A_Conciliação judicial

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Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Joana Paixo Campos

A Conciliao Judicial

Dissertao de Mestrado em Cincias Jurdicas Forenses Sob orientao da Professora Doutora Mariana Frana Gouveia

Fevereiro 2009

A Conciliao Judicial

Modo de citar

Os artigos mencionados sem indicao da fonte pertencem ao Cdigo de Processo Civil vigente. No texto, as obras so citadas em nota de rodap, por referncia ao nome completo do autor, ttulo, ano da edio consultada e pgina. A jurisprudncia citada pelo tribunal e data do acrdo, seguida da fonte onde foi consultada. Na bibliografia final, as obras so elencadas por ordem alfabtica do ltimo apelido do autor, respeitando-se nos casos em que h mais autores a ordem pela qual aparecem na obra. Os autores espanhis so citados pelo seu penltimo apelido.

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ndice

1. Introduo ........................................................................................ 4

2. Noo de conciliao ........................................................................ 62.1. 2.2. 2.3. Noo de mediao ........................................................................................... 6 Posies doutrinrias quanto noo de conciliao ....................................... 7 Posio adoptada ............................................................................................. 12

3. Enquadramento geral da conciliao judicial .................................. 153.1. 3.2. 3.3. 3.4. O processo civil na actualidade ....................................................................... 16 Funo da conciliao judicial ......................................................................... 21 Caractersticas gerais da conciliao judicial ................................................... 24 Estrutura e tcnicas do processo de mediao na conciliao judicial ........... 25

4. Papel do juiz ................................................................................... 304.1. 4.2. Teoria jurisdicionalstica .................................................................................. 30 Papel do juiz no contexto actual ...................................................................... 33 Interveno do juiz nos termos do n. 3 do artigo 509. ......................... 34 Sentido de equidade no n. 3 do artigo 509........................................... 36

4.2.1. 4.2.2.

5. Regime aplicvel conciliao judicial ............................................ 415.1. 5.2. Objecto............................................................................................................. 41 Momento ......................................................................................................... 43

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5.3.

Iniciativa ........................................................................................................... 47 Convocao do juiz ................................................................................... 47 Requerimento das partes ......................................................................... 49

5.3.1. 5.3.2. 5.4.

Resultado da conciliao ................................................................................. 51 Conciliao com sucesso .......................................................................... 51 Desistncia do pedido ....................................................................... 52 Confisso do pedido .......................................................................... 53 Desistncia da instncia .................................................................... 54 Transaco......................................................................................... 54 Acordo quanto matria de facto .................................................... 57 Forma dos negcios jurdicos resultantes da conciliao ................. 58

5.4.1.

5.4.1.1. 5.4.1.2. 5.4.1.3. 5.4.1.4. 5.4.1.5. 5.4.1.6. 5.4.2. 5.5. 5.6.

Conciliao sem sucesso........................................................................... 59

Homologao do resultado.............................................................................. 63 Extino dos negcios jurdicos resultantes da conciliao ............................ 66 Invalidade ................................................................................................. 66 Revogao e resoluo ............................................................................. 69

5.6.1. 5.6.2.

6. A conciliao judicial na prtica ...................................................... 716.1. 6.2. Concluses das entrevistas realizadas ............................................................. 71 Dados estatsticos ............................................................................................ 82

7. Concluses...................................................................................... 85

Bibliografia ............................................................................................ 89

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1. IntroduoNos ltimos anos, tem-se observado um desenvolvimento crescente dos meios de resoluo alternativa de litgios. Estes meios, privilegiando solues cleres e verdadeiramente satisfatrias para as partes, vm ganhando terreno, reflexo de que o sistema judicial no , actualmente, capaz de dar resposta adequada a todos os conflitos. O processo civil muito demorado e encontra-se cada vez mais distante das partes, seja pela tecnicidade do prprio Direito, seja pelo seu formalismo excessivo. comum ouvir-se falar da crise do sistema judicial e da justia. Esta crise teve como principal causa o aumento da procura dos servios dos tribunais, nomeadamente na sequncia do crescimento do fenmeno da litigncia de massas, e originou uma perda de qualidade da justia, que se traduz numa maior morosidade mas tambm numa menor preocupao com a busca da soluo mais adequada para o problema das pessoas. Esta segunda consequncia tende a ser menosprezada, centrando-se os esforos na busca de solues para melhorar os nmeros da justia e no a sua qualidade substancial. A conciliao judicial aproxima-se dos meios de resoluo alternativa de litgios, uma vez que se trata de um procedimento em que devolvida s partes a responsabilidade para que encontrem a melhor soluo para o seu caso. Conclui-se, pelo sucesso que tm tido os meios de resoluo alternativa de litgios, que em muitos casos a soluo do direito pode no ser a mais satisfatria. Na medida em que a administrao da justia essencialmente um servio prestado pelo Estado comunidade, de maneira a preservar a paz social e facilitar o desenvolvimento econmico atravs da resoluo de conflitos1, no deve ignorar-se esta realidade, fomentando-se a adequao do sistema judicial a todos os tipos de conflito. A conciliao judicial, se levada a cabo de forma eficaz, pode contribuir para a melhoria da qualidade do sistema judicial, pois permite uma segunda via de soluo para o conflito, alternativa sentena: o acordo.

1

JOO PEDROSO; CRISTINA CRUZ, A arbitragem institucional: um novo modelo de administrao de justia - o caso dos conflitos de consumo, 2000, p. 18.

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A conciliao judicial um meio de resoluo de litgios pouco estudado. Os manuais de processo civil dedicam-lhe, em regra, uma ou duas pginas no captulo referente Audincia Preliminar e, para alm da tese de doutoramento do Professor Doutor Pessoa Vaz, com o ttulo Poderes do juiz na conciliao judicial, publicado h mais de 30 anos, nenhum outro autor portugus se debruou, em detalhe, sobre o assunto. Esta falta de produo doutrinria reflexo da pouca importncia que, em geral, atribuda a esta fase processual. O objectivo da presente dissertao o de contribuir para o estudo da conciliao judicial, que se considera ser um meio apto a contribuir para uma melhoria da qualidade da justia, se realizado de forma eficaz. No prximo captulo, procura-se definir o que a conciliao, nomeadamente por contraposio com a mediao. No terceiro captulo, feito um enquadramento geral da conciliao, procedendo-se exposio daquele que se considera ser o modelo ideolgico do processo civil actual, das funes da conciliao judicial e da estrutura e tcnicas que podem ser utilizadas na sua conduo. No quarto captulo, procura-se determinar qual o papel que o juiz deve ocupar na conciliao, nomeadamente quanto ao grau de interveno e de controlo do resultado. No quinto captulo, expe-se o regime legal da tentativa de conciliao. Por fim, no sexto captulo, so referidas as concluses de entrevistas a juzes e advogados, realizadas com o intuito de perceber como entendida e levada a cabo a conciliao por quem lida diariamente com ela. feita, ainda, uma anlise de dados estatsticos, procurando-se, tambm aqui, a compreenso do instituto na prtica.

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2. Noo de conciliaoA conciliao um meio de resoluo de litgios. H, na doutrina, diversas posies quanto sua definio. A maioria delas parte do conceito de mediao, caracterizando a conciliao por comparao com esta figura. Por este motivo, parece-nos importante comear por apresentar, brevemente, uma definio de mediao.

2.1. Noo de mediao

Na Lei n. 78/2001, de 13 de Julho, que regula a competncia, organizao e funcionamento dos julgados de paz (Lei dos Julgados de Paz), a mediao definida, no n. 1 do artigo 35., como uma modalidade extra-judicial de resoluo de litgios, de carcter privado, informal, confidencial, voluntrio e natureza no contenciosa, em que as partes, com a sua participao activa e directa, so auxiliadas por um mediador a encontrar, por si prprias uma soluo negociada e amigvel para o conflito que as ope. Esta definio descritiva enumera as caractersticas da mediao. Contudo, ela vinculativa apenas no que diz respeito mediao no mbito dos julgados de paz. Trata-se de uma definio muito especfica e que encerra vrias opes legislativas. Por exemplo, o carcter voluntrio no pode ser considerado essencial mediao, uma vez que h pases em que vigoram ou j vigoraram regimes de mediao obrigatria. o caso da Frana e da Argentina2. Assim sendo, apesar de indicar um caminho, no podemos utilizar a presente definio, dado que apresenta mais caractersticas do que aquelas que so essenciais mediao. A Directiva 2008/52/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Maio de 2008, relativa a certos aspectos da mediao em matria civil e comercial, define mediao, na alnea a) do artigo 3., como um processo estruturado,

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JOS ALVES PEREIRA, "Mediao voluntria, sugerida ou obrigatria?" 2001, p. 2; ANA TEREZA PALHARES BAZLIO; JOAQUIM PAIVA MUNIZ, "Projeto de lei da mediao obrigatria e a busca da pacificao social", 2007, p. 41.

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independentemente da sua designao ou do modo como lhe feita referncia, atravs do qual duas ou mais partes em litgio procuram voluntariamente alcanar um acordo sobre a resoluo do seu litgio com a assistncia de um mediador. Esta definio muito ampla. No elenca caractersticas da mediao, limitando-se a descrever o processo por referncia sua finalidade, que a obteno de uma soluo pelas partes, embora auxiliadas por um terceiro. Esta maior amplitude compreende-se, na medida em que a sua finalidade abranger mecanismos de resoluo de litgios de diversos Estados. Na doutrina portuguesa, encontramos definies mais descritivas e coladas definio da Lei dos Julgados de Paz, como por exemplo a que descreve a mediao como um meio no adversarial, de natureza privada, informal e confidencial, em absoluto dependente das partes3. Encontramos tambm outras mais genricas cujo objectivo serem consensuais. o caso da definio de mediao como uma negociao assistida por um terceiro4. Pretende-se aqui encontrar uma definio de mediao que permita a compreenso das definies de conciliao que caracterizam esta figura por comparao com a mediao. Tem, por esse motivo, de ser uma definio tendencialmente consensual. No pode, contudo, ser muito genrica. Deve conter as principais caractersticas da mediao, visto que so algumas dessas que os autores afastam, ao definir a conciliao. Mediao , para este efeito, um processo confidencial em que as partes, mantendo o seu poder decisrio, so auxiliadas por um terceiro imparcial a obter uma soluo para o conflito.

2.2. Posies doutrinrias quanto noo de conciliao

Abstraindo de algumas variaes, possvel agrupar as opinies da doutrina em trs posies principais. A primeira caracteriza a conciliao como uma actividade com as caractersticas da mediao, divergindo desta pela maior interveno do terceiro.3 4

JOO SEVIVAS, Julgados de paz e o direito, 2007, p. 18. MARIANA FRANA GOUVEIA, Resoluo alternativa de litgios, Relatrio apresentado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2008, p. 33.

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Na segunda, a conciliao considerada sinnimo de mediao, considerando-se impossvel a distino das duas. Para a terceira posio, a conciliao consiste na actividade do magistrado com o objectivo de obteno de um acordo. uma actividade semelhante mediao, divergindo desta pela circunstncia de o terceiro ser o juiz da causa. So vrios os autores que tm uma opinio que se enquadra na primeira posio. Entendem que, na mediao, se entrega inteiramente s partes a resoluo do seu conflito. O terceiro um mero facilitador de dilogo. O seu papel o de trazer uma nova dinmica discusso, restabelecendo a comunicao. De acordo com esta posio, a diferena da conciliao que nesta o terceiro pode ir alm de uma facilitao do dilogo. O conciliador faz propostas e apresenta solues para o caso. Colabora com as partes para a obteno de um acordo, no se limitando a fomentar a busca desse acordo pelas partes. SUSANA FIGUEIREDO BANDEIRA5 defende que o conciliador se deve empenhar verdadeiramente na obteno do acordo. Ele deve negociar e fazer propostas, elaborando no final uma soluo que as partes podem aceitar ou no. LCIA DIAS VARGAS6 tambm considera que a conciliao se caracteriza por uma maior interveno do terceiro. Segundo esta autora, este meio de resoluo de litgios diverge da mediao, ainda, quanto ao tipo de soluo alcanada. Na conciliao, os interesses das partes podem no ser inteiramente satisfeitos. O acordo construdo por concesses mtuas, alcanando-se uma soluo de compromisso que pode no ser a ideal. Na mediao, pelo contrrio, trabalham-se os verdadeiros interesses das partes e as suas emoes, de forma a que o acordo final represente uma sanao total do conflito, sendo plenamente satisfatrio para ambas as partes. Tendo em conta esta diferena, a autora conclui que a mediao mais adequada a situaes em que as partes desejam manter um relacionamento futuro e a conciliao mais adequada a situaes circunstanciais.

5

SUSANA FIGUEIREDO BANDEIRA, "A mediao como meio privilegiado de resoluo de litgios", 2002, pp. 107 e 108. 6 LCIA DIAS VARGAS, Julgados de Paz e Mediao - Uma nova face da Justia, 2006, pp. 53 e 54.

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Prxima desta a opinio de JUAN CARLOS VEZZULLA7, que sustenta que a conciliao se distingue por o conflito ser tratado de forma mais superficial do que na mediao. Nesta, procura-se um acordo plenamente satisfatrio para as partes, no sendo tal fundamental naquela. Defende o autor que a conciliao mais adequada para situaes em que no h um relacionamento entre as partes, seja um relacionamento familiar, de vizinhana ou comercial. Tambm JOO SEVIVAS8 considera que, na conciliao o terceiro apresenta solues e na mediao apenas auxilia o dilogo. Nesta ltima, o terceiro funciona como uma ponte entre as partes em conflito, tentando pacific-las. Este autor considera que a conciliao se distingue da mediao num outro ponto, no sendo obrigatria a presena de um terceiro. Estaremos, ainda, perante uma conciliao se as partes tentam, por si, alcanar um acordo. Em sentido contrrio, CATARINA FRADE9 entende que na mediao que o terceiro tem o papel mais interventivo. Nesta, a interveno do terceiro faz-se atravs da apresentao s partes de uma proposta de soluo da sua autoria. Na conciliao o terceiro limita-se a pr as partes em contacto e a facilitar a comunicao, mantendo estas um maior controlo do processo. De acordo com a segunda posio, a distino entre as duas figuras impossvel. LUS DE LIMA PINHEIRO10 refere que vrios autores tentam fazer a distino mas nenhum alcana um critrio distintivo claro. Tambm DRIO MOURA VICENTE11 defende que na nossa ordem jurdica no existem diferenas substanciais entre os dois institutos. Trata-se nos dois casos da mesma actividade podendo falar-se, eventualmente, numa diferena de grau de interveno do terceiro, que maior na conciliao, mas no numa diferena de natureza da interveno12.

7 8

JUAN CARLOS VEZZULLA, Mediao, 2001, p. 83. JOO SEVIVAS, Julgados de paz e o direito, 2007, pp. 18 e 19. 9 CATARINA FRADE, "A resoluo alternativa de litgios e o acesso justia: a mediao do sobreendividamento", 2003, pp. 109 e 110. 10 LUS DE LIMA PINHEIRO, Arbitragem transnacional, 2005, p. 46. 11 DRIO MOURA VICENTE, "Mediao comercial internacional", 2005, p. 390. 12 Defendem a sinonmia entre as duas palavras, ainda, AMAURY HARUO MORI, Princpios gerais aplicveis aos processos de mediao e de conciliao, 2007 (policopiado), p. 13, e AISTON HENRIQUE DE SOUSA, A mediao no contexto dos processos judiciais em curso, 2006 (policopiado), p. 9.

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CARDONA FERREIRA considera redutoras distines baseadas no grau de interveno do terceiro, no facto de o terceiro ser ou no um juiz ou na circunstncia de se tratar de uma interveno pontual ou de uma interveno global quanto s motivaes das partes. O autor conjuga os dois conceitos. A conciliao o objectivo do processo. A mediao, i.e., a actuao de um terceiro como intermedirio, a aco tendente obteno desse objectivo. Pode dizer-se que []a mediao tem xito quando obtm conciliao. E o conciliador, para ter xito, tem de realizar mediao13. HENRY BROWN e ARHUR MARIOTT14 admitem que muitos so os que entendem que a conciliao se distingue da mediao por uma maior interveno do terceiro. No entanto, como tambm h autores que defendem o contrrio, preferem usar os termos como sinnimos, utilizando a expresso evaluative mediation quando se referem aos casos em que h uma maior interveno do terceiro, como contraposio a facilitive mediation, processo no qual no h essa interveno. Para a terceira posio, a conciliao consiste na actividade do magistrado com o objectivo de obteno de um acordo. uma actividade semelhante mediao, divergindo desta pela circunstncia de o terceiro ser o juiz da causa. ZULEMA WILDE e LUIS GAIBROIS15 defendem que a conciliao a actividade do magistrado, que convoca as partes com vista obteno da auto-composio do litgio. Para estes autores, a diferena est em que a mediao extra-judicial e a conciliao judicial, sendo levada a cabo por um magistrado. A conciliao, entendida nestes termos, uma mediao limitada, uma vez que as partes no tm uma liberdade absoluta. Entendem os autores que estas no podem revelar factos que no alegaram, uma vez que se a conciliao no tiver sucesso no conseguem apagar esses factos do esprito do juiz, no momento de decidir. Os autores distinguem entre a conciliao prpria, que aquela da qual resulta uma transaco, e a conciliao imprpria, da qual resulta a desistncia do pedido.

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J.O. CARDONA FERREIRA, "Sistemas de justia e mediao", 2005, p. 196; no mesmo sentido, J.O. CARDONA FERREIRA, Justia de paz e julgados de paz, 2005 pp. 39 e 40; J.O. CARDONA FERREIRA, "Nova justia = velho idealismo", 2006, p. 742. 14 HENRY BROWN; ARTHUR MARRIOTT, ADR principles and practices, 2005, p. 127. 15 ZULEMA D.WILDE; LUIS M. GAIBROIS, O que a mediao, 2003, pp. 35 a 37.

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Prxima desta a opinio de MARIANA FRANA GOUVEIA16, que defende que a conciliao a actividade jurisdicional que tem por fim resolver o caso por acordo. A autora considera que no faz sentido distinguir entre a mediao e a conciliao extrajudicial. O terceiro pode optar por vrias tcnicas ou modelos de interveno, conforme o caso concreto. Contudo, se respeitar os princpios essenciais da mediao, estamos sempre perante a mesma actividade. A conciliao judicial distingue-se desta actividade, uma vez que quem a realiza tem o poder de posterior deciso. Tal implica a no aplicao do princpio dos plenos poderes das partes, dado que estas no esto to vontade quanto estariam perante algum sem qualquer poder decisrio. JOO CHUMBINHO17, apesar de admitir a existncia da conciliao extra-judicial, acaba por associar o conceito da conciliao com a actividade realizada por um juiz. Sustenta que, para alm desta diferena, a conciliao se distingue da mediao, ainda, porque o juiz pode fazer sugestes, ao contrrio do mediador. A mediao privada, decorrendo a conciliao numa audincia pblica. Para alm disto, defende o autor que a mediao confidencial e voluntria e a conciliao no confidencial e uma sub-fase obrigatria do julgamento. Por ltimo, tambm refere que o acordo obtido por conciliao sempre homologado como sentena, no acontecendo o mesmo com os acordos da mediao18.

MARIANA FRANA GOUVEIA, Resoluo alternativa de litgios, Relatrio apresentado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2008, p. 35. A opinio da autora tem vindo a evoluir. Defendeu no texto MARIANA FRANA GOUVEIA; JORGE MORAIS CARVALHO, "A experincia da UMAC na mediao de conflitos de consumo", 2006, pp. 37 e 38, que mediao e conciliao se distinguem, na medida em que na segunda o terceiro tem conhecimentos especficos sobre o assunto que est em discusso. Para alm disso, na mediao h uma preocupao com a pacificao das partes e h uma maior informalidade. Na conciliao tal preocupao inexistente e h uma maior formalidade no processo. Mais recentemente, defendeu que a diferena entre mediao e conciliao s se justifica quando esta feita por um terceiro com poder decisrio e, mesmo aqui, a diferena no est no mtodo mas no posicionamento do terceiro que pode reduzir a liberdade e transparncia das partes (MARIANA FRANA GOUVEIA, "Meios de resoluo alternativa de litgios: negociao, mediao e julgados de paz", 2008, pp. 737 a 739). 17 JOO RENDEIRO CHUMBINHO, Julgados de paz na prtica processual civil, 2007, pp. 74 e 77. 18 Tambm MARGARIDA GONALVES COUTO, A tentativa de conciliao na fase do saneamento e condensao, 1998 (policopiado), p. 12, defende que conciliao a transaco obtida por influncia do juiz da causa e na sua presena. Considera que este o sentido estrito do conceito. Em sentido amplo, conciliao qualquer acto de auto-composio de litgios, o que abrange a confisso ou desistncia do pedido e a transaco.

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2.3. Posio adoptada

No que respeita primeira posio, entende-se que a circunstncia de o terceiro intervir mais ou menos no distingue duas actividades. Distingue posturas ou tcnicas dentro da mesma actividade. Cabe ao terceiro avaliar como deve ser a sua postura perante cada caso concreto. A mediao , como se disse acima, um processo confidencial em que as partes, mantendo o seu poder decisrio, so auxiliadas por um terceiro imparcial a obter uma soluo para o conflito. O terceiro deve moldar o seu auxlio para ser o mais adequado ao litgio em causa, tendo como limite os princpios essenciais da mediao. No pode ser de tal forma interventivo que ponha em causa a liberdade de deciso das partes, forando-as a um determinado acordo. Dentro destes limites, o grau de interveno pode depender, por exemplo, da natureza do conflito. Num conflito no mbito da famlia ser provavelmente mais adequada uma postura que fomente o dilogo entre as partes, permitindo que elas exponham os seus interesses e emoes e cheguem sozinhas a um acordo. No caso de conflitos de consumo, em que as partes no tm grande interesse em manter uma relao futura pode ser mais adequada uma postura mais interventiva, uma vez que no h interesses no revelados. Nestes casos, pode ser til o mediador contribuir com solues de que se lembre e em que as partes podiam no ter pensado. Contudo, tem de o fazer com grande cautela para no forar as partes ao acordo, o que poria em causa um dos pilares fundamentais da mediao que o empowerment ou princpio dos plenos poderes das partes. A maior interveno do mediador corresponde ao modelo de mediao denominado evaluative mediation, em que o terceiro avalia primeiro a situao e d o seu contributo sobre possveis solues para o problema, antes de as partes comearem a negociar entre si; a menor interveno do mediador caracterstica do modelo denominado facilitive mediation, em que o terceiro se limita a facilitar a comunicao19. Parece-nos que em todas as mediaes o elemento facilitador est presente, pelo que a diferena entre os dois modelos est em que o primeiro tem mais

19

HENRY BROWN; ARTHUR MARRIOTT, ADR principles and practices, 2005, pp. 357 e 358; ALESSANDRA ANGIULI, "Modelli di Conciliazione con Consumatori e Utenti", 2007, p. 81.

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um elemento do que o segundo, que a interveno do terceiro ao nvel do contedo do acordo. Por outro lado, parece-nos que estes modelos so extremos, existindo entre um e outro diversos graus de interveno intermdios20. Como se disse, o terceiro deve decidir em cada caso concreto qual o grau de interveno mais adequado. Refora-se, contudo, uma vez mais a ideia de que a interveno nunca pode ser tal que ponha em causa os plenos poderes das partes. Sendo assim, no nos parece que o critrio da interveno seja adequado para distinguir a mediao da conciliao. sempre a mesma actividade, quer haja mais ou menos interveno do terceiro. Quanto segunda posio, parece-nos que no , de facto adequado distinguir a mediao da conciliao dita extra-judicial. Trata-se da mesma actividade pelo que no se justifica a existncia de dois conceitos diferentes. Contudo, esta posio no tem em conta que a actividade de intermediao tem caractersticas especficas quando no extra-judicial. isto que defendido na terceira posio com a qual concordamos, no essencial. Uma das caractersticas essenciais da mediao o empowerment21. fundamental que as partes mantenham plenos poderes ao longo de todo o processo, sendo livres de formular o acordo como mais lhes convier ou de desistir a qualquer momento, sem qualquer tipo de sano. Essencial, tambm, a confiana no processo e no mediador para que possam dizer tudo o que lhes parea relevante. Se o terceiro intermedirio o juiz que vai decidir a causa no caso de no ser alcanado um acordo, as partes no se sentem vontade para expor os seus verdadeiros interesses e at factos que so relevantes mas no quiseram revelar nas alegaes. Sabem que esto perante quem vai decidir e, apesar de no poderem ser utilizadas na deciso aquelas informaes, no possvel apag-las do esprito do juiz. No podemos identificar esta actividade com a mediao, uma vez que lhe faltam caractersticas essenciais, como so os plenos poderes e a confiana das partes. Vai neste sentido a Directiva 2008/52/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Maio de 2008, relativa a certos aspectos da mediao em matria

20 21

NADJA ALEXANDER, "The mediation metamodel: understanding practice", 2008, pp. 107 e 108. HENRY BROWN; ARTHUR MARRIOTT, ADR principles and practices, 2005, p. 130.

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civil e comercial, que estabelece, no segundo pargrafo da alnea a) do artigo 3., que o conceito de mediao no abrange as tentativas do tribunal ou do juiz no processo para solucionar um litgio durante a tramitao do processo judicial relativo ao litgio em questo. Parece-nos, no entanto, que o conceito de conciliao no deve ser reservado apenas para os casos em que o terceiro o juiz do caso. A conciliao deve ser entendida como o processo em que as partes so auxiliadas por um terceiro a encontrar uma soluo para o seu litgio, sempre que esse terceiro tenha posterior poder de deciso. Cabem, assim, no conceito de conciliao, no s as tentativas de resoluo por acordo efectuadas pelo juiz, num tribunal judicial ou num julgado de paz, ou pelo rbitro, em sede de arbitragem, mas, tambm, por exemplo, as levadas a cabo pelo chefe de dois empregados, se lhe couber a deciso, no caso de eles no chegarem a acordo22.

22

Em sentido contrrio, CHRISTOPHER W. MOORE, O processo de mediao, 1998, p. 51, classifica os terceiros com autoridade como um tipo de mediadores.

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3. Enquadramento geral da conciliao judicialA conciliao judicial no processo civil regulada pelos artigos 509., 508.-A, n. 1, alnea a), e 652., n. 2, no que diz respeito ao processo ordinrio, 787., n. 1, e 791., n. 3, no que diz respeito ao processo sumrio, e 796., n. 1, no que diz respeito ao processo sumarssimo. Quanto aos julgados de paz, a conciliao regulada pelo artigo 26. da Lei dos Julgados de Paz que dispe que compete ao juiz de paz proferir, de acordo com a lei ou equidade, as decises relativas a questes que sejam submetidas aos julgados de paz, devendo, previamente, procurar conciliar as partes. No artigo 63. da mesma lei, apesar de se dispor que se aplica subsidiariamente o Cdigo de Processo Civil, excepciona-se a aplicao dos artigos 501. a 512. A, pelo que no se aplica aos julgados de paz o regime estabelecido para a conciliao no Cdigo de Processo Civil. No se analisa de forma aprofundada a conciliao nos julgados de paz, fazendo-se referncia a estes quando a especificidade do regime o justifique. Ao longo dos prximos captulos, procurar-se- interpretar as referidas normas, por forma a estabelecer o regime aplicvel conciliao judicial. Tradicionalmente, e tambm de acordo com o artigo 9. do Cdigo Civil, a interpretao das normas legais deve ser feita recorrendo aos elementos literal, histrico, sistemtico e teleolgico. O intrprete constri uma interpretao com auxlio destes elementos e esta ser aceitvel apenas se tiver um mnimo de correspondncia com a letra da lei. Contudo, se adoptarmos uma viso realista do Direito23, observamos que uma interpretao realizada nestes moldes redutora. A finalidade da interpretao a de encontrar um sentido para a norma que promova um consenso alargado e durvel (embora sempre aberto e no definitivo), abrangendo todos os grupos ou interesses afectados, naquele caso concreto24. Sendo assim, devem ser tidos em conta na interpretao mais elementos do que os referidos pela doutrina clssica, que

23

ANTNIO MANUEL HESPANHA, O caleidoscpio do direito - O direito e a justia nos dias e no mundo de hoje, 2007, pp. 98 a 100 e 545. 24 ANTNIO MANUEL HESPANHA, "Ideias sobre a interpretao", no prelo, p. 16.

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permitam a apreenso da realidade prtica, para alm do texto, nomeadamente a experincia prtica da interpretao daquela norma, as expectativas de todos os grupos de agentes envolvidos quanto ao sentido que permitir estabilizar as relaes sociais naquele domnio e tambm a Constituio, uma vez que esta funciona como moldura do sistema jurdico, criando expectativas quanto estabilizao das normas, no sentido por ela apontado25. Deve, ainda, recorrer-se aos contributos de outras cincias como a teoria da linguagem e da anlise do discurso, a sociologia, a histria ou a antropologia26, para chegar concluso de qual ser o sentido mais adequado para aquela norma hoje, ou seja qual o sentido que permitir um maior consenso e estabilizao na sociedade, cumprindo-se um dos fins primordiais do direito que a segurana. Pretende-se aqui efectuar uma interpretao de acordo com uma viso realista do Direito, que permita estabelecer o regime mais adequado, que rena um maior consenso e, portanto, possa cumprir a funo estabilizadora do direito, para o instituto da conciliao judicial na actualidade. Nesta perspectiva, comea-se por procurar determinar como que o processo civil entendido na actualidade. Qual a finalidade que deve prosseguir e qual o papel atribudo ao juiz. Em seguida, analisa-se, brevemente, o estado da justia para determinar qual a importncia que pode ter a conciliao judicial. Procura-se definir, ainda, quais as funes que este instituto desempenha no mbito do processo e quais os princpios que o enformam e tcnicas que nele devem ser utilizadas.

3.1. O processo civil na actualidade

fundamental para determinar, quanto a uma norma, qual o sentido que rene maior consenso na sociedade perceber quais os princpios que, na actualidade, regem o ramo do Direito em que ela se insere. Cumpre, por esse motivo, determinar como actualmente concebido o processo civil e qual a finalidade que a sociedade lhe

25 26

ANTNIO MANUEL HESPANHA, "Ideias sobre a interpretao", no prelo, p. 16. ANTNIO MANUEL HESPANHA, O caleidoscpio do direito - O direito e a justia nos dias e no mundo de hoje, 2007, p. 563.

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atribui, um vez que no sentido de alcanar essa finalidade que as normas devem ser interpretadas. O Cdigo de Processo Civil de 1876 comummente classificado como um Cdigo de concepo liberal. Neste modelo, domina o princpio do dispositivo. Entende-se que as partes podem dispor do processo da mesma forma que dispem da relao material que est subjacente, de acordo com o princpio da autonomia privada que caracteriza o Direito Privado. unicamente o interesse das partes que est em causa, pelo que lhes concedida uma liberdade ilimitada para dirigirem o processo como melhor lhes convier. O juiz tem um papel passivo face ao absoluto imprio da vontade das partes27. A ele cabe-lhe apenas decidir o que lhe pedem que decida. O processo essencialmente um processo escrito, atribuindo-se um valor extremo forma como meio de garantia das partes. Esta necessidade de certeza jurdica, que se reflecte na reduo dos poderes e discricionariedade do juiz ao mnimo indispensvel, pode ser vista como uma reaco arbitrariedade dos anteriores Estados Absolutistas e dos seus juzes28. A partir dos anos 20 do sculo XX, este modelo abandonado. Com o incio da ditadura, esta concepo deixa de ser considerada adequada, pelo que se consagra, atravs das vrias reformas, em especial a operada pelo Decreto n. 12.353, de 22 de Setembro de 1926, e mais tarde tambm no Cdigo de 1939, o paradigma autoritrio do processo civil29. Nesta concepo, o juiz o sujeito processual mais relevante e o princpio dominante o princpio do inquisitrio. atribudo ao processo um fim publicstico. O principal objectivo deixa de ser a satisfao de um interesse individual das partes para passar a ser a afirmao da norma material e a prossecuo de interesses pblicos de grau superior30. Deixam de ser as partes as donas do processo, na medida em que mais do que um interesse privado est em causa um interesse colectivo que no pode ser

27

MARIANA FRANA GOUVEIA, "Os poderes do juiz cvel na aco declarativa - Em defesa de um processo civil ao servio do cidado", 2007, p. 48. 28 ANTNIO MANUEL HESPANHA, Cultura jurdica europeia - Sntese de um milnio, 2003, p. 246. 29 MARIANA FRANA GOUVEIA, "Os poderes do juiz cvel na aco declarativa - Em defesa de um processo civil ao servio do cidado", 2007, p. 48. 30 LUS CORREIA DE MENDONA, "80 anos de autoritarismo: uma leitura poltica do processo civil portugus", 2006, p. 435.

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deixado nas mos destas. Aps o momento inicial em que a parte toma a deciso de iniciar o processo, o juiz passa a ter absoluto controlo do processo. Tem amplos poderes de impulso sucessivo, em matria de prova e mesmo no momento da deciso, atravs da generalizao dos juzos de equidade31. O que se busca a verdade material, sendo dados aos juzes os poderes necessrios para a prosseguir. Diminui-se o peso da forma, consagrando-se o princpio da oralidade. H quem defenda, como LUS CORREIADE

MENDONA32, que este paradigma

autoritrio do processo civil se mantm at hoje, uma vez que o princpio do inquisitrio continua a ser estruturante do nosso processo. Defende o autor que, ao invs de modificar o paradigma, a Reforma de 95/96 reforou o carcter autoritrio do processo, atribuindo ao juiz um maior nmero de poderes, como investigar factos instrumentais, dirigir formalmente o processo ou providenciar pelo suprimento de falta de pressupostos processuais susceptveis de sanao33. A maioria dos autores, contudo, no concorda com a posio de que o actual processo civil autoritrio34. O processo civil actual atribui amplos poderes ao juiz, mais at do que antes da Reforma de 95/96. Contudo, atribuir poderes ao juiz no significa, automaticamente, a consagrao de um sistema autoritrio35. Uma vez mais, o sentido a atribuir s normas tem de ser aquele que gera um maior consenso na sociedade36 e, em democracia, dificilmente se pode defender que uma interpretao no sentido de uma concepo autoritria do processo seja aquela que permite a concordncia do maior nmero de pessoas.

LUS CORREIA DE MENDONA, "Vrus autoritrio e processo civil", 2007, p. 71. Entre outros textos, LUS CORREIA DE MENDONA, "80 anos de autoritarismo: uma leitura poltica do processo civil portugus", 2006. 33 LUS CORREIA DE MENDONA, "80 anos de autoritarismo: uma leitura poltica do processo civil portugus", 2006, p. 431. 34 PAULO PIMENTA, A fase do saneamento do processo antes e aps a vigncia do novo cdigo de processo civil, 2003, p. 109; MARIANA FRANA GOUVEIA, "Os poderes do juiz cvel na aco declarativa - Em defesa de um processo civil ao servio do cidado", 2007, p. 65. 35 JOS CARLOS BARBOSA MOREIRA, "O neoprivatismo no processo civil", 2005, p. 3. 36 ANTNIO MANUEL HESPANHA, O caleidoscpio do direito - O direito e a justia nos dias e no mundo de hoje, 2007, p. 110.32

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Ao princpio do dispositivo e ao princpio do inquisitrio acrescentou-se em 95/96 o princpio da cooperao. Na conjugao entre estes princpios reside a chave para estabelecer o paradigma do actual processo civil. O princpio da cooperao no deve ser entendido como uma imposio s partes de que abdiquem dos seus interesses pessoais para auxiliarem o tribunal a chegar a um resultado justo. No encerra, to pouco, uma viso utpica do processo, em que se assume que as partes conseguem pr de parte o conflito e expor os factos de forma racional e isenta37. Este princpio tem duas vertentes. A primeira diz respeito postura das partes; a segunda postura do juiz. Enquanto dever das partes ele deve ser entendido como a concretizao no processo civil do princpio da boa f, que um princpio basilar de toda a nossa ordem jurdica. s partes no exigido que abdiquem dos seus interesses, apenas que ajam correctamente, isto , que tenham um comportamento tico na prossecuo dos seus interesses38. Enquanto dever do juiz, reflecte o reconhecimento de que na sociedade actual no admissvel uma justia em que o juiz abstrai totalmente da realidade, perdendose em formalismos e ritualismos que afastam as partes da justia39. Hoje em dia tem de considerar-se legitimada apenas a justia que devidamente fundamentada, isto , aquela que se preocupa com a verdadeira pacificao do conflito, tornando a deciso compreensvel para as partes. No que diz respeito postura do juiz, o dever de cooperao deve ser entendido na perspectiva de uma justia pedaggica e prxima das partes. O juiz deve assumir uma postura de igualdade em relao s partes, tornando compreensveis para elas os seus actos e decises. Deve, simultaneamente,

37

Defendem que o princpio da cooperao encerra uma viso utpica do processo civil LUS CORREIA DE MENDONA, "Vrus autoritrio e processo civil", 2007, pp. 90 e 91, e PAULA COSTA E SILVA, Acto e processo, 2003, pp. 112 e 113. 38 MARIANA FRANA GOUVEIA, "Os poderes do juiz cvel na aco declarativa - Em defesa de um processo civil ao servio do cidado", 2007, p. 54; ANTNIO MENEZES CORDEIRO, Litigncia de m f, abuso do direito de aco e culpa in agendo, 2006, p. 92. 39 CARLOS ALBERTO LVARO DE OLIVEIRA, "Poderes do juiz e viso cooperativa do processo", 2003, p. 186.

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assumir uma postura de verdadeira preocupao com a resoluo do conflito entre as partes40. Entendido assim o papel do juiz, encontram-se justificados os poderes inquisitrios que lhe so atribudos. Estes servem, no para a busca da verdade material, que se prende com a ideia da existncia de um interesse pblico no processo, mas para permitir ao juiz fazer corresponder, sempre que isso estiver ao seu alcance e sem pr em causa o princpio do dispositivo, a realidade intra-processual e a extraprocessual, na medida em que uma deciso que consiga esta correspondncia pacifica verdadeiramente o conflito porque compreensvel para as partes. H quem defenda que o modelo de processo civil mais adequado aos nossos dias o que retira os poderes inquisitrios ao juiz, voltando a conferir s partes o controlo absoluto do processo41. Trata-se de um modelo prximo do liberal, apesar de no to extremado. Este modelo dito garantista no pode ser considerado o mais adequado ao nosso contexto social, na medida em que no revela qualquer preocupao com a correspondncia entre as realidades intra-processual e extraprocessual. Uma soluo muito distante da realidade no compreensvel para as partes e, nessa medida, no pacifica o conflito. Os tribunais servem para resolver os conflitos dos cidados e nessa ptica que devem ser entendidas as normas do processo civil. O modelo do actual Cdigo de Processo Civil o que permite a realizao de uma justia preocupada com os direitos fundamentais das partes, centrada nos seus interesses, mas tambm preocupada com a efectiva utilidade das suas decises, isto , a resoluo efectiva do conflito das pessoas42. O modelo do actual processo civil , ainda, um modelo de flexibilidade, em que o juiz deve conduzir o processo da forma que entender mais adequada ao caso concreto, com absoluto respeito pelos direitos fundamentais das partes,

40

MARIANA FRANA GOUVEIA, "Os poderes do juiz cvel na aco declarativa - Em defesa de um processo civil ao servio do cidado", 2007, p. 55. 41 JUAN MONTERO AROCA, Los principios polticos de la nueva Ley de Enjuiciamiento Civil, 2001, pp. 189 e 190; FRANCO CIPRIANI, "El proceso civil entre viejas ideologas y nuevos eslganes", 2006, p. 93; LUS CORREIA DE MENDONA, "Vrus autoritrio e processo civil", 2007, p. 72. 42 MARIANA FRANA GOUVEIA, "Os poderes do juiz cvel na aco declarativa - Em defesa de um processo civil ao servio do cidado", 2007, p. 56.

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nomeadamente o dispositivo, o contraditrio e o direito de recurso43. O formalismo muito importante para garantia das partes e organizao e disciplina do processo. Contudo, pode ocorrer que, em vez de contribuir para a realizao do Direito, acabe por impedir a sua realizao ou retard-la por um perodo irrazovel44. Da que seja desejvel uma certa flexibilidade do processo. Esta flexibilidade consagrada no Cdigo de Processo Civil atravs do princpio da adequao formal artigo 265.-A e no Regime Processual Experimental, que consagra no artigo 2. o dever de gesto processual do juiz. De acordo com este dever, o juiz tem de adaptar as regras processuais para garantir o melhor andamento possvel do processo45. Esta necessidade de flexibilidade denota o reconhecimento de que as aces propostas em tribunal so diferentes, seja pelo valor envolvido, seja pela qualidade dos sujeitos (por exemplo se so empresas ou particulares), seja, ainda, pela relao mais prxima e duradoura ou pontual entre as partes. Conclui-se que as normas do processo civil, nomeadamente as relativas conciliao judicial, devem ser interpretadas no sentido que permita prestar um melhor servio aos cidados. Ser esse o sentido que permite alcanar um maior consenso na sociedade, uma vez que a finalidade do processo civil, actualmente, a de permitir encontrar a soluo mais adequada ao caso concreto, ou seja, aquela que satisfaa da maneira mais cabal os interesses das partes.

3.2. Funo da conciliao judicial

Olhando para as estatsticas da justia, constata-se que o tempo de pendncia de uma aco em mdia de 25 meses46, tempo excessivamente longo para quem quer resolver um conflito. Obter uma deciso judicial , actualmente, muito demorado

MARIANA FRANA GOUVEIA, "Os poderes do juiz cvel na aco declarativa - Em defesa de um processo civil ao servio do cidado", 2007, p. 64. 44 CARLOS ALBERTO LVARO DE OLIVEIRA, "O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo", 2006, p. 265. 45 MARIANA FRANA GOUVEIA, Regime processual experimental anotado, 2006, p. 15. 46 Dado relativo s aces cveis declarativas, com excepo das aces de divrcio e separao judicial de pessoas e bens, de inventrio e dos processos especiais de recuperao da empresa e de falncia/insolvncia, findas na 1. Instncia, em 2006. Disponvel em http://www.dgpj.mj.pt/sect ions/estatisticas-da-justica/informacao-estatistica/estatisticas-dos/caracterizacao-de/anexos3038/justi ca-civel-2006/downloadFile/file/Civel2006.pdf?nocache=1208353085.77, consultado em 11/02/2009.

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e oneroso. Observa-se, tambm, que as normas jurdicas so muito tcnicas e, na maior parte das vezes, imperceptveis para um no jurista. Imperceptveis so tambm os rituais e regras dos tribunais. Tudo isto afasta as pessoas da justia. Nos tribunais observam-se apertadas regras formais quanto forma como os factos devem ser apresentados, os prazos, a forma de provar os factos, o que essencial para garantir a certeza jurdica. Contudo, perde-se, por causa de todas as formalidades, o contacto com a realidade e com o problema que preocupa as partes. Na maior parte das vezes estas nem chegam a ser ouvidas pelo juiz. A verso que este conhece da histria a verso apresentada pelos advogados nos articulados, sendo que os factos apresentados nos articulados, longe de coincidirem com os factos verdadeiros, so recortes da realidade feitos pelos advogados, tendo em conta a norma jurdica que entendem aplicar-se ao caso47. Este excessivo afastamento das pessoas e da realidade no desejvel na resoluo de conflitos. Isso observvel na sociedade atravs do surgimento e cada vez maior desenvolvimento dos meios de resoluo alternativa de litgios, cuja filosofia passa pela proximidade s pessoas e preocupao com o seu conflito48. observvel, tambm, atravs da forma como o processo civil actualmente concebido, nomeadamente como um processo em que o juiz est prximo das partes, procurando, com todos os meios ao seu alcance, uma soluo que pacifique verdadeiramente o litgio das pessoas. A tentativa de conciliao cumpre, neste enquadramento, uma dupla funo. A primeira a de permitir ao juiz ouvir a histria contada pelas partes, o que lhe facultar uma melhor percepo da realidade e daquilo que est em causa para as pessoas. Esta uma funo da audincia preliminar em geral. Contudo, no cumprimento das restantes finalidades referidas no artigo 508.-A, nomeadamente a discusso da matria de facto assente ou dos pontos a incluir na base instrutria e no

47 48

MARIANA FRANA GOUVEIA, A causa de pedir na aco declarativa, 2004, pp. 70 e 71. PAULA COSTA E SILVA, "De minimis non curat praetor. O acesso ao sistema judicial e os meios de resoluo de controvrsias: alternatividade efectiva e complementaridade", 2008, p. 736, entende que a forma de compreender o direito de acesso justia est a mudar, no se podendo j identificar com o direito de acesso aos tribunais. Sobre as causas do desenvolvimento dos meios de resoluo alternativa de litgios, MAURO CAPPELLETTI; BRYANT GARTH, "Settlement of disputes out of court: A comparative report on the trend toward conciliation", 1983, p. 2.

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esclarecimento de excepes o papel principal tende a ser ocupado pelos advogados. Da que uma das funes da tentativa de conciliao possa ser a de permitir ao juiz contactar com a verso das partes de uma forma mais aprofundada. Permite-lhe estabelecer uma relao mais prxima com elas e enquadrar os factos alegados no seu contexto, possibilitando-lhe alcanar uma maior correspondncia entre realidade intra-processual e extra-processual. Mesmo quando a tentativa de conciliao for realizada fora da audincia preliminar possvel ela ter esta funo se for a primeira vez que as partes falam com o juiz. Actualmente, esta funo no existe nos tribunais judiciais. Em regra, os juzes no incitam as partes a falar e a contar oralmente a sua verso da histria. O contrrio se passa nos julgados de paz, em que sempre dada a palavra s pessoas, nos termos do artigo 57. da Lei dos Julgados de Paz. Ouvir as pessoas possibilita a sua aproximao justia e permite-lhes sentir que algum est realmente preocupado com a resoluo do seu problema. Contudo, o objecto do processo s pode ser alterado nas situaes excepcionais dos artigos 273. e 506. do Cdigo de Processo Civil49, pelo que pode dar-se o caso de as partes alegarem factos novos ao contarem a sua histria e aperceberem-se na sentena de que nada do que disseram foi tido em conta. Neste caso, ao invs de contribuir para uma maior proximidade das partes ao processo, pode gerar-se um afastamento maior em relao justia, porque as partes acabam por no compreender o que se passou. A soluo poder passar, uma vez mais, pela postura do juiz, que deve procurar explicar s partes como o processo funciona, antes de as ouvir. A segunda e principal funo da tentativa de conciliao cumpre a obteno de uma soluo consensual para o caso. Como se referiu observa-se um grande desenvolvimento dos meios de resoluo alternativa de litgios no nosso pas nos ltimos anos. Isso denota a compreenso por parte da sociedade de que h outras formas de decidir um litgio, que no passam pela deciso do juiz, e mesmo que a soluo de entregar a outrem a deciso do caso nem sempre a mais adequada. Ao invs de aguardar anos por uma deciso que d razo a uma ou outra parte pode ser

49

Sobre a alterao do objecto, JOS LEBRE DE FREITAS, Introduo ao processo civil, 2006, pp. 183 a 186, e MARIANA FRANA GOUVEIA, A causa de pedir na aco declarativa, 2004, pp. 305 a 310.

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mais vantajoso tentar negociar, directamente com a outra parte ou com auxlio de um terceiro, uma soluo consensual que pacifica o conflito, uma vez que ambas as partes sentem que ganharam algo. Em concluso, no estado actual da justia, a conciliao judicial pode, por um lado, contribuir para o proferimento de uma deciso final melhor, na medida em que representa um momento de dilogo entre todos os sujeitos processuais. Entende-se por melhor uma deciso mais de acordo com a realidade e, por esse motivo, mais compreensvel e legitimada, e uma deciso que as partes sentem mais prxima porque tiveram ocasio de expor os seus interesses e argumentos e sentiram que o juiz as ouviu. Por outro lado, a conciliao judicial representa a possibilidade de uma soluo alternativa deciso do juiz, nomeadamente atravs de um acordo, o que permite satisfazer os interesses de ambas as partes, ao contrrio da deciso adjudicatria em que uma parte ganha e a outra perde. Para alm disso, e apesar de esta ser a razo menos relevante, este tipo de soluo permite evitar os inconvenientes que a justia actual apresenta, nomeadamente, a morosidade.

3.3. Caractersticas gerais da conciliao judicial

Todo o processo civil orientado para a obteno da soluo jurdica para o caso. Por exemplo, quando os advogados elaboram os articulados esto a pensar nos factos que so necessrios para preencher as normas jurdicas que julgam aplicveis. Tambm quando se faz a seleco da matria de facto deve seleccionar-se os factos que permitem preencher a previso das normas potencialmente aplicveis. Factos laterais, que no encaixam em nenhuma previso normativa, como, por exemplo, histrias antigas, so considerados irrelevantes. Irrelevantes so tambm, em princpio, as emoes das partes. O objectivo da conciliao judicial no o de obter a soluo jurdica para o caso. O seu objectivo o de encontrar uma soluo consensual para o problema. Nesta fase processual devolve-se a responsabilidade s partes para que resolvam o seu problema. So auxiliadas pelo juiz mas este deve abandonar a sua postura de julgador

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para assumir um papel em que a deciso no lhe compete. Como se defendeu no ponto 2.3 a conciliao distingue-se da mediao por naquela o empowerment estar posto em causa. Na conciliao, as partes no tm plenos poderes, isto , no tm um controlo absoluto sobre o contedo do procedimento, uma vez que o terceiro que as auxilia na obteno de um acordo tem poder decisrio, caso o acordo se frustre. Por esse motivo, h informao que as partes guardam para si e interesses que preferem no revelar com receio de que isso possa influenciar a posterior deciso do juiz. Tendo em conta esta equivalncia entre estes meios de resoluo de litgios, o procedimento da conciliao judicial deve ser construdo sobre o da mediao, fazendo as adaptaes necessrias, tendo em conta as diferenas existentes. A postura do juiz e as tcnicas que usa devem ser baseadas nas utilizadas na mediao, uma vez que o resultado que se pretende alcanar idntico. O instituto da mediao est largamente estudado no estrangeiro e um pouco tambm em Portugal. A utilizao por parte dos juzes destes estudos no exerccio da sua funo conciliadora pode representar um contributo importante para o desenvolvimento da conciliao judicial e em especial para a sua qualidade,. Tambm a filosofia desta fase processual deve ser prxima da da mediao. Deve privilegiar-se a informalidade, a voluntariedade e a satisfao dos verdadeiros interesses das partes. necessrio abandonar a ideia de que a soluo do Direito sempre a melhor e mais adequada. A soluo mais adequada, no mbito da conciliao judicial, a que corresponder vontade das partes. 3.4. Estrutura e tcnicas do processo de mediao na conciliao judicial

J foi feita referncia s tcnicas utilizadas na mediao. Procura-se neste ponto enunciar brevemente quais as principais fases da mediao e algumas das ferramentas utilizadas pelos mediadores para, posteriormente, avaliar se possvel transpor esta estrutura e conhecimentos para o campo da conciliao judicial.

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possvel identificar seis fases principais na mediao, apontadas na doutrina com algumas variaes50. Quando se inicia a mediao, o mediador acolhe as partes e explica-lhes as regras do jogo. Transmite-lhes quais as principais caractersticas da mediao, nomeadamente que tm plenos poderes quanto ao contedo discutido na sesso, podendo desistir a qualquer momento, e que se trata de um processo confidencial. A segunda fase a da percepo e anlise comum dos problemas que esto em discusso. Nesta fase, o mediador d a palavra a cada uma das partes para que conte a sua verso da histria, sendo o principal objectivo o de permitir que fique claro o que est a ser discutido. Uma das tcnicas utilizadas a da reformulao. O mediador aproveita o que a parte acabou de dizer e repete-o por palavras suas (por exemplo: se bem compreendi, o que disse foi). Desta forma, por um lado, a parte sente que est a ser escutada e compreendida e, por outro lado, pode permitir uma melhor compreenso pela outra parte do que foi dito, uma vez que a linguagem do mediador tender a ser mais clara e menos emotiva. Compreendido o problema e a posio que cada uma das partes assume, passase para a terceira fase. Trata-se da fase da pesquisa dos objectivos comuns e dos interesses. Por trs das posies assumidas pelas partes esto os interesses e necessidades que as levam a ter aquela posio. Se se conseguir revelar esses interesses e necessidades, ser mais fcil encontrar uma soluo satisfatria, na medida em que as posies so rgidas, pelo que a nica forma de se harmonizarem atravs de cedncias. Se se estiver a negociar tendo em conta os interesses, o leque de possibilidades muito maior porque possvel encontrar muitas formas diferentes de satisfazer interesses. O objectivo ser, ento, o de encontrar uma soluo que satisfaa todos os interesses envolvidos, sem necessidade de cedncias. Nesta fase, muito importante o mediador estar extremamente atento. As partes podem revelar muito atravs, por exemplo, da sua linguagem corporal e o mediador, se estiver atento a esses sinais e souber interpret-los correctamente, poder conduzir a discusso para a direco mais adequada.50

HENRY BROWN; ARTHUR MARRIOTT, ADR principles and practices, 2005, pp. 154 a 188; KIMBERLEE K. KOVACH, "Mediation", 2005, pp. 306 a 308; KENNETH KRESSEL, "Mediation revisited", 2006, pp. 736 e 737; SIMON ROBERTS; MICHAEL PALMER, Dispute processes, 2005, pp. 174 e 176.

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So inmeras as ferramentas que podem ser utilizadas. o caso das tcnicas de pergunta51. Enunciam-se algumas a ttulo de exemplo. As perguntas abertas so abrangentes visando a obteno de informaes gerais sobre o contexto e as pessoas envolvidas (Fale-nos sobre a sua empresa). As perguntas circulares tm como objectivo que a pessoa d a sua opinio sobre determinados aspectos da outra (O que lhe parece que o Senhor A deseja e que nunca lhe revelou?). As perguntas hipotticas servem para explorar cenrios futuros e testar ideias (E se as coisas no futuro se passassem da forma X, como acha que reagiriam os condminos?). A fase seguinte a do trabalho das emoes e valores em jogo. Na maior parte dos conflitos h uma grande carga emocional escondida. Pode ser importante explorla, porque resolvendo as questes emocionais haver, provavelmente, uma maior abertura para alcanar um acordo. Aqui, pode ser importante a tcnica das perguntas cruzadas. Trata-se de um mtodo atravs do qual o mediador tenta que a parte perceba como se sentiria se estivesse do outro lado. levada a analisar de fora os comportamentos que teve para com a contraparte. A pergunta pode ser colocada, por exemplo da seguinte forma: Como que o senhor se sentiria se lhe fizessem X ou dissessem Y?. A fase seguinte a de criao de hipteses em alternativa52. A ideia que as partes pensem em todas as formas possveis de resolver o problema para depois se escolher a melhor. Nunca deve ficar-se logo com a primeira soluo que as partes apresentam. Deve procurar-se esgotar a sua imaginao e criatividade porque muitas vezes a melhor soluo pode no ser a mais bvia. Uma tcnica que se pode utilizar a do brainstorming ou chuva de ideias. Pede-se s partes que elenquem todas as solues sem qualquer tipo de restries, nomeadamente quanto exequibilidade. As partes so incentivadas a ir alm das solues bvias para buscar outras mais criativas nas quais nunca tinham pensado. O mediador vai apontando tudo para mais tarde se trabalhar a partir daquelas hipteses.

51 52

ALFRED BENJAMIN, A entrevista de ajuda, Traduo de Urias Corra Arantes, 1996, pp. 87 a 93. CHRIS GUTHRIE, "Option generation", 2005, p. 219 e 220; PETER J. CARNEVALE, "Creativity in the outcomes of the conflict", 2006, pp. 427 e 428.

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Seguidamente, passa-se avaliao dessas hipteses. Uma a uma so analisadas pelas partes, para ver se so exequveis e se satisfazem os seus interesses. Quando uma hiptese considerada vlida e elegvel, passa a constituir uma opo. Delimitadas as opes, passa-se escolha da melhor de entre elas. Aps a escolha pelas partes, deve avaliar-se se foram exploradas todas as hipteses, se a opo satisfaz todos os interesses das partes a curto e a longo prazo e se a opo pode realmente ser implementada. Se o resultado desta avaliao for positivo, passa-se ltima fase, que a da redaco do acordo. Esta redaco pode ser feita pelas prprias partes ou pelo mediador, com a posterior confirmao pelas partes de que aquilo que pretendem. H, ainda, uma outra ferramenta que pode ser utilizada em vrias fases da mediao. Trata-se do caucus ou reunies separadas53. O mediador suspende a sesso para falar com cada uma das partes em particular. Esta ferramenta pode ser muito til, na medida em que permite ao mediador perceber melhor o que est em causa. As partes sentem-se mais vontade e revelam factos que no so capazes de revelar na presena da outra parte. No entanto, h muitos mediadores que evitam utiliz-la porque pode facilmente pr em causa a imparcialidade do mediador e a confiana que as partes tm nele. A parte pode ficar desconfiada do que a contraparte esteve a discutir com o mediador, sentindo at que h uma aliana entre o mediador e a contraparte. Por este motivo, esta ferramenta deve ser utilizada com muita cautela, havendo sempre o cuidado de fazer reunies separadas com cada uma das partes, tendo as reunies sensivelmente a mesma durao. Como vimos no ponto 2.3, a diferena entre a mediao e a conciliao resulta da circunstncia de, na segunda, o empowerment estar posto em causa, uma vez que as partes podem sentir-se constrangidas por estarem perante quem, posteriormente, vai decidir o seu caso. Parece-nos que os mtodos e ferramentas da mediao podem ser transpostos e utilizados na conciliao. As tcnicas referidas no so incompatveis com a conciliao, visto que no agravam a falta de empowerment das partes. Contudo, o caucus parece-nos desadequado ao instituto da conciliao, por colocar em causa a

53

Ver HENRY BROWN; ARTHUR MARRIOTT, ADR principles and practices, 2005, p. 174.

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imparcialidade do tribunal. Dado que o juiz tem de decidir se as partes no chegarem a acordo, a sua imparcialidade e a confiana das partes no tribunal devem ser preservadas o mais possvel.

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4. Papel do juizA nica norma que d algumas indicaes sobre o papel do juiz na conciliao judicial o n. 3 do artigo 509.. Este artigo estabelece que a tentativa de conciliao presidida pelo juiz e ter em vista a soluo de equidade mais adequada aos termos do litgio. possvel configurar dois modelos de actuao por parte do juiz na conciliao judicial. No primeiro, o juiz est numa posio de superioridade em relao s partes. Ele controla totalmente o contedo do acordo, conduzindo as partes a um acordo que considera justo e equitativo. Trata-se do modelo jurisdicionalstico. No segundo, o juiz controla o processo apenas do ponto de vista formal, conduzindo-o de forma a fomentar o dilogo, mas sem interferir ao nvel do contedo do acordo, uma vez que esse cabe apenas s partes definir. Trata-se do modelo contratualista. Nos pontos seguintes exposto o modelo jurisdicionalstico, seguindo-se de perto os escritos de PESSOA VAZ, uma vez que foi o autor que mais aprofundadamente estudou este problema. De seguida, procura-se explicar porque que se entende que j no este, mas sim o modelo contratualista, o mais adequado no contexto actual. luz destas concluses faz-se a interpretao do n. 3 do artigo 509., nomeadamente quanto a saber o que significa a conciliao ser presidida pelo juiz e em que consiste a soluo de equidade mais adequada aos termos do litgio.

4.1. Teoria jurisdicionalstica

Segundo PESSOA VAZ54, o processo civil portugus publicstico e de inquisitrio moderado. Os fins do processo civil so a verdade e a justia, pelo que o papel do juiz e os poderes de que dispe devem ser os necessrios para alcanar esses fins.

Neste ponto faz-se uma sntese das principais ideias expressas pelo autor no Ttulo VI da obra ALEXANDRE MRIO PESSOA VAZ, Direito processual civil - Do antigo ao novo cdigo, 2002, p. 257 e 275,

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Defende o autor que se pode entender a consagrao dos meios de resoluo convencional dos litgios, entre os quais a conciliao, de duas formas. Por um lado, como representando uma prova de confiana do legislador e do pblico na gesto da coisa judiciria por parte dos tribunais e um sintoma de progresso social, traduzido na observao quase espontnea dos comandos jurdicos e aceitao espontnea das decises dos tribunais. Por outro lado, pode ser entendida como a traduo do desprestgio generalizado dos tribunais, nomeadamente a falta de f na eficincia do sistema judicial e desconfiana acerca do acerto e iseno das sentenas judiciais, que levam as pessoas a preferir uma soluo consensual. Se se entender que a segunda tese, dita negativista ou de desconfiana, a mais correcta ento aos tribunais no pode ser atribuda outra funo que no seja de mero controlo formal do acordo e de elogio abstracto das vantagens da soluo pacfica dos litgios. Se se optar pela primeira, dita positivista ou de confiana, ento o juiz fiscaliza e coopera com as partes, paternalisticamente, na formulao dos termos concretos da soluo conciliatria, com o objectivo de que, em princpio, esta soluo no se afaste, mais do que legalmente e racionalmente consentido, da sentena que viria a ser proferida se no houvesse soluo convencional55. A primeira traduz a viso contratualista ou dispositiva da conciliao. A segunda a viso jurisdicionalstica. O autor entende que na conciliao o juiz deve exercer um controlo formal sobre os requisitos da conciliao mas tambm um controlo substancial ou tutelar sobre o contedo. Aponta trs argumentos para a defesa desta teoria jurisdicionalstica da conciliao. O primeiro um argumento que o autor apelida de lgico-dogmtico: na conciliao o juiz deve exercer poderes de controlo sobre o contedo, uma vez que esse papel o que melhor se adequa orientao publicstica do processo civil. A nova forma, por contraposio anterior viso liberal do processo, de equilbrio entre os princpios de autoridade e de liberdade pessoal, em que h uma clara prevalncia da primeira tem, necessariamente, repercusses em todas as actividades processuais. O segundo um elemento comparatstico: nos processo

complementando-se com algumas outras expressas na sua tese de doutoramento (ALEXANDRE MRIO PESSOA VAZ, Poderes e deveres do juiz na conciliao judicial, Tomo I, 1976). 55 ALEXANDRE MRIO PESSOA VAZ, Poderes e deveres do juiz na conciliao judicial, Tomo I, 1976, pp. 30 a 59.

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inquisitrios, ento consagrados em vrios pases, tinham sido abolidos os negcios processuais como actos de pura disposio material do processo, conferindo-se um pendor vincadamente jurisdicionalstico conciliao e transaco. Por fim, apresentado um argumento de interpretao da lei, sustentando-se que o alcance da expresso soluo de equidade (no artigo 513. da verso original do Cdigo de Processo Civil de 1939 e actualmente no artigo 509.) exprime a ideia de que o juiz deve exercer uma actividade de tipo jurisdicional, embora norteada pelos princpios da equidade e no pelas regras de direito estrito56. De acordo com esta concepo da conciliao, o juiz deve recusar a homologao do acordo sempre que a soluo se afigurar injusta ou inqua. Por exemplo, um acordo que incida sobre um direito certo e incontestvel no deve ser homologado, na medida em que isso significa uma denegao parcial de justia para a parte titular desse direito certo. Tal homologao implica um desvio dos fins especficos da funo jurisdicional, nomeadamente a emanao de sentenas que correspondam verdade e justia substancial. Para PESSOA VAZ, a opo entre um controlo meramente formal do acordo e um controlo substancial coloca-se como uma opo entre o predomnio absoluto da vontade negocial (dispositiva e construtiva) das partes dentro do processo, sobrepondo-se opinio e at conscincia dos juzes ou a limitao da actividade dispositiva dos pleiteantes pelos poderes inquisitrios do juiz, ao qual incumbe no processo publicstico moderno a definio das relaes controvertidas segundo um rigoroso critrio de apuramento da verdade material, por forma a que os negcios processuais possam considerar-se como equivalentes efectivos e substanciais das prprias sentenas judiciais57. A soluo de equidade que o juiz busca traduz-se numa soluo de ajustamento da lei, para os casos em que a norma aplicvel ao caso concreto justa mas deve ser moldada, tendo em conta as particularidades desse mesmo caso, ou numa soluo de

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ALEXANDRE MRIO PESSOA VAZ, Poderes e deveres do juiz na conciliao judicial, Tomo I, 1976, pp. XXI e XXII. 57 ALEXANDRE MRIO PESSOA VAZ, Direito processual civil - Do antigo ao novo cdigo, 2002, pp. 262 e 263.

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correco de um preceito legal que se afigura injusto luz dos critrios decorrentes dos prprios princpios da moral ou do ideal de justia natural58. O juiz deve sugerir a soluo para o caso, ajustada ou corrigida pelos seus critrios de equidade, como sendo a soluo mais adequada situao e tentar persuadir as partes para que dem a sua adeso de conscincia. No desejvel que haja presso por parte do juiz para que as partes aceitem. Pretende-se uma soluo com que ambas as partes fiquem intimamente satisfeitas, o que s acontece se a soluo tiver sido aceite por elas livremente59. Para PESSOA VAZ, a conciliao uma figura mista entre a hetero-composio e a auto-composio de litgios, uma vez que assenta tanto na vontade do conciliador como na vontade de ambas as partes60.

4.2. Papel do juiz no contexto actual

Como se referiu no ponto 3.2., a finalidade da conciliao como meio de resoluo de litgios a de permitir a obteno de uma soluo consensual para o problema. Devolve-se s partes o poder e tambm a responsabilidade da resoluo do conflito. Sendo esta a finalidade, no parece adequado defender que o juiz deve controlar o contedo em absoluto, propondo a soluo que considera ser a indicada de acordo com critrios de equidade, como entende PESSOA VAZ. Tal posio est de acordo com uma concepo dita autoritria ou publicista do processo civil. Nesta concepo, que j no a vigente no nosso ordenamento jurdico61, o processo tem uma finalidade pblica; mais do que satisfazer uma pretenso das partes, o objectivo a prossecuo de interesses pblicos superiores,

ALEXANDRE MRIO PESSOA VAZ, Direito processual civil - Do antigo ao novo cdigo, 2002, p. 269. Cumpre referir que esta concepo jurisdicionalstica da conciliao a defendida tambm por ALBERTO DOS REIS, Cdigo de Processo Civil anotado, Vol. III, 2005 (Reimp. de 1950), p. 179, que entende que o juiz deve sugerir s partes a soluo de equidade para o caso, sendo que no julgamento de equidade, o juiz procura fazer justia natural e humana, isto , procura a soluo que lhe ditar a sua conscincia, inspirada em princpios de tica pura". 60 ALEXANDRE MRIO PESSOA VAZ, Direito processual civil - Do antigo ao novo cdigo, 2002, p. 273. 61 V. ponto 3.1.59

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nomeadamente a afirmao da norma legal. Procura-se alcanar a verdade e a justia62. No contexto social actual, este paradigma no adequado. Num Estado de Direito no deve admitir-se uma publicizao daquilo que privado, nomeadamente o litgio das partes, uma vez que isso implica uma expropriao de direitos subjectivos63. Actualmente, o objectivo do processo civil deve ser o de resolver os problemas dos cidados, permitindo encontrar a soluo mais adequada ao caso concreto. Essa soluo pode no passar por uma deciso do juiz. Em muitos casos, a melhor soluo para o caso pode ser aquela que encontrada pelas partes, por acordo. Na conciliao judicial, os poderes dispositivos so ainda mais fortes e os poderes inquisitrios do juiz mais fracos do que no resto do processo. O juiz no deve preocupar-se com a procura da verdade, nem sequer com a correspondncia entre realidade intra-processual e extra-processual. Aquilo que o juiz deve procurar que, atravs do dilogo, as partes decidam qual a melhor soluo para o seu problema. A sua interveno deve, assim, ser ao nvel do procedimento, controlando o contedo apenas em casos excepcionais64. Ao contrrio do que defende PESSOA VAZ, entende-se que a conciliao uma figura de auto-composio de litgios, em que a soluo depende inteiramente da vontade das partes.

4.2.1. Interveno do juiz nos termos do n. 3 do artigo 509.

Assim sendo, a norma que estabelece que a tentativa de conciliao presidida pelo juiz (artigo 509., n. 3, 1. parte) deve ser entendida no sentido de que ao juiz, enquanto presidente, cabe a conduo do processo. A ele cabe a deciso sobre a forma como este se organiza mas no a deciso quanto ao contedo do resultado do processo. Pode dizer-se que a forma pertence ao juiz e o contedo s partes. A expresso presidida no a mais adequada, uma vez que remete para uma posio de desigualdade entre as partes e o juiz, colocando este num nvel superior. De62 63

ALEXANDRE MRIO PESSOA VAZ, Direito processual civil - Do antigo ao novo cdigo, 2002, p. 263. MARIANA FRANA GOUVEIA, Regime processual experimental anotado, 2006, p. 13. 64 V. ponto 5.5.

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acordo com o artigo 266., o juiz deve procurar estar, ao longo de todo o processo, numa posio de igualdade com as partes, de forma a torn-lo compreensvel para estas. A fase da conciliao no excepo, exigindo-se uma ainda maior proximidade com as partes, de forma a fomentar o dilogo e permitir o acordo. De iure constituendo, seria mais adequada a expresso conduzida pelo juiz, que remete para uma ideia de direco sem, no entanto, implicar uma posio de superioridade do juiz. A postura assumida pelo juiz nesta fase deve ser diferente da postura de juiz julgador. O seu papel durante a conciliao aproxima-se do de um mediador, uma vez que o objectivo destes dois meios de resoluo de litgios o mesmo: a obteno de uma soluo consensual construda pelas partes. Durante a conciliao, a proximidade exigida pelo princpio da cooperao (artigo 266.) muito visvel, uma vez que o juiz e as partes esto sentados numa mesa, no gabinete do juiz, todos ao mesmo nvel, tentando encontrar, em conjunto, a melhor soluo para o problema. Por esse motivo, o juiz deve ter uma especial preocupao em manter a imparcialidade. Devido informalidade h uma maior probabilidade de o juiz exprimir opinies que uma das partes compreenda como sendo a favor da outra parte ou mesmo a seu favor. O juiz deve manter-se sempre equidistante em relao s partes, no cedendo a simpatias ou antipatias, nem tentao de proteger a parte mais fraca. Deve haver, tambm, um especial cuidado em manter a neutralidade, entendida no sentido de distncia em relao ao contedo, uma vez que este pertence s partes. O juiz deve colocar de lado preconceitos ou convices pessoais e no tentar influenciar o acordo. Como regra, o juiz no deve fazer propostas ou sugestes, na medida em que isso influencia a vontade das partes65. Na conciliao, o empowerment est, partida, posto em causa, uma vez que as pessoas esto perante uma pessoa com poderes para decidir o seu caso. Se o juiz fizer sugestes, as partes podem sentir-se foradas a aceitar para no o contrariar, com receio de que isso as possa prejudicar se for ele a decidir. Esta situao deve ser evitada, na medida em que o que se pretende um

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Em sentido contrrio, PAULO PIMENTA, A fase do saneamento do processo antes e aps a vigncia do novo cdigo de processo civil, 2003, p. 221.

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acordo que satisfaa realmente os interesses das partes e sane o conflito, o que no acontece perante uma soluo que se viram foradas, ainda que no fosse essa a inteno do juiz, a aceitar. Contudo, esta regra pode ter algumas excepes. Uma vez que ao juiz que cabe o controlo formal do processo, a ele cabe decidir qual a melhor forma de interveno. possvel que num caso, depois de analisar devidamente a situao, o juiz chegue concluso de que sugerir algo no vai colocar em causa a liberdade e vontade das partes e pode ser til para o processo. Nesse caso, deve poder faz-lo. Actualmente, a maior parte dos juzes conduz a tentativa de conciliao de forma intuitiva, sem utilizar qualquer tcnica ou ferramenta especfica, o que torna este meio de resoluo de litgios pouco eficaz. A conciliao judicial torna-se mais eficiente, alcanando-se mais facilmente um acordo satisfatrio para ambas as partes, se o juiz dominar os fenmenos comunicacionais, estudados, por exemplo, pela psicologia, e souber quais as tcnicas a utilizar e a melhor forma de interveno para o dilogo ser produtivo e construtivo. Para alm disso, pode ser til dominar as tcnicas e ferramentas da mediao, adaptando-as depois s especificidades da conciliao. O ideal seria tais matrias fazerem parte da formao dos juzes. S a partir do momento em que comear a ser encarada como um procedimento estruturado, com regras e tcnicas especficas, a conciliao se tornar plenamente eficaz.

4.2.2. Sentido de equidade no n. 3 do artigo 509.

Um dos argumentos apontados para a defesa de uma concepo publicista da conciliao judicial o de que, ao exigir uma soluo de equidade, o n. 3 do artigo 509. pressupe que o juiz controla o contedo do acordo, elegendo a soluo mais justa para o caso concreto. De acordo com o artigo 4. do Cdigo Civil, os tribunais s podem decidir segundo a equidade quando haja disposio legal que o permita, quando haja acordo das partes, se a relao jurdica for disponvel, ou quando as partes tenham

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previamente convencionado o recurso equidade, nos termos relativos clusula compromissria. No artigo 509., estamos perante uma disposio legal que remete para a equidade. possvel encontrar vrias outras disposies no nosso ordenamento jurdico que remetem para a equidade. Assim, por exemplo, o artigo 883. do Cdigo Civil, que remete para a equidade, como critrio supletivo, a determinao do preo de contrato de compra e venda; o artigo 72. do Cdigo Civil, que remete para a equidade quanto s medidas a tomar quando haja duas pessoas com nome idntico; o artigo 2016., que dispe que devem ser atribudos alimentos ao cnjuge que normalmente no teria direito a eles, se tal atribuio corresponder a uma necessidade de acordo com a equidade; e o artigo 22. da Lei da Arbitragem Voluntria66, que remete para a equidade a deciso da prpria causa. As funes da equidade na deciso podem reconduzir-se a quatro categorias, a que correspondem, respectivamente, cada um dos exemplos. Na primeira, a equidade utilizada para quantificar algo que s no caso concreto possvel determinar. Na segunda, no est apenas em causa uma quantificao mas a definio de medidas concretas para resolver o caso. Na terceira, a equidade faz parte da prpria previso da norma, pelo que tem de se recorrer equidade para concluir se se verifica a situao que permite aplicar a estatuio67. Por fim, na quarta, a equidade o nico critrio de deciso da causa. A remisso para a equidade operada pelo artigo 509. no se enquadra em nenhuma destas categorias, na medida em que, neste caso, no a prpria deciso do juiz que deve ser tomada de acordo com critrios da equidade. O que caberia ao juiz avaliar seria se a soluo que as partes alcanaram est de acordo com a equidade. Discute-se o que seja uma soluo de equidade a propsito dos casos em que esta critrio nico de deciso. possvel distinguir na doutrina duas teses.

66 67

Lei n. 31/86, de 29 de Agosto, alterada pelo Decreto-Lei n. 38/2003, de 8 de Maro. FILIPE VAZ PINTO, A equidade como forma de resoluo de litgios no ordenamento jurdico portugus, 2006, p. 18.

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Por um lado, h quem defenda uma noo fraca de equidade68. De acordo com esta noo, a deciso deve ser a que ditada pelo Direito, corrigida ou moldada ao caso. Deve sempre partir-se do Direito vigente na medida em que este, num ordenamento devidamente estruturado, conforme s aspiraes do seu tempo e dotado de um nvel constitucional capaz, exprime, no seu grau mais elevado de desenvolvimento, aquilo que, numa sociedade, considerado justo, tico, adequado e conveniente69 e depois corrigir eventuais injustias que possam decorrer da aplicao do Direito estrito. Por outro lado, h quem defenda uma noo forte de equidade70. Segundo esta noo, a deciso prescinde do Direito. Procura-se a soluo mais adequada para o caso concreto, a qual pode ser inteiramente distinta da consagrada no Direito estrito. criada uma soluo singular para o caso, no podendo ser aplicada a qualquer outro. Tal no significa que estejamos perante uma deciso arbitrria, mas apenas perante um tipo de racionalidade e fundamentao diverso do jurdico71. No artigo 509., a noo consagrada no pode ser a fraca72, na medida em que se trata de uma deciso tomada pelas partes. Nessa medida, no faz sentido defenderse que deva ser uma deciso de Direito estrito corrigido, uma vez que, por um lado, as partes no tm conhecimentos para tomar tal deciso e, por outro, se tal fosse o objectivo, ento seria prefervel o juiz decidir logo por sentena, sem necessidade de interveno das partes. Quando muito esta norma teria de ser interpretada no sentido da consagrao de uma noo forte de equidade. Contudo, como veremos, esta interpretao tambm no parece ser a mais adequada.

a posio por exemplo de ANTNIO MENEZES CORDEIRO, "A deciso segundo a equidade", 1990, p. 271, JOS LEBRE DE FREITAS, Introduo ao processo civil, 2006, p. 36, DRIO MOURA VICENTE, "Mediao comercial internacional", 2005, p. 201, e DIOGO FREITAS DO AMARAL; FAUSTO DE QUADROS; JOS CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Aspectos jurdicos da empreitada de obras pblicas, 2002, pp. 35 e 36. igualmente a posio assumida no Acrdo do Tribunal Arbitral, de 31/03/1993, Vcios na empresa privatizada, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 55, Vol. I, 1995, p. 100. 69 ANTNIO MENEZES CORDEIRO, Da boa f no direito civil, 2001, p. 1204. 70 a posio de LUS DE LIMA PINHEIRO, Arbitragem transnacional, 2005, p. 159. 71 FILIPE VAZ PINTO, A equidade como forma de resoluo de litgios no ordenamento jurdico portugus, 2006, p. 35. 72 PAULA COSTA E SILVA, "Saneamento e condensao no novo processo civil: a fase da audincia preliminar", 1997, p. 237.

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Defendemos atrs que o juiz tem um controlo apenas formal sobre o processo de conciliao. O contedo do acordo pertence inteiramente s partes, no devendo o juiz tentar influenciar o resultado73. O papel do juiz traduz-se em fomentar o dilogo e criar condies para que as partes pensem em solues para o problema e escolham a mais adequada. No contexto actual de pluralismo74, este o melhor entendimento. A soluo do Direito nem sempre a mais adequada. Se possvel alcanar uma soluo em que ambas as partes ganham, ento essa via deve ser explorada, uma vez que actualmente o processo civil tem como finalidade servir da melhor forma possvel o cidado, ajudando a encontrar uma soluo satisfatria para o seu problema e contribuindo para a paz social. Nesta medida, o n. 3 do artigo 509. no pode ser entendido como atribuindo ao juiz a deciso de qual ser a soluo mais adequada para o caso. A soluo mais adequada ser aquela que melhor satisfizer os interesses das partes e estas so, sem dvida, as que esto em melhor posio para saber que soluo essa. Os nicos limites ao contedo do acordo das partes so aqueles que a lei coloca como requisitos para o juiz poder homologar, nomeadamente que as partes tenham disponibilidade para renunciar ou transigir sobre aquela situao jurdica e que a soluo alcanada no seja ilcita. Assim sendo, a remisso para a equidade no n. 3 do artigo 509. no se revela adequada. Trata-se de uma norma inserida no Cdigo de Processo Civil num momento em que o processo civil era autoritrio, sendo o principal objectivo a salvaguarda de interesses pblicos. Da que o resultado da conciliao fosse totalmente controlado pelo juiz. Este partia da soluo da lei e temperava-a de acordo com o que lhe parecia justo e adequado para o caso concreto, sugerindo s partes que aceitassem a soluo, tendo em conta vantagens de uma soluo conciliatria. O positivismo legalista, que marcou o sculo XIX e parte do sculo XX, encontrase ultrapassado. irrealista considerar que nos dias de hoje Direito apenas a lei. Se

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Em sentido contrrio, PAULO PIMENTA, A fase do saneamento do processo antes e aps a vigncia do novo cdigo de processo civil, 2003, p. 222, entende que o juiz se responsabiliza pelo desfecho alcanado, ao contrrio de um mediador. 74 ANTNIO MANUEL HESPANHA, Cultura jurdica europeia - Sntese de um milnio, 2003, pp. 358 e 359.

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nos colocarmos no papel de observadores externos, como os mencionados por HART75, notamos que, na nossa sociedade, os participantes identificam e aplicam como Direito outras regras que no emanam da lei. No actual contexto de pluralismo, a soluo da lei no pode ser encarada como a nica ou como a mais justa em todos os casos. Da mesma forma, a deciso do juiz tambm no deve ser encarada como a melhor em todas as circunstncias. No deve haver receio de confiar a soluo inteiramente s partes, controlando-se a final apenas se a soluo no atenta contra os princpios que regem a nossa sociedade. Entendemos, assim, que, na tentativa de conciliao, o juiz no deve preocupar-se com esta restrio. No deve buscar a soluo de equidade, uma vez que esta norma j no se justifica no contexto actual do direito e do processo civil.

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HERBERT L.A. HART, O conceito de direito, 2007, p. 114.

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5. Regime aplicvel conciliao judicial5.1. Objecto

De acordo com o n. 1 do artigo 509., pode haver tentativa de conciliao quando a causa couber no mbito dos poderes de disposio das partes. O critrio para admitir a tentativa de conciliao parece, assim, ser o da disponibilidade da situao jurdica em causa na aco. No fcil concretizar este critrio76 e tambm no claro que seja o mais adequado. So situaes jurdicas indisponveis aquelas que no podem ser constitudas, modificadas ou extintas por vontade das partes. A nvel processual, a forma de constituir, modificar ou extinguir uma situao jurdica atravs de negcios jurdicos processuais, nomeadamente a confisso, a transaco e a desistncia. Indisponveis so, assim, aquelas situaes que no podem ser objecto destes negcios jurdicos processuais. A aferio da disponibilidade de uma situao jurdica feita por referncia s normas substantivas que a regulam. possvel distinguir entre indisponibilidade relativa e indisponibilidade absoluta. Esta refere-se aos casos em que no permitida nenhum dos negcios referidos77. Aquela refere-se aos casos em que permitido algum ou alguns dos negcios. So exemplos de indisponibilidade absoluta a anulao do casamento fundada na falta de testemunhas (artigo 1642. do Cdigo Civil) e os casos, bastante discutidos78, das aces de investigao da maternidade e da paternidade. No caso do direito de alimentos, possvel constatar que se trata de uma indisponibilidade relativa (artigo 2008. do Cdigo Civil), na medida em que no se pode renunciar a ele, no podendo portanto haver desistncia do pedido, excepto

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ANTNIO SAMPAIO CARAMELO, "A disponibilidade do direito como critrio de arbitrabilidade do litgio", 2006, p. 1243. 77 MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo processo civil, 1997, p. 201. 78 Ver, por todos, JOO DE CASTRO MENDES, Direito processual civil, 1. Vol., 1997, pp. 215 a 224.

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quanto a prestaes vencidas. Contudo, nada impede que haja acordo quanto ao seu montante ou que o ru confesse o pedido. Deve entender-se que o n. 1 do artigo 509. se refere indisponibilidade absoluta. No faria sentido impedir a realizao da tentativa de conciliao havendo margem para uma resoluo consensual, atravs de algum dos negcios processuais referidos. Cumpre, ainda, referir que a disponibilidade no pode ser aferida em geral para um instituto. Por exemplo, se na aco se discute uma questo relativa a alimentos, no possvel concluir-se, partida, que no pode haver conciliao, uma vez que o direito a alimentos um direito indisponvel (artigo 2008., n. 1, do Cdigo Civil). necessrio analisar o pedido e a causa de pedir no caso concreto para aferir se h indisponibilidade79. Assim, se quanto aos alimentos se discute apenas as prestaes vencidas, pode haver conciliao, uma vez que se pode renunciar s prestaes de alimentos vencidas. Deve entender-se, portanto, que o critrio actual da lei o da disponibilidade relativa do direito, aferindo-se, por referncia ao objecto do processo em concreto, se as partes podem praticar quanto a ele algum negcio processual. De iure constituendo, este critrio no parece ser o mais adequado80. Nos casos de indisponibilidade absoluta , ainda assim, possvel haver desistncia da instncia, uma vez que tal no implica uma desistncia do direito subjectivo. Pode configurar-se um caso em que, aps ouvir a contraparte, o autor compreenda as suas razes e queira desistir da instncia. Assim, parece-nos que no faz sentido impor como limite realizao da tentativa de conciliao a disponibilidade da situao jurdica. A mera realizao da tentativa de conciliao no pe em causa nenhum direito das partes. Sendo assim, a deciso deve caber ao juiz, que analisa se a tentativa de conciliao

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, "A conveno de arbitragem: contedo e efeitos", 2008, pp. 86 e 87. Na Lei da Arbitragem Voluntria (Lei n. 31/86, de 29 de Agosto, alterada pelo Decreto-Lei n. 38/2003, de 8 de Maro), o critrio da disponibilidade utilizado para aferir da arbitrabilidade do objecto. Neste caso, muito discutida na doutrina a questo de saber se este ser o melhor critrio, propondo-se em alternativa, por exemplo, o critrio da patrimonialidade do direito. (A este propsito, ANTNIO SAMPAIO CARAMELO, "A disponibilidade do direito como critrio de arbitrabilidade do litgio", 2006, p. 1243). Para a conciliao, este critrio no tambm o mais adequado porque restringe demasiado o objecto. Se aplicado conciliao, ficariam de fora, por exemplo, grande parte das questes de famlia, como o caso do poder parental.80

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pode ser til naquele caso, ou s partes, que manifestam a sua vontade de participar numa tentativa de conciliao atravs de um requerimento conjunto, como veremos no ponto 5.3. Tal no significa que, realizando-se a conciliao, as partes possam praticar, livremente, qualquer acto sobre qualquer direito. Deve observar-se no processo civil o princpio da