Ações afirmativas e políticas inclusivas no ensino público superior a experiência da

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    AES AFIRMATIVAS E POLTICASINCLUSIVAS NO ENSINO PBLICO SUPERIOR:

    a experincia da Universidade Federal de Sergipe[ ]

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

    REITOR

    Josu Modesto dos Passos Subrinho

    VICE-REITOR Angelo Roberto Antoniolli

    O CONSELHO EDITORIAL DA EDITORA UFS

    Luiz Augusto Carvalho SobralCoordenador do Programa Editorial

    Antnio Ponciano Bezerra Pricles Morais de Andrade Junior

    Mrio Everaldo de Souza Ricardo Queiroz GurgelRosemeri Melo e Souza

    Terezinha Alves de Oliva

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    Organizado por

    Frank Marcon e Josu Modesto dos Passos Subrinho

    So Cristvo, 2010

    AES AFIRMATIVAS E POLTICASINCLUSIVAS NO ENSINO PBLICO SUPERIOR:

    a experincia da Universidade Federal de Sergipe[ ]

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    Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade Federal de Sergipe

    Reviso Tais Cristina Samora de Figueiredo

    Centro de Educao Superior a Distncia Centro de Educao Superior a Distncia Centro de Educao Superior a Distncia Centro de Educao Superior a Distncia Centro de Educao Superior a Distncia Coordenao Grfica Giselda Santos Barros

    Editorao eletrnica e capa Adilma Menezes

    Copyrigth by Editora Universidade Federal de SergipeCidade Universitria Prof. Jos Alosio de Campos

    Av. Mal. Cndido Rondon, s/n - CEP.: 49.100-00So Cristvo/SE

    Este livro, ou parte dele, no pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizao escrita da Editora.

    Aes afirmativas e polticas inclusivas no ensino A185e pblico superior: a experincia da Universidade

    Federal de Sergipe / Organizado por Frank Marcon e Josu Modesto dos Passos Subrinho. - So Cristvo:

    Editora UFS, 2010.180p.ISBN: 987-85-7822-131-7

    1. Educao superior - Poltica educacional. 2. En-sino Pblico superior - Democratizao - Aes afirma-tivas. 3. Universidade Federal de Sergipe. I. Marcon,Frank. II. Subrinho, Josu Modesto dos Passos.

    CDU 378.014.5 (813.7)

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    Aos que aceitam o desafio dirio para concretizao de uma sociedade mais justa e democrtica

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    II PARTE CONCEPES E DESAFIOSII PARTE CONCEPES E DESAFIOSII PARTE CONCEPES E DESAFIOSII PARTE CONCEPES E DESAFIOSII PARTE CONCEPES E DESAFIOS

    4. Juventude, expectativas de mobilidade social e aspolticas de Aes Afirmativas no Ensino Superior 103Frank Marcon

    5. A incluso do aluno com deficincia na Universidade Federal de Sergipe 127Vernica dos Reis Mariano Souza

    6. Polticas de Assistncia Estudantil: concepes e prticasde aes afirmativas e polticas inclusivas na UFS 145

    Arivaldo Montalvo Filho Neilza Barreto de Oliveira

    SOBRE AUTORES 177

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    APRESENTAO

    Este livro apresenta algumas anlises sobre como foramos procedimentos para implantao e efetivao do Pro-grama de Aes Afirmativas da Universidade Federal de Sergipe,bem como o contexto em que ela ocorreu. Cabe salientar que esta discusso se insere no debate de um panorama nacional sobrepolticas de acesso ao Ensino Pblico Superior, balizadas pela de-mocratizao e pela eqidade nas condies de acesso, comba-tendo principalmente as desigualdades de oportunidades para grupos comprovadamente marginalizados do acesso s universi-dades pblicas, principalmente pela questo scio-econmica,tnico-racial e deficincias fsicas.

    Pelo menos desde o ano de 2003, quando os professores Pau-

    lo Srgio da Costa Neves, Hippolyte Brice Sogbossi e Marcus Eu-gnio Oliveira Lima iniciaram algumas reflexes e estudos queresultaram numa pesquisa sobre polticas afirmativas e cotas na UFS, o Ncleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB) vem discutindoamplamente qual o seu papel poltico e acadmico no que diz res-peito a tais questes no mbito da universidade. De l para c,at meados de 2007, outros professores foram incorporados aoncleo, como as professoras Ednia Tavares Lopes e Maria Batis-ta Lima e o professor Frank Marcon, alm de estudantes e outros

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    colaboradores que hoje fazem parte do NEAB 1. Em tal contexto,

    estes representantes participaram em diferentes oportunidadesde conferncias, mesas redondas e reunies com a reitoria, comprofessores, com o DCE, com os sindicatos de professores e funci-onrios, com representantes da secretaria de educao do estadoe com diferentes associaes do movimento negro, sobre o tema cotas e aes afirmativas, sem firmar um entendimento nico sobrea questo, mas ampliando o debate de forma aberta. Saliente-seque em todas as situaes, apesar da ampla divulgao, a platia de tais acontecimentos nunca foi numerosa, e isto sempre gerouuma situao incmoda sobre a amplitude do interesse pelo as-sunto. No entanto, ao compartilhar deste incmodo com colegasde outras universidades que j implantaram seus programas deaes afirmativas, os pesquisadores do NEAB passaram a enten-der que este era um tema espinhoso no s para a UFS, assimcomo para outras IES do Brasil, bem como, que o pblico univer-sitrio, em geral, no se sentia tocado pelo assunto por estar aco-modado com a sua situao na Universidade, ao no depender mais de processos seletivos de ingresso. A primeira concluso fora a de que os debates sobre a democratizao do acesso universi-dade no faziam parte dos interesses dos debates da maior parteda comunidade estudantil universitria, salvo excees de algunsgrupos de alunos, professores, tcnicos-administrativos, alm da reitoria.

    Em meados de 2007, o Reitor da UFS, considerando que era imprescindvel sistematizar o debate e at mesmo provocar umposicionamento institucional propositivo com relao s Aes

    Afirmativas, assumiu politicamente o debate e nomeou uma co-

    1 importante registrar a participao ativa em tal debate por parte de outros membrosdo NEAB, como do professor Wellington Bomfim e dos alunos Cristiane Piedade dosSantos, Lumara Martins e Martha Sales, alm da colaboradora Denise Bispo, entreoutras participaes espordicas de vrios membros.

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    misso responsvel por pensar um Programa de Aes Afirmati-

    vas para universidade, atravs da Portaria 1110/07, chamando oNEAB para coorden-la. Em conformidade com a portaria, a co-misso ficou composta por diferentes representantes de cada umdos Centros da universidade, bem como por representantes dosindicato dos professores, do sindicato dos funcionrios e do DCE.

    Reunindo-se periodicamente 2, a Comisso realizou debatesiniciais e organizou trs eventos com membros externos univer-sidade 3, vindos de instituies que j efetivaram seus Programasde Aes Afirmativas. Durante as reunies regulares da comis-so, foram estruturados alguns grupos de trabalho temticos para o estudo de questes scio-econmicas e tnico-raciais, questesescolares, nmeros sobre o acesso UFS, quantidade e modelosdos programas de aes afirmativas j implantados no Brasil, entreoutros temas relacionados, como as questes implicadas pela vi-abilidade de permanncia de possveis alunos cotistas, o que exi-giu dilogos com a Pr-Reitoria de Assuntos Estudantis, Pr-Rei-toria de Graduao e Pr-Reitoria de Extenso. Neste ponto, cha-ma-se a ateno para a sistematizao do trabalho da Comisso,que criou alguns grupos de trabalho para estudar diferentes tpi-

    2 Em mais de uma dezena de reunies da comisso, realizadas nos anos de 2007 e2008, alguns dos nomes que estiveram presentes nos debates, mesmo que esporadica-mente, foram os seguintes: Alxis Magnum Azevedo de Jesus, lvaro Domingos Bento,

    Ana Cristina do Nascimento, Anna Marlia dos Santos Paiva, Arivaldo MontalvoFilho, Arivaldo Telles Montalvo, Cristiane da Piedade Sousa Santos, Denis Wesley

    Tavares Santos, Edinia Tavares Lopes, Elza Francisca Corra Cunha, Fbio da Ro-cha, Frank Marcon, Hippolyte Brice Sogbossi, Ismael Ferreira Santos, Lumara Cristina Martins Santos, Magson Melo Santos, Marcelo Luiz Santos, Marcus Eugnio Oliveira Lima, Maria Batista Lima, Maria Cleide Leite Calderaro, Maria da Conceio Gis,Maria rica de Souza, Martha Sales Costa, Napoleo dos Santos Queiroz, Neilza Barreto, Priscille Grazielle de Santos, Paulo Srgio da Costa Neves, Robson Anselmo,Rui Belm, Tnia Maria de Andrade Rodrigues, Wellington de Jesus Bomfim, Valdir Zacarias Pimentel, entre outros.3 Agradecemos, em especial, aos professores: Clara Suassuna Fernandes (UFAL), Joclio

    Teles Santos (UFBA), Marcelo Tragtenberg (UFSC), Moiss de Melo Santana (UFRPE) e Wilson Roberto de Mattos (UNEB), pelas contribuies e pela presena em nossosdebates.

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    cos. Um grupo de trabalho estudou a quantidade e os modelos

    dos programas de aes afirmativas j implantadas no Brasil,focando a anlise nos diferentes tipos de configurao das pro-postas de aes afirmativas nas diferentes IES do Brasil, princi-palmente no que dizia respeito aos modelos de acesso atravs desistemas de cotas via vestibular. Outro grupo de trabalho reali-zou estudos scio-econmicos, apresentando dados dos questio-nrios scio-econmicos aplicados pela CCV no vestibular da UFS,nos anos de 2006 e 2007, bem como, co-relacionando estes dadosaos nmeros da populao do estado pelo vis social, econmico etnico-racial, contrastando-o aos dados do censo escolar do INEPpara o estado, nos anos de 2005 e 2006.

    Depois da etapa de pesquisas foi estruturado um Grupo de Trabalho responsvel pela elaborao e apresentao de uma proposta de criao de cotas para o acesso via vestibular UFS.Enquanto toda a comisso estudava e aprontava suas primeirasconcluses, tambm era elaborado um documento com as primei-ras impresses da Comisso, que foi encaminhado aos coordena-dores de curso, chefes de departamento, diretores de centros deensino, coordenadorias e pr-reitorias, DCE e sindicatos da UFS,para suscitar o debate e levantar sugestes proposta de Polti-cas Afirmativas que comeava a se desenhar. Enquanto isto, ou-tro grupo pesquisava e preparava uma proposta de polticas depermanncia para alunos cotistas, articulando coerentemente a

    possibilidade da implantao de polticas de aes afirmativas na UFS, com as polticas de assistncia estudantil. 4Naquele momento, as universidades federais do Par, do

    Paran, de Juiz de Fora, de Alagoas, de So Paulo, de Tocantins,

    4 Ficaram responsveis pelas comisses referidas acima: Denis Wesley Santos, DeniseBispo, Ednia Tavares Lopes, Elza Cunha, Fbio Rocha, Frank Marcon, Magson San-tos, Marcus Eugnio Oliveira Lima, Maria Batista Lima, Paulo da Costa Neves, Robson

    Anselmo, Tnia Rodrigues e Wellington Bomfim.

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    da Bahia, de Pernambuco, do Rio Grande do Norte, do Rio Grande

    do Sul, do Piau, do Maranho, de Santa Catarina, de So Carlos,do ABC/SP e de Braslia j haviam implantado vestibulares por cotas. Alm destas, vrias outras universidades estaduais e al-gumas instituies municipais j haviam implantado polticas deaes afirmativas e serviram como modelos de estudo sobre as

    viabilidades e os possveis entraves destes tipos de poltica para a Universidade Federal de Sergipe.

    Neste sentido, a UFS teve tempo para amadurecer uma pro-posta sensata e coerente com a sua realidade, diretamente arti-culada s peculiaridades educacionais e scio-demogrficas doestado de Sergipe, sem perder de vista questes conceituais e prag-mticas sobre as mudanas explicitas e implcitas que sero pro-

    vadas na instituio, a partir das mudanas na forma de acesso universidade.

    Entendendo que as aes afirmativas devem propor a demo-cratizao dos espaos, consolidando a insero de segmentossociais excludos por muito tempo das instituies de poder eprestigio social, bem como que a universidade pblica um espa-o que deve promover o acesso democrtico de um amplo espectroda representatividade social, a proposta de Aes Afirmativas ela-borada pela Comisso do PAAF foi aprovada pelo CONEPE, emoutubro de 2008, pela Resoluo 080/08, entrando em vigor no

    vestibular de 2010, ocorrido recentemente.

    Ainda cedo para concluses, mas tempo de se fazer algu-mas consideraes. O presente livro ao mesmo tempo um regis-tro e uma contribuio analtica sobre o tema, servindo como ins-trumento de continuidade dos dilogos e de nossos aprendizadosconjuntos sobre o qu e como entendemos o que denominamospor Aes Afirmativas e as peculiaridades de sua implantao na UFS.

    De uma forma ou de outra, este livro teve a colaborao dealguns dos pesquisadores e professores que estiveram envolvidos

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    nesta discusso. Para darmos um sentido orgnico aos textos,

    dividimos as contribuies em duas partes. Na primeira, os auto-res apresentam algumas reflexes sobre o contexto dos debatessobre Aes Afirmativas na UFS, bem como o resultado de algu-mas pesquisas que nortearam a proposta aprovada pelo CONEPE,em 2008. Na segunda parte, os autores apresentam algumas con-cepes norteadoras deste debate contemporneo sobre a demo-cratizao do ensino pblico superior, apresentam anlises so-bre as perspectivas para o futuro da juventude universitria emSergipe, bem como conclamam a sociedade civil ao debate sobrealguns dos desafios que viro pela frente. Entre eles esto as ne-cessidades de ampliao da assistncia estudantil, do investimentono preparo dos servidores e da adequao dos equipamentos pe-daggicos e de infra-estrutura s novas realidades do perfil socialdos estudantes da universidade. Os textos aqui reunidos do pu-blicidade as nossas expectativas e angstias, bem como, preten-dem situar a sociedade e a comunidade universitria no debate,ampliando as possibilidades de compreenso e de dilogo sobre otema.

    Josu Modesto dos Passos SubrinhoReitor da UFS

    Frank MarconPAAF/UFS

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    I PARTE

    CONTEXTOS E ESTUDOS

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    O CONTEXTO DE EMERGNCIAE DE CONSOLIDAO DAS POLTICAS AFIRMATIVAS

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

    Paulo Srgio da Costa Neves

    O debate sobre as polticas afirmativas ganhou, nos ltimosanos, uma conotao explosiva. Divisor de guas do debate sobreo preconceito racial que se fez presente no espao pblico do pasdesde os anos 1980 com a redemocratizao da sociedade brasi-leira, a temtica das cotas universitrias vai dividir as opiniestanto no interior quanto no exterior das universidades.

    De todo modo, pode-se afirmar que houve uma grande trans-

    formao na sociedade em termos de aceitao social das polti-cas afirmativas no mbito universitrio, uma vez que estas estosendo aplicadas de forma direta (atravs da reserva de vagas) ouindireta (atravs de bnus para certas categorias da populao)por mais de 60 universidades pblicas, nmero que no cessa deaumentar.

    Nesse texto, tentaremos mostrar como esse debate foi intro-duzido e como ele evoluiu no interior da UFS, desde os primeiros

    debates sobre a possibilidade de implantao de cotas no final

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    dos anos 1990, at a aprovao da reserva de vagas para alunos

    oriundos de escolas pblicas (com corte racial proporcional com-posio da populao em termos de cor da pele), em 2008.Para isso, pretendemos mostrar inicialmente como esse de-

    bate evoluiu ao nvel internacional e nacional e, depois, como elese traduziu na UFS, para, por fim, discutir alguns dos dilemasque as cotas colocam para as universidades pblicas.

    1. Aes Afirmativas em uma perspectiva comparada

    O aparecimento de reivindicaes identitrias particularistas fruto de profundas transformaes no mundo contemporneo.Por um lado, a crise da soberania estatal e a diminuio do poder integrador de instituies sociais que no passado tiveram um pa-pel importante na construo das solidariedades sociais ao nveldas naes (escolas e empresas, notadamente) provocaram nos pa-ses industrializados um questionamento das identidades nacio-nais. Por outro lado, fenmenos como a imigrao e a globalizaoeconmica e cultural nesses pases vo criar uma situao quemuitos autores vo denominar de ps-colonial, onde demandas degrupos oriundos de pases do sul, sejam elas de origem tnica, re-ligiosa, ou cultural, passam a fazer parte da paisagem poltica dasantigas metrpoles coloniais ou de pases hegemnicos em termoseconmicos.

    Com isso, uma discusso sobre o multiculturalismo emergeem alguns pases desde o incio dos anos 70 (Canad e Austrlia),antes de se difundir para outros pases ao curso das dcadas de70, 80 e 90.

    Na Amrica Latina, pases onde o nacionalismo poltico fora importante desde a segunda dcada do sculo XX e onde, a partir dos anos 1930, regimes nacional-populistas vo erigir a mestiagem como caracterstica definidora da nacionalidade, essa tendncia ao diferencialismo se materializar nas demandas

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    indigenistas e de outras minorias, como os negros em pases como

    o Brasil. Assim, as demandas diferencialistas no Brasil, tal qualexplicitadas pelas demandas de movimentos sociais negros, dendios, de mulheres, etc. sero uma espcie de contraponto dasdemandas multiculturais globais.

    Ao nvel das relaes raciais, essas demandas vo significar a busca pelo reconhecimento do lugar das populaes de origem africa-na no pas (como as reivindicaes em termo do estabelecimento dodia 20 de novembro como feriado nacional, etc.) e tambm por polticasde reparao social no sentido de permitir uma reduo das diferen-as sociais que separam os negros dos brancos no pas. Com relaoa este ltimo ponto, as cotas sero a principal bandeira desse movi-mento, tendo ingressado no discurso militante desde os anos 80.

    O interessante aqui observar que isso se d em um contex-to internacional onde as aes afirmativas ganham terreno naspolticas pblicas de diversos pases. Historicamente as aes afir-mativas aparecem na ndia, ainda sob a dominao britnica,com o intuito de combater os preconceitos e restries que exclu-am os intocveis. Essas polticas vo se intensificar no perodoque se segue independncia do pas, garantindo uma represen-tao mnima dos intocveis nos cargos pblicos.

    Nos anos 60, as aes afirmativas sero introduzidas nosEUA como resposta do governo s mobilizaes pelos direitos cvi-

    cos da populao afro-americana. Entre as medidas postas emprtica, cumpre ressaltar a obrigatoriedade de cotas para negrose, posteriormente, outras minorias, no mercado de trabalho e nasuniversidades, ponto que vai gerar uma srie de polmicas judici-ais, sobretudo a partir dos anos 70.

    Nos anos 80, diversos pases passam a discutir as aes afir-mativas (Canad, Inglaterra, etc.) pelo vis do multiculturalismo,como uma forma de garantir a representatividade da diversidadedo pas em espaos sociais especficos.

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    Finalmente, nos anos 90, diversos pases, com discursos

    nacionais oficiais baseados na ausncia de preconceitos, masconvivendo com formas de discriminao no explicitadas, pas-sam a discutir a aes afirmativas. Esses so os casos, notada-mente, de pases como a Frana e o Brasil, por exemplo.

    Nesse sentido, a ttulo preliminar, podemos propor uma clas-sificao ideal-tpica dos debates sobre as aes afirmativas. Umprimeiro modelo seria o de pases onde as aes afirmativas apa-recem para combater formas institucionalizas e legais de discri-minao e excluso de segmentos da populao. Estes seriam oscasos, por exemplo, dos EUA, da ndia e da frica do Sul, ondeuma srie de impedimentos legais impedia certos grupos de parti-ciparem a parte inteira da vida social.

    Um segundo modelo seria pautado na idia de uma socieda-de multicultural, onde o respeito s diferenas culturais e o reco-nhecimento pblico do carter comunitrio de certos grupos im-poria uma lgica de representatividade no espao pblico dos gru-pos minoritrios. Este o caso do Canad e da Austrlia, por exemplo.

    Um terceiro caso so os pases que tm no discurso republica-no e no ideal da igualdade de tratamento da justia para todos oseu credo identitrio. Nesse caso, h uma resistncia muito gran-de introduo de formas de ao afirmativa do tipo de cotas, con-sideradas anti-republicanas, mesmo quando a existncia de formas

    de discriminao invisveis aceita pela maioria da populao. oque ocorre em pases como a Frana, onde a resistncia introdu-o de aes afirmativas para a populao oriunda da imigraomulumana e da frica negra muito forte na opinio pblica.

    Por fim, teramos os pases onde a identidade nacional foiconstruda tomando como base a idia de ausncia de preconcei-to no pas graas predominncia da mestiagem no seu proces-so de formao. Fcil notar que estamos aqui a falar do Brasil ede pases latino-americanos.

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    Como tipos ideais, esses modelos precisam ser vistos ape-

    nas como tendncias dominantes em cada pas, o que no impe-de, por exemplo, que um mesmo pas possa migrar de um modelopara o outro (os EUA implantavam as cotas em um contexto decombate ao apartheid, mas continuam a discutir as aes afir-mativas na atualidade em termos multi-culturais, etc.)

    Vem da que embora os termos do debate se internacionali-zem rapidamente, sobretudo atravs da difuso da idia de aesafirmativas no seio dos movimentos sociais que lutam contra asdiscriminaes raciais e tnicas e da incorporao dessas idiasem aes de agncias internacionais (como a ONU, a partir da conferncia de Durban em 2002, da Ford Foundation no Brasil,etc.), a carga simblica desses debates vai ter significados dife-rentes: em alguns pases as aes afirmativas sero debatidastendo em vista a questo do universalismo, em outros ser o modomesmo de organizao da sociedade que aparecer nos debatessobre as cotas (no Brasil, por exemplo, a questo bsica ser a desaber se somos ou no um pas racista, etc.).

    2. Aes Afirmativas no Brasil

    No Brasil, o debate sobre as aes afirmativas, enquanto tal,aparece nos anos 80, atravs das reivindicaes dos movimentosnegros, que tinham ressurgido com expresso pblica a partir de

    1978, com a criao do MNU.Com efeito, desde os primeiros manifestos dos vrios gruposque se reivindicam como representantes da populao negra, a reivindicao pela implantao das aes afirmativas aparece.

    Contudo, o debate sobre as cotas s vai ganhar uma maior projeo na sociedade brasileira a partir de discusses sobre ex-perincias internacionais e sobre a viabilidade dessas experin-cias serem introduzidas no pas. Assim, por exemplo, no principalrgo da imprensa escrita no pas, o jornal A Folha de So Paulo,

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    as notcias sobre aes afirmativas se restringiram s discusses

    sobre as cotas, as quais aparecem na dcada de 1990 na maioria das vezes associadas comparao da situao racial no Brasil enos EUA. Por sinal, essa no apenas uma caracterstica da dis-cusso no Brasil, o mesmo tendo ocorrido na Frana e em outrospases.

    A partir dos anos 60 o debate norte-americano sobre ascotas que vai dominar internacionalmente as discusses sobreessa temtica.

    Vale a pena relembrar que a comparao com os EUA algorecorrente no contexto brasileiro, desde os anos 30, a comear pelos trabalhos j clssicos de Gilberto Freyre sobre a questo.Esse mesmo comparativismo entre Brasil e EUA vai levar Oracy Nogueira a propor sua famosa distino entre preconceito de ori-gem e preconceito de marca, estando o primeiro mais presentenos EUA e o segundo no Brasil, onde o preconceito se exerceria mais em funo da cor da pele que em funo de uma origemracial, como no caso americano.

    Isso tudo significa que a compreenso da situao racial noBrasil passou por uma dimenso internacional que enriqueceu edeixou contornos gerais no debate em torno de caractersticasnacionais. O que, dado o contexto scio-poltico do pas nesse pe-rodo, vai dar tambm um carter de discurso sobre a identidadenacional do pas, sobretudo na sua verso freyriana, que via na

    mestiagem ao mesmo tempo uma caracterstica do processo his-trico de formao da sociedade brasileira e a fonte de uma iden-tidade nacional mestia.

    Assim, nada mais natural que o debate sobre as aes afir-mativas no pas aparea primeiramente imbricado com questese debates internacionais e, mais precisamente, norte-americano.

    Mas bom que se diga que esse debate no vai surgir deuma s vez, seguindo a influncia de eventos internacionais queecoam na sociedade brasileira, mas tambm em funo das rela-

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    es de fora e das mudanas simblicas no pas em relao

    questo racial.Um exemplo da primeira vertente foi a polmica na imprensa brasileira em torno da obra A curva do Sino dos ensastas nor-te-americanos Charles Murray e Richard Hernstein. Nesse texto,os autores vo atacar as polticas afirmativas e outras polticassociais nos EUA, por as considerarem formas de incentivo de-pendncia das populaes pobres ao Estado.

    A forma como esse texto ser discutido no contexto brasileiroser atravs de um debate sobre as cotas e o que elas poderiamou no trazer para a realidade nacional. A escritora e articulista da Folha de So Paulo, Marilena Felinto, por exemplo, vai seposicionar contrria s cotas por considerar que a realidade bra-sileira era diferente da realidade norte-americana e, por isso, nopodiam ser aplicadas no Brasil, pas onde a discriminao notinha gerado identidades tnicas to fortes quanto nos EUA.

    O debate vai ser impulsionado por questes nacionais ape-nas com a introduo das cotas nas universidades pblicas j nos anos 2000. A partir de ento, uma questo que vai ganhar importncia nos discursos e nos debates publicados na imprensa ser se o Brasil um pas racista, onde a raa e a cor da pele tmum papel importante na discriminao de certos grupos sociais,ou se o preconceito que existe no pas contra os pobres de uma maneira geral. Algo que digno de nota que no se contesta o

    fato de a maioria da populao pobre do pas ser de origem negra,mas a polmica vai se concentrar nas explicaes desse fato esobre os meios que deveriam ser utilizados para san-lo. Haveria a, talvez, um indcio de que a questo social tornou-se um pro-blema importante para a sociedade brasileira.

    Na maior parte dos artigos discutindo as polticas afirmati- vas que foram consultados no mesmo jornal citado acima, essa discusso ser preponderante. Saber se as cotas so um meioeficaz de combater as desigualdades, ou ao contrrio, se elas

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    apenas vo criar outras, vai se tornar um a questo central do

    debate. Um ponto de clivagem ser o reconhecimento do precon-ceito racial como um elemento gerador ou no das desigualda-des, o que poderia ser sintetizada na seguinte questo: os ne-gros so discriminados por que so negros ou por que so po-bres?

    Para uns, que consideram o preconceito uma conseqncia da pobreza, as cotas raciais apenas iriam reforar as desigualda-des entre negros de classes mdias e negros pobres, ao mesmotempo em que iriam criar artificialmente no pas um contexto deconflitos raciais entre brancos e negros. Alguns dos defensoresdesses argumentos defendem as cotas sociais como meio maiseficaz de combater as desigualdades no pas. Para outros, no en-tanto, as aes afirmativas seriam apenas medidas paliativas, defcil aplicao pelos governos, mas sem enfrentar os problemasque estariam na origem das desigualdades: educao pblica debaixa qualidade, ausncia de polticas universalistas de combate pobreza, etc.

    Diferentes sero os argumentos dos que defendem a adoode cotas para negros nas universidades. As idias de reparaohistrica e de combate a mecanismos invisveis de discriminaoaos negros sero recorrentes. Argumentava-se que o negros, por terem sofrido as agruras da escravido no passado, o que deixoumarcas ainda hoje visveis na sociedade brasileira (preconceito

    arraigado e pequena presena dos negros nos grupos sociais demaior prestgio na sociedade), deveriam ser beneficirios de pol-ticas reparatrias, tais como as cotas raciais. Para outros, a defe-sa das cotas passava pela vontade de combater a discriminaoinvisvel que limita as possibilidades de ascenso social dos ne-gros no pas. Em ambos os casos, tratava-se de reconhecer a exis-tncia perene do racismo na sociedade brasileira, o que significa-

    va adotar medidas que visassem especificamente aos negros eno apenas aos pobres.

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    Como entender as propores que o debate sobre cotas para

    negros nas universidades pblicas assumiu na sociedade brasi-leira? No temos aqui espao para discutir em profundidade ossignificados desses argumentos para a idia que temos, enquantosociedade, da identidade nacional ou para analisarmos as repre-sentaes de justia que esto em disputa no pas. Mas, a ttuloprovisrio podemos avanar a hiptese de que pelo fato de por emquesto a idia que temos sobre nossa identidade nacional e regi-onal e, tambm, por nos levar a repensar a desigualdade socialque as cotas levantam tantas polmicas na sociedade brasileira.

    Algumas hipteses explicativas

    Parece-nos plausvel sustentar a hiptese de que as cotas para afros-descendentes nas universidades pblicas tornaram-se umtema explosivo por colocar em evidncia duas questes primordi-ais na sociedade brasileira: a desigualdade social e a identidadenacional. Ou seja, as cotas no s pem em questo a percepoda justia em vigor na sociedade como tambm levam a uma reavaliao da auto-representao de si prprios pelos brasileiros.

    Como se sabe, a desigualdade no pas tem uma clara marca racial, patente na desvantagem relativa dos no-brancos em re-lao aos brancos em vrias esferas scio-econmicas e polticas.Por isso, no seria exagero afirmar que a desigualdade racial

    um problema estrutural entre ns. Tem a ver com a herana his-trica do passado escravocrata e tambm com as representaese esteretipos que limitam as possibilidades de ascenso socialdos no-brancos. Assim, mudanas nesses domnios tm reper-cusses simblicas importantes, o que explica os violentos deba-tes em torno da questo.

    Sendo estrutural, as desigualdades no so percebidas comogeradas por discriminaes diretas. Algo que denominei em outrolugar como uma discriminao estrutural (Neves, 2000) age no

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    Alm disso, as cotas desestabilizariam tambm algumas iden-

    tidades regionais no pas. Tentei mostrar alhures (Neves, 2001)como a questo negra no Brasil ganha cores regionais distintas 3;isso a partir do exemplo do estado de Sergipe, onde uma forteidentificao com a figura mtica do sertanejo torna os discursosmilitantes de valorizao da identidade negra de difcil aceitao.

    O que significa dizer que no apenas as realidades regionaisso diferentes em termos de composio da populao (estadoscomo Bahia e Sergipe, por exemplo, tm cerca 80% de sua popu-lao composta por pretos e pardos, enquanto que nos estados doSul-Sudeste, essa percentagem est abaixo de 30%), mas tam-bm em termos de auto-representao. Com isso, em estados emque a identificao em termos raciais pouco difundida, como emSergipe, a aceitao das cotas tende a ser menor que em estadosonde a presena de discursos racializadores mais forte.

    Se a globalizao, como indicam certos autores (Giddens,1991; Appadurai, 1996; Beck, 2006), significa o desenvolvimentode identidades globais e locais ao mesmo tempo, podemos por comopremissa que a maior ou menor proximidade das identidades re-gionais com discursos racializados vai influir na aceitao ou nodas aes afirmativas voltadas para afros-descendentes.

    Por fim, uma outra hiptese que as cotas universitriaspara afros-descendentes tornaram-se to polmicas por interfe-rir no processo de seleo de uma instituio que ocupa um lugar

    simbolicamente importante na reproduo das elites no pas. Oque explica que cotas raciais para determinados empregos pbli-cos no tenham despertado tanto debate quanto o das cotas nasuniversidades.

    3 Por seu lado, Guimares (1999) chama a ateno para o fato de que as diferenas deinterpretaes desenvolvidas pelos intelectuais do Nordeste e os do Sudeste com rela-o questo racial podem ser imputadas a realidades diferentes concernentes a relaes raciais.

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    No imaginrio nacional, o acesso s universidades consi-

    derado como o principal meio de ascenso social e de obteno destatus de amplos setores da populao. O que em parte tem a ver com o carter estamental da sociedade brasileira e com o lugar central das universidades na produo do conhecimento e na profissionalizao no mundo contemporneo. Nesse sentido, ascotas universitrias, mais que outras aes afirmativas, vo in-terferir nas expectativas de ascenso de setores da populao queteoricamente no dependem ou no teriam direitos s mesmas.

    3. A aceitao das cotas: um imaginrio que se modifica?

    Apesar disso, algo que visvel nesses ltimos anos o fatode que as cotas tm sido implantadas em diversas universidadesdo pas ao mesmo tempo em que a sua aceitao na opinio pbli-ca tem se ampliado. Assim, por exemplo, j so mais de 60 asuniversidades pblicas que implantaram alguma forma de aoafirmativa (indo de um leque que vai do bnus para alunos deescolas pblicas e negros reserva de vagas para esses mesmosgrupos). Da mesma forma, pesquisas de opinio com o conjuntoda populao mostram uma maioria favorvel s cotas sociais e,em menor medida, cotas raciais nas universidades pblicas.

    Segundo pesquisa realizada pelo DATAFOLHA em julho de2006, 65% dos entrevistados apoiavam as cotas raciais e 87% as

    cotas sociais. Dados que no so muito distantes da pesquisa realizada a pedido do DEM, partido que tem posicionamento con-trrio s cotas, em setembro de 2009, na qual 75 % dos entrevis-tados apiam as cotas sociais, 11% defendem as cotas raciais eapenas 9% so contra ambas (a diferena entre essa pesquisa ea anterior que nesta o entrevistado deveria optar por apenasuma das opes de cotas, enquanto que na pesquisa anterior doDATAFOLHA, havia a opo de se optar pelas duas opes). O queessas duas pesquisas mostram que a maioria da populao

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    favorvel adoo de cotas para grupos socialmente desfavoreci-

    dos. Esses dados so muito diferentes da pesquisa realizada pelosenado atravs da internet, em que apenas 52% da populaoera favorvel s cotas sociais, 45% contra qualquer forma de re-serva de vaga e 2,7% favorvel s cotas raciais. H que se levar em conta, neste ltimo caso, o fato de que o acesso internet nosendo ainda totalmente democratizado no pas, esse resultadoexpressa mais o ponto de vista de grupos sociais com maior poder aquisitivo que a opinio do conjunto da populao.

    Assim, o que se pode afirmar que se as cotas no passadoeram estigmatizadas, a partir de pelo menos meados dos anos2000 a aceitao das mesmas tornou-se cada vez maior.

    O que isso significa? Afinal o que aconteceu no Brasil entre ofinal dos anos 1990 e os anos 2000?

    Ainda cedo para definirmos com exatido os contornos des-sa mudana, mas no seria exagero afirmarmos que o imaginriosobre as desigualdades est se modificando no pas, inclusive asdesigualdades de origem racial.

    Certamente, mudanas profundas na sociedade desde a de-mocratizao do pas esto na origem dessas transformaes sim-blicas (ao dos movimentos sociais, debate democrtico maisatento s desigualdades, poltica nacional hegemonizada por par-tidos de centro-esquerda, etc.), mas para os nossos fins aqui, oimportante a assinalar que essas mudanas se refletem tam-

    bm no mbito das instituies universitrias.O caso da Universidade Federal de Sergipe paradigmtico. As primeiras reunies pblicas para discutir a implantao de co-tas na UFS ocorreram por iniciativa do NEAB (Ncleo de Estudos

    Afro-Brasileiros). No incio dos anos 2000, durante a realizao da Semana Afro-brasileira, o antroplogo Lvio Sansone, da UFBA, foiconvidado para falar sobre o assunto, ocasio em que foi organiza-da uma reunio com o reitor da poca para explicar as vantagensda aplicao de medidas afirmativas para pobres e negros.

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    Contudo, pode-se afirmar que a repercusso dessa discus-

    so nesse momento foi muito pequena. No s porque a adminis-trao da universidade no demonstrou interesse em lanar odebate interno, como tambm pelo fato de que poucos membrosda comunidade acadmica estiveram presente ao evento citadoacima. Algo que se tornaria muito freqente nos outros debatesorganizados em torno da temtica pelo NEAB, onde as discussesseriam sempre muito esvaziadas, como se a comunidade acad-mica e recusasse-se a discutir a questo 4.

    Assim, em 2005, por iniciativa de uma nova administraona reitoria da UFS (favorvel introduo de polticas afirmati-

    vas) e do NEAB, foi realizado outro evento com vistas a debater a questo das polticas de ao afirmativas. Foram convidados pes-quisadores de expresso nacional defendendo posies discordan-tes acerca dessas polticas e representantes de universidades comprogramas de aes afirmativas estabelecidas (UFBA, UFMG,UNEB). Ainda uma vez, foi pequena a participao de professorese de alunos universitrios, grande parte do pblico tendo sidoconstitudo de alunos secundaristas do colgio de aplicao, para quem a questo do vestibular se colocava como uma questo im-portante.

    Diversos fatores iriam alterar essa situao nos anos se-guintes. A tomada de posio do governo federal em favor das co-tas universitrias ao introduzir esse dispositivo no projeto de re-

    forma universitria enviado ao congresso, bem como mudanasna composio de foras no seio do movimento estudantil a nvellocal (com a chegada ao poder de grupos que vo defender as co-tas universitrias) e do movimento sindical dos professores da UFS, cuja entidade representativa passa a apoiar as cotas soci-

    4 Por sinal, o sindicato nacional dos professores universitrios, ANDES, vrias vezesdeliberou em seus congressos contrariamente s cotas universitrias.

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    ais, vo tornar o clima interno mais favorvel discusso sobre

    as cotas na instituio. Assim, quando a reitoria solicita do NEAB, em fins de 2007, a elaborao de um projeto para a introduo de polticas afirmati-

    vas para estudantes pobres e negros, mudanas simblicas im-portantes estavam j em curso no interior da universidade, comose a mesma se pusesse a andar no mesmo compasso das mudan-as que se passavam no mbito nacional. Algo aconteceu entre2005 e 2008, ano da aprovao das cotas no conselho universit-rio da UFS.

    O que no significa que as resistncias e crticas tenhamdesaparecido ao sistema de cotas na UFS. Contudo, o interessan-te que essas crticas vo se manifestar, muitas vezes, de forma

    velada, sem atingir diretamente a essncia da proposta, mas ale-gando defeitos procedimentais da mesma. Vai-se propor, por exem-plo, desde a realizao de plebiscito entre os membros da comuni-dade acadmica para decidir-se sobre a questo at a necessida-de de realizao de estudos complementares, para que o Conse-lho Universitrio pudesse manifestar-se posteriormente sobre a temtica.

    No fundo, o que essas posturas revelam o fato de que tor-nou-se politicamente incorreto ser contrrio s polticas afirmati-

    vas na universidade, sob o risco de parecer insensvel s desi-gualdades da sociedade brasileira. Nesse sentido, podemos afir-

    mar que as polticas de aes afirmativas tornaram-se expres-ses, no imaginrio social do pas, de formas eficazes de lutascontra as desigualdades e discriminaes. O que em si, expressa tanto desafios quanto conquistas: desafio de no desapontar es-sas expectativas e conquistas no sentido de que a luta contra asdesigualdades e discriminaes esto se tornando cada vez maispresentes nos debates pblicos do pas.

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    4. Concluses: sobre o papel das universidades

    Das universidades espera-se mltiplos compromissos. Espe-ra-se, por exemplo, que as universidades mantenham sua funohistrica de ser um espao de produo do conhecimento. Ondeseja possvel o pensamento seno crtico ao menos reflexivo, ca-paz de gerar novos olhares sobre a realidade (novos paradigmas,como queria Thomas Kuhn), tanto no plano das disciplinas natu-rais e fsicas, quanto no mbito das discusses scio-culturais.

    O que s pode ser obtido se a universidade se mantiver comoespao de circulao livre de idias e opinies e se, tambm, houver diversidade de opinies. Diversidade que deveria ser a principal pre-missa da vida universitria (toda unanimidade burra, dizia o dra-maturgo Nlson Rodrigues). Diversidade que ao mesmo tempo a garantia de debates sobre a prtica cientfica em si, como tambmsobre o prprio papel das universidades no mundo contempor-neo, inclusive sobre seus outros compromissos imaginrios.

    Um desses compromissos seu papel social. Papel de agn-cia de formao profissional e, pois, de mecanismo de posiciona-mento dos indivduos nas estruturas hierrquicas (de classe e destatus) em vigor nas sociedades contemporneas. Essa a ex-pectativa do mercado e dos agentes econmicos, mas tambm dosgovernos e da populao de um modo geral, que vem na Univer-sidade um mecanismo de ascenso social importante.

    nesse sentido que as medidas de aes afirmativas afetama vida universitria, pois elas so pensadas como modos de de-mocratizao das chances de ascenso social.

    H tambm os que crem que a universidade deve ser o es-pao para a elaborao de discursos crticos da sociedade, de ela-borao de utopias redefinidoras da vida social, etc. No fundo,essa perspectiva, tanto quanto a perspectiva de uma universida-de completamente neutra, procura transferir para a instituioaquilo que do mbito de escolhas pessoais do pesquisador.

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    Assim, tanto os que buscam definir a universidade como es-

    pao apenas de busca do conhecimento, que fingem desconhecer que desde o incio da criao das universidades estas tinham fun-es sociais especficas (foram nas universidades que se desen-

    volveu, por exemplo, o estudo jurdico que vai legitimar a forma-o dos Estados-Naes), como os que buscam transformar asuniversidades em estruturas legitimadoras de formas de visoradical da sociedade, tm vises distorcidas do papel das univer-sidades na poca contempornea.

    Desse modo, os que brandem o argumento weberiano da se-parao do ethos do cientista e do poltico, no percebem que

    Weber falava explicitamente da postura do pesquisador individu-almente no seu fazer cientfico e no das universidades. Assim,enquanto para ele o poltico devia guiar sua ao pela tica da convico, o cientista se deixa levar pelo desejo de conhecer, pela busca de compreenso da realidade.

    Ora, isso em nada se confronta com a perspectiva que a uni- versidade enquanto instituio busque um papel social para almdos efeitos indiretos da prtica cientfica de seus pesquisadores.O importante a preservar que o engajamento social da universi-dade no implique uma limitao da liberdade de pensamentodentro das universidades, que estas continuem a ter um papel deespaos de produo do conhecimento, etc.

    Ou seja, a posio adotada pelas universidades nesses lti-

    mos anos em torno das polticas afirmativas acompanha um mo- vimento muito mais profundo na sociedade em torno das novasdimenses do igualitarismo na nossa poca, no qual o critrio deavaliao da igualdade passa a ser no apenas o estatuto legaldos cidados (consolidado desde as revolues liberais na Europa e nos EUA), mas tambm as oportunidades reais dos indivduoscompetirem em igualdades de condies na sociedade

    Nesse sentido, no seria exagerado afirmar-se que as uni- versidades esto assumindo plenamente a misso socialmente

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    relevante de se tornarem laboratrios de experincias democrti-

    cas e igualitaristas na sociedade. Como em toda experincia, oimportante no o de acertar a qualquer custo desde a primeira tentativa, mas o de tornar os erros processos de aprendizado co-letivo. Creio que no h melhor misso para essas instituiesseculares em nossa poca.

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    DISTORES SOCIAIS NO ACESSO AO ENSINOPBLICO SUPERIOR E OS FUNDAMENTOS DA PROPOS

    DE AES AFIRMATIVAS DA UFS

    Frank Marcon

    As reflexes que fao neste captulo foram realizadas no m-bito das pesquisas para elaborao da proposta do Programa de

    Aes Afirmativas para Universidade Federal de Sergipe. A anli-se que segue teve contribuies de colegas que compunham a comisso de elaborao do PAAF/UFS. O que apresento uma parte da pesquisa e anlise de dados que ficou sob minha res-ponsabilidade, com nfase sobre os dados educacionais de Sergipe,

    que se encontram a disposio em diferentes instituies de le- vantamento de nmeros educacionais e populacionais, como oIBGE e o INEP. Portanto, alm de reuni-los e tabul-los num for-mato adequado para percepo das distores sociais e tnico-raciais na escolarizao do estado, realizo uma anlise que bus-ca visualizar quantitativamente os aspectos desproporcionais dosperfis entre aqueles que concluram o Ensino Bsico, principal-mente pblico, e aqueles que ingressaram na nica Universida-

    de Pblica do estado, a UFS, entre os anos de 2006, 2007 e 2008,

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    Frank Marcon

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    sem perder de vista as possibilidades de anlises qualitativas sobre

    os dados, principalmente aquelas pautadas pelos critrios subje-tivos de caracterizao e identificao tnico-racial, como o crit-rio de auto-identificao.

    Cabe salientar que esta discusso se insere no debate de umpanorama nacional sobre polticas de democratizao na educa-o balizadas pela eqidade nas condies de acesso ao EnsinoPblico Superior, combatendo principalmente as desigualdadesde oportunidades para grupos comprovadamente marginalizadosno acesso s universidades pblicas, principalmente pela ques-to scio-econmica e tnico-racial. 1

    1. As distores na escolarizao em Sergipe, do Ensino Bsico aoSuperior

    O desafio central da comisso 2 era entender os nveis dedistores no acesso universidade pblica entre alunos oriun-dos de escola privada e os oriundos da escola pblica. Quandoobservamos os dados do Censo Escolar de 2005 e 2006, do INEP,percebemos que fica evidente que apesar do nmero total de alu-nos concluintes do Ensino Bsico da escola privada ser bem me-nor que os concluintes do Ensino Bsico da rede pblica, uma

    1 Trabalhamos com o entendimento de que estas so polticas no sentido de possibili-tar acesso a recursos pblicos aos quais comprovadamente alguns grupos sociais notm acesso na proporcionalidade de sua representao na sociedade. Isto significa ir alm da igualdade formal, no sentido de aproximar-se de uma igualdade real entre osdiversos grupos sociais. So polticas reguladoras dos desequilbrios histricos e pre-sentes, da representao social destes grupos no acesso cidadania fundamental(educao, sade, moradia, emprego). Neste caso, so grupos historicamente e presen-temente discriminados como portadores de necessidades especiais, negros, indgenas,entre outros. Tais polticas so chamadas de aes afirmativas nos EUA e discrimina- es positivas na Europa.2 Agradeo toda a comisso do PAAF/UFS pela participao na anlise que fizemos dosdados aqui apresentados. Ao Magson Melo Santos e a Tnia Maria de Andrade Rodriguestambm pela participao no levantamento de dados.

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    Distores sociais no acesso ao ensino pblico superior eos fundamentos da proposta de aes afirmativas da UFS

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    proporo consideravelmente bem maior de alunos oriundos da

    escola privada ingressaram na universidade pblica, estandoestes super-representados na relao com os oriundos da escola pblica.

    Segundo os dados do INEP 3, no quesito dependncia admi-nistrativa, as matrculas revelam as desproporcionalidades quan-titativas entre o universo de matrculas realizadas no ensino p-blico em contraste com o ensino privado, que podem ser evidenci-ados pelos dados relativos ao total de alunos matriculados emSergipe, conforme o Censo Escolar de 2005 e 2006.

    Quadro Alunos Matr iculados no Ensino Bsico por Dependncia Admin istrat iva ( I NEP)

    Ano Tot al Federal Estadual Municipal Pr ivado2 0 0 5 676.857 3.846 260.433 343.474 69.1042 0 0 6 653.631 3.897 243.515 334.310 71.909

    Mais especificamente, quando nos debruamos sobre o acessoao Ensino Mdio por estrutura administrativa, os nmeros de-monstram que neste caso a rede privada totalizava aproximada-mente 12 % das matrculas do Ensino Mdio, enquanto a escola pblica federal era responsvel pela percentagem aproximada de1,55% do total das matrculas. As duas somadas no ultrapas-sam os 14% do total, sendo que as matrculas na rede pblica municipal e estadual, somadas, perfaziam a proporo dos outros86%. Observemos os nmeros totais do INEP:

    Quadro com o tot al de Alunos Matriculados no Ensino Mdio por Dependncia Adm i-nis t ra t iva ( I NEP)

    Ano Tot al Federal Estadual Municipal Pr ivado2 0 0 5 90.884 1.386 76.290 2.392 10.8162 0 0 6 88.130 1.399 73.705 2.313 10.713

    3 Todas as informaes mencionadas aqui, que fazem referncia ao INEP, podem ser encontradas no endereo eletrnico http://www.inep.gov.br/basica/censo/Escolar/Sinopse/sinopse.asp

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    Era importante fazermos estas referncias quantitativas s

    matrculas no Ensino Mdio porque nos interessava pensar ouniverso de alunos em fase de concluso do mesmo, e que logo emseguida estariam aptos para a realizao dos vestibulares. Estesnmeros nos levaram principalmente a refletir sobre as distoresna proporo da representao desproporcional entre os alunosdo Ensino Mdio pblico e privado no acesso universidade p-blica. Observamos que em 2006, havia cerca de 88.130 estudan-tes do Ensino Mdio, sendo que deste nmero, apenas 10.713estavam matriculados na escola privada. No mesmo ano, estive-ram ainda matriculados nas sries de concluso do Ensino M-dio, a 3. e a 4. sries, um total de 23.405 alunos em toda a redeescolar de Sergipe.

    Porm, destes, foram considerados concluintes do EnsinoMdio, em 2006, um total de 15.910 alunos, o que significa dizer que 32 % dos alunos matriculados no ltimo ano do Ensino Mdioem toda a rede escolar no concluram seus estudos.

    Quadro de Alunos Concluint es do Ensino Mdio, em 20 06 ( I NEP)

    Ano 2006 Tot al Federal Estadual Municipal Par t icularSergipe 15.910 2 4 6 12.508 3 9 4 2.759

    Estes dados foram relevantes para nossa anlise, pois de-monstraram a proporo de concluintes/matriculados por admi-

    nistrao escolar, permitindo uma breve relao com os alunosinscritos/classificados no vestibular da UFS, naquele mesmo ano.Em 2006, 2.759 alunos concluram o Ensino Mdio na rede priva-da e 12.652 na rede pblica. Porm, dos que ingressaram pela aprovao no vestibular 2006/2007, da UFS, 2.169 alunos eramprovenientes de escolas privadas, enquanto ingressaram apenas1.862 alunos oriundos da escola pblica, o que demonstrara quea escola privada levava uma vantagem exorbitante no acesso aoEnsino Superior Pblico no estado de Sergipe, dada proporo

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    de 1.862 aprovados para 12.902 concluintes do Ensino Mdio,

    provenientes da escola pblica estadual e municipal no mesmoano. A escola pblica sequer aprovava 15 % (14,43%) dos seusalunos concluintes do Ensino Mdio no vestibular da UFS, en-quanto as escolas privadas aprovam quase 90% do seu nmerode concluintes anual. Claro que aqui era preciso considerar asdemandas reprimidas ano aps ano de alunos do ensino privadoe do ensino pblico, mas isto s corroboraria ainda mais a idia de que a reteno ano a ano dos alunos oriundos da escola pbli-ca gerava um acmulo desproporcional de jovens que noacessavam o Ensino Pblico Superior e definitivamente deixavamde tentar o ingresso em anos subseqentes aos de sua conclusodo Ensino Mdio.

    Como evidenciavam os dados, os alunos oriundos do ensinoprivado tiveram, nos ltimos anos, maiores chances de serem apro-

    vados no Ensino Pblico Superior. Isto contribuiu para reproduode maiores desigualdades scio-econmicas de oportunidades detrabalho e, conseqentemente, menores possibilidades de mobili-dade social no estado. 4 Tal questo nos colocara diante das consi-deraes inevitveis de que para alm do modelo de administraoescolar, a populao mais atingida por este dficit era a populaode baixo poder aquisitivo, concentrando-se principalmente entreas categorias tnico-raciais do IBGE: os pardos, os pretos e os ind-genas. Isto porque os prprios dados do censo escolar demonstram

    que a evaso escolar do Ensino Fundamental ao Ensino Mdio eda ao Ensino Superior maior entre pardos, pretos e indgenas da escola pblica do que entre os brancos tambm da escola pblica.Para a anlise deste fenmeno de evaso pelo critrio tnico-racial,alguns estudos recentes realizados em vrios estados do Brasil

    4 No captulo 04, deste livro, trabalhamos com a anlise sobre tais expectativas demobilidade social.

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    demonstram que a evaso maior por conta da existncia estrutu-

    ral do racismo na vida escolar.5

    Retornando aos dados escolares de Sergipe. Vejamos comoos ndices de escolarizao revelam dados alarmantes sobre asdesigualdades entre brancos e no-brancos no estado. A mdia de anos de estudos maior entre os auto-declarados de cor bran-ca e as taxas de analfabetismo so maiores entre os auto-decla-rados de cor parda e preta.

    Quadro do Analfabetism o por Cor/ Raa em Sergipe (I BGE)6

    Ano 2006 Tot al Branca Pr et a PardaTaxa de analfabetismo 19,7 14,9 20,2 21,7Taxa de analfabetismo funcional acima de 15 anos 33 ,7 27 ,0 39 ,1 36 ,2Mdia anos de estudo pessoas maiores de 15 anos 6,0 6,9 5,8 5,6

    Conforme quadro acima, sobre os ndices de alfabetizao,h uma piora progressiva dos ndices de escolarizao entre par-

    dos e pretos com relao aos brancos, medida que a escolaridade vai avanando. Apesar de os nmeros de evaso e de no conclu-so dos anos de estudo serem altos, independente de raa/cor, entre os pardos e pretos que estes nmeros so ainda maiores.

    Nos ndices totais de acesso UFS, pelo vestibular de 2007,foram aprovados 1.384 alunos auto-declarados de cor/raa bran-ca, o que significou um acesso proporcional de 34,34% de bran-cos7, sendo que estes representavam aproximadamente 21,90%

    dos concludentes do Ensino Mdio naquele ano, auto-declaradosbrancos. Ou seja, a populao auto-declarada branca acessou aoensino pblico federal num total de 12,44% a mais do que sua proporo entre os concluintes totais no ensino mdio em Sergipenaquele mesmo ano.

    5 Ver, entre outros, o livro de Munanga (2005) e Cavalleiro (2003).6 Ver informaes no endereo eletrnico www.ibge.gov.br 7 Ver endereo eletrnico da CCV/UFS, dados do questionrio scio-econmico do

    vestibular para ingresso em 2007/2008, quesito raa/cor.

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    Na rea da educao h fortes desigualdades raciais que se

    acentuam na mesma medida em que os anos escolares se pas-sam. O percentual de brancos que concluem o Ensino Mdio 11,4%, enquanto o percentual de pretos e pardos de 7,1%. Asdesigualdades raciais so grandes tambm neste nvel de ensino.O que significa que, em resumo, se os negros tm menos EnsinoFundamental e depois menos Ensino Mdio que os brancos issotende a piorar no acesso ao Ensino Superior, mostrando que h uma seletividade racial crescente na trajetria educacional, queresultar tambm numa seletividade de desigualdades no acessoa determinadas profisses. 8

    2. A Universidade Federal de Sergipe

    As discusses sobre aes afirmativas, na UFS, estiveramlastreadas no diagnstico da situao atual (exemplificado aci-ma), nos objetivos da universidade e em dados sobre o sistema deacesso pelo vestibular. Inicialmente procuramos diagnosticar oquadro scio-tnico-racial na UFS, explorando os dados dos anosde 2007 e 2008, referentes aos candidatos ao vestibular e suasprocedncias escolares.

    Tomamos como base os dados fornecidos pela Comisso Per-manente do Vestibular, atravs de seu Questionrio Scio-Eco-nmico. Entre os dados levantados estavam os nmeros totais e

    por cursos dos alunos candidatos e dos alunos aprovados em tais vestibulares. Dados como idade, sexo, estado civil e os mais im-portantes para nossas reflexes aqui, a procedncia do EnsinoBsico (pblico ou privado) e a questo da Raa/Cor, foramreveladores do perfil dos alunos ingressos at ento na UFS.

    8 DIEESE, A desigualdade racial no mercado de trabalho , Boletim do DepartamentoIntersindical de Estatsticas e Estudos Socioeconmicos, So Paulo: nov. de 2002.

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    Com relao procedncia do candidato no mbito da admi-

    nistrao escolar, foram realizadas individualmente as seguintesperguntas pelo questionrio oficial do vestibular: 1) Voc cursoua maior parte do Ensino Fundamental em? 2) Voc cursou a mai-or parte do Ensino Mdio em? Nos dois casos as alternativas derespostas foram as seguintes: escola pblica municipal, escola pblica estadual, escola pblica federal e escola privada. Quan-to ao perfil tnico/racial tambm foi realizado o seguinte questio-namento: 1) Qual a sua Cor ou Raa? Com as respostas alterna-tivas: branca, parda, negra, oriental e indgena. 9

    No vestibular de 2008, dos que responderam pergunta voccursou a maior parte do Ensino Fundamental em?, de um total de21.226 candidatos inscritos, 2.487 responderam serem oriundosde escola pblica municipal, 8.120 oriundos de escola pblica es-tadual, 171 de escola pblica federal e 10.448 de escola privada.Destes, foram aprovados um total de 4.011 candidatos, sendo 374candidatos da escola pblica municipal, 1.215 da escola pblica estadual, 76 da escola pblica federal e 2.346 da escola privada.

    No que diz respeito ao vestibular de 2007, foram 20.210 can-didatos (2.210 da escola pblica municipal, 7.567 da escola p-blica estadual, 230 da escola pblica federal, 10.203 da escola privada) e aprovados 4.031 candidatos (379 da escola pblica municipal, 1.221 da escola pblica estadual, 80 da escola pbli-ca federal, 2.351 da escola privada), seguindo mais ou menos a

    mesma distoro de percentagem no acesso, que as distoresdos dados do ano de 2008, do pargrafo anterior, como sistemati-zamos no quadro abaixo:

    9 Cabe esclarecer neste texto que a CCV/UFS utilizava em seus questionrios ascategorias: negra e parda ao invs de preta e parda, como oficialmente utilizadopelo IBGE.

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    Quadro da procedncia do ensino fun dam ental no vest ibular da UFS

    Escola Candidatos Aprovados Candidatos Aprovados2007 2007 2008 2008

    Pblica Municipal 10,94% 9,40% 11,72% 9,32%Pblica Estadual 37,44% 30,29% 38,36% 30,29%Pblica Federal 1,14% 1,98% 0,81% 1,90%Privada 50,48% 58,32% 49,22% 58,49%

    Tabela com base nos dados do questionrio scio-econmico 2007 e 2008, publica-dos no stio da CCV/UFS

    Percebemos que a proporo de inscrito/ingresso na UFS, via

    vestibular, por ano, era aproximadamente 8,5% maior para os alu-nos provenientes da escola privada. Enquanto os alunos provenien-tes das escolas pblicas municipais e estaduais somadas, em m-dia, registravam uma reduo no acesso de aproximadamente 9,5%de candidatos aprovados em relao aos inscritos. Percebemos quea grande distoro deste quadro se dava na representao social, doquadro geral, com relao provenincia de alunos do Ensino Fun-damental oriundos de escola pblica estadual e municipal.

    Em outro quesito, quando o assunto era o Ensino Mdio, dosque responderam pergunta voc cursou a maior parte do EnsinoMdio em? de um total de 21.226 candidatos inscritos, 529 candi-datos eram oriundos de escola pblica municipal, 10.029 oriundosde escola pblica estadual, 934 de escola pblica federal e 9.734 deescola privada. Do total de 4.011 aprovados em 2008, 96 candidatoseram da escola pblica municipal, 1.445 da escola pblica estadu-

    al, 295 da escola pblica federal e 2.175 da escola privada.No que diz respeito ao vestibular de 2007, foram 20.210 can-didatos (611 da escola pblica municipal, 9.157 da escola pblica estadual, 1.011 da escola pblica federal, 9.431 da escola priva-da). Dos 4.031 aprovados a proporo correlativa ao ano de 2008(133 da escola pblica municipal, 1.387 da escola pblica esta-dual, 342 da escola pblica federal, 2.169 da escola privada), se-guindo mais ou menos a mesma distoro de percentagem no aces-

    so, como podemos visualizar no quadro abaixo:

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    Quadro da pr ocedncia do Ensino Mdio no vestibular da UFS

    Escola Candidatos Aprovados Candidatos Aprovados2007 2007 2008 2008

    Pblica Municipal 3,02% 3,30% 2,49% 2,39%Pblica Estadual 45,31% 34,41% 47,24% 36,03%Pblica Federal 5,00% 8,48% 4,40% 7,35%Privada 46,67% 53,81% 45,86% 54,22%

    Quadro com base nos dados do questionrio scio-econmico 2007 e 2008 publi-cados no stio da CCV/UFS

    Percebemos que os candidatos oriundos de escola privada

    eram aprovados no vestibular numa percentagem de 7% a 8,5 %maior do que a proporo de inscritos, enquanto os alunos prove-nientes de escola pblica municipal e estadual somados estavamsub-representados na mesma proporo inscrito/ingresso emmdia de 9% a 10% para menos. Percebemos novamente que a grande distoro deste quadro se d na representao social, doquadro geral, com relao provenincia de alunos do Ensinodo Ensinodo Ensinodo Ensinodo EnsinoMdioMdioMdioMdioMdio oriundos de escola pblica estadual e municipal, repetin-do-se o quadro do Ensino Fundamental. Com isto, podemos afir-mar que os alunos que fizeram o Ensino Fundamental mais oEnsino Mdio na rede pblica municipal e estadual, eram os alu-nos mais expostos a no absoro pelo modelo de processo seleti-

    vo de vestibular para universidade. Tais alunos estavam em con-dies de maior vulnerabilidade no processo de acesso ao EnsinoPblico Superior.

    Devemos lembrar, ainda, que muitos dos alunos egressos da rede de ensino pblica estadual e municipal de Sergipe, sequer tentaram o vestibular para a universidade federal, logo depois deconcludo o Ensino Bsico, pois, como demonstramos anterior-mente, foram 12.902 alunos egressos das redes municipal e esta-dual em 2006 e apenas 9.768 deles realizaram o concurso vesti-bular na UFS, sendo que os egressos da rede particular no mes-mo ano foram 2.759 alunos, mas inversamente perfaziam um to-

    tal de 9.431 inscritos no vestibular (quase 4 vezes mais o nmero

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    de concluintes do Ensino Mdio da rede privada naquele ano).

    Isto demonstra que o aluno de escola pblica estava proporcio-nalmente muito menos estimulado a tentar o vestibular na UFS,enquanto os alunos da rede privada ingressavam por ano quasena mesma proporo em que se formavam na rede privada, queno ano em questo totalizara 2.169 alunos, muito distante da pro-poro de 12.902 alunos que concluram, naquele ano, o EnsinoMdio na escola pblica estadual e municipal.

    Ainda mais, lembramos que a quantidade de alunos oriun-dos de escola pblica que ingressaram pelo vestibular na UFS, nomesmo ano, fora de apenas 1.420 alunos. Isto demonstra que a grande maioria dos alunos da rede escolar pblica estava exclu-da do acesso ao ensino pblico universitrio no estado de Sergipeano aps ano, como, tambm, a imensa maioria dos excludos desteacesso estava entre aqueles com baixssimo poder aquisitivo, en-quanto os alunos oriundos da rede privada, com poder aquisitivosuficiente para pagar um ensino bsico na rede privada, so osque acessaram na inversa proporo universidade pblica. Almdo mais, o acmulo de alunos concluintes do Ensino Mdio na es-cola pblica, e que no ingressam na universidade pblica, pareceno retornar ao vestibular no ano seguinte, se tornando uma de-manda reprimida que simplesmente desiste do Ensino Superior oubusca alternativas de estudos como as universidades privadas.Fenmeno inverso ocorre com os alunos provenientes da escola

    privada, que acumulam demanda para os vestibulares dos anosseguintes, at ingressarem na universidade pblica.Quando analisamos as distores por cursos, os nmeros se

    mostraram ainda mais alarmantes. Em cursos como medicina,odontologia, arquitetura, entre outros, as quantidades de alunosprovenientes de escola pblica foram irrisrias, como podemosobservar no quadro seguinte:

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    Quadro por curso dos aprov ados no vestibu lar por origem rede escolar - 200810

    Curso/ Turno Escola Pblica Pblica PblicaPr ivada Estadual Municipal Federal

    Odontologia 9 7 % 3 %Direito Bacharelado 9 6 % 4 %Medicina 9 5 % 2 % 3 %Direito Bacharelado 9 4 % 2 % 2 % 2 %Arquitetura/Urbanismo 8 8 % 6 % 6 %Nutrio Bacharelado 8 8 % 8 % 4 %Enfermagem Bacharelado 8 8 % 8 % 2 % 2 %Fonodiaulogia Bacharelado 8 8 % 6 % 6 %Engenharia Mecnica 8 8 % 6 % 6 %Engenharia Eltrica 8 6 % 2 % - 1 2 %

    Engenharia de Produo 8 6 % 1 0 % 4 %Engenharia Civil 8 5 % 1 0 % - 5 %Biologia Bacharelado 8 4 % 1 3 % 3 %Fisioterapia Bacharelado 8 2 % 8 % 2 % 8 %Zootecnia Bacharelado 8 2 % 1 4 % 4 %

    Observando o quadro, percebemos que cursos como Enge-nharia Civil, Engenharia Eltrica, Cincias da Computao, En-genharia Mecnica, Medicina, Odontologia, Enfermagem, Nutri-o, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Direito Noturno, Direito Diur-no, Engenharia de Produo, Jornalismo, Arquitetura, Psicolo-gia, Zootecnia e Fisioterapia tiveram mais de 80% de aprovadosentre egressos de escolas privadas. Na maioria destes cursos, sesomarmos mais os alunos provenientes das escolas pblicas fe-derais, teremos mais de 90% oriundos destes dois sistemas esco-lares. Outro agravante, quando destacamos os cursos de Odonto-logia, Direito e Medicina, percebemos mais de 95%95%95%95%95% de alunos apro-

    vados no vestibular, que so oriundos das escolas privadas ..... Osdados indicam que a UFS reproduzia, at ento, um quadro elitista no que diz respeito ao acesso educao superior.

    Num outro quesito do questionrio scio-econmico, o quesi-to que passamos a chamar de tnico-racial, dos candidatos que

    10 Os nmeros totais dos aprovados por cursos no vestibular para ingresso em 2007 e2008, segundo origem por administrao escolar podem ser pesquisados no sitio ele-trnico da CCV/UFS. Os cursos que ficaram de fora desta tabela tambm podem ser pesquisados no mesmo endereo. Apresento apenas as quinze maiores distores.

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    responderam pergunta qual a sua cor ou raa?, de um total de

    21.226 inscritos, em 2008, 6.576 declararam cor ou raa branca,11.525 parda, 2.863 negra, 38 oriental e 224 indgena. Dos 4.011aprovados no mesmo vestibular, 1.377 eram de cor ou raa bran-ca declarada, 2.099 parda, 498 negra, 4 oriental e 33 indgena.No vestibular de 2007, de um total de 20.210 inscritos, 6.561 can-didatos declararam cor ou raa branca, 10.609 parda, 2.738 ne-gra, 44 oriental e 258 indgena. Dos 4.031 aprovados no mesmo

    vestibular, 1.384 eram de cor ou raa branca declarada, 2.093parda, 502 negra, 9 oriental e 43 indgena. Mantendo-se asproporcionalidades de representao equivalente de candidatos/aprovados de um ano para o outro. O que vemos tambm umquadro de distores por raa/cor que configura desigualdadesreproduzidas desde o Ensino Bsico.

    Quadro das propores de representao tn ico-racial relao candidatos/ aprovadosUFS

    Cor ou Raa Candidatos Aprovados Candidatos Aprovados2007 2007 2008 2008

    Branca 32,47% 34,34% 30,98% 34,33%Parda 52,49% 51,92% 54,30% 52,33%Negra 13,55% 12,45% 13,49% 12,42%Oriental 0,28% 0,22% 0,18% 0,10%Indgena 1,28% 1,07% 1,06% 0,82%

    Tabela com base nos dados do questionrio scio-econmico sobre cor/raa, 2007e 2008, do stio da CCV/UFS

    No quadro acima, o nico grupo de candidatos classifica-dos que aumentara proporcionalmente com relao classifica-o dos candidatos inscritos nos dois anos consecutivos o grupoque se definiu como de cor ou raa branca. Todos os outros gru-pos no-brancos tiveram um decrscimo na relao inscrito/clas-sificado. A diferena se repetia de um ano para o outro ficando na mdia dos 2,5% a mais de brancos ingressos ano a ano. Por outrolado, os grupos de cor ou raa parda, negra, oriental e indgena tiveram decrscimos com relao proporo inscritos/classifi-

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    cados. Isto quer dizer que estvamos diante de um quadro de

    distores e desigualdades tambm no quesito tnico-racial. A populao de Sergipe, segundo o Plano Nacional de Amostras por Domiclios (PNAD), realizado pelo IBGE em 2005, era de 28,3% da populao definida por cor ou raa branca. Se os aprovados quese declararam de cor ou raa branca representavam, entre os

    vestibulandos, a proporo de 34,34% e 34,33%, respectivamenteem 2007 e 2008, significa que tnhamos uma defasagem ainda maior entre brancos e no-brancos no acesso universidade p-blica quando colocamos este nmero relacionado proporo da populao total do estado pelo critrio de auto-atribuio raa/cor. Ou seja, como demonstram os dados de levantamento quan-titativo sobre as diferenas de acesso educao e perspectivasde continuidade dos estudos do INEP e do PNUD/ONU, ambos de2005, as categorias pardos e pretos sempre apresentaramnmeros de continuidade em decrscimo no percurso escolar, aocorresponde inverso dos brancos. No caso dos nmeros apre-sentados, a diferena entre o PNAD de 2005 e os dados referentesao vestibular, h uma defasagem na proporo de 6% a mais debrancos que ingressavam todos os anos na UFS, que a proporode negros, somando pardos e pretos, em 2005, que totalizavam71,3% da populao em Sergipe, e que, no entanto, foram 63,7%dos que ingressaram pelo vestibular na UFS, em 2008. O que movedistores como estas, no so apenas questes de ordem econ-

    mica, mas, muitas vezes, questes imbricadas pelo racismo es-trutural e sutil enfrentado por crianas pardas, pretas e indge-nas desde a fase pr-escolar at o Ensino Mdio nas escolas detodo o Brasil.

    3. As Aes Afirmativas na UFS

    Diante do quadro acima, de distores, desequilbrios e des- vantagens entre diferentes grupos sociais no acesso universi-

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    dade pblica no estado, a Comisso de Aes Afirmativas, da UFS,

    nomeada pelo Reitor Josu Modesto dos Passos Subrinho, no anode 2007, e coordenada pelo Ncleo de Estudos Afro-Brasileiros(NEAB), contando com ampla representativa acadmica de do-centes, funcionrios e estudantes, tirou como princpio a elabo-rao de um projeto de acesso universidade que levasse emconsiderao os critrios sociais e as distores elencadas acima,no que diz respeito ao acesso e presena de alunos provenien-tes da escola pblica, bem como negros e ndios, na UFS.

    Neste caso, passamos a trabalhar com algumas noes deaes afirmativas que objetivam construir um universo social demaior igualdade e representatividade na universidade. A partir da, a idia foi criar mecanismos de acesso e permanncia no en-sino superior pblico que possibilitassem um aumento de oportu-nidades para jovens provenientes de diferentes grupos sociais,proporcionalmente representados na sociedade. Ou seja, meca-nismos que combinassem representatividade social a uma maior democratizao econmica e tnico-racial no processo de partici-pao e formao universitria, principalmente por considerar-mos esta uma tarefa que deve ser promovida por todo setor pbli-co e, neste caso, principalmente, pela universidade pblica.

    A proposta foi apresentada e votada pelo Conselho do Ensi-no, da Pesquisa e da Extenso - CONEPE, sendo aprovada em 13de outubro de 2008, passando a valer para o Processo Seletivo

    Seriado do Vestibular para ingresso em 2010. No documento da proposta, contextualizamos o debate no Brasil, apresentamos al-guns estudos sobre a UFS, bem como efetivamente propusemos omodelo de acesso que hoje est em vigor, procurando expressar com contundncia o comprometimento de uma instituio pbli-ca, com agenda contempornea, que exige responsabilidadesinstitucionais em resposta aos cenrios de desigualdades socioe-conmicas e raciais que imperam visivelmente na prpria insti-tuio e na sociedade brasileira e sergipana.

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    Os objetivos estabelecidos pela proposta foram, entre outros:

    implantar uma poltica pblica de ao afirmativa de incluso dealunos oriundos da rede pblica de ensino, negros e indgenas eportadores de necessidades especiais; promover uma formaohumana anti-preconceituosa, com impacto nos currculos dascarreiras profissionais a partir de uma poltica de acesso diferen-ciada, socialmente representativa e justa; direcionar o investi-mento pblico para diminuir os efeitos da discriminao racial esocial no ensino superior, oportunizando o acesso e permanncia na Universidade, por parte de alunos ingressos pelo sistema decotas; contribuir para o desenvolvimento de estratgiasinstitucionais compatveis com os desafios criados nas Institui-es de Ensino Superior, a partir da implantao de sistema dereserva de vagas para acesso de estudantes oriundos da redepblica de ensino, negros, indgenas e portadores de necessida-des especiais.

    Este sistema foi delimitado, abarcando os seguintes procedi-mentos diferenciados para o acesso. Reserva de 50% das vagastotais de todos os cursos de graduao para os candidatos quetenham cursado integralmente o ensino mdio e pelo menos qua-tro anos do ensino fundamental em instituies pblicas de ensi-no. Na inscrio, os candidatos com tais caractersticas de for-mao, que desejam concorrer pelas cotas devero optar por esta reserva e comprovar perante a Comisso Coordenadora do Vesti-

    bular que realizaram tais estudos na escola pblica. No caso da falta de classificados, as vagas retornam classificao geral.Outra caracterstica da proposta a reserva de 70% destas vagaspara estudantes da escola pblica que se auto-declararem par-dos, pretos ou indgenas, e que no momento da inscrio para o

    vestibular optarem pela reserva de vagas tnico-raciais. No casoda falta de classificados optantes por este critrio, as vagas tam-bm retornam primeiramente para os 50% da escola pblica, de-pois para a concorrncia geral. Por ltimo, tambm inclumos a

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    reserva de uma vaga por curso para os candidatos deficientes,

    sendo que, no havendo aprovao para tal vaga, ela retorna a classificao geral. Ao mesmo tempo, tambm foi instituda uma comisso de

    acompanhamento e permanncia, juntamente com a coordena-o do Programa de Aes Afirmativas, para avaliar, acompanhar e propor mecanismos relacionados ao acompanhamento da situ-ao socioeconmica dos alunos cotistas, que implicaro em bol-sas de permanncia, alimentao, transporte, moradia, materialdidtico e apoio didtico-pedaggico. A dita comisso tambm fi-cou responsvel pela constituio de uma poltica de acompanha-mento da insero scio-profissional dos alunos cotistas egressosda universidade, que contemple um banco de dados com informa-es atualizadas do aluno egresso e que possibilite avaliao da formao humana, democrtica e anti-racista e seu impacto noscurrculos das carreiras profissionais oferecidas pela instituio.

    4. Consideraes Finais

    O entendimento geral dos membros da comisso que elabo-rou tal proposta que tais polticas contribuiro para a constru-o de disputas mais equilibradas para o acesso universidadepblica, bem como possibilitaro que se eleve a auto-estima dosgrupos sociais representados desproporcionalmente na universi-

    dade, rompendo com o ciclo vicioso de elitizao do acesso gratui-to informao, pesquisa e formao universitria, bem comos carreiras profissionais de prestgio. Isto dever atrair ainda mais o interesse pela universidade pblica, por parte de alunosoriundos da escola pblica. Muitos deles, hoje ficam de fora doacesso ao ensino superior ou pagam por ele.

    Para viabilidade de um programa de Aes Afirmativas, mui-tos desafios j foram e ainda sero enfrentados. Polticas destetipo so sempre questionadas por muitos que confortavelmente

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    esto estabelecidos nas universidades ou que dominam os meca-

    nismos instrumentais, econmicos e simblicos para dela faze-rem parte. Aprovado o programa, os desafios agora so outros,precisamos nos concentrar em torno da mobilizao institucionalde todos os segmentos administrativos e pedaggicos da universi-dade sob um novo pblico que passar a freqent-la nos prxi-mos anos. Ns, professores, tcnicos administrativos e alunos,precisamos aprender a fazer juntos uma universidade mais de-mocrtica e acessvel s diferenas, criando novos mecanismosde interao pedaggica, de socializao e de subsdios para ex-tenso, pesquisa e assistncia estudantil.

    Por fim, levando em conta que a poltica de cotas, no contextodo nmero atual de vagas dos cursos da UFS, ainda uma medi-da insuficiente, diante do crescimento da demanda pelo ensinopblico superior no estado nos ltimos anos (h uma tendncia de continuidade deste crescimento), h, ainda, a necessidade da ampliao do nmero de cursos, de vagas, de turnos e deinteriorizao para regies distantes das atuais sedes. Estas es-tratgias, somadas ao Programa de Aes Afirmativas, so funda-mentais para atingirmos uma ampla democratizao do acesso universidade pblica, que inclua o maior nmero possvel de no-

    vos acessos, bem como a presena e a participao de uma maior diversidade e representatividade de distintos grupos sociais. Nosem antes considerarmos a importncia de que isto seja feito com

    o compromisso de uma gesto pblica responsvel, mas tambmdo compromisso do Estado com o financiamento pblico para ampliao fsica e docente de um ensino universitrio que primepela qualidade do ensino e da pesquisa.

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