley explicar por que razo haveremos de aceitar asqualificaes (i)-(iii), mas no a qualificao (iv). Afirmar que esta ltima nose justifica porque os fetos no tm o direito vida seria cometer umagrosseira petio de princpio.

    O argumento utilitarista

    Alguns filsofos no acreditam propriamente em direitos morais. esse ocaso dos utilitaristas, que pensam que a nossa nica obrigao fundamental simplesmente fazer aquilo que resulte no maior bem-estar geral.2 Os

    utilitaristas tendem a advogar a permissividade do aborto. Entre eles, PeterSinger o defensor mais influente da posio pr-escolha.

    Singer concebe o bem-estar em termos de satisfao de preferncias ouinteresses, pelo que identifica o utilitarismo com oprincpio da igualdade naconsiderao de interesses . Agir segundo este princpio consiste em dar amesma importncia aos interesses de todos os que sero afectados pelasnossas aces, o que implica fazer aquilo que produza uma maior satisfao

    de interesses. Entende-se que a sencincia a capacidade de sentir dor ouprazer um requisito para ter interesses.

    Quando partimos desta perspectiva, como haveremos de avaliar oaborto? Concentrando-se no feto e na mulher grvida, Singer (2000: 171-172)declara que normalmente o primeiro no tem quaisquer interesses porque no senciente, o que significa que os interesses da mulher so tudo o que conta.Se o feto j for senciente, verdade que ter um interesse em no sentir dor.

    Contudo, efectuando o aborto sem lhe infligir dor, esse interesse ser atendido.Deste modo, considerados os interesses em questo, normalmente o abortoser permissvel.

    Mesmo sem pr o utilitarismo em causa, no ser esta conclusobastante precipitada? Afinal, parece plausvel que muitas vezes se verifique o

    2 Esta perspectiva s caracteriza os utilitaristas que subscrevem o consequencialismo de

    actos. Aqueles que optam antes por um consequencialismo de regras aceitam a existncia dedireitos morais. Veja-se, neste volume, o captulo Consequencialismo.

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    seguinte: se a mulher no tivesse abortado, teria existido mais um ser humanocom uma vida longa e gratificante, pelo que o aborto, na verdade, acabou porresultar num menor bem-estar ou satisfao de preferncias, sendo assimcriticvel luz do padro utilitarista. Singer (2000: 175) sugere que estaobjeco no tem peso num mundo com excesso de populao. Talvez issoseja verdade, mas nesse caso porventura muitas mulheres tero aobrigao de abortar enquanto a populao humana no descer para o nvel ptimo, sejaisso o que for. Poucos defensores da posio pr-escolha desejariamcomprometer-se com esta concluso.

    3. Crticas ao aborto

    O argumento da humanidade

    O argumento mais comum contra o aborto , sem dvida, aquele queapela humanidade do feto. Uma verso deste argumento a seguinte:

    1. .2. .3. .4. .5. , .

    A premissa 4 indisputvel. Podemos dizer o mesmo da premissa 3,desde que por errado se entenda simplesmente erradoprima facie . Poisem casos de autodefesa, por exemplo, podemos querer afirmar que se justificamatar deliberadamente o agressor, ainda que ele tenha o direito vida.

    nas premissas 1 e 2 que reside o corao do argumento. Em ambas

    ocorre o termo seres humanos um termo ambguo que, como muitosobservaram, tem pelo menos dois sentidos profundamente diferentes. Numsentido biolgico, ser humano significa membro da espcieHomo sapiens .Mas o termo tambm usado para exprimir um conceito psicolgico. Assimentendido, significa algo como animal racional ou agente racional econsciente de si. Dada esta ambiguidade, uma opo sensata consiste emusar ser humano apenas no seu sentido biolgico e escolher o termo

    pessoa para designar aqueles indivduos que tm as capacidadespsicolgicas da racionalidade ou da conscincia de si.

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    Detectada esta ambiguidade, o defensor do argumento da humanidadev-se perante um dilema. Para o argumento ser vlido, o termo sereshumanos tem de ser usado no mesmo sentido em ambas as premissas.Contudo, se for usado no seu sentido biolgico, a premissa 1 a traduzir porTodos os membros da espcie Homo sapiens tm o mesmo direito vida perder a aura de auto-evidncia, j que a mera pertena a uma categoriabiolgica parece irrelevante para a atribuio do direito vida. Mas, se sereshumanos for entendido antes num sentido psicolgico, a premissa 2 atraduzir por algo como Os fetos sopessoas , seres racionais e conscientesde si parecer manifestamente falsa. O argumento da humanidade,portanto, afigura-se insatisfatrio. Impe-se rever as suas premissas ou justific-las apropriadamente.

    Alguns conservadores optam pela reviso, introduzindo o conceito depotencialidade. David Oderberg (2009), por exemplo, defende que os fetos,mesmo no sendo pessoas, so pessoas potenciais e que isso basta lhesconferir o direito vida. Pois tambm os seres humanos em coma ou em sonoprofundo so apenas pessoas potenciais, mas no pensamos que sreadquirem o direito vida quando voltam a ser efectivamente racionais e

    conscientes de si. Esta linha de raciocnio leva interrogar-nos se um serhumano em coma ou a dormir profundamente ser mesmo apenas uma pessoapotencial e, admitindo que isso verdade, se ele no ser uma pessoapotencial de um modo diferente do feto, sendo essa diferena eticamenterelevante.

    Outros conservadores atm-se ao argumento original. Sem tentar tirarproveito ilcito da ambiguidade de seres humanos, procuram justificar as

    suas premissas. Stephen Schwarz (1990), por exemplo, defende que naverdade os fetos so pessoas e no meras pessoas potenciais. Simplesmenteainda no funcionam como pessoas .

    O argumento da regra de ouro

    Como j se tornou claro, os princpios que especificam condies para tero direito moral vida tendem a ser muito controversos. A chamadaregra de

    outro , pelo contrrio, um princpio tico que colhe um largo consenso, pelomenos aps uma formulao cuidada. O argumento da regra de ouro (ou

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    kantiano), formulado na sua verso mais conseguida por Harry Gensler (1986), uma tentativa de justificar a posio pr-vida sem invocar outro princpiotico. Gensler adopta a seguinte formulao da regra de ouro:

    , .

    Antes de aplicar a regra de ouro ao aborto, Gensler convida-nos aimaginar que a nossa me, enquanto nos aloja no tero, resolve tomar umasubstncia que nos deixar cegos. A no ser que tenhamos desejos bizarros,reprovamos que a nossa me nos fizesse isso. (Note-se que a ideia que

    agora , perante essa situao hipottica, temos a atitude de reprovao eno que teramos a atitude enquanto estivssemos no tero.) Pela regra deoutro, temos ento de reprovar este dano pr-natal. Explicitamente, oargumento o seguinte:

    1. ,

    . ( .)

    2. .3. , ,

    .

    Para avaliar o aborto, pensa Gensler, basta trocar a substncia que cegapor uma substncia que mate, pondo fim gravidez. O argumento contra oaborto , pois, anlogo ao argumento anterior:

    4. , .

    ( .)5. .6. , ,

    .

    A premissa 5 a mais vulnervel. Parece plausvel porque se assemelha premissa 2, mas pode defender-se que perfeitamente razovel aceitar s

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    esta ltima: reprovar que nos tivessem cegado, mas no que nos tivessemmorto no tero. A este propsito, David Boonin observa o seguinte:

    , ,

    . . ,

    , . A

    , . (2003: 295)

    Esta assimetria pode levar-nos a rejeitar a premissa 5. Outro problema

    que se a aceitarmos, no admitindo termos sido abortados porque assim noteramos nascido, parece que teremos de nos opor no s ao aborto, mastambm contracepo e at abstinncia, dado que estas teriam essemesmo efeito.

    O argumento da privao

    Matar pessoas errado prima facie nisto tanto os crticos como os

    defensores do aborto esto de acordo. H, pois, muitos casos em que matar incontroversamente errado. Mas por que razo,nesses casos , o acto de matar errado? O que explica o mal de matar? Responder a esta questo pareceessencial para determinar a permissividade do aborto. Afinal, se queremosdescobrir se matar errado quando esto em questo fetos humanos, pareceboa ideia reflectir primeiro nas razes tornam errado matar seres humanoscomo ns, indivduos racionais e conscientes de si. Seguindo esta estratgia,Donald Marquis (1989) desenvolveu uma defesa muito influente da posiopr-vida.

    De modo a explicar o mal de matar, Marquis adopta a chamadaperspectiva da privao : aquilo que torna errado o acto de matar uma pessoa, em grande medida, o facto de esse acto impor vtima a privao de tudo oque haveria de valioso, para ela mesma , ao longo de toda a sua vidaconsciente futura. Deste modo, podemos dizer que a propriedade de ter umfuturo significativamente valioso desempenha um papel importante naexplicao do mal de matar, de tal forma que, se um indivduo tem um futuro

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    significativamente valioso umfuturo-como-o-nosso , para usar o termo deMarquis , isso geralmente d-nos uma razo tica decisiva para no omatarmos.

    Coloca-se agora a questo de saber se os fetos humanos tambm tero apropriedade indicada. Marquis defende que sim, que tambm os fetosnormalmente tm j um futuro-como-o-nosso. Conclui ento que devemoscondenar o aborto pela mesma razo que condenamos o assassnio depessoas. Se verdade que seria errado matarem-nos porque assim nosprivariam de um futuro-como-o-nosso, e se o aborto consiste geralmente emimpor o mesmo tipo de privao a fetos humanos, ento temos boas razespara pensar que o aborto errado.

    O argumento da privao deixa-se resumir desta forma:

    1. , .

    2. .3. , .

    Importa observar que a premissa 1 diz-nos apenas que o facto de um

    indivduo ter um futuro-como-o-nosso condio suficiente e no que tambm condio necessria para que seja errado mat-lo. Deste modo, seuma pessoa no tiver j um futuro significativamente valioso, ainda assimpoder ser errado mat-la. (Porque, por exemplo, mat-la seria desrespeitar asua vontade.) A perspectiva da privao deixa esta possibilidade totalmente emaberto, pois no se apresenta como uma explicao completa do mal de matar.

    Quanto premissa 2, note-se que quem a aceita admite que nem todos

    os fetos tm um futuro-como-o-nosso, pelo que o argumento da privao noresulta numa condenao absoluta do aborto. Quem critique o aborto apenas apartir deste argumento ter de considerar permissvel abortar, por exemplo, umfeto anencfalo. Muitos dos que se opem ao aborto recorrendo ao argumentoda humanidade, pelo contrrio, no admitem este tipo de excepo proibiode abortar.

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    4. Aborto e identidade pessoal

    Ser que o argumento da privao cogente? Como se tornou claro,especialmente graas a Jeff McMahan (2002), as suas premissas dependem

    de perspectivas controversas sobre a identidade pessoal. Na verdade,investigar a natureza e a importncia prtica da identidade pessoal relevantepara avaliar no s o argumento de Marquis, mas tambm outras perspectivassobre a tica do aborto.

    O problema da identidade pessoal

    O problema da identidade pessoal, como costuma ser entendido, acercada persistncia das pessoas. Somos seres persistentes, ou seja, existimos aolongo do tempo. Mas em virtude de que factos a pessoa que somos hoje apessoa que fomos ontem e a pessoa que fomos h dez anos atrs? Em quecircunstncias possveis deixaramos de existir? E a que mudanas possveissobreviveramos? Para responder a questes como estas, precisamos dedescobrir as nossas condies de persistncia e descobri-las seria resolvero problema da identidade pessoal.

    Note-se que este problema sobre a identidadenumrica das pessoasao longo do tempo. H, sem dvida, muitas diferenas fsicas e psicolgicasentre a pessoa que somos hoje e a pessoa que fomos h dez anos atrs. Masas expresses a pessoa que sou hoje e a pessoa que fui h dez anos,quando usadas por qualquer um de ns, referem uma e a mesma pessoa: noreferemduas pessoas. O que se pretende, em grande medida, determinar ascondies em que h esta identidade entre pessoas qualitativamente diferentessituadas em momentos distintos. Contudo, o problema da identidade pessoal

    no deve circunscrever-se, pelo menos partida, identidadeentre pessoas .Pois no devemos pressupor, sem justificao, que somos pessoasessencialmente . Esta perspectiva implica que nunca existimos e nuncapoderemos existir sem ser pessoas, o que pode muito bem ser falso. Quandoperguntamos, por exemplo, se um dia poderemos existir em estado vegetativopersistente, ou se uma dia j fomos um feto, estamos precisamente acontemplar a possibilidade de existirmos sem ter a capacidade da conscincia

    de si e, portanto, sem ser pessoas.

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    Quando comemos a existir?

    Em resposta ao problema da identidade pessoal, a maioria dos filsofosprope uma perspectiva psicolgica. De acordo com esta perspectiva que

    por ser to ampla admite desenvolvimentos muito diferentes , uma condionecessria para a identidade pessoal a obteno de algum tipo decontinuidade psicolgica . Se isto for verdade, parece que teremos de rejeitar oargumento da privao. Vejamos porqu.

    O nosso crebro comeou a sustentar alguma vida mental, asseguram-nos os cientistas, nunca antes da vigsima semana de gestao.3 Deste modo,parece no poder haver qualquer relao de continuidade psicolgica entrecada um de ns e o feto pr-consciente que abrange os meses iniciais dahistria do nosso organismo. E assim, dada uma perspectiva psicolgica sobrea identidade pessoal, a verdade que nunca fomos realmente um feto comapenas alguns meses. Cada um de ns comeou a existir, na melhor dashipteses, na vigsima semana de gestao.

    Ora, quando Marquis afirma que os fetos humanos (incluindo, claro, ospr-conscientes) normalmente tm j um futuro-como-o-nosso, est a presumirque cada um de ns poderia ter sido privado do seu futuro mesmo enquantofeto pr-consciente e, portanto, est a supor que cada um de nsfoi um fetopr-consciente. Se a perspectiva psicolgica sobre a identidade pessoal forverdadeira, esta suposio ser falsa.

    Alm de Marquis, tambm os defensores do argumento da humanidadecostumam presumir que comeamos a existir assim que ocorre a concepo oupouco depois disso, quando o embrio se implanta no tero. Todos estescrticos do aborto precisam, pois, de uma alternativa perspectiva psicolgicada identidade pessoal.4

    Uma hiptese ser abraarem a perspectiva da alma , que nos diz quecada um de ns fundamentalmente uma alma, nada mais, ou tem uma almacomo parte essencial, sendo a alma uma certa substncia mental e imaterial

    3 Veja-se, por exemplo, McMahan 2002: 267-268.4 Gensler alega que uma virtude do argumento da regra de ouro no estar

    comprometido com nenhuma perspectiva sobre a identidade pessoal. Veja-se Gensler 1986:120.

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    cuja persistncia irredutvel a relaes psicolgicas. Mesmo que estaperspectiva seja correcta, no entanto, est longe de ser claro que comecemosa existir logo com a ocorrncia da concepo ou da implantao. Afinal, dadoque a alma concebida como uma substncia mental, parece que s farsentido atribuir uma alma a indivduos que revelem actividade mental. Umzigoto ou embrio, porm, no indiciam a menor actividade mental.

    Uma alternativa bastante menos misteriosa perspectiva psicolgica ochamado animalismo , que identifica cada um de ns simplesmente com o seuorganismo e sublinha que, sendo assim, a continuidade psicolgica no necessria para a nossa persistncia. Se cada um de ns nada mais que umcerto animal humano, ento o comeo da nossa existncia ter sido nada maisque o comeo da existncia desse animal ou organismo. Como a existncia donosso organismo recua seguramente implantao ou mesmo concepo, oanimalista ter de concluir que um dia jfomos fetos pr-conscientes. Oanimalismo assim a posio que oferece um apoio mais claro ao argumentoda privao.

    Ser a identidade aquilo que importa?

    A perspectiva psicolgica, a perspectiva da alma e o animalismo soconcepes rivais acerca danatureza da nossa identidade ao longo do tempo.Outra questo relevante para determinar a permissividade do aborto a daimportncia prtica da identidade pessoal.

    O argumento da privao, recordemos, no nos diz apenas quenormalmente um feto tem j um futuro-como-o-nosso. Diz-nos tambm que aperda desse futuro valioso seria mpara o feto . E esta alegao pressupe

    que a identidade tem importncia prtica. Pois por que razo haveremos depresumir que o facto de um certo feto ficar privado das experincias valiosasque teria como ser humano adulto seria um infortnio para ele mesmo? Porquepensamos que o feto seria esse ser humano adulto e supomos que este factosobre a identidade tem grande importncia prtica.

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